A Leitura Literária em Tempos de Pandemia: Dúvidas, Reflexões e Enfrentamentos
Andréia F. M. Cunha
Este artigo visa a descrever a minha experiência de estar à frente da disciplina Literatura para turmas de 9º ano de uma escola particular, durante o período de pandemia do coronavírus. Para tanto, se inicia com a recuperação da leitura da obra Nêmesis, de Phillip Roth, com o intuito de ancorar a exposição das dúvidas e aflições que perpassavam minha vivência naquele momento. Acossada por inúmeras pressões, a missão de escolher obras “adequadas” ao momento que enfrentávamos, colocou-me diante de dilemas relacionados à leitura literária e às aulas de Literatura em momentos de crise sanitária e social.
O ensaio se atém à leitura de obras narrativas, vez que os maiores enfrentamentos se deram no momento de adoção de livros desse gênero. Se, em um primeiro momento, a escolha de contos e crônicas de curta extensão mostrou-se acertada, com o passar do tempo a vontade de propor a leitura de romances fez com que eu me confrontasse com situações que tornaram premente discutir a validade da própria leitura literária. O encontro com a obra do mexicano Juan Villoro, O livro selvagem, revelou-se profícua ao desencadear discussões relacionadas ao tema da leitura. Este relato expõe esse percurso, desde as dúvidas e angústias que me atravessaram em um contexto específico de ensino, até a leitura, com as turmas de 9º ano, de O livro selvagem, uma obra que trata, entre outras temáticas, da paixão pela leitura.
Nêmesis e o impacto da pandemia do novo coronavírus nas escolas
Durante algum tempo, a teoria literária lamentou o fim da literatura. Leyla Perrone-Moisés (2016) evidencia o quanto essa previsão foi produtiva, sobretudo em meados do século XX, quando inovações formais que remontavam ao século XIX, tais como o fluxo de consciência, a linguagem baseada em trocadilhos e palavras-valise, o estilo telegráfico e a tentativa de representação “neutra” do real tenderam a desaparecer em favor de uma prosa que, segundo a teórica, aproxima-se mais daquela escrita no século XIX que a do início do século XX. A esse respeito, Perrone-Moisés observa:
A inteligibilidade da realidade e de sua interpretação” é a tarefa que Roland Barthes sempre atribuiu à literatura. Segundo ele, a interrogação da literatura não é “Qual é o sentido do mundo?”, mas somente: “Eis o mundo: existe sentido nele?”. E é isso que os bons escritores continuam fazendo. Palavras em alta, na teoria literária contemporânea, são “reflexão” e “crítica”. Nossa época é o momento de pensar sobre o passado recente e de criticar os caminhos do presente. Só depois dessa fase poderão surgir “pensamentos novos.” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 48 e 49, grifo meu).
Philip Roth é um autor que atualiza, através de sua literatura, a pergunta fulcral que Perrone-Moisés recupera em Roland Barthes: “eis o mundo: existe sentido nele?”. Tal indagação pode ser mapeada a partir da leitura do último livro escrito por Roth antes de seu falecimento, Nêmesis. A crescente tensão da narrativa até seu desfecho trágico faz retomar a questão proposta por Barthes, a qual está no centro das análises sobre a relevância da obra literária, cujo valor pode ser medido por sua capacidade de suscitar indagações humanas de longa duração (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 65).
Nêmesis foi a obra indicada pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz (2021) para o lançamento no mês de abril de 2021 pela TAG Editora. Segundo a estudiosa, a indicação do livro se fazia oportuna tendo em vista a pandemia de Covid-19 e as reações contraditórias que acompanharam a trajetória do vírus. Schwarcz assevera: “Quando a gente pensa: por que vale a pena falar sobre a peste de novo? Porque a peste, pandemia e epidemia são temas antigos, mas que a literatura vai renovando. Ela tem essa potencialidade” (SCHWARCZ, 2021, p. 7).
De fato, é também papel da literatura revisitar e atualizar temas difíceis e dolorosos. As grandes obras nunca envelhecem porque têm algo a dizer sobre a condição humana. No contexto da pandemia de Covid-19, problemas antes cogitados apenas na ficção se tornaram realidade. As questões transcenderam os limites geográficos e cada nação enfrentou o vírus de acordo com seus interesses ou conforme suas possibilidades financeiras.
