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Prefácio

A literatura e a formação integral do estudante da educação básica

Alexandre Pilati
Universidade de Brasília

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Gostaria de propor um exercício de reflexão sobre a função da literatura na escola, considerando alguns parâmetros que me parecem oportunos para darmos concretude a um problema que nos acompanha historicamente: a importância de formar leitores em uma sociedade cuja marca mais evidente é a iniquidade, que se revela nos planos social e econômico, e, consequentemente, nos planos cultural e de acesso a direitos. Tal iniquidade tem a ver com as disfunções que caracterizam historicamente o processo social brasileiro e nos provocam, quase todos os dias, a inquirir sobre os limites de palavras como democracia e justiça em nossa formação como país.

Considerando essa questão de base, quero começar esse exercício retomando, apenas por escolha fortuita, um trecho da LDB que se refere aos fins daquilo que passou, a partir dessa mesma Lei, a ser definido como “educação básica”. Expressamente, está gravado no Art. 2º do texto legal que "a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores". Acerca disso, mantenhamos sempre vigente a ressalva de que as leis são uma contradição entre anseios e a base material de uma dada sociedade e não estão desvinculadas de uma miríade de lutas sociais que as pressupõem e que delas resultam.

Sob essa condicionante, o trecho acima (ou qualquer outro documento legal) precisa ser lido com olhos criticamente empenhados em enxergar com lucidez a constituição essencialmente contraditória das comunidades, de modo especial as modernas. Assim, considerando o anseio por uma sociedade mais democrática, poderíamos inferir desse ideal gravado na LDB, que a Educação Básica deveria garantir aos cidadãos as capacidades que lhes facultassem o acesso aos (e frequentemente a luta por) seus direitos e a consciência plena de seus deveres para com os demais membros de sua comunidade, em especial os mais vulneráveis social e economicamente.

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Feito esse breve preâmbulo, sigamos ao assunto que nos propusemos a discutir formulando uma pergunta que sirva de guia para a nossa discussão:

Qual o papel das artes em geral e da literatura em específico na consumação e no ultrapassamento (por que não?) das finalidades da educação básica previstas na LDB?

Comecemos, pois, a abordagem dessa questão lembrando que, ao trabalharem com processos criativos de transfiguração do mundo, as artes em geral lidam com dimensões da vida humana que têm a ver com a integralidade da personalidade humana, mobilizando conhecimento, afetos, memórias, sensações estéticas, tais como o ritmo, a harmonia etc.

Entre as todas as artes, a literatura distingue-se por lidar com um elemento peculiar, que é a sua matéria-prima, ou seja, o material expressivo com que o artista trabalha: a palavra (ou, em termos mais amplos, a língua, a linguagem...).

Quando observamos essa matéria-prima, é-nos inescapável considerar o caráter histórico, social, político, ideológico e humano em sentido amplo da literatura. O poeta/escritor opera criativamente um material que é histórica e socialmente constituído (o signo ideológico por excelência, diria Bakhtin, (1988)).

Para elucidar um pouco mais essa concepção de literatura, retomemos uma definição que me parece bastante completa e suficientemente indicativa da capacidade que a literatura tem de dar integridade à nossa personalidade e, também, da necessidade que temos da palavra poética, sob pena de mutilarmos a nossa humanidade. Essa definição nos ajuda a compreender melhor porque a literatura é um direito capaz de ser mediação para outros direitos, considerando-se a educação básica como um processo formativo do sujeito social que acessa, reivindica e luta por ampliação de direitos e que é plenamente consciente de seus deveres.

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Cito, portanto, essa definição, que extraio do texto "Direito à literatura", de Antonio Candido (2004, p. 176).

A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: [1] ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; [2] ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; [3] ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

A partir dessa precisa e complexa definição de Candido, em linhas gerais, podemos dizer que a literatura (o conto, o romance, o poema, a peça de teatro; mas também o filme, a anedota, a lenda, a série, a canção) atua em nós i) como objeto autônomo, com leis próprias, que dizem respeito, primeiramente, à esfera dos sentidos; ii) como objetivação de um ponto de vista sobre a realidade, que combina elementos individuais (sentimentos, memórias, afetos) e coletivos (a perspectiva de uma determinada classe ou grupo social, por exemplo) e iii) como mecanismo de interpretação da realidade que existe independentemente dos sujeitos individuais.

Vale notar, ainda, que essas três dimensões da complexidade da natureza da literatura estão articuladas nos termos de um processo, que engendra o propriamente artístico do fato literário. A esse processo, podemos chamar de "transfiguração da realidade" e considerar que é humanizador por excelência, uma vez que abre a forma literária às contradições da realidade. Isso queizer que a literatura mantém com a realidade (seja individual, seja coletiva) uma relação de relativa autonomia e presentifica, quando cada um de nós está diante do texto, uma dialética entre o mundo da obra e o mundo de fora da obra que não exclui as contradições formadoras do movimento dinâmico da realidade. Ao contrário, nos melhores casos, pode tornar tais contradições mais evidentes, ao dar oportunidade que o nosso olhar se desvincule das aparências cotidianas.

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Nos termos que apontamos até aqui, portanto, caberia inquirir sobre o que seria ler literariamente. A partir dos pressupostos que apresentamos, ler literariamente é não mais que considerar essa essência dialética do fato literário, que nos impele a atentar para os fatos internos da obra como fatos de um mundo exterior, tornado agora interno, através do processo de transfiguração desencadeado pelo trabalho do poeta/escritor. Assim, conectam-se dois polos de trabalho de construção de sentido. O primeiro é o polo do autor; o outro, não menos importante, pois decisivo para a emergência do significado da literatura, é o polo do leitor.

