Apresentação
O Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica, do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação, da Universidade Federal de Goiás (PPGEEB-Cepae-UFG), em sua gênese, tem um caráter multidisciplinar. Em razão disso, foi criada, juntamente com o Programa, uma disciplina específica da área de literatura, denominada “Fundamentos Teórico-metodológicos do Ensino de Literatura”, cujo objetivo principal é discutir questões referentes à formação do leitor literário na Educação Básica e à relação intrínseca entre sociedade, escola e ensino de literatura. Os projetos de pesquisa da área buscam contribuir com investigações sobre práticas de leitura, especialmente as desenvolvidas no âmbito da Educação Básica, a serem divulgadas a professores e a outros profissionais que atuam nesse nível de ensino, colaborando para uma formação mais consistente e efetiva de mediadores e, consequentemente, de leitores crianças e jovens.
Os textos que compõem este livro são, em sua maioria, resultados de pesquisas desenvolvidas no campo dos estudos abarcados por essa disciplina e todas as reflexões partem de experiências relacionadas ao ensino de literatura na escola. Composta por artigos, ensaios e uma entrevista, esta edição aglutina discussões sobre possibilidades metodológicas voltadas para a formação do leitor e acerca das práticas de leitura literária na Educação Básica. Nesse sentido, apresentam-se, inclusive, alguns percursos teórico-metodológicos que podem, se não elucidar, pelo menos provocar algumas interrogações sobre temas relevantes, como o papel do mediador da leitura literária, das narrativas de recepção infantil e juvenil na escola, da poesia na sala de aula, além da importância da democratização de bens culturais no contexto escolar e outras questões atinentes à formação do leitor literário.
O gênero “entrevista” é aqui contemplado com a participação do escritor João Anzanello Carracoza, que encerra, solenemente, a edição, por meio de uma prosa poética e ética com as organizadoras, apresentando reflexões sobre a leitura, a escrita, o processo de criação literária e os desafios contemporâneos em relação ao livro, à leitura e às tecnologias.
Como boa parte das pesquisas e das experiências apresentadas neste livro foi atravessada por uma pandemia danosa e marcante em todos os setores da vida humana, a Covid-19, o primeiro texto, A leitura literária em tempos de pandemia: dúvidas, reflexões e enfrentamentos, de Andréia Ferreira de Melo Cunha, relata uma experiência com a leitura literária na Educação Básica durante a pandemia que assolou o Brasil no início de 2020. No caso, uma abordagem de O livro selvagem, de Juan Villoro, com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, em uma escola privada, constituiu-se como referência para as discussões realizadas. Conforme elucida a autora, “a partir da recuperação da obra Nêmesis, de Phillip Roth”, foi possível tecer reflexões sobre os desafios enfrentados por uma professora de literatura no contexto dos anos de 2020 a 2022. Apesar das dificuldades relativas ao enfretamento da pandemia e dos entraves inerentes ao ensino de literatura na escola, a adoção da obra de Villoro mostrou-se acertada e os objetivos da sua leitura foram alcançados.
Segundo os autores Thales Rodrigo Vieira, Silvana Matias Freire e Sirlene Terezinha de Oliveira, Uma proposta de atividades com a literatura abstrata de Ionesco para o Ensino Médio “aborda conceitos fundamentais da arte abstrata, explicados por meio da análise da antipeça A Cantora Careca, de Eugène Ionesco”. Composto por quatro ensaios, de acordo com os autores, o conjunto constitui uma base teórica para o desenvolvimento de propostas de ensino de literatura no Ensino Médio, sendo que o primeiro ensaio trata do contexto histórico da obra; o segundo destaca as experimentações linguísticas nela presentes; o terceiro aborda o problema da representação pela linguagem; e o texto de fechamento aponta reflexões sobre a renovação da linguagem na referida antipeça, “pela crítica aos aspectos que nos são apresentados como modelos de fala ou bom senso linguístico”.
