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Uma Proposta de Atividades com a Literatura Abstrata de Ionesco para o Ensino Médio

Thales Rodrigo Vieira (CEPAE/UFG)
Silvana Matias Freire (CEPAE/UFG)
Sirlene Terezinha de Oliveira (CEPAE/UFG)

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Preâmbulo

O Departamento de Língua Francesa do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação vem, já há algum tempo, trabalhando o texto A Cantora Careca, de Ionesco, com os alunos do Ensino Médio. Surge agora a oportunidade de formalizar a base teórica que suporta essas atividades, o que facilitará nossas aulas em turmas futuras e servirá para divulgar e promover a troca de ideias entre professores de quaisquer linguagens ou disciplinas. Eximimo-nos, entretanto, da pretensão de apresentar aqui um plano de aula pronto. Toda discussão deve ser adaptada às necessidades e contexto dos alunos. Contudo, podemos afirmar que a obra de Ionesco é extremamente profícua e estimulante para os discentes, seja trabalhada como dramatização ou como material para estudo da linguagem pura e simplesmente.

Explicação do contexto da arte abstrata e do lugar histórico de A Cantora Careca

Tanto a crítica historiográfica quanto a crítica literária, ou ainda a Filosofia e mesmo disciplinas como a Física e a Matemática são unânimes em apontar uma crise na representação da realidade pelos seus respectivos sistemas simbólicos após o Século XV. Segundo eles, vários fatores estão relacionados a essa crise, ora apontados como causa, ora como efeito, ou mesmo analisados em sua relação dialética com a história. São eles: a publicidade das teorias copernicanas; o advento da divulgação crítica juntamente com o surgimento da imprensa; o luteranismo e a possibilidade de uma interpretação pessoal da Bíblia e da literatura em geral; a ascensão hegemônica do modo de produção capitalista com o corolário da Revolução Industrial no século XVIII.

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Na literatura, muitos apontam Dom Quixote como sendo o primeiro romance a tratar dessa crise de representação, que chega ao século XVI com Laurence Sterne e, após o século XIX, se torna incontornável, com Rimbaud convidando os artistas ao “desregramento de todos os sentidos”. No Século XX, era da reprodutibilidade técnica, a obra de arte assiste ao recrudescimento dessa crise da representação. As artes deixam de ser figurativas ou representativas e passam, em grande parte, a materializar uma ideia sem a necessidade de uma figura reconhecível no mundo das coisas, ou seja, o conceito de abstrato se espalha pela criação artística. A arte em crise com o mundo exterior passa a tematizar a si mesma, entrando no aspecto metalinguístico de suas produções, com os autores dos mais diferentes gêneros literários buscando, pelo expediente da escrita, analisar, no interior de suas obras, a própria linguagem que as constitui. A arte, assim, traz consigo sua própria crítica, o que, como consequência, produz a necessidade de expressar “nada”, pois a linguagem crítica não aponta de forma positiva para o mundo, mas para si mesma, aniquilando a referência mimética. Para João Alexandre Barbosa (1974), essa expressão do nada seria a tentativa de rompimento da obra com o seu aspecto de enunciação da realidade, o que o teórico chama de rompimento com a transitividade da linguagem. A obra contaria então apenas com sua força interna ou intransitiva. Desse ponto de vista, o simbolismo poético do final do século XIX, com Mallarmé como seu grande expoente, nada mais é que uma dessas tentativas. No domínio do romance, Flaubert (1993 p.59) foi um dos autores que expressaram essa tendência: “O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo”. O modernismo levou o nada ao seu paroxismo: Becket afirmaria que En Attendant Godot seria uma peça sobre nada (JACQUART, 1974). A peça que vamos analisar, A Cantora Careca, desponta como uma obra que levou essa tendência ao seu grau mais extremo. E a questão levantada por Ionesco é a que deve ser respondida no decorrer da presente análise: “Mas como chegar a representar o não representável. Como figurar o não figurativo?” (Notes et Contre-Notes, 1991, p.167, tradução nossa).