No universo escolar, os impactos foram gigantescos. Notoriamente, uma das áreas mais atingidas, a educação tornou-se pauta de discussão em inúmeros fóruns e lives, em que grandes pensadores expunham suas experiências na esperança de encontrar caminhos para os desafios que a nova realidade trazia para todos os envolvidos no processo educativo. Para os professores, particularmente, o cenário caótico desencadeou receios, ansiedade e a necessidade de reformular antigas formas de conduzir as aulas.
Esses aspectos foram e continuam sendo debatidos à exaustão. Com a chegada de 2021 e a adoção, nas escolas privadas sobretudo, do ensino híbrido, em que parte dos alunos acompanhava as aulas em casa, pelas plataformas, enquanto outra parte as assistia nas salas de aula, novos enfrentamentos se apresentaram. O ensino simultâneo exigia do profissional da educação fina sintonia para encontrar o tempo certo a fim de que a comunicação se concretizasse nos dois espaços. Espaços diversos e um mesmo tempo. Como encontrar o ponto exato de sutura entre as duas realidades, se é que isso de fato era possível?
A implantação das aulas semipresenciais também trouxe outras implicações. As escolas precisavam se comprometer com o distanciamento social, essa era a promessa feita aos pais que enviavam seus filhos, confiantes de que eles seriam resguardados de contágios. Para tanto, o espaço físico foi repensado, bem como a movimentação dos alunos e a hora do lanche. Para os professores e outros profissionais da escola, novo desafio: fazer com que os discentes, sedentos pelo contato físico de que tinham sido privados já há bastante tempo, entendessem que ele não era possível. Mais que alguém que precisava coordenar o aprendizado deste ou daquele conteúdo, o educador tinha a difícil tarefa de coibir aproximações entre as pessoas que estavam sob sua tutela.
Esse desafio recaiu sobre os ombros dos educadores que não tinham escolha senão a de desempenhá-lo. Diante de um quadro de limitações, proibições e muita ansiedade, no plano de meu imaginário pessoal delineava-se um espectro ligado à gênese do vírus que vitimou milhões de pessoas. Seria o aparecimento da Covid 19 uma espécie de vindita da natureza? As ações humanas, alimentadas pela ambição, teriam desencadeado uma resposta do planeta? Na seara fértil dos estudos do imaginário, vale recuperar a figura de Nêmesis, deusa da mitologia grega, responsável pela justa retribuição, inimiga de todos os excessos. Conforme consta do dicionário de mitologia greco-latina de Spalding, Nêmesis era
Filha de Júpiter e da Necessidade, ou do Oceano e da Noite. Era uma divindade temível que do alto céu olhava tudo que se passava sobre a terra; punia os culpados neste mundo e castigava-os no outro com o maior rigor. Comprazia-se em curvar as orgulhosas cabeças dos que não tinham moderação na prosperidade, e implacavelmente perseguia aqueles que a beleza do corpo, ou as forças físicas ou o talento intelectual tornavam por demais vaidosos e insolentes. No início, parece, Nêmesis personificava o sentimento moral que os homens naturalmente possuem de justiça e equidade. Mais tarde é que dela fizeram uma divindade que por excelência presidia a sorte dos mortais, procurando igualar condições e nivelar as situações; daí, naturalmente, passou a ser a deusa da Justiça, ou melhor, da Vingança Justiceira (SPALDING, 1965, p. 181).
A menção à deusa remete à obra referida no início deste ensaio. Nêmesis, de Philip Roth, trata da pandemia de poliomielite que abateu a comunidade judaica de Newark em plena Segunda Guerra Mundial.
O protagonista do livro é Bucky Cantor, um jovem professor de educação física de 23 anos, que tem dificuldade em aceitar que não foi enviado para a guerra em virtude de sua forte miopia. Professor regular na escola do bairro, durante as férias ele trabalha como fiscal de pátio. No ano de 1944, um surto de poliomielite se instaura na cidade e um cenário desalentador se desenha. Cantor, comprometido com a educação e com as crianças do bairro judeu, mantém-se firme no desempenho de sua função até que a conjuntura se torna insustentável para ele.