Ler literatura, assim, segundo podemos depreender do que está dito até aqui, é uma atividade, é um exercício ativo de interrogação sobre os sentidos do mundo, a partir dos vetores de sentido que a obra organizou. Ler (e, talvez, também escrever literatura) é uma atividade crítica em sua essência, pois é a tentativa de construir interpretações progressivamente mais complexas da realidade.

E essa atividade, quando bem conduzida no contexto da educação básica (com método, organização, embasamento crítico e teórico, consciência da realidade social dos educandos, responsabilidade, afeto) é capaz de fazer da sala de aula o espaço da possível conquista de um primeiro direito que está vinculado ao desejo de um processo de ensino-aprendizagem que seja efetivamente emancipador: o direito que os estudantes têm à descoberta, do mundo e do texto; que, na verdade é o direito que os educandos têm à construção do sentido para a vida. Esse direito à descoberta retira-os da condição passiva, que em nossa sociedade capitalista encontra o seu paradigma na figura boçal e desumanizada do consumidor, ou do “curtidor” das redes sociais. A literatura, em contexto educacional (e é claro também fora dele), pede a nós intervenção crítica sobre a obra e o mundo e não o consumo passivo do texto. Ao nos exigir um novo pacto de atenção com o mundo erigido pelas palavras e uma nova relação com o tempo, a literatura pode nos retirar do fluxo de desatenção cotidiana, estimulado por tantos aparatos que nos desviam da vida mesma. Ela nos faz rejeitar a desatenção, que é o fundamento da indiferença.

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Essa é a importância da leitura literária na educação básica e poderíamos finalizar dizendo que essa dimensão complexifica ainda mais as finalidades dessa fase do ensino gravadas na LDB, por exemplo. Através dessa noção de literatura como espaço de dialética entre obra e mundo que pede uma postura de interrogação contínuo do sujeito que a lê (a respeito de si, da realidade, da linguagem, do outro, da transcendência...) intuímos uma finalidade fundamental da educação básica: formar a integralidade do espírito de sujeitos sociais emancipados, ou de sujeitos sociais que, ao menos, compreendam o que seja emancipação em sua época histórica, ainda que, em plenitude, as condições para isso não estejam dadas. Sujeitos socialmente emancipados, sob esse ponto de vista, seriam aqueles que, através da cultura (sem distinção sobre ser ela “alta” ou “baixa” cultura) e do trabalho crítico com os materiais fornecidos pela realidade (sejam eles artísticos ou não), são capazes de imaginar o historicamente novo, pois saberão compreender que o futuro não está dado, mas sempre em disputa, como estão em disputa os sentidos de um poema, ou do destino de um personagem.

Alguns elementos metodológicos com os quais tenho trabalhado há algum tempo, na tentativa de ajudar professoras e professores a melhor lidar com esses objetivos vinculados ao ensino de literatura na educação básica são:

  1. atuação consciente do professor como um mediador literário (entre aluno e texto, entre a cultura do aluno e a cultura representada pelo texto) que domine as características essenciais da autonomia do texto literário;

  2. o planejamento rigoroso de leituras com base em um repertório construído com critérios claros para si mesmo e para os educandos, que envolva uma progressividade que abarque textos fáceis, médios e difíceis considerando o nível da classe. À medida do possível, esse repertório deve ser participativo, ou seja, construído também com sugestões dos estudantes;

  3. a organização consciente da aula segundo dois princípios fundamentais: protagonismo do texto literário e protagonismo do estudante;

  4. estímulo à leitura literária como construção de sentido que invoca a dialética entre o texto e o mundo, através da combinação do ensino de estratégias de leitura literária com o ensino de estratégias de criação literária ou de recriação da linguagem literária em outras linguagens (audiovisual, pictórica, musical, jornalística, teatral etc...).

    Em resumo, esses elementos metodológicos buscam garantir, no ambiente de sala de aula:

    1. que a literatura seja trabalhada em sala de aula em sua especificidade, mas sempre de modo adaptado ao nível de ensino do educando e com alguma convergência com os seus interesses culturais;
    2. que a aula de literatura seja um espaço de construção de sentidos considerando-se, como protagonistas dessa construção, o aluno e o texto literário.
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Com isso, creio que já temos elementos suficientes para discutir um pouco. Mas, para terminar, gostaria de lembrar um dos poemas de Carlos Drummond de Andrade que mais tem me feito refletir sobre a capacidade de a arte figurar os mais densos e indizíveis sentimentos da humanidade, seja sob um prisma individual, seja sob um prisma coletivo. O poema é "Nosso tempo", e peço licença a vocês para finalizar esta primeira parte da nossa conversa com algumas de suas belas estrofes:

“I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.”

Cabe a nós, após a (ou antes da?) explosão das palavras, recompô-las e atribuir um sentido novo ao mundo. Tenho certeza de que isso pode começar, dentro da sala de aula, no processo de formação de leitores literários na educação básica.

Alexandre Pilati é professor adjunto do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa em Ensino de Literatura (GPEL). É doutor em Teoria Literária pela UnB, com pós-doutorado na mesma instituição. Publicou livros e artigos sobre literatura, ensino e formação de leitores.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro/São Paulo: Ouro Sobre Azul/Duas Cidades, 2004, p. 176.

LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. BRASIL.