O drama, gênero que na Grécia, prestava homenagem a Dionísio e, no subgênero da tragédia, se mostrou um dos meios mais profícuos para representar esse “nada”. O seguinte trecho serve como explicação: “[...] os gregos sempre encontraram algo de misterioso no ato de negar. Decorre disto que duas divindades acabaram por dividir entre si duas vertentes das atividades simbólicas: a afirmação e a negação – Apolo e Dionísio” (KRISTEVA, p.168). Portanto, nada mais natural que a arte que melhor se prestava à exaltação da divindade negativa (o drama) seja a que melhor expresse a negatividade de sentido que se instaurou na arte. Nietzsche (apud KRISTEVA, p. 168) aponta a dualidade dessas divindades na evolução da arte nos seguintes termos:

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Teremos feito um progresso decisivo em estética, quando tivermos compreendido, não enquanto visão racional, mas com a certeza imediata da intuição, que a evolução da arte está relacionada ao dualismo do apolinismo e do dionisismo, do mesmo modo que a geração está relacionada à dualidade dos sexos, à sua luta contínua, ponteada de acordos provisórios.

Expliquemos em que consiste essa negatividade que mencionamos usando como exemplo a antipeça A Cantora Careca, de Ionesco. Em primeiro lugar, o que está necessariamente implicado nesse predicativo de antipeça? Ora, essa é uma obra que não apenas nega as obras precedentes, mas nega, antes, a si mesma. Eis a diferença: as obras precedentes destruíam as outras obras pela metalinguagem; essa nova categoria, no estilo de A Cantora Careca, ao destruir outras obras tampouco se poupa. Kristeva explica essa qualidade essencial do texto moderno em seu artigo “Poesia e Negatividade” (1969, p. 176): “Para os textos poéticos da modernidade, poderíamos afirmar, sem risco de exagero, é uma lei fundamental: eles se constroem absorvendo e destruindo, concomitantemente os outros textos do espaço intertextual [...]”. E essa negação fundamental de si mesma resumiria o conceito de negatividade tal como é posto por Hegel (apud KRISTEVA, p. 166): “O negativo representa, pois, toda oposição que, enquanto oposição, apoia-se nela mesma; ele é a diferença absoluta, sem qualquer relação com outra coisa; enquanto oposição, ele é exclusivo de identidade e, por conseguinte, de si mesmo[...]”. Essa peça baseada na negatividade não possui, portanto, uma identidade. Ela só se constitui enquanto negação absoluta. Se investigarmos, veremos que a negatividade aí possui um sentido mais profundo do que suspeitamos. E é sobre o sentido desse termo que nos debruçaremos nas páginas a seguir. Nossa resposta busca achar o ponto comum das várias linhas de pesquisas correntes sobre a negatividade da arte e, em especial, sobre a antipeça A Cantora Careca, contextualizando a corrente na qual ela se insere, para, em seguida, responder como surgiu e qual a finalidade dessa arte negativa.

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A negatividade que se instaurou na arte está intimamente ligada à tentativa de depurar a arte de seu elemento objetivo. Otto Maria Carpeaux faz o seguinte comentário a respeito da filosofia da arte pura após apresentar os conceitos estéticos de Croce: “[...] o único objeto do estudo literário é a obra de arte; devemos estudá-la abstraindo dos acessórios históricos e psicológicos que acompanham o processo poético e dos quais se encontram ainda vestígios na obra. Esse conceito estético tem notáveis consequências negativas” (CARPEAUX, p. 33, grifo nosso). Da mesma maneira, Walter Benjamin também já havia notado as consequências negativas da tentativa de purificar a arte de sua transitividade com o mundo exterior:

Quando surgiu a primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a fotografia – [...] os artistas pressentiram a aproximação de uma crise, que ninguém pode, cem anos mais tarde, negar. Reagiram professando a arte pela arte. Essa doutrina – da qual Mallarmé foi o primeiro a tirar todas as consequências no plano literário – conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminava-se efetivamente por conceber uma arte “pura”, que recusa não somente desempenhar qualquer papel essencial, mas inclusive submeter-se às condições impostas por qualquer elemento objetivo (BENJAMIN, p. 229).