Oprimido pelas mortes e sequelas que a doença desencadeia entre seus alunos, Cantor teme que, de alguma forma, a manutenção das atividades no pátio contribua para o contágio, embora não seja esse o entendimento das autoridades. Além disso, sua namorada, Márcia, que se encontra, juntamente com as irmãs, em uma colônia de férias nas montanhas Pocono, pressiona Cantor para que ele vá ao encontro dela, afastando-se do surto. Diante da insistência da moça e mediante seu próprio desejo de se afastar de tanta tristeza e morte, Cantor aceita o emprego de diretor de esportes aquáticos na colônia de férias e sai de Newark.
A colônia onde Cantor passa a trabalhar é o exato oposto da cidade. O lugar é ocupado por crianças e jovens saudáveis, plenos de alegria, completamente distantes da lúgubre atmosfera de Newark. Tudo vai bem até que a pólio começa a se manifestar também na colônia. Desesperado, intuindo que ele próprio poderia ser o mensageiro da doença, Cantor faz os exames e o resultado confirma seus piores receios.
O desfecho trágico do livro de Roth traz um gosto amargo à boca. A partir de sua leitura, é possível mapear uma paranoia que, pelo menos em mim, recebeu guarida: poderia ser eu, professora, a portadora da doença? Para além da Covid 19, realizando uma leitura livre de Nêmesis, poderia ser eu, professora, a disseminadora de outros tipos de doenças ligadas à saúde mental dos estudantes? Como eu, perturbada com meus próprios fantasmas, com emoções à flor da pele, ansiosa, insone, assolada por perdas também dentro de minhas relações, poderia, ainda que minimamente, neutralizar as emoções negativas, evitando ser um Bucky Cantor, a disseminar meu pessimismo e minhas angústias?
Além dessas indagações de foro íntimo, naqueles meses caóticos, a leitura literária na escola, em minha experiência, enfrentou grandes dificuldades, como se já não bastassem as usuais com as quais estamos todos, profissionais de Letras, acostumados a lidar. Que obras indicar para a leitura?
No auge da pandemia, em 2020, no universo da escola particular e com o regime de aulas remotas instaurado, a decisão foi pela adoção, no que concerne às narrativas, de contos e crônicas, uma vez que o romance demanda maior tempo de discussão. Para que as aulas se tornassem mais ágeis e atraentes para jovens que não demonstravam muito envolvimento com as aulas remotas, a medida soou acertada e rendeu bons frutos. Da mesma forma, em 2021, embora o romance não tivesse sido abandonado, as aulas que mais se revelaram frutuosas foram aquelas nas quais textos mais curtos foram lidos.
A problemática seleção de livros
O retorno das aulas presenciais, em 2022, abriu novas possibilidades para o regresso da leitura de romances mais robustos. No entanto, o drama do peso das escolhas das obras continuou e, pela primeira vez, o questionamento generalizado sobre a viabilidade da leitura de narrativas que tratavam de temas “tristes” veio à tona com um potencial de pressão que eu não havia experimentado antes. A tensão dos familiares, a fragilidade emocional dos alunos (muitos haviam perdido entes queridos) e de grande parte dos professores colocaram-nos diante do impasse ou do dilema que atravessa a questão da “função” da obra de arte, sobretudo da literatura: fugir de temas tidos como pesados neste momento seria negar a catarse promovida pela leitura da obra literária.
Livros com os quais trabalhávamos nos anos finais do Ensino Fundamental 2, como Refugiados, de Alan Gratz, uma obra com forte aceitação entre os alunos, passaram a ser vistos, sobretudo pelos familiares, com restrições. Essa narrativa trata de um assunto “triste”, penoso. Repleta de momentos de tensão e perdas, o livro sempre teve potencial de despertar boas discussões concernentes ao drama dos refugiados, tema que marca nosso mundo de forma incisiva. Para citar uma obra brasileira, Tão longe, tão perto, de Silvana de Menezes, cujo protagonista, um garoto de 10 anos, convive cotidianamente com a avó acometida pelo mal de Alzheimer, também sempre teve boa circulação em virtude da sensibilidade da escrita e da temática delicada.