O artigo Intertextualidades literárias de autoria feminina: dialogia e resistência discutida em sala de aula da Educação Básica, de Célia Sebastiana Silva, Ilma Socorro Gonçalves Vieira e Vivianne Fleury de Faria, tece ponderações acerca do ensino de literatura a partir de algumas experiências baseadas na leitura e na escrita criativa em sala de aula com alunos da 3ª série do Ensino Médio em uma instutuição federal. Conforme discutido no texto, as atividades realizadas proporcionaram reflexões importantes sobre relações intertextuais estabelecidas em produções literárias de autoria feminina, com destaque para a poética de Conceição Evaristo, delineada na coletânea Poemas da recordação e outros movimentos. Para as autoras, a fruição estética proporcionada pela leitura e análise dos poemas em sala de aula “constituíram a referência para que os estudantes, em um processo de escrita criativa, explorassem procedimentos da intertextualidade ao produzirem poemas em diálogo com a poesia de Evaristo”.
Fruto de uma pesquisa realizada por meio do PPGEEB-Cepae-UFG, o artigo Poesia é resistência: a poética do fluxo sanguíneo em uma formação leitora-literária estética e política, de Glayce Kelly Pires e Vivianne Fleury de Faria, também destaca o trabalho com poesia em sala de aula e defende que a leitura literária deve ser priorizada na Educação Básica. Destacando que “a poesia é resistência”, como salienta Alfredo Bosi, e tendo no horizonte esta compreensão, o artigo recorre à conjectura de Marisa Lajolo, ao ressaltar que o texto literário não pode ser pretexto para práticas pedagógicas que não visem à efetiva formação do leitor. A partir dessa premissa, propõe uma prática pautada pela fruição estética da obra Sangria, de Luiza Romão, em sala de aula.
O Acesso ao livro literário e a aquisição de capital cultural, de Tálita de Oliveira Borges e Ilma Socorro Gonçalves Vieira, destaca que, mesmo sendo a formação do leitor literário uma das funções prementes da Educação Básica, o acesso ao livro literário no Brasil é, muitas vezes, obstaculizado por condições geográfico-econômicas. As autoras constatam que, de fato, há a elitização do livro no país e, a partir de uma discussão teórica acerca dos conceitos de capital cultural, o artigo procura responder: o acesso ao livro literário é uma possibilidade de acúmulo de capital cultural? Como base teórica recorreu-se a estudos sobre a formação do leitor literário e os conceitos de capital cultural em Paulino; Kramer; Candido; Zilberman; Llosa; Bourdieu. De acordo com a autoras, espera-se que as discussões apresentadas no artigo auxiliem professores a “refletirem sobre o direito à literatura como bem simbólico, importante para a formação humana do aluno de Ensino Fundamental”.
O clássico na literatura de cordel e o processo de formação do leitor literário, de Ceylla de Souza Furtado e Célia Sebastiana Silva, apresenta uma experiência de leitura desenvolvida em uma escola de Educação Básica, como parte de uma pesquisa de mestrado realizada por meio do PPGEEB-Cepae-UFG. Com foco na formação do leitor literário, a pesquisa apostou na leitura dialogada de uma adaptação para cordel, de Sebastião Marinho, da obra clássica Romeu e Julieta, e a peça original de William Shakespeare. Tendo como pressupostos teóricos as obras de Cascudo, Candido, Calvino, Machado, Souza, Zilberman, bem como documentos oficiais, como os PCNs (1998), BNCC e DC-GO (2019), buscou-se responder às questões: “Como alunos de 5º ano de uma escola pública municipal estabelecem a relação entre a leitura de um clássico e a releitura dessa obra no formato de cordel?” e “Até que ponto esse cordel instiga a leitura literária do clássico e vice-versa?”. Segundo as autoras, é mister demonstrar que o gênero popular dialoga com outros gêneros literários, trazendo elementos da cultura popular brasileira para a sala de aula e propiciando discussões sobre a variedade e a riqueza dessa cultura tanto no campo literário, quanto no linguístico. Os resultados da pesquisa mostraram que a leitura do popular instigou a leitura do clássico e vice-versa.
Em Escola, democratização da leitura e poesia em corpo e voz, os autores Célia Sebastiana da Silva, Ilma Socorro Gonçalves Vieira, Pítias Alves Lobo e Vivianne Fleury de Faria demonstram que os fundamentos do conceito de escola unitária de Gramsci podem ser articulados com as possibilidades de se discutir a ação escolar por meio do trabalho com a leitura literária. Nesse caso, o objeto de discussão foi a relação entre poesia, corpo e voz presente na experiência com o grupo de vocalização Trappo: voz e poesia. Evidencia-se a possibilidade de aliar o rigor crítico e metodológico da constituição escolar do pensamento gramsciano a procedimentos que “ensejam a percepção do papel dialético de elevar as pessoas do desconhecido ao conhecido; das limitações ao desenho de estratégias para superá-las”.