Se alguns interpretam, nesse esvaziamento, a tentativa de uma arte pura, como mencionada por Walter Benjamin, outros há que o interpretam como a renovação dialética da arte, como o faz Linda Hutcheon (1984, p.50, tradução nossa) no seguinte trecho sobre a função da paródia (que é a destruição dos outros textos no espaço intertextual, de que falou Kristeva):

A paródia se desenvolve por causa da tomada de consciência das inadequações literárias de certa convenção. Não apenas o desmascaramento de um sistema não funcional, este é também um processo necessário e criativo pelo qual novas formas aparecem para revitalizar a tradição e abrir novas possibilidades ao artista. A arte paródica é ao mesmo tempo um desvio da norma e inclui aquela norma em si mesma como um material precedente. Formas e convenções dão força e induzem à liberdade à luz da paródia.
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Pode-se argumentar que ambas as correntes teóricas (tanto as que professam a negatividade como tentativa de arte pura quanto as que a professam como renovação de técnicas ultrapassadas) estão com a razão. A arte, quando cai no lugar comum, tenta se depurar e caminhar cada vez mais para o próprio centro, o que para vários teóricos é o caminho do suicídio da literatura.

O fazer poético, na verdade, sempre se constrói a partir de uma negatividade, como demonstrou Kristeva (1969, p.172): “O significado poético simultaneamente remete e não remete a um referente; ele existe e não existe, é, ao mesmo tempo, um ser e um não ser”. O que fica patente em A Cantora Careca, o que diferencia essa antipeça de Ionesco é a ruptura irrevogável com o lado positivo, com a referencialidade. Com a sua técnica, Ionesco evidencia o não ser, a não referencialidade e a não existência no fazer poético. A ilusão da realidade é quebrada a cada réplica. Veja como a lei de causa e efeito é desconstruída na resposta do senhor Smith ao bombeiro: “Já que ela é loira, só pode ser Maria.” (A Cantora Careca, 1997, p 63). “Os critérios tradicionais que regiam, por exemplo, a pintura (proporções, arte figurativa), a música (a harmonia) e a literatura (respeito à causalidade e à estética) foram rejeitados total ou parcialmente [...]” (JACQUART, p.175, tradução nossa).

O Nouveau Théâtre, no qual se “enquadra” Ionesco, segundo Yves Stalloni (2002, p.151) em seu livro Écoles et Courants Littéraires, segue a tendência da busca pela arte pura – daí a recusa de Ionesco pelo teatro engajado de Brecht, por exemplo. Nas palavras de Jacquart: “Rompe-se com o didatismo, o engajamento e a ideologia caracterizada [...] Tais como os simbolistas e aqueles que promoviam a Arte pela Arte antigamente, os novos dramaturgos descartam resolutamente a literatura de tese” (JACQUART, p. 54). O que significa que engajar A Cantora Careca seria colocá-la em posição de afirmação, e isso fugiria, substancialmente, de sua intenção inicial.

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Em seu livro Théâtre de Dérision, Emmanuel Jacquart afirma ser difícil enquadrar o estilo de Ionesco, porém aponta uma qualidade que este autor possui em comum com dramaturgos coetâneos, tais que Adamov e Becket: todos eles fazem teatro de oposição. Oposição “a convenções perecidas, ao já feito, ao já visto, em resumo, às mesmas tradições” (JACQUART, p. 53, tradução nossa). O antiteatro é ainda caracterizado, segundo Jacquart, por uma atitude niilista em relação ao público, às tradições e às convenções em curso: “Ionesco havia encarado a possibilidade de terminar a peça gritando, ele mesmo, aos espectadores: ‘Cambada de vagabundos! Se eu pudesse arrancaria suas peles’” (JACQUART, p. 52, tradução nossa).

O teatro de Ionesco como experimentação linguística.