A adoção de obras que exploram temáticas “pesadas” eventualmente despertava algum tipo de questionamento, mas o fenômeno que se observou é que, nos primeiros meses de 2022, livros dessa natureza passaram a ser fortemente combatidos, sobretudo por familiares que, desconhecendo o papel formador e restaurador da literatura, se opunham a que temas tão difíceis fossem visitados. As justificativas variavam: insensibilidade diante do drama que o mundo enfrentava, desconsideração para com a situação emocional do alunado e até falta de empatia.
A peculiaridade da literatura infantil e juvenil, o fato de que ela apresenta um “duplo destinatário”, como destaca Teresa Colomer (2003, p. 164, 165), por si só é questão complexa. De fato, embora direcionada ao jovem, a literatura infantil e juvenil passa pela sanção do adulto, o que gera uma contradição: muitas vezes, nós, professores, que estamos com os pés no chão da sala de aula, verificamos que os discentes anseiam por um tipo de literatura que não é chancelada por seus pais e responsáveis, os adultos diretamente envolvidos no processo de leitura. Em um mundo ideal, nós, os profissionais que se dedicaram a estudar literatura, deveríamos funcionar como baliza para as escolhas das obras. No mundo real, no entanto, isso nem sempre se concretiza.
Muitas vezes, vemo-nos reféns de situações que acabam solapando nosso projeto de trabalho, não porque todas as escolas o boicotem (parte delas, de fato, nos legitimam e autenticam a validade de nossas escolhas), mas porque não desejamos criar situações embaraçosas para nós mesmos e para o ambiente de trabalho. O resultado é que acabamos cedendo em favor de uma paz passageira, é preciso destacar, porque o alunado não vai deixar de trazer à baila assuntos que o incomodam, ao contrário, quando tais temas passam a ser evitados, acentua-se a curiosidade dos estudantes, que anseiam encontrar um espaço de fala.
Por outro lado, em situações como a que enfrentamos, é pouco eficiente emudecer os familiares, tirando deles a voz e a contribuição que podem trazer na compreensão do processo pelo qual seus filhos estão passando. O diálogo nunca deixa de ser a melhor alternativa. A questão é que, por mais que seja legítimo esse contato entre famílias e escola, nós, os docentes, temos uma formação que nos gabarita a fazer escolhas que podem parecer inadequadas para os que desconhecem os mecanismos da leitura e o que ela aciona. A compreensão do ato da leitura de quem não vivencia o processo na sala de aula é quase sempre rasa: o livro literário é julgado por critérios que, muitas vezes, sequer aparecem nas aulas, não importam aos alunos e nem são relevantes para os professores dentro do projeto que construíram.
Nesse contexto, leituras amenas e agradáveis foram pleiteadas por muitos familiares, sobretudo aquelas que promovessem a fuga da realidade e não o seu enfrentamento que, vale destacar, de modo algum tem a ver com narrativas “realistas” ou “fantásticas”. Além disso, a questão das temáticas tristes não tem conexão com histórias trágicas. A comédia pode ser tão efetiva em provocar a reflexão quanto a obra tida como “séria”.
Entretanto, para leigos, a simples menção a determinados assuntos representa uma ameaça à saúde mental e psicológica de crianças e jovens. Uma leitura asséptica e rasa passou a ser sugerida como saída para o impasse do que ler. Qualquer coisa que não passasse pelo filtro da leveza (tomada aqui em sentido pejorativo) era vista com resistência. Diante desse estado de coisas, é pertinente recuperar a reflexão de Jacqueline Held, constante do livro O imaginário no poder:
O mundo da criança jamais foi, não pode ser, hoje muito menos do que ontem, esse ‘verde paraíso’ poético e descarnado, que estaria ‘longe do mundo e do ruído’, ao abrigo dos tormentos e das lutas do homem. Educar a criança num universo fechado, almofadado, ‘neutro’, vazio e passivo é impossível, por mais que o queiramos. Querer afastá-la, a todo custo, dos problemas de seu tempo e da vida humana em geral é maneira, entre outras, de condicioná-la, de fazer dela um egoísta que se desinteressará pelo mundo e pelos outros, que sempre procurará apenas ‘livrar sua cara’ e que sempre dirá: ‘após mim, o dilúvio’ (HELD, 1980, p. 166).