Narrativas infantis e formação do leitor literário no primeiro e último ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental, de Denise Cristina Camilo de Lima e Célia Sebastiana Silva, é uma discussão que evidencia a contribuição da literatura infantil para a formação do leitor literário nos anos iniciais do Ensino Fundamental, por meio da contação de histórias, tendo por corpus literário obras das escritoras Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Sylvia Orthof. A partir da observação da maneira como podem ser recebidas determinadas narrativas infantis, no primeiro e no quinto ano do Ensino Fundamental, e o modo como elas contribuem para a formação do leitor literário, as autoras analisam a importância do papel mediador da família no processo de formação do gosto pela leitura literária na infância. A pesquisa tomada como referência fundamenta-se em Zilberman, Todorov, Bakhtin, Colomer, dentre outros, e adotou como procedimento metodológico a pesquisa-ação, com abordagem qualitativa. Ao se estabelecer comparação entre duas turmas – do início e do final dos anos iniciais do Ensino Fundamental –, observou-se a importância de um ensino de literatura que proporcione aos alunos condições para um aprimoramento progressivo de suas experiências de leitura literária. Confirma-se, de acordo com as autoras, a necessidade do corpo a corpo da criança com o texto literário em toda a sua vida escolar, tanto na forma oral quanto na escrita, “sendo este um fator primordial no processo de formação de leitores com potencial crítico.”
Na sequência, apresenta-se o texto Poesia de Cecília Meireles e canções do Grupo Palavra Cantada: formação do leitor e ludismo em sala de aula, de Léia das Dores Cardoso Ribeiro e Célia Sebastiana Silva. Trata-se de um recorte da dissertação de Mestrado produzida por intermédio do PPGEEB-Cepae-UFG, intitulada Leitura de poesia e de canção: ludismo e musicalização na formação do leitor em sala de aula. O trabalho busca demonstrar como a abordagem lúdica e a musicalização na leitura de poesia e de canção podem favorecer o processo de formação do leitor literário nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A metodologia constituiu-se em uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa e teve como resultado, além da dissertação, um Produto Educacional em formato de site, o TEAR TEXTO – Tecer ideias, Experienciar, Apreciar e Realizar +novas leituras.
Reflexões sobre a escola e o ensino de Literatura Infantil, de Débora Rodrigues de Almeida e Vivianne Fleury de Faria, também elabora considerações sobre a relação entre escola e o ensino de literatura infantil, a partir de elucidações históricas que envolvem questões sociais e culturais. Como base teórica recorre a Bakhtin, Candido, Zilberman, Magalhães, Coêlho, Colomer e Suanno, dentre outros. Segundo as autoras, um dos problemas da literatura destinada às crianças e jovens, a partir do século XVIII, reside no fato de que os autores escreviam, sobretudo, para atender a uma demanda moralizante, se afastando da concepção ampla de literatura e deixando de promover o papel provocador, sensibilizador e crítico das obras literárias. Portanto, destaca-se no artigo a importância de refletirmos sobre o papel dos professores e da escola na seleção das obras e na mediação da leitura literária na Educação Básica.
O último texto é uma entrevista com o escritor João Anzanello Carrascoza, que é muito lido e muito bem recepcionado por crianças e jovens na escola de Educação Básica. Por meio de uma linguagem sensível, poética e contundente, ele promove reflexões densas e intensas sobre o leitor, o escritor e a literatura no mundo contemporâneo. Para além disso, afirma o papel da literatura com o que ela pode e deve ser sempre: “produto do espírito humano, espaço de afetos, poço do qual retiramos a nossa eussociabilidade, lócus onde se vê a exuberância da diferença.”
Goiânia, 31 de março de 2024.
Célia Sebastiana Silva
Ilma Socorro Gonçalves
Vivianne Fleury de Faria
Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino.Em que dia nos transformamos em leitores para sempre? Cada um de nós lembrará a sua história. Recordará um colo, um abraço, um livro colocado na mão de alguém, uma estante, um professor, uma certa noite, um certo dia. Aquele momento e aquela hora em que se associou uma voz humana com a capacidade de multiplicar imagens infinitas dentro da cabeça, e de permeio estavam folhas escritas.Paulo Freire
Lídia Jorge