Devemos ainda descobrir como essa negação se relaciona quase sempre, na literatura contemporânea, à crítica da matéria-prima da literatura – a linguagem – através da metalinguagem ou metaficção, que é a crítica da obra incluída no interior da própria obra. E a resposta é dada, objetivamente, por João Alexandre Barbosa em seu livro A metáfora crítica: “é antes pela negação do que pela aceitação do poema que o poema arma sua rede de respostas à realidade.[...]” e acrescenta: “para que haja problematização da realidade é preciso que se passe pela problematização da própria linguagem [...]” (BARBOSA, p 41, 46). E é necessariamente aí que reside o problema encontrado na peça em questão, A Cantora Careca. Essa obra é essencialmente metaficcional.

Essa problematização da linguagem se encontra explicada em um trabalho intitulado “Expérimentation sémiotique chez E. Ionesco”, de Revzin e Kaspínkaia, que afirmam ter sido Ionesco “o primeiro escritor em que o próprio conteúdo das obras já era o estudo das leis da comunicação e da troca de informações entre as pessoas” (KASPÍNKAIA; REVZIN, 1971, p. 215). Os teóricos tratam de três experimentos semióticos que se encontram em A Cantora Careca: o primeiro experimento é o diálogo dos Martin, que, por serem casados já há algum tempo, deveriam ter uma memória em comum. No entanto, não a possuem (A Cantora Careca, 1997, pp. 47, 48, 49, 50).

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Sr. Martin
(O diálogo que se segue deve ser dito com voz arrastada, monótona, meio cantante, sem nuances)

Desculpe, minha senhora, mas me parece, se não estou enganado, que a conheço de algum lugar.

Sra. Martin
Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum lugar.
[...]

Sr. Martin
Peguei o trem das 8 e meia da manhã, que chega em Londres às 15 para as 5, minha senhora.

Sra. Martin
Que curioso! Que estranho! E que coincidência! Eu também peguei o mesmo trem, meu senhor.
[…]

Sr. Martin
Desde que cheguei a Londres, moro na rua Bromfield, minha senhora.

Sra. Martin
Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha chegada a Londres, moro na rua Bromfield, meu caro senhor.
[...]

Sr. Martin
Então, minha cara senhora, creio que não há dúvida, nós já nos vimos e a senhora é minha própria esposa… Elisabeth, eu reencontrei você!

Sra. Martin
[...] Donald, é você, darling!

A segunda experiência seria a cena do Bombeiro, em que são desligados os axiomas da comunicação “de acordo com o sistema de Jakobson: o remetente, o receptor, o código, a mensagem, o contexto, o contato” (O. G. KARPÍNSKAIA, I. I. REVZIN, 1971, p. 218). O bombeiro reclama da falta de fogo e de catástrofes, assim como um comerciante reclamaria da diminuição nas vendas, o que inverte a relação de causa e efeito: o bombeiro existe para evitar o mal, mas ele deseja o mal para manter a sua atividade.

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Sr. Martin (ao Bombeiro)
Os negócios vão mal, neste momento!

Bombeiro
Muito mal. Não há quase nada, umas coisinhas, um fogão, um paiol. Nada sério. Não rende nada. E como não há rendimento, o prêmio por produção é mínimo.

Sr. Smith
Nada vai bem. Em todo lugar é igual. Este ano, o comércio e a agricultura estão iguais ao fogo, não vão bem.

Sr. Smith
Nada de trigo, nada de fogo.

Bombeiro
Nem inundação, também.
(A Cantora Careca, 1997, p.52).

Depois, as personagens contam anedotas sem nexo com a realidade empírica. O próprio enunciador solicita que os enunciatários interrompam a recepção do enunciado: “Vou começar assim mesmo. Mas prometam que não vão escutar” (A Cantora Careca, 1997, p.55). No experimento número três, além dos axiomas citados, é a realidade que é desligada, quando as personagens, ao final da peça, começam uma fala sem correspondência com a mensagem do interlocutor, proferindo provérbios e expressões fora de contexto. A fala por fim se desintegra na simples emissão de vogais e consoantes isoladas.