O reconhecimento dessa realidade no que concerne à seleção de livros literários provocava, em mim particularmente, grande contragosto, sobretudo quando o projeto de ensino de literatura da escola tem a ver com a postura defendida por Ilma Vieira, ao compreender que a experiência de leitura é tão complexa que não sustenta uma abordagem teórica “centrada na recepção das narrativas pelos jovens, assim como não se sustenta uma abordagem que considera a autoridade do autor e do texto, no ato da leitura” (VIEIRA, 2019, p. 76).
Apesar de minhas convicções, negar o contexto em que eu estava inserida seria, para dizer o mínimo, ingênuo. Caminhar sobre um traçado mal delineado a que costumamos nomear de “bom senso” é um desafio tormentoso. Assumir uma postura beligerante e enfrentar as consequências ou tentar encontrar um caminho em que as diversas pressões externas pudessem ser diluídas? Nenhuma resposta é simples e a busca por soluções continua em aberto. Entretanto, era preciso “trocar o pneu com o carro em movimento” e não era possível parar o tempo enquanto repensava um percurso. No que concerne ao nosso campo de atuação, respostas rápidas são ainda mais importantes, sob o risco de perdermos o (pouco) espaço que o estudo da Literatura (ainda) ocupa nas escolas.
É possível asseverar que existem obras de qualidade e que não necessariamente envolvem temas “tristes”, como já mencionado anteriormente. Esse argumento é bastante plausível, sobretudo quando se pensa nos anos iniciais do Ensino Fundamental 2. Porém, quando o olhar se volta para turmas de nono ano especificamente, as coisas se tornam um pouco mais complicadas. Dificilmente uma leitura “amena” e de qualidade é desejável entre os alunos. De alguma maneira, ainda quando o desfecho da obra é “positivo”, é raro que temas como a dor, o abandono e a perda deixem de aparecer. Caso contrário, como a literatura poderia atingir uma de suas mais ousadas pretensões: a de responder aos anseios humanos?
Uma saída para a situação aos poucos foi se delineando: devolver as perguntas concernentes ao valor da leitura aos próprios discentes. É preciso considerar que, em meu contexto de atuação profissional, os alunos têm acesso à leitura, seja em suas casas, seja através de um percurso escolar que os “obriga” a ler obras literárias, o que quase sempre surte algum efeito, levando-se em conta as avaliações baseadas em conferências de leitura.
O livro selvagem, de Juan Villoro
Uma obra que cumpriu bem o propósito de alavancar discussões sobre o valor da leitura literária foi O livro selvagem, de Juan Villoro. Trata-se de uma narrativa muito bem construída e que, através de um percurso de leitura aprazível, suscita reflexões sobre o valor da leitura literária.
Com relação ao autor, trata-se de um escritor mexicano que se dedica não só à escrita de narrativas voltadas para o público jovem, mas também à escrita de ensaios, contos, teatros e roteiros cinematográficos. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas e o autor tem sido agraciado com prêmios importantes, como o International Board on Books for Young People, em 1994; o prêmio Herralde, em 2004; o Prêmio Internacional de Periodismo Vázquez Montalbán (2006); e o Prêmio Iberoamericano de Letras, em 2012.
O protagonista da obra é o jovem Juan, de 13 anos. Seus pais se separam e sua mãe precisa de um tempo para se refazer emocionalmente, enquanto seu pai vai para Paris a trabalho. Juan é levado para passar férias com o excêntrico tio Tito, dono de uma enorme biblioteca, um labirinto de livros. A obra trata de leitura, dos diversos tipos de livros e do que eles podem provocar no leitor. Também trata da busca pelo “livro selvagem”, uma obra esquiva, que espera pelo leitor ideal. Nessa trajetória de reflexão sobre a leitura, Juan encontra Catalina, uma garota que trabalha na farmácia dos pais, em frente à casa do tio Tito, e se apaixona por ela. A esse trio formado por Juan, tio Tito e Catalina, junta-se a irmãzinha de Juan, Carmen.
No primeiro capítulo, o narrador, que é o próprio Juan mais velho, situa o leitor de que o livro é uma narrativa de memórias e que os fatos aconteceram há muito tempo. Nenhuma data é fornecida ao longo da obra, mas é possível deduzir que o enredo se passa em um tempo recuado, em que não há computadores nem celulares. O único telefone da casa de tio Tito é antigo. Em certo ponto, o narrador afirma: “Naquela época, o divórcio ainda não estava na moda” (VILLORO, 2011, p. 13), o que torna mais fácil localizar a fábula em um tempo afastado.
Basicamente, pode-se afirmar que a temática central da obra é que os livros escolhem os seus leitores. Juan não é qualquer leitor. Como esclarece tio Tito (VILLORO, 2011, p. 38), o garoto é um “leitor princeps”, porque tem o poder de “acordar a alma das bibliotecas” (VILLORO, 2011, p. 38). Um “leitor princeps” não é aquele que lê muitos livros, mas que os lê com qualidade, encontrando neles algo que poderia passar despercebido para outras pessoas. Em virtude disso, segundo tio Tito, Juan é o mais habilitado para encontrar o arredio livro selvagem, que não se deixa ser tocado por qualquer um. Outros antepassados, tanto de Tito quanto de Juan, já haviam tentado, sem sucesso, apropriar-se do livro selvagem. Na percepção de tio Tito, Juan conseguiria a empreitada, justamente por sua característica de mobilizar os livros e conquistá-los.
A intertextualidade é marcante ao longo de toda a narrativa. Como destacam Ceccantini e Cruvinel (2019, p. 34):
A narrativa é construída de forma clara, sem apresentar grandes entraves para ser compreendida, mas, por trás das aventuras vividas por Juan e Catalina na biblioteca, há intertextos – muitas vezes velados – com outras obras literárias. Alguns escritores ou suas obras são citados na narrativa, como Franz Kafka, Lewis Carroll, Daniel Defoe, Julio Cortázar e Herman Melville. Outras referências não aparecem de forma tão evidente, como o conto folclórico “Barba Azul”, evocado nos episódios que narram os pesadelos repetitivos de Juan com o quarto que tem portas trancadas, cujas paredes eram tingidas de sangue e de onde se escutava o choro de uma mulher.
De fato, a primeira menção a uma obra literária canônica ocorre quando tio Tito sugere a Juan que eles ajam conforme a clássica personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes. A citação aponta para uma “postura” que se espera do leitor na leitura da obra. É uma narrativa de mistério, há um livro a ser buscado, é preciso atentar para as pistas.
E as pistas começam a aparecer. Na página 30 (VILLORO, 2011), Eufrosia, a cozinheira da casa, personagem que desperta muita simpatia, pergunta a Juan se ele prefere uma omelete Homero (a omelete deve ser feita com olhos fechados), uma aveia Aristófanes, um cereal Cinco Musas ou sanduíche isabelino. As intenções são bastante claras: recuperar Homero é um dado importante porque marca o momento em que se inicia o passeio pela literatura canônica ocidental. Ao mesmo tempo em que o grande poema épico de Homero é mencionado, o teatro grego e o elisabetano também são retomados, recobrando a tríade dos gêneros: épico, dramático e lírico.
Já na página 55, há a primeira referência a Jorge Luis Borges, seguida de outras mais, nas páginas 59, 112 e 113. As duas últimas, por sinal, são marcadamente “borgeanas”, na medida em que recuperam, de forma acentuada, a figura do labirinto, uma obsessão do escritor argentino. Na análise dos professores Ceccantini e Cruvinel (2019), o diálogo com a obra “A biblioteca de Babel”, de Borges, é uma chave de interpretação da obra.
O livro de Villoro prossegue seu percurso de recuperação de grandes obras da tradição. Na página 83, é resgatada a quase mítica figura de Gregor Samsa, de Kafka; tio Tito cozinha peixe à Moby Dick na página 119, bem como crepes flambados no inferno de Dante, na página 121, além do sanduíche Robinson Crusoé (p. 128). A recuperação mais importante, porém, está nos cronópios, “biscoitos em formato de animal fantástico”, segundo tio Tito (VILLORO, 2011, p. 126) e que remetem a Cronos, deus do tempo.
Na verdade, a associação dos cronópios, do escritor argentino Júlio Cortázar, a Cronos, pode ser entendida como uma “licença poética”. Na criação de Cortázar (2010), cronópios são seres verdes e úmidos, que vivem de poesia. São criaturas idealistas, sensíveis e ingênuas. Da obra sobre os cronópios (CORTÁZAR, 2010), irônica, irreverente e fantástica, não é possível mapear a ligação desses pequenos seres ao tempo. No entanto, por seu nome de batismo, “cronópio”, facilmente essa associação é realizada.
E essa associação serve à economia da narrativa de Villoro. O tempo é um elemento relevante para a compreensão da obra. Os diferentes tipos de biscoitos de tio Tito tinham, quando comidos juntos, “um gosto esquisito” (VILLORO, 2011, p. 127). A explicação que tio Tito dá ao sobrinho é curiosa: “Você misturou salgados e doces. Na sua boca, o passado se misturou ao futuro: você está provando o sabor do presente” (VILLORO, 2011, p. 127). Depois da degustação dos biscoitos de tio Tito, Catalina e Juan percorrem a biblioteca, onde a menina recupera o livro Relógio de letras, em uma clara menção ao tempo.
Catalina consegue compreender por que o livro selvagem não se deixou ler por tio Tito. Segundo a menina, ele “só viveu no passado ou no futuro. A vida dele nunca teve um presente. Sua única família são as fotos desta parede. Nunca compartilhou nada com ninguém” (VILLORO, 2011, p. 135). Essa recusa em dividir e compartilhar as experiências, não somente de leitura mas também de vida, com outras pessoas, seria, na visão de Catalina, o grande empecilho para a aproximação ao livro selvagem. A partir de uma citação contida em Relógio das letras, Catalina compreende que o leitor é o elo entre passado e futuro. Para tanto, o leitor é o presente:
Decorei uma frase do livro Relógio das letras – ela disse. – Ela diz o seguinte: “Alguém precisa estar vivo para que o passado exista, e essa pessoa é o leitor. O mundo de ontem só existe quando alguém o recorda hoje” (VILLORO, 2011, p. 135).
Para Catalina, ficou claro que tio Tito não poderia ter acesso ao livro porque não se permitiu viver a vida com plenitude. Absorvido em sua biblioteca, esqueceu-se do mundo e das relações humanas. A negação do presente não pode ser uma solução. Por isso o livro selvagem não aceitaria estar em suas mãos.
Esse passeio pela tradição é uma forte vertente na narrativa de Villoro. Para além da citação das obras, n’O livro selvagem o efeito da leitura de livros é o tempo todo retomado. Durante o passeio pelo labirinto dos livros do tio Tito e pela obra em si, labiríntica, há reflexões importantes sobre a leitura e o que ela pode mobilizar no leitor.
Conclamados a localizar na obra os momentos em que a função da literatura na vida dos protagonistas era destacada, alunas e alunos não só fizeram o que lhes foi solicitado como ataram as próprias vivências de leitura ao que era narrado. Um exemplo tem a ver com um depoimento de tio Tito sobre as leituras que fazia para seu pai, que era cego: “Eu lia para meu pai e, a julgar pelos seus gestos, ele enxergava as imagens poderosas sobre as quais o livro falava” (VILLORO, 2011, 55).
A leitura literária tem esse poder de despertar imagens individuais que muito têm a ver com os conteúdos internos. Construir imagens a partir da leitura é uma experiência enriquecedora e que promove um encontro com a singularidade. Nessa passagem, alguns estudantes citaram a experiência de terem lido Harry Potter antes de assistirem aos filmes da saga. Muitos comentaram sobre a construção mental das personagens e dos ambientes, quase sempre bastante diferentes das que apareceram nas telas do cinema. Diante de relatos que partem da vivência dos discentes, faz mais sentido dizer da riqueza que é a experiência da leitura e de seu poder de remexer conteúdos internos, provocando reflexões e amadurecimento.
Essa situação propiciou refletir sobre o quanto a leitura responde a necessidades internas de fantasia e o quanto ela revela sobre nós mesmos, nossos afetos e nossas vivências. Recuperando as observações de Ronaldo Manzi: “a literatura é condição material última para a percepção (ou seria conscientização?) da experiência do inconsciente” (MANZI, 2020, p.7). A leitura literária tem o poder de acessar conteúdos que nossa casca civilizatória muitas vezes se recusa a visitar e que, sufocados em nossa psique, têm o poder de nos enfermar. Ela representa uma forma de nos havermos com nossa própria subjetividade diante do outro desconhecido, o Real, que chega, nos atinge e nos impacta. O que não é falado, o que é emudecido, é o estranho. E o estranho torna-se monstro, é rechaçado. O poder da boa literatura é justamente desmistificar esses fantasmas e evidenciar que o outro, com suas idiossincrasias, nem sempre precisa ser repelido, muitas vezes é ele que diz sobre quem somos.
Depois desse percurso que a leitura do livro de Villoro proporcionou, tornou-se mais fácil a tarefa de trafegar por outras obras, não porque a literatura necessite de justificativa, mas porque o momento delicado exigia que cuidássemos da adaptação dos educandos, evidenciando o porquê e o sentido de alguns hábitos que se perderam ao longo de dois anos de isolamento social. A leitura literária precisava fazer sentido para que a entrega fosse real e não para atender a uma exigência da escola.
Em determinado ponto da obra, Catalina lê um livro que a faz se sentir melhor (VILLORO, 2011, p. 124) e recuperada de um mal-estar generalizado. De forma conscientemente trabalhada, própria da função poética da linguagem, Villoro recupera um dos predicados que se costuma atribuir à leitura literária: a possibilidade de o leitor, através da identificação, secretar mitos e assimilar os que lhe são propostos (HELD, 1980, p. 96), promovendo algum equilíbrio psíquico. Em momentos tão difíceis como os desencadeados pela pandemia da Covid-19, essa possibilidade de enfrentamento dos medos que a leitura favorece tornou-se uma aliada importante em um processo que envolvia a legitimação da própria literatura, ameaçada de censura e cerceamento.
Referências
CANDIDO, Antonio. Timidez do romance. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 82-99.
CECCANTINI, João Luís Cardoso; CRUVINEL, Larissa Warzocha. A biblioteca infinita de Jorge Luis Borges e Juan Villoro. Miscelânea, Assis, v. 26. p. 31-44. jul./dez. 2019. Disponível em: https://seer.assis.unesp.br/index.php/miscelanea/article/view/1379. Acesso em: 10 jul. 2022.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Tradução de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003.
CORTÁZAR. Julio. Historias de cronópios y de famas. Espanha: Editora y Distribuidora Hispano Americana, S.A.,2010.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Tradução de Carlos Rizzi. São Paulo: Summus, 1980.
MANZI, Ronaldo. Uma fera sempre à espreita: o que é fantasia em Freud? Brazil Publishing: ae editora.com.br., 2020.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ROTH, Philip. Nêmesis. Tradução Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
SCHWARCZ, Lilia. Não podemos nos vacinar contra o afeto. [Entrevista concedida a]: Fernanda Grafauska. TAG Comércio de Livros Ltda: . Porto Alegre, p. 4-8, abril. 2021.
SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário da mitologia greco-latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
VIEIRA, Ilma Socorro Gonçalves. Narrativas juvenis contemporâneas: objetivos e expectativas de leitura. In: CRUVINEL, Larissa W.F; RIBEIRO, Renata R. (orgs.). Narrativa juvenil contemporânea. Goiânia: Cânone Editorial, 2019. p. 55 – 76.
VILLORO, Juan. O livro selvagem. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Este texto serviu de base para uma palestra ministrada ao vivo pela Internet, em 30/04/2020, no âmbito do evento UnB+Escola em parceria com o CRE – Plano Piloto da Secretaria de Educação do DF.
NOTA 2: Este é o texto da Nota 2.