Licenciatura em Artes visuais Percurso 1
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Fundamentos da Arte na Educação

Autora

Drª Anna Rita Ferreira de Araújo Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo (2012) . Concluiu graduação em Educação Artística - Habilitação Artes Plásticas pela Universidade Federal de Goiás (1990), Especialização em Artes Visuais pela mesma instituição (1998) e mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo (2003). Atualmente é professora adjunto da Universidade Federal de Goiás. Autora do Livro "Encruzilhadas do olhar no ensino da arte"(978857706017-7). Editora colaboradora da Revista Digital Art& (1806-2962). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Visuais, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professores e ensino/aprendizagem de artes. Atua voluntariamente como arranjadora e produtora musical para projetos musicais beneficentes.

Saiba mais

Apresentação

Prezado(a) aluno(a).

Seja muito bem-vindo(a) à disciplina Fundamentos da Arte na Educação. Esse tema pretende propiciar a você a reflexão e o conhecimento sobre as bases teóricas e conceituais do ensino de arte. Vamos iniciar nossa conversa sobre a arte e seu ensino, buscando as bases teóricas e conceituais desse assunto. Claro que também vamos conversar sobre as nossas ideias, as minhas e as suas, acerca do tema. Afinal, com certeza, tanto eu, como você e os demais colegas temos nossas opiniões e será muito importante trocarmos “nossas figurinhas”.

Temos pela frente uma grande tarefa e, assim sendo, lhe desejo-lhe uma ótima jornada de aprendizado.

Abraços, Profª Anna Rita F. de Araújo

Unidade 1: Arte – Conceitos e Concepções

Vamos iniciar nossas reflexões acerca da arte? Não é meu objetivo aprofundar os temas, mas sim iniciar o seu estudo e reflexões acerca deles. Afinal, o que é arte? Como defini-la e conceituá-la?

Essas são questões de fundo para todo aquele que se dedica à arte, e, especialmente, deve ser foco de questionamento daqueles que se dedicam ao ensino da arte. Sendo assim, espero que os conteúdos apresentados nesta unidade possam lhe servir como essa base que, ao longo de seu curso, será ampliada, à medida que os outros conteúdos venham a se somar e articular.

Você já parou para pensar nessa questão? É bem possível que você já se tenha feito essa pergunta. Mas você já conseguiu definir a resposta? É possível que não ou pelo menos ficou um pouco confuso(a). Afinal, o que é arte? Procure pensar um pouco sobre essa questão.

Não creio que eu vá também responder com muita exatidão, mas buscaremos juntos neste texto encontrar possíveis respostas para essa pergunta.

Vamos iniciar nossa reflexão pela tentativa de definir arte. Buscaremos, em alguns teóricos, a maneira como estes definem a arte. Antes disso, olhe com atenção as Figuras 1, 2 e 3 e se pergunte quais delas podem ou não ser definidas como arte.

Figura 1 – Detalhe de "Roda de Bicicleta"
Figura 2 – Altar de igreja
Figura 3 – Detalhe de "As Meninas"
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Imagino que, ao olhar as imagens, algumas rapidamente lhe remeteram à ideia de arte (como exemplo, as Figuras 2 e 10) e outras, por alguns instantes, deixaram-lhe em suspenso, tal qual a Figura 1. É essa a dúvida que sempre nos persegue ao tentarmos definir a arte. Se, por um lado, apenas algumas coisas nós podemos afirmar como arte, por outro lado, às vezes, quase tudo, nós podemos olhar como arte. Então, como definir o que é e o que não é arte?

Primeiramente, é importante ressaltar que todo o recorte de nossa conversa, neste texto, sobre arte será pelas artes visuais e, mais especificamente, pelas plásticas. Fiz essa escolha em função de aproximarmos o olhar da área específica de formação com a qual trabalho, que é a das artes visuais, mesmo que muitos conceitos aqui tratados possam ser ampliados para as outras linguagens artísticas.

Arte, no latim ars significa técnica ou habilidade e, geralmente, pode-se entender como arte toda manifestação humana de ordem estética. Entendendo, por isso, a necessidade de ordenar os objetos e ações dentro de um conceito de plasticidade (daquilo que nos parece belo, organizado e funcional, mesmo que para os olhos dos outros não o pareça). Mas existem manifestações humanas que não estejam impregnadas da ordem estética?

Glossário

Estética (do grego αισθητική ou aisthesis: percepção, sensação) é um ramo da filosofia a que tem por objecto o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. Ela estuda o julgamento e a percepção do que é considerado belo, a produção das emoções pelos fenômenos estéticos, bem como as diferentes formas de arte e do trabalho artístico; a ideia de obra de arte e de criação; a relação entre matérias e formas nas artes.

Ao distribuir os móveis em nossa casa, temperar e decorar um prato culinário de nossa preferência, ou mesmo optar pelas roupas que nos vestirão melhor, não estamos realizando ações necessárias e, de fundo, estéticas? O ser humano é um ser estético por natureza.

Reside aí a dificuldade de se definir o que é arte, pois qualquer manifestação ou objeto, fruto da ação humana, pode ser chamado de arte, desde que alguém o defina assim, independente de ter ou não sido feito por alguém, reconhecidamente, denominado artista. O autor e historiador de arte E. Gombrich (1978) diz que “nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas”. Considerando essa afirmação, podemos refletir que não são os objetos, mas sim os sujeitos que devem ser compreendidos como produtores da arte, e que todo o trabalho e ação pode vir a ser arte. Poderíamos ir mais além e pensar que, em sendo assim, todo mundo é um artista. E não estou sendo nada original aqui, já que essa afirmação já foi feita por Joseph Bueys, importante artista alemão contemporâneo. Outro artista americano, Andy Warhol, foi ao extremo expondo, em suas obras de arte, embalagens de sopas, caixas de sabão e outros objetos e imagens da sociedade de consumo americana (procure, na internet, imagens dos trabalhos desse artista).

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Mas então onde fica a diferenciação entre “tudo e todos” e aquilo que, comumente, é chamado de arte, que são os produtos oriundos das ações humanas nas áreas das artes visuais, da música, da dança e do teatro? Tal diferenciação é o que ocupa o centro das teorias e estudos da arte e da estética. Para tentar aproximar de uma definição, se é que é possível, vamos partir de algumas teorias essencialistas, pois estamos buscando aquilo que seria comum aos objetos artísticos e que poderia nos apontar para uma possível diferenciação.

Antes de examinar as teorias, vamos discutir dois aspectos importantes para a definição de arte, a classificação e a valoração. Muitas vezes, as pessoas se valem desses aspectos para definir o que é e o que não é arte. Por exemplo, quando você observou as imagens do início do texto, sua mente estava-se utilizando desses critérios, mesmo que inconscientemente, para escolher o que ali lhe parecia arte ou não. No caso da obra número 2, claramente você a definiu como arte, por ser uma obra de “valor” artístico universal e, ao mesmo tempo, “classificada” como obra de arte por toda a crítica especializada.

Mas na primeira imagem, do banco com roda de bicicleta, do desenho infantil e do prato de comida decorado, você se perguntaria: como classificar e valorar essas imagens? A Figura 1 é classificada como arte contemporânea, tem autoria e está em um museu arte, que lhe afirma a condição de objeto artístico pelo seu valor estético. Independente de acharmos bonito ou não, interessante ou até mesmo criativo, essa composição é considerada arte, mesmo que para você não o seja. O desenho de criança é uma expressão classificada como arte infantil, mesmo que para a “grande arte” não tenha valor histórico ou monetário, a menos que fosse de um importante artista quando criança.

Figura 4 – Escultura Karajá
Figura 5 – Fotomontagem
Figura 6 – Exemplo de desenho infantil
Figura 7 – Exemplo de tatuagem
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Esse desenho possui um valor estético daquele que o fez e é considerado uma expressão artística, mesmo que, para muitos, não passe de um “desenhozinho” de criança. E o prato decorado? É uma expressão criativa de alguém, que se utilizou de objetos do cotidiano, como o Andy Warhol com suas embalagens. Mas onde classificaríamos esse prato e qual seria seu valor artístico? Por que alguém pagaria muito dinheiro pela latinha de sopa de Warhol e nada pelo prato de comida decorado de carinha?

Você pode definir outras imagens das apresentadas como arte pela classificação e valor do que lhe parece ou não belo, como no caso da tatuagem.

Para quem acha tatuagem um horror, nenhuma delas será vista como arte, mesmo que as tatuagens possam ser classificadas como bodyart2 e tenham o seu lugar garantido no rol das artes. Já a gaivota pousada no toco, você poderia dizer que é uma bela obra de arte da natureza. Mas a natureza não é uma arte e sim uma fonte para a arte.

Por que essa distinção? A natureza por si é fonte porque possui uma ordenação estética, e é essa ordenação que inspira, ensina e instiga os sujeitos em suas práticas artísticas. No caso da gaivota, ela não seria a arte, mas sim a fonte, o objeto foco para o fotógrafo que a clicou com sua máquina.

Mas qual a diferença artística entre a foto do profissional e aquela, tão legal, que você fez em suas férias? Afinal, existe diferença? Percebe como são muitas as nuances que interferem na definição do que é arte? Que tal voltar às imagens e pensar novamente sobre elas, levando em consideração, de maneira consciente, critérios de classificação e valor artístico?

Quando se consegue estabelecer critérios de classificação e valor para a arte, é possível definir os objetos artísticos. Tal definição passa pela história, pela cultura e por nossas percepções subjetiva e objetiva.

Algumas teorias essencialistas mais antigas diziam que uma obra é arte apenas se for uma imitação e produzida pelo homem. Dessa definição derivaram as concepções mais clássicas que viam na obra de arte a sua qualidade e valor quando ela representava, com precisão e habilidade, as imagens do mundo. Não é à toa que uma pintura, como a Mona Lisa de Da Vinci (Figura 10), veio ao longo da história, tão valorizada e aclamada como obra prima da arte.

Você já se viu diante de uma imagem artística e ficou impressionado com a perfeição da imitação do real e disse: – “Puxa, isso é que é arte!”? Creio que muita gente já se viu nessa situação. Mas uma teoria como essa encontra muitos obstáculos, pois há várias obras de arte que não são imitação de nada, como por exemplo, as obras não figurativas. E como ficaria a Figura 1 apresentada anteriormente? Ela certamente não figuraria entre as escolhidas como arte, pois se distancia da imitação e representação do real. Mas, atualmente, como já foi dito, essa obra de Duchamp é compreendida como arte. Isso porque as definições sobre arte se transformaram ao longo do tempo, e a imitação já não é mais um critério decisivo para a definição de arte.

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Figura 8 – Fotografia. Ana Flávia Cador, 2016.
Figura 9 – A dança de Matisse
Figura 10 – Leonardo da Vinci. “Mona Lisa”

Outra teoria essencialista, já do período romântico, mas até hoje ainda muito aceita, definia que uma obra só é arte se exprimisse os sentimentos e as emoções do artista. Sendo assim, uma obra é melhor e mais valorada quando consegue exprimir os sentimentos do artista que a criou. A Dança, de Matisse (Figura 9) , é uma obra de arte que, particularmente, sempre me causou impacto, justamente pela expressividade da imagem. Mas quais seriam os sentimentos de Matisse quando a fez?

Diante de uma obra de arte você se viu, assim como eu, impressionado (a) pela expressividade que o artista foi capaz de transmitir? O que você pensou sobre o que o artista estava sentindo quando a fez? Geralmente, quando isso acontece, não temos dúvida em dizer que estamos diante de uma obra de arte.

Mas como ficam as obras que não nos causam esse tipo de sensação ou mesmo não transmitem a expressividade do artista, como no caso das obras abstratas? Elas não seriam arte? Fica claro, que as teorias expressionistas não atendem plenamente às necessidades de definição da arte.

Já aconteceu com você de estar diante de uma obra de arte e seus pensamentos e emoções ativarem? Se sim, essa é daquelas situações em que não duvidamos da qualidade artística do objeto. E, rapidamente, definimo-lo ou, pelo menos, sentimo-lo, como arte.

Umberto Eco, como um dos formalistas, defende que a definição do objeto estético está na análise do processo interpretativo da forma, e que cada obra de arte tem suas próprias regras compositivas que a faz aberta às diferentes interpretações realizadas pelos expectadores. Vamos pegar, como exemplo, a escultura da imagem 4, que pode ser interpretada em sua forma compositiva por diferentes concepções e sentimentos a serem causados.

Sentimentos interpretativos que vão desde a reverência ao assombro, passando pela contemplação.

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Nessas três linhas teóricas apresentadas, percebemos, num primeiro momento, o foco da busca de definição da arte no objeto em si; num segundo momento temos esse foco voltado para o(a) artista, sendo ele (a) a pessoa capaz de criar os objetos da arte; e, num terceiro momento, o foco está no(a) apreciador (a), ficando nele(a) a palavra final sobre o que é e o que não é arte. É, diante de tantas teorias e cada vez mais distante da possibilidade real de definição de arte, que compartilho com Argan (1994), adepto da teoria formalista, que nos diz que o conceito de arte não se define, pois sempre estará ligado a um tipo de valor. “Este está sempre ligado ao trabalho humano e às suas técnicas e indica o resultado de uma relação entre uma atividade mental e uma atividade operacional”.

Aqui cabem inúmeras obras da atividade humana que resultam dessa relação, mas o que define um objeto como artístico é justamente a sua “forma” e a consciência de quem a recebe e a julga como tal. É a relação de significante e significado. Aquilo que para uma cultura pode ser considerado objeto artístico, para outra não o é e vice-versa. É por isso que, ao tratar de arte, sempre nos ligamos à cultura, pois é na cultura que a arte se manifesta como um objeto que a reflete e, ao mesmo tempo, é essa cultura que afirma e dá ao objeto o status de arte. Para um europeu, que tem na Mona Lisa um ícone inestimável da arte produzida em sua cultura, a escultura Karajá poderá não passar de um mero artefato de uma cultura primitiva e exótica. Já para um membro da tribo, que tem em sua estatueta um símbolo mítico e representante de sua identidade estética, a Mona Lisa poderá não passar de um mero objeto de estranha curiosidade.

Concluímos, até aqui, que a definição do que é arte está ligada à cultura. E como objeto de uma determinada cultura, a arte passa a ter uma função dentro da sociedade que a produz. Passemos a examinar esse aspecto.

1.1 Compreensão social da Arte

Se não foi nada simples buscar uma definição para a arte, será também complicado se buscar uma resposta à seguinte questão: tem a arte uma função social? Expandindo a questão, já que compreendemos e defendemos que a arte possui uma função social, qual a importância da arte e como ela se inter-relaciona com a história, a sociedade e nossas vidas?

Historicamente, a arte sempre esteve presente na vida e nas sociedades humanas. Desde os homens primitivos até a atualidade e vai continuar presente. Só essa constatação nos mostra que a arte possui uma função social, pois, se assim não o fosse, já teria sido abandonada. Mas qual ou quais seriam essas funções? Quando perguntamos isso, as pessoas respondem das mais variadas formas, revelando conceitos que permeiam suas respostas. Observe essas frases:

A função da arte é...

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  1. humanizar as pessoas;
  2. expressar a identidade cultural de um povo;
  3. propiciar a fruição do belo;
  4. guiar as pessoas para o caminho do bem;
  5. instigar as pessoas a pensarem sobre si mesmas, sobre o mundo e a cultura;
  6. colorir o mundo;
  7. potencializar as capacidades humanas;
  8. treinar as mentes;
  9. ampliar o conhecimento humano;
  10. refletir a sociedade;
  11. subverter a ordem;
  12. elevar o espírito;
  13. educar a sensibilidade;
  14. dar existência ao mundo mítico;
  15. dar forma ao pensamento estético;
  16. lançar luzes à razão;
  17. romper com o antigo;
  18. entreter e divertir as pessoas;
  19. surpreender os sentidos;
  20. dar sentido ao mundo simbólico dos seres humanos;
  21. exercitar o imaginário;
  22. formar cidadãos;
  23. libertar as mentes;
  24. provocar o pensamento crítico;
  25. expressar os sentimentos;
  26. propiciar a afirmação da individualidade;
  27. criar novas bases para a humanidade.
Para refletir

Como você completaria a seguinte frase?

A função da arte é...

Ao observar essas frases, podemos concordar mais com umas do que com outras. Isso porque a nossa compreensão sobre a função da arte está atrelada às nossas concepções, formação histórica, cultural, social e pessoal. São todos esses aspectos que influenciam a nossa maneira de compreender a realidade e os aspectos que a envolvem. A arte é um dos aspectos indissociáveis da vida individual e social. Em cada época e em cada sociedade, a arte teve e tem a sua função. Por exemplo, nas sociedades pré-históricas, a função da arte, como na afirmação número 20, era dar existência ao mundo mítico, não só existência, como também explicação e sentido. Já na sociedade grega clássica, a função da arte se aproximava das afirmações 3 e 4, pois, para o grego, beleza e bem eram sinônimos.

Assim sendo, tinha a arte a função, pela sua fruição, de guiar os homens ao belo, por assim dizer ao bem. Outra forte concepção clássica diz respeito às afirmações 12 e16, pois a arte de espírito elevado seria aquela que levaria luzes à razão humana.

Platão defendia essa idéia, principalmente ao falar da música. Já as artes plásticas, que para ele eram uma imitação do real que por si era uma imitação do mundo ideal, falseavam e distanciavam os homens do mundo das idéias. Perceba como estes conceitos de belo, bom, razão e espírito estavam entrelaçados na sociedade grega. Na era cristã medieval, as afirmações 12 e 16 já não tinham o mesmo entrelaçamento de sentidos, pois a arte tinha função de elevar o espírito, não na direção da razão clássica, mas sim na direção de uma mente superior, que era a mente divina. E nas afirmações 3 e 4, o caminho do bem não era sinônimo de belo, mas sim da atitude cristã de veneração e obediência.

Você percebe como os conceitos não são fixos e nem possuem um sentido único? No mundo moderno, tivemos uma sucessão de entrelaçamentos de concepções sobre a função da arte. Tivemos momentos em que concepções racionalistas e funcionais dominavam, enquanto, em outros momentos históricos, as concepções expressivas e intuitivas tiveram sua predominância. Você conseguiria identificar, nas frases apresentadas, concepções racionalistas, funcionais, expressivas e intuitivas?

Tivemos momentos históricos em que o desejo de mudança conferia à arte a função de romper com o antigo e criar novas bases para a humanidade. Ao passo que, em tempos de afirmação ideológica e autoritarismo, a arte era usada como treinamento das mentes e, na corrente contrária, ela tinha a função de resistir, subverter e libertar as mentes.

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Para os humanistas, a arte forma a cidadania pela humanização e potencializarão das capacidades humanas. Os adeptos da teoria crítica conferem à arte a possibilidade de formação da cidadania pelo pensamento crítico e autônomo.

Na atualidade, a indústria cultural impõe à sociedade a era da arte como entretenimento e diversão, enquanto as teorias culturais veem na arte a possibilidade de instigar as pessoas a pensarem sobre si mesmas, sobre o mundo e a cultura, dando sentido ao mundo simbólico humano.

É importante observar que, ao longo de nossa história, as afirmações sobre a função da arte foram tomando e constituindo sentidos para os sujeitos e as sociedades. As áreas do conhecimento, como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, as ciências e as artes, a cada tempo e espaço, compreenderam e afirmaram a função da arte em vista de seus postulados. Ponto comum é entendermos que a função da arte sempre foi e será expressar a identidade cultural das sociedades e daqueles que a produzem. É em vista dessa constatação que podemos perceber a importância da arte e como ela se inter-relaciona com a história, a sociedade e nossas vidas. Através das artes temos a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam a sociedade ou grupo social, seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A arte, como uma linguagem de apresentação dos sentidos, transmite significados que não podem ser transmitidos de nenhum outro tipo de linguagem, tais como as linguagens discursiva e científica (BARBOSA, 1984).

1.2 Conceitos de Arte

A Fábula da cigarra e a formiga

Tendo cantado a cigarra durante o Verão,
Apavorou-se com o frio da estação.
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ter com a formiga, sua vizinha,
Pediu-lhe alguns grãos para se saciar,
Ate vir a época mais quentinha!
“Eu pagarei”, disse ela,
“Antes do Verão, palavra de animal,
Com juros e o capital.”
A formiga não gosta de emprestar,
E um dos seus defeitos.
“O que fazia amiga cigarra no calor de outrora?”
Perguntou-lhe com alguma esperteza.
“Noite e dia, eu cantava,
Sem querer dar-lhe desgosto.”
“Cantava? Que beleza!
Pois, então, agora dance!”

La Fontaine

A fábula de La Fonataine transmite uma lição a ser aprendida. Qual é a moral da estória? Quem é sério trabalha e sobrevive, e quem não leva a vida a sério e não trabalha morre à míngua. O que mais que essa estória ensina? Essa fábula passa, claramente, um conceito sobre a arte e os artistas, nela personificados na cigarra e em seu cantar. Já a formiga é trabalhadora e não é franciscana para ter piedade, nem capitalista, pois se assim o fosse, emprestava e depois cobrava os juros e o capital. Como simples trabalhadora, em uma época em que “ser politicamente correto” ainda não estava na moda, a formiga mostra a rigidez e a insensibilidade de sua personalidade ao deixar a “cigarra artista” à própria sorte.

“Portanto, crianças, não queiram ser artistas, pois esses não são sujeitos sérios e nem trabalham, pois só os trabalhadores metódicos, rígidos e insensíveis (afinal sensibilidade é bobagem) é que sobrevivem e se perpetuam nesse mundo.”

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Fico imaginando quantas não foram as pessoas que aprenderam e ainda aprendem com essa fábula, pois muita gente por aí continua achando que arte não é coisa séria e muito menos que quem a faz pode ser levado a sério. Claro que muitos artistas reforçam essa fama. Outro dia, vi, na televisão, um programa que falava sobre as “celebridades” do mundo da arte que ganhavam milhões, gastavam horrores com excentricidades e acabavam pobres abandonadas e esquecidas.

Bom, fico pensando que essas celebridades da arte não ouviram a fábula “a cigarra e a formiga” quando criancinhas. Deixando a ironia de lado, seria importante analisarmos essas situações aqui apresentadas, pois nelas vemos como sutilmente, ou não, e pela própria arte, os conceitos sobre a arte são assimilados pelas pessoas em geral.

Você já se perguntou quais são os seus conceitos sobre arte?

Neste texto, buscaremos refletir sobre alguns conceitos a fim de continuar nossa trajetória de reflexões acerca da arte. No texto-base 1, tratamos das possíveis funções e definições da arte. Pudemos perceber que lidar com arte é sempre estar aberto às ideias e nunca fechados em verdades prontas e definitivas. Pensar sobre arte requer flexibilidade de pensamento e atitude de construir e desconstruir conceitos a cada momento. Gombrich (1978) fala que “nunca se acaba de aprender acerca da arte. Há sempre novas coisas a descobrir”.

Para iniciarmos nossa reflexão, pense nos objetos que você tem em sua casa: móveis, quadros, enfeites, utensílios, objetos pessoais,... Qual seria o estilo e qual a origem desses objetos? Onde você os adquiriu? Pagou muito ou pouco? Qual o valor deles para você?

Agora, vamos brincar de faz-de-conta. Imagine como se você fosse um membro da família real inglesa. Como seriam os objetos a sua volta? Qual seria o estilo e qual a origem desses objetos?

Continuando o faz-de-conta, imagine-se agora como membro de uma tribo indígena. Como seriam os objetos a sua volta? Qual seria o estilo e qual a origem desses objetos?

É possível que, ao pensar nas três situações propostas, você deve ter visualizado objetos de estilo e origem muito distintos entre si. Imagine-se tomando água filtrada no copo industrializado de vidro de requeijão que usa em sua casa, depois pense no copo lapidado de cristal da Bavária com água gaseificada de fonte natural que usaria no Palácio de Buckingham e no copo moldado de barro cozido que usaria para tomar água limpa do rio que passa em frente a tribo. A ideia de água e copo são as mesmas nas três situações, mas a origem e forma das águas e dos copos são completamente diferentes.

Poderíamos conceituar o copo industrializado da sua casa como um objeto da cultura de massa, já o copo lapidado do palácio como um objeto da cultura erudita, e o copo moldado da tribo como um objeto da cultura popular. Há algum tempo, copos de diferentes culturas jamais habitariam um mesmo espaço, mas, atualmente, as coisas já não são mais tão separadas assim, pois é provável que você tenha um copo de cristal na sua casa, da mesma maneira que, na tribo, tenha-se um copo de vidro industrializado e, quem sabe, em Buckingham haja um copo de barro dos índios brasileiros, presenteado à rainha, como um artesanato da cultura brasileira.

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Às vezes, é preciso separar as coisas para que possamos compreendê-las; mas, na vida e na cultura, elas estão entrelaçadas. Usei o exemplo dos copos para pensarmos sobre os objetos da arte enquanto objetos produzidos pela cultura. Não é a questão discutir se os copos são ou não arte, pois sobre isso nós já conversamos no texto anterior. A questão central é entendê-los como símbolos de objetos da cultura erudita, popular e de massa.

Vou, a seguir, apresentar breves definições dos três conceitos. Afinal, o que podemos entender por arte erudita, popular e cultura de massa?

Arte erudita são objetos produzidos para ser apreciados pela elite econômica e intelectual da sociedade, por artistas que realizam suas obras a partir de um pensamento elaborado nas academias e universidades, por meio das pesquisas, leituras e estudos dos domínios técnicos e teóricos.

Os objetos das artes clássicas de origem europeia e das vanguardas são denominados eruditos.

Para Bosi (1986), o erudito se aproxima da definição de cultura dos gregos e latinos antigos, que conferiam à arte um caráter de autoconhecimento e descoberta do belo – o entendimento da arte como uma linguagem específica que exige, para seu deleite e apreciação, uma educação específica, intelectualizada e sensível.

Arte Popular. Os objetos da arte popular são aqueles produzidos pelas classes populares, excluídas e dominadas. Não possuem um caráter intelectualizado e universalizado como a arte erudita.

O artista popular se inspira no seu cotidiano e no imaginário popular para produzir obras de caráter intuitivo e regional, que, muitas vezes, perdem a identidade autoral. Os objetos artísticos populares podem ter a mesma sofisticação estética dos objetos da arte erudita, mas eles não gozam do mesmo status social.

Para Habermas (1987), a cultura é o armazém do saber humano. A arte popular é o depositário fiel das relações mais orgânicas entre os sujeitos, a sociedade e a natureza. Apesar de, historicamente, a arte popular ter sido desvalorizada pelas elites, hoje em dia, essa mesmas elites a olham com outros olhos e reconhecem nela seu valor estético e artístico. Infelizmente, a cultura popular está sendo esmagada pela cultura de massa, que vem tomando seu espaço nas comunidades populares.

Cultura de Massa é um fenômeno que surge no século XX, nos aglomerados urbanos, pós-revolução industrial e tecnológica. Deriva da criação e existência da indústria cultural e se coloca na intersecção entre a cultura erudita e a popular, já que seus produtos são consumidos por pessoas das duas classes. Os objetos dessa cultura são artefatos fabricados em escala industrial e distribuídos massivamente para um público genérico, com um perfil a ser induzido pela própria indústria, que cria e condiciona as demandas de consumo.

Para Bosi(1986), a cultura de massa, com seu poder midiático, tenta suplantar e alterar os valores da cultura popular. Realiza uma massificação que desvaloriza o que é folclórico, espontâneo e que não tem como fim o consumo e o comércio.

Exemplificando, a indústria cultural vende para as classes populares a ideia que um colar de contas de plástico é muito mais barato, simples para adquirir e fica igualzinho ao da atriz da novela da televisão. Ao passo que um colar de contas naturais é trabalhoso para se fazer, não combina com as análise da produção artística, da pré-história até a atualidade. Só para citar alguns, temos a arte contemporânea, arte moderna, arte antiga, arte pré-histórica, arte pré-colombiana, arte oriental, africana, abstrata, figurativa, ilustrativa e assim se segue, quase que infinitamente. Não cabe apresentá-los nesse momento.

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O mais central agora é destacarmos como a arte e seus conceitos nos cercam o tempo todo e estão imbricados em nossas vidas; mesmo que inconscientes, captamos esses conceitos pela nossa intuição e subjetividade. Falta, para a maioria das pessoas, o acesso a um processo consciente de reconhecimento da arte e seus conceitos, que só a educação cultural e a educação da arte podem realizar.

Essa tomada de consciência tem o potencial de libertar as pessoas da perversa dominação cultural exercida pelas nações que, historicamente, estão no comando da economia mundial. Tais nações (americana do norte e europeias), proprietárias da indústria cultural, vêm impondo padrões estéticos, artísticos, culturais e de consumo ao mundo globalizado. Expropriam as nações mais pobres de seus bens e identidades artísticas e culturais com a intenção de preenchê-las com suas referências capitalistas e dominantes.

A educação poderia ser o mais eficiente caminho para estimular a consciência cultural do individuo, começando pelo reconhecimento e apreciação da cultura local. Contudo, a educação formal no Terceiro Mundo ocidental foi completamente dominada pelos códigos culturais europeus e, mais recentemente, pelo código cultural norte- americano(...). Todas as classes tem o direito de acesso aos códigos da cultura erudita porque esses são os códigos dominantes – os códigos do poder. E necessário conhecê-los, ser versado neles, mas tais códigos continuarão a ser um conhecimento exterior a não ser que o individuo tenha dominado as referencias culturais da própria classe social, a porta de entrada para a assimilação do ‘outro’(...). A arte capacita o individuo a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio pais. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o individuo no lugar ao qual pertence. (BARBOSA, 1984)

Diferente da cigarra da fábula, o(a) artista não está no mundo apenas para distração e entretenimento. Ele(a) tem papel fundamental, pois, diante do mundo, é o(a) artista que interroga, questiona, brinca, reflete, xinga, ama, odeia, faz amor, faz sexo, vive, morre, entrega-se, foge, implora, nega, diz, não diz, sussurra, grita, silencia, implode, explode, atrasa, acelera, esconde, revela, desvela, ilude, briga, quebra, constrói, desconstrói, sorri e chora. Tudo isso só para criar e recriar o mundo para que possamos viver nele com mais desejo, conhecimento, emoção, aventura, descoberta, dúvida e intensidade.

O objetivo aqui, na temática de Fundamentos do ensino de arte, é propiciar uma base de reflexões acerca da arte, de seus objetos e dos sujeitos que os produzem. Essa introdução reflexiva se faz necessária para a compreensão dos aspectos que envolvem a arte e seu ensino. Na sequência, vamos voltar nosso foco para os produtores da arte, ou seja, os(as) artistas.

1.3 Arte como vida e profissão

Retomando Gombrich (1978), “nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas”. Podemos então perguntar: Quem é artista?

Novamente, estamos diante de uma daquelas perguntas da arte em que nos vemos às voltas com respostas abertas e imprecisas. Pois, se, como já estudamos, é na cultura que os objetos são validados como arte, como fica o sujeito que produz os objetos? Estendendo o conceito, podemos assim entender que é na cultura que os artistas são reconhecidos como tal. Fica então a possibilidade de se responder à questão sobre quem é o artista pela compreensão que cada cultura tem sobre o tema. Nessa perspectiva, pode-se entender como artista desde uma comunidade inteira até uma minoria de pessoas. Cada sociedade construirá seus conceitos e definirá esses papéis.

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Se eu perguntasse quem é artista, o que você responderia? E aí na sua cidade, quem são os artistas?

Seriam os(as) artistas da televisão, do rádio e do cinema? Os(as) poetas, escritores, artistas plásticos, cantores, músicos, bailarinos e atores? Poderíamos incluir, nessa lista, os(as) arquitetos, designers de toda natureza, fotógrafos, projetistas, estilistas, chefes de cozinha, cineastas, diretores artísticos e publicitários? Também poderíamos incluir aí artesãos de todos tipos, cantores e atores populares, artistas de circo, repentistas, tocadores, quituteiros e dançarinos folclóricos?

E aquelas pessoas que fazem coisas especiais, não para sobreviver ou comercializar, mas fazem para si mesmas e para os seus? Como por exemplo, a avó de um(a) amigo(a) que faz, para o domingo, empadões divinos de se comer de joelhos? O(a) amigo(a) que desenha como ninguém e sempre o salvava nas tarefas de arte na escola? O(a) tio(tia) que, nas festas de família, canta e toca músicas para alegrar e confraternizar todos? E você, poderia estar na lista?

Num primeiro olhar, todos podem estar na lista, mas o que diferencia todas essas pessoas para que possamos entendê-las como artistas? Primeiramente é o modo como produzem seus objetos artísticos; em segundo lugar, o resultado estético de sua produção; e, por último, mas não menos importante, o papel que exercem na sociedade.

Não existe uma única concepção sobre o modo de produção da arte. Cada corrente teórica terá a sua maneira de compreender. Em síntese, as correntes clássicas compreendem o processo de produção pela técnica empregada. Nas teorias clássicas, o rigor e apuro técnico eram os objetivos a serem alcançados pelos artistas. Michelangelo, ao bater seu cinzel em um bloco de mármore, intencionava retirar dali a imagem mais perfeita possível.

Os pintores clássicos almejavam a pintura ideal, aquela que, ao ser olhada, desse a impressão de que se poderia entrar na paisagem e habitar com os seres que ali estavam.

Já as correntes românticas compreendem o processo de produção pela expressividade alcançada. Um artista romântico precisava se debruçar sobre o seu trabalho, não focado na técnica a ser empregada, mas sim na intensidade de sua verdade subjetiva e emocional. Seria como se sua alma, com todas as suas paixões, impregnasse cada cor, som, movimento ou palavra expressada.

Os racionalistas e conceitualistas compreendem o processo de produção pela ideia-conceito a ser construída na obra. A obra é o resultado de um processo racional, na maioria experimental, em que o emprego dos materiais e técnicas está submetido à ideia do artista. Não é a obra que dialoga com o expectador, mas sim o conceito que ela traz consigo.

Essas correntes influenciaram e ainda influenciam muitos artistas. Cada artista tem um modus operandi de conceber e realizar seu trabalho artístico.

Fato é que o processo de realização artística é uma ordenação simbólica de aspectos sensíveis e racionais entrelaçados na operacionalização da forma a ser entregue ao mundo. O(a) artista é aquele que faz arte para si e para o mundo; a sua obra não lhe pertence, mas sim ao mundo. Até porque foi do mundo que ele(a) a retirou. É o mundo que oferece ao artista a matéria-prima de sua obra, ou seja, os materiais, as imagens, as situações, etc.

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Outro aspecto fundamental é compreender que o processo de realização artística é um processo de aprendizagem, Dufrenne (1981) diz que “a arte recusa a improvisação, ela exige sempre a aprendizagem e o contacto com a tradição”. É essa aprendizagem que o coloca de posse de técnicas e meios de expressão que o libertam e não o escravizam, fazendo que esteja sempre em movimento reflexivo e sensível. Podemos encontrar modos de produção aqui apresentados em artistas das mais variadas culturas e classes sociais: eles não são privilégio apenas dos eruditos.

Cabe aqui acrescentar que o objeto artístico carrega um valor estético. Esse valor estético é aferido por um juízo que reconhece ou não seu valor enquanto obra de arte. Isso pode ser realizado por vias intelectualizadas e intuitivas. O crítico de arte vai se valer de todo o seu conhecimento sobre arte (técnicas, história, estética) acrescido de sua sensibilidade, pois arte precisa ser, essencialmente, sentida, para emitir seu juízo e intuir o valor estético da obra (Argan, 1992).

Mas pensemos nas pessoas que não são especialistas em arte. Elas também podem intuir juízos de valor sobre a arte. Não muito diferente do crítico, elas vão se valer de seu conhecimento, que pode ser mínimo em relação às especificidades da arte, mas a sua vivência lhes confere um tipo de conhecimento, acrescido de sua sensibilidade, para sentir o objeto e intuir sobre seu valor estético. Os critérios de juízos de valor são inúmeros e passam pelos conceitos e preconceitos sobre arte. Podemos elencar alguns como beleza, apuro técnico, inovação, criatividade, destreza, imaginação, gosto pessoal, expressividade, temática, entre outros.

Espero que esse texto tenha cumprido seu papel, que era o de levá-lo(a) a refletir sobre a arte, sua função e seus desdobramentos na sociedade humana, bem como introduzir os diferentes conceitos que a envolve. As ideias apresentadas são introdutórias e com o intuito maior de instigar do que responder, de despertar o desejo de continuar a caminhar pelo conhecimento sobre a arte.

Unidade 2: Fundamentos da Arte na Educação – Princípios Teóricos

Nessa unidade, proponho um estudo das principais bases teóricas do ensino da arte no Brasil. Convido você para conhecer os pressupostos dos autores que mais inspiraram as práticas da educação da arte para as crianças brasileiras, do início do século XX para cá. Você irá ler, a partir de um roteiro de estudo, textos de referência de Jonh Dewey, Herbert Read e Ana Mae Barbosa. Cada um destes pesquisadores pensou o ensino da arte com concepções que propunham. Dewey trata a arte como base da experiência democrática e para a liberdade. Read pensa a arte como base da educação, defendendo a livre-expressão. E Barbosa defende a arte como conhecimento e emancipação dos sujeitos pela educação visual e multicultural.

Posteriormente, no módulo de História do ensino da arte, você irá situar esses autores no contexto histórico brasileiro; e, nas Metodologias do ensino da arte, será possível compreender melhor as influências desses autores nas práticas pedagógicas do ensino da arte no Brasil. Assim, espero que os pressupostos teóricos, que terá contato neste módulo, possam lhe ajudar no restante de seu curso.

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Compreenda o quanto é importante ler os textos originais (dos próprios autores), pois esses, melhor de que alguém falando sobre eles, é que nos possibilitam os conhecimentos mais profundos. É como ir à fonte beber da água limpa. Vamos então continuar nossa jornada?

Objetivo geral: conhecer os pressupostos e seus autores básicos para o ensino de arte no Brasil.

Objetivo específico: compreender o ensino da arte como expressão, experiência, conhecimento e cultura: diferentes concepções para o ensino da arte, que nos influenciaram e nos influenciam até a atualidade no Brasil.

Roteiro de Estudo

Texto-complementar 1: John Dewey: arte e ensino como experiência – Tendo uma experiência.

Texto-complementar 2: Herbert Read: arte e ensino como expressão – A livre expressão.

Texto-complementar 3: Ana Mae Barbosa: arte e ensino como experiência e cultura – A importância da imagem no ensino da arte/p>

2.1 O papel da Arte na Educação

Que tal iniciarmos esta unidade pela observação desta charge?

Figura 11 – Alex Sapiência. 2010. “O Pensador(?)”

Quando você olha essa charge, quais ideias surgem em sua mente? Eu perguntaria quais relações você poderia estabelecer entre essa charge, a educação e a arte?

Reflita: o que o jovem está fazendo pode ser considerado uma manifestação artística? Você conseguiria justificar sua resposta? Diante da preocupação esboçada pelo homem e da reação do jovem, quais conclusões podemos tirar sobre as concepções que cada um dos dois possui acerca do ato realizado pelo jovem?

Penso que o que já foi estudado até aqui somado ao que iremos estudar agora, poderá lhe dar subsídios para responder essas questões. Sendo assim, gostaria de convidá-lo a, nessa unidade sobre o papel da arte na educação, fazermos algumas reflexões sobre a importância da arte na escola e qual seria o papel do professor de arte.

Partindo de duas perguntas: Por que arte na escola? E qual o papel do professor de arte? Vamos discutir os desdobramentos dessas questões para a compreensão dos conteúdos a seguir.

Por que arte na escola? Você já parou para pensar nessa questão? É bem possível que a maioria das pessoas nunca se tenha feito essa pergunta, mesmo que talvez nunca tenham entendido direito o porquê tinham que desenhar, recortar, colorir e pintar em determinados momentos da rotina escolar. Muitos vão-se lembrar com prazer desses momentos, e outros vão sentir o oposto disso, pois não gostavam de desenhar e colorir. Gostando ou não, tendo boas ou más lembranças das aulas de artes, o certo é que elas estão lá, com maior ou menor qualidade.

Procure se lembrar de como eram as aulas, as atividades realizadas, os conteúdos e a postura de sua professora ou professor. Foram experiências instigantes, desafiadoras e que contribuíram positivamente para a sua formação e para o que você é hoje?

A resposta para essa questão pode nos dizer se afinal as aulas de arte tiveram alguma função e papel na sua vida escolar e social. Se você respondeu sim, ótimo, é sinal que elas de certa forma cumpriram o seu papel; mas, se respondeu não, será uma lamentável constatação. Independente da sua resposta, será preciso refletir sobre a função do ensino de arte. Afinal, por que e para que ela está presente em nossa formação escolar?

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A arte tem papel fundamental na formação do ser humano. Se assim não o fosse, ela não estaria presente em nossa sociedade desde a antiguidade.

Ela está em nossas vidas nas mais variadas formas da hora em que acordamos até a hora em que dormimos. Do nascimento à morte. O problema é que, muitas vezes, não nos damos conta dessa presença, e isso se dá em função do “anestesiamento” dos sentidos, provocado, em parte, pela perda gradual dos significados dos objetos e das relações em nossa vida social. Temos vivido essa perda mais intensamente nos últimos 60 anos, com a consolidação do mercado cultural.

A arte, ao se tornar um produto de bases comerciais, estabelece uma nova ordem das relações entre sujeitos e produtos da arte, que não se vinculam mais em função dos sentidos e valores míticos, simbólicos, estéticos ou culturais que os objetos artísticos carregam, mas sim pelo seu valor comercial e de mercado. “Esse mercado cultural distrai as pessoas ao ponto de incorrerem no risco de perder aspectos de suas próprias identidades culturais tradicionais” (Efland, 1998, p. 9). Os produtos do mercado cultural acabam camuflando e pasteurizando os objetos da cultura e da arte, contribuindo assim para o que chamo de “anestesiamento” dos sentidos.

Partindo dessa constatação, é possível afirmar que uma das funções do ensino da arte seria despertar os sentidos, tornando os sujeitos conscientes dos efeitos do mercado cultural para assim “terem liberdade de submeter-se ou resistir ao abuso de sua identidade cultural e individualidade” (Idem, 1998, p. 9). Afinal, é ela, que, nas suas diversas expressões e manifestações, dá sentido às nossas vidas e nos propicia a compreensão do mundo social e cultural. Como afirma Fischer (2002, p. 16), “a arte tem sido, é e sempre será necessária”.

Para Refletir

Você já imaginou sua vida sem as letras e sons das músicas? Ou sem as imagens da televisão e do cinema?

Pense em como seria seu dia-a-dia sem as manifestações artísticas.

Mas, se as diversas manifestações da arte povoam nosso cotidiano, por que a arte deve estar presente na escola como um conteúdo específico? Não basta a sua existência social? Aqui precisamos parar e refletir, já que assinalamos a necessidade de uma ação educacional para o despertar dos sentidos e significados dos objetos da arte em suas relações na nossa vida social.

A arte, enquanto fenômeno social e cultural, tem sua existência garantida pela própria necessidade humana de expressão e comunicação. Esse assunto já foi tratado na Unidade I, lembra-se? A partir dessa necessidade, já abordada anteriormente, outros aspectos tornaram-se necessários aos sujeitos ao longo da história humana. Um deles foi o aspecto educacional. Todo sujeito social é um ser aprendiz e docente, pois é dessa maneira que as culturas se perpetuam, ensinando e aprendendo os aspectos, os meios e os fazeres.

A função das artes através da história cultural humana tem sido e continua a ser a de ‘construção da realidade’. Isto não tem sido fundamentalmente alterado pelas investidas do pós-modernismo. A Arte constrói numerosas representações do mundo, as quais podem ser sobre o mundo real ou sobre mundos imaginários, inexistentes, mas a inspiração humana continua podendo criar uma realidade diferente para cada um deles. A realidade social inclui tais coisas como dinheiro, propriedade, sistemas econômicos, classes sociais, gênero, grupos éticos, governos, sistemas de cerimoniais religiosos e crenças, linguagens e similares. As artes são representações simbólicas dessas realidades. As artes são importantes pedagogicamente porque espelham essas representações de forma que podem ser percebidas e sentidas. (Efland, 1998, p. 12)

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Nesse sentido, os processos educacionais se constituíram nas mais diversas formas e concepções ao longo da história. Na unidade anterior, tivemos a oportunidade de refletir e conhecer um pouco mais especificamente algumas dessas formas e concepções. Foi possível ver que a arte, enquanto conteúdo escolar, pode exercitar e desenvolver aspectos do pensamento reflexivo e sensível, através de ações pedagógicas que propiciem os(as) alunos(as) perceber, expressar, conhecer e pensar sobre a arte. Esse processo de aprendizagem é fundamental, pois não basta estar diante da arte é preciso confrontar-se com ela. Esse confronto se dá através de ações mediadoras, em que os alunos e alunas se veem desafiados por seus professores a compreender, relacionar e fazer. Para Efland (1998), o propósito do ensino das artes seria contribuir com a compreensão dos “panoramas social e cultural habitados pelo indivíduo”. Ele segue seu raciocínio, alertando que as crianças do amanhã precisam das artes para torná-las capazes de “compreender e comunicar-se com os termos de sua sociedade”, sendo isso fundamental para o seu futuro nessa sociedade.

Quando olhamos para a escola real, no entanto, são raras as ações didáticas em artes que exercitam o que aqui chamamos de pensamento reflexivo e sensível sobre os aspectos da sociedade, das culturas e das artes. Pois a maioria das ações são desconectadas e expropriadas de sentidos e significações. São propostas pedagógicas que, geralmente, não provocam e não desafiam a percepção e a ação, simplesmente explicam e solicitam práticas estéreis, controladas e facilitadas.

Geralmente, são essas práticas aqui criticadas que produzem, na melhor das intenções e esforços, as “exposições de releituras de pinturas famosas”, nas quais pouco as crianças se reconhecem mediante os retoques da professora e em que mal compreendem por que aqueles autores ou obras foram selecionadas para serem copiadas. Se analisarmos todas, de A a Z, não veremos quase diferença alguma entre as produções dos(as) alunos(as).

Parece-nos que, no fundo dessas mostras de resultados de trabalhos artísticos, o que está em jogo para professores(as) e diretores(as) é a resposta positiva do olhar dos pais que esperam ver coisas “lindas”, mas com a falsa impressão de competência e autoria de seus filhos e filhas.

Para Refletir

Pensando sobre as releituras, reflita se seria essa a função do ensino das artes ou uma profunda e perversa distorção?

Afinal, quais seriam as percepções e leituras da comunidade escolar sobre o ensino de arte?

Como esse ensino, na forma de conteúdos, é visto e compreendido pelos professores, alunos, pais e direção?

Para buscar uma compreensão sobre como o ensino de arte é visto e compreendido pela comunidade escolar, é preciso olharmos no tempo e verificarmos as bases de introdução do ensino de arte no Brasil. Não vou apresentar um estudo sobre a história do ensino da arte, pois isso será alvo de um módulo específico. Mas para examinar a questão, vamos realizar um olhar de sobrevoo sobre a história. Esse olhar poderá revelar dados importantes para compreendermos a maneira como, atualmente, o ensino da arte é visto nas escolas brasileiras. Uma grande estudiosa do tema histórico sobre o ensino da arte no Brasil é a professora e pesquisadora Ana Mae Barbosa. Essa autora foi estudada na unidade temática anterior e deve ser alvo de leituras e estudo por parte daqueles que queiram se dedicar ao ensino da arte. Em seus livros “História do ensino de arte no Brasil” e “Recorte e colagem na educação”, Ana Mae nos revela conhecimentos históricos sobre o tema.

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No Brasil, a arte como expressão sempre foi ensinada, sistematizada ou não, desde as transmissões entre gerações, como por exemplo, entre os povos indígenas, até as aulas do ensino acadêmico e técnico nos Liceus de Artes e Ofícios e nas Escolas de Belas Artes. Em cada momento histórico, a arte teve seus objetivos. Por exemplo, Rui Barbosa introduziu no Brasil o ensino do desenho técnico e artístico, visando à formação de mão-de-obra especializada para a realização de objetos, como frisas de gesso e ornatos em metal a fim de diminuir a necessidade de importação dessas peças. Antes disso, durante o Império, vários artistas franceses foram trazidos para o Brasil para fundar a primeira Escola de Belas Artes. Essa Escola tinha por fim formar e cultivar o espírito artístico da elite brasileira, com claras influências no padrão estético europeu. Todas essas iniciativas influenciaram nossa maneira de compreender a função da arte e deixaram marcas em nossa cultura.

Já no século XX, após a Semana de 22 e com a influência dos pensadores e pesquisadores europeus e americanos sobre o desenvolvimento cognitivo, a percepção visual, a psicologia, a arte e a educação, brasileiros (as) como Mario de Andrade, Anita Malfatti e Augusto Rodrigues, entre outros(as), dedicaram-se em parte ou totalmente, para a compreensão do papel da arte na infância.

Desse cenário, surge, no Rio de Janeiro, em 1948, a primeira escola de arte para crianças, fundada por Augusto Rodrigues, juntamente com Lúcia Alencastro Valentim e Margareth Spencer. A “Escolinha de Artes do Brasil” inaugurou um movimento que se irradiou por todo território nacional. Foram várias as escolinhas criadas com a fundamentação e defesa da arte como livre expressão. Em Goiânia, temos a “Escola de Artes Veiga Vale”, que, fundada no início dos anos 1970, foi concebida nos preceitos do “Movimento das Escolinhas de Artes do Brasil”.

Esse movimento corroborou, decisivamente, para que, na LDB 5.692 de 1971, o ensino da arte, nomeado na Lei como Educação Artística, constasse como obrigatório em todas as séries da segunda fase do ensino fundamental. Entra assim, oficialmente, o ensino da arte nos currículos das escolas brasileiras de ensino médio e fundamental (de 5ª à 8ª séries). Mas, de lá para cá, muitos foram os desacertos e descompassos do ensino da arte nas escolas, professores formados precariamente e concepções profundamente equivocadas sobre o papel da arte no contexto escolar, influenciando práticas e políticas.

A falta de políticas claras e comprometidas com o ensino da arte acarretou cursos com formação deficitária, como o caso das licenciaturas curtas, que, no prazo de dois anos, formavam professores polivalentes, ou seja, trabalhando com as diferentes linguagens artísticas. Uma formação superficial desembocando em uma atuação docente mais superficial ainda. Nem as licenciaturas plenas, que formavam com mais dois anos em uma habilitação específica, conseguiram superar as carências na formação docente. Cada vez mais, temos a consciência dos equívocos da formação polivalente e da maneira fragmentada com que esses cursos foram implantados: professores de áreas de conhecimento específicas (filosofia, metodologia, pintura, políticas, etc.), ministrando disciplinas que não dialogavam com as questões do ensino da arte e da infância e juventude.

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É claro que, diante de uma formação precária, as práticas de ensino se tornaram totalmente desprovidas de significação e à mercê de planos pedagógicos em âmbitos municipais, estaduais e federais, que se valiam de propostas importadas e copiadas, sem o compromisso e discernimento com relação às especificidades e realidade da educação nacional. Ao longo de mais de duas décadas de obrigatoriedade, o ensino de arte nas escolas brasileiras se tornou vazio, estéril e sem qualidade.

A percepção geral era de que “qualquer um poderia ministrar as aulas de arte”, pois a tarefa seria apenas dar lápis e papel para as crianças desenharem e ali elas ficariam entretidas, passando o tempo. Em outros casos, várias escolas públicas e particulares adotavam um livro didático que misturava todos os exercícios das diferentes tendências das escolas tradicionais, novista e tecnicista. Com o livro em mãos, o professor poderia ”aplicar” as propostas já definidas, sem que se tivesse qualquer conhecimento sobre os referenciais teóricos que fundamentavam aquelas práticas. Nesse caso, como era apenas a concepção de arte como ensino de técnicas, a compreensão era a de que qualquer professor saberia conduzir o trabalho. Essa mentalidade acarretou, por anos, a não abertura de concursos para professores de arte nas escolas públicas brasileiras, pois a disciplina acabava sendo a válvula de escape para as adequações de carga horária dos diversos professores de outras disciplinas.

Na percepção dos alunos, ficava a sensação de que aula de “educação artística” era aula de descanso ou mesmo a aula da bagunça. De um jeito ou de outro, era a aula de não se fazer nada de importante, de “intervalo para as matérias ditas importantes”.

Na sua concepção, para que aulas de artes na escola? Por várias vezes fazendo essa pergunta para jovens e crianças, obtive a resposta invariável da ideia de aula de artes como de menor importância em relação às outras. Nas melhores respostas vinham com uma ideia de aula de artes para desenvolver a criatividade. Na minha experiência, quando essa pergunta é feita aos professores, em geral se sobressai a ideia de arte para desenvolver a criatividade e a expressão. Lembra do texto do Herbert Read? Ele fundamenta essa concepção. Mas a grande maioria dos professores talvez nunca terá ouvido falar em suas ideias, usam a ideia de expressão e criatividade a partir de um senso comum que se alastrou pelos discursos vazios de textos didáticos e paradidáticos sobre ensino da arte nas últimas décadas.

Ao meu ver, essa seria uma das questões mais centrais para entendermos o porquê das percepções e leituras do ensino da arte pela comunidade escolar se pautarem pela ideia de arte não ser importante, de ela ser vista como adereço na escola. A falta de conhecimento sobre as bases teóricas que fundam o pensamento sobre ensino da arte se constitui na mais perversa arma contra o professor de arte e na maneira como a disciplina é compreendida pela comunidade escolar. Pois é a partir dessa visão que os poderes públicos se valem de propostas e políticas vazias e ineficientes. Estamos ainda impregnados da visão imperialista, plantada em nossa sociedade pela corte de D. João VI, de que arte é algo para o deleite burguês e, portanto, algo distante dos interesses de formação da grande população. São muitos os equívocos históricos e as ideias distorcidas que tomam o senso comum.

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Mas essas concepções ficaram no passado? Acredito que não, pois ainda hoje é grande o número de professores, nas redes públicas e privadas, que ministram aulas de artes sem sequer ter formação específica na área, ainda reforçando a concepção já dita de que “arte qualquer um ministra”, por exemplo. É comum, hoje em dia, vermos professores, na melhor das intenções, levando reproduções de obras de “artistas famosos” para realizarem com os alunos a “tal da releitura”, que, em boa parte, não passa de um mero exercício de cópia, como aqueles que eram realizados pelas escolas tradicionais do final do séc. XIX. Os pais, professores e diretores ficam admirados com os inúmeros “Girassóis de Van Gogh” espalhados pela escola. No fundo, eles, professores e professoras apenas substituíram os antigos trabalhos de desenho mimeografado, cobertos por macarrão, barbante e papel picado, por versões superficiais e vazias das concepções da Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa.

Como no caso da exemplificação das “releituras dos Girassóis”, aqui citada, não se percebe, nesses trabalhos, o pensamento artístico dos alunos e muito menos o resultado de um diálogo desses com o artista, a arte e mundo da cultura. Por esse exemplo, vê-se que o desafio é enorme.

Em paralelo a essa realidade, temos as pesquisas realizadas nesses últimos 25 anos nos programas de pós-graduação no Brasil e a organização política dos arte-educadores, que vêm lutando e trabalhando pelo fortalecimento da classe, pelas políticas públicas e pela fundamentação das concepções sobre ensino da arte. Assim assistimos hoje a um cenário em plena transformação. Mais visivelmente, percebemos o discurso de valorização da arte para a formação dos sujeitos e algumas mudanças significativas nas políticas para o ensino de arte. Devemos e muito essa mudança ao papel fundamental da pesquisadora e professora Ana Mae Barbosa. O maior desafio para a construção de uma percepção e leitura significativa da arte no cotidiano escolar, por parte dos pais, alunos, professores e dirigentes está na superação dos conceitos formados por décadas de uma “Educação Artística” descontextualizada e sem significação. É preciso valorizar e incentivar a formação dos profissionais que atuam nas escolas. Os profissionais docentes precisam assumir esse compromisso com a sua formação. Seria parte dessa mudança significativa da realidade da arte na escola a compreensão da arte como integrante e integradora dos saberes escolares. Mas o que seria isso? Vamos nos deter nessa questão.

Olho Vivo

Lembre-se do texto de Ana Mae Barbosa da unidade anterior. A articulação dos eixos não é uma simples ideia de se levar uma imagem da obra de um artista para a sala de aula, falar a história dele, perguntar a opinião das crianças sobre o quadro e solicitar que elas façam uma pintura do quadro “de maneira pessoal”.

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2.3 Arte como Integrante e Integradora dos Saberes Escolares

No que diz respeito à construção de um ensino qualidade da arte nas escolas, temos ainda um longo percurso a ser vencido. Pois, como foi dito anteriormente, não é garantia de que a arte como disciplina curricular seja algo significativo e transformador. Assim, afirmamos que a inserção da arte no contexto escolar passa por uma revisão dos conceitos correlatos e, principalmente, das práticas escolares que a envolvem. O que isso pode significar? A compreensão da arte como elemento indissociável da cultura e do conhecimento como parte intrínseca da formação dos sujeitos. Dessa maneira, a arte não entra na escola apenas por uma disciplina, mas sim pela sua presença viva e significativa no cotidiano escolar.

A arte é um conhecimento específico, mas, ao mesmo tempo, integra os saberes escolares à medida que esses se constituem as bases da formação dos sujeitos dentro de uma sociedade constituída hoje por um infindável caleidoscópio cultural. Mas a arte e seu ensino têm a potencialidade de serem mais que integrantes do currículo escolar, pois sua natureza flexível, reflexiva e universal permite a integração dos demais conhecimentos. Mesmo possuindo um corpo específico de conteúdos, a arte permeia todos os outros conteúdos escolares, possuindo assim um grande potencial integrador e articulador entre sujeitos e saberes.

Nessa perspectiva, além da sala de aula, a arte deve existir como a própria expressão das culturas presentes na escola, bem como a maneira de essas se comunicarem. Para isso, é preciso que os sujeitos (professores, diretores e alunos) estejam atentos, disponíveis ao conhecimento e capazes de se moverem. Assim, é desejável que as aulas de arte sejam conduzidas por profissionais com formação específica e qualificada. Que esses sejam capazes de criar ações pedagógicas para além do espaço da sala de aula, em que a arte provoque no sentido de promover e ao mesmo tempo instigar as inteligências e sensibilidades dos alunos e alunas. Para tanto, essas ações não podem ser meros exercícios de técnicas artísticas, mas sim exercícios de conexão entre os saberes presentes na escola e fora dela e, sobretudo, exercícios criadores de novos saberes artísticos e culturais.

2.4 O Papel do Professor

No texto anterior, vimos que a arte tem um papel fundamental na formação dos sujeitos e que sua presença viva e significativa no contexto escolar não ocorrem pela simples obrigatoriedade da arte como disciplina obrigatória nos currículos. São vários os fatores que concorrem para um ensino de qualidade.

Poderíamos levantar alguns aspectos, além é claro, da inserção em si da arte na escola, como:

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Pense um pouco sobre por que desenvolver o gosto pela arte. O que implicaria, na vida das pessoas, saber fazer e apreciar arte? O que os professores(as) de arte teriam a ver com isso? Primeiramente, desenvolver o gosto pela arte para garantir ao aluno o direito à participação na vida cultural e o usufruto dos objetos da arte e da cultura. Pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo XVVII: “Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. Bem como “direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”. Ou seja, essa participação implica a formação de um cidadão participativo, propiciando uma cidadania ativa.

O acesso, o usufruto e o exercício da arte constituem bases para a construção do ser humano.

Estamos aqui falando de “ser humano” enquanto sujeito que une sensibilidade e racionalidade e que tem a capacidade de se perceber e perceber o outro. Essa percepção de si e do outro se dá na relação e interação da cultura individual e compartilhada. É certo que podemos afirmar que nem todos os humanos possuem essas qualidades, pois a construção do que podemos chamar de “subjetividade qualitativa” da condição humana não ocorre de maneira natural e espontânea. São as inúmeras interações e intervenções ocorridas ao longo da vida que irão desenhar essa condição.

A arte, potencialmente, estrutura a subjetividade humana e o faz através de ações objetivas e subjetivas que englobam o “fazer, apreciar e refletir sobre a produção social e histórica da arte, contextualizando os objetos artísticos e seus conteúdos” (Iavelberg, 2002).

Propiciar às pessoas uma formação para o gosto e compreensão da arte é, portanto, um papel social de grande importância, já que todo direito pressupõe um dever. Dever esse que não é apenas do professor(a) de arte, mas do conjunto da sociedade organizada, cabendo ao professor(a) um papel central, já que, pela relação direta com os(as) alunos(as), pode tanto construir como destruir as possibilidades qualitativas da relação aluno(a)-arte.

Diante de importante constatação sobre o papel do professor(a) de arte, vamos, a seguir, apresentar, resgatando a visão de Barbosa (1994) em texto lido na unidade anterior, quais seriam os objetivos da arte ao longo da infância e juventude.

Na primeira infância, os jogos e exercícios do fazer, da leitura e da contextualização, envolvendo as linguagens artísticas:

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Em continuidade, na segunda infância e adolescência, o ensino sistematizado de arte pode propiciar o aprimoramento de todos os aspectos citados anteriormente e, em especial:

Essas seriam as habilidades essenciais para a formação de um cidadão consciente, autônomo, transformador e criador. Os objetivos acima apresentados podem ser alcançados à medida em que o(a) professor(a) de arte, na concepção de Iavelberg (2002), instigue os(as) alunos(as) a:

Para tanto, precisam se sentir:

Ser um(a) profissional habilitado(a) para exercer a docência em artes, na perspectiva até aqui mencionada, exige muito mais do que frequentar um curso de licenciatura, seja ele presencial ou a distância. Não vamos nesse texto entrar nas questões relativas às políticas de formação docente, pois esse será assunto de outra disciplina, mas vamos aqui analisar a questão por uma perspectiva mais introdutória e focada no sujeito.

Para refletir

Dentro da concepção de ensino de arte apresentada nesse texto, qual seria então o perfil, ou um possível perfil, de um(a) educador(a) de arte capacitado para o exercício da docência?

Para a autora Iavelberg (2002), seriam necessários aos docentes os seguintes requisitos:

Como a autora ressalta, são requisitos e não pré-requisitos, ou seja, seriam capacidades a serem conquistadas e desenvolvidas ao longo de um processo formativo que não se encerra na diplomação, mas sim continuamente na vida profissional. Agora, olhe para si e reflita se você se percebe com esses requisitos.

Sua reflexão deve servir como de ponto de partida para que, ao longo do curso e de sua vida profissional, você busque continuamente olhar para si, para seus alunos, alunas e para a arte de maneira crítica, reflexiva e sensível, buscando encontrar, se ainda não encontrou, o que há de fascinante no universo do conhecimento humano e artístico.


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Refrências bibliográficas

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