Sr. Smith
A, c, i, o, u, a, c, i, o, u, a, c, i, o, a, c, i, o, u, i!

Sr. Martin
B, c, d, f, g, h, l, m, n, p, r, s, t, v, w, x, z!
(A Cantora Careca, 1997, p.79):

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Revzin afirma que o verdadeiro tema de A Cantora Careca é a solidão, uma vez que a comunicação entre os seres é impossível.

Há ainda outra influência de fácil identificação na desconstrução da linguagem da peça: é a leitura do método Assimil de aprendizagem do Inglês, feita pelo escritor no tempo em que ele estudou essa língua, fato que lhe revelou tanto o automatismo de nossa fala quanto a nossa falta de reflexão sobre a nossa vida interior. A seguinte conversa ironiza essa metodologia de ensino da língua:

Sra. Martin
Quais são os dias da semana?

Sr. Smith
Monday. Tuesday. Wednesday. Thursday. Friday. Saturday. Sunday.

Sr. Martin
Edward is a clerck; his sister, Nancy is a typist, and his brother William a shop-assistant.

Sra. Smith
Que família estranha.
(A Cantora Careca, 1997, p.136)

A metodologia do estudo de línguas é ainda ridicularizada na réplica da Sra. Smith à fala de Mary. É o velho exercício em que o professor enuncia uma frase e o aluno deve repeti-la apenas mudando o sujeito da oração.

Mary Eu sou a empregada. Passei uma tarde muito agradável. Fui ao cinema com um homem e vi um filme com mulheres. Na saída do cinema fomos beber aguardente e leite e depois lemos o jornal.

Sra. Smith Espero que você tenha passado uma tarde bem agradável, que tenha ido ao cinema com um homem e que tenha bebido aguardente e leite.

M. Smith E o jornal!
(A Cantora Careca, 1997, p.31).

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E, como seria óbvio, todo esse experimento com a linguagem se reflete na própria estrutura da peça, que, de nenhum modo, obedece à composição do enredo dramático prescrito por Aristóteles: “uma ação inteira e completa, com princípio, meio e fim, para que, una e completa, qual organismo vivente, venha a produzir o prazer que lhe é próprio” (ARISTÓTELES, 1991, p.223). Nesse drama, os diálogos não se inserem em um lugar ou momento apropriados, tampouco seguem uma deixa. Aliás, as personagens não interagem, ao contrário, parecem falar sozinhas. Veja-se, por exemplo, o seguinte diálogo, que, embora um pouco surreal, não deixa de ser uma grande ironia à função fática, aquela utilizada para estabelecer a conversação. Como afirma Yves Stalloni (2002, p. 152), Ionesco utiliza o jogo verbal para fazer piada com os “falsos diálogos da vida cotidiana”.

Sr. Smith
Hum.
Silêncio

Sra. Smith
Hum, hum.
Silêncio

Sra. Martin
Hum, hum, hum.
Silêncio

Sr. Martin
Hum, hum, hum, hum.
Silêncio

Sra. Martin
Oh, decididamente.
Silêncio

Sr. Martin
Estamos todos resfriados.
Silêncio

Sr. Smith
Mas não está fazendo frio.
Silêncio

Sra. Smith
Não há corrente de ar.
Silêncio

Sr. Martin
Oh não, felizmente.
Silêncio

Sr. Smith
Ah, la la la la.
Silêncio
(A Cantora Careca, 1997, pp. 34-35).

O jogo verbal é, aliás, uma característica marcante da reflexão sobre a linguagem no Nouveau Théâtre, conforme afirma Stalloni (2002, 152): “a primeira novidade deste teatro (o Nouveau Théâtre) é tomar a linguagem à parte para subvertê-la, desmistificá-la, explorar seus recursos lúdicos e poéticos.”

O drama abstrato: questões de representação e referencialidade da linguagem.

Emil Staiger categoriza o gênero dramático pela tensão, que remete o tempo da narrativa para o futuro. Em A Cantora Careca, não há tensão diegética, não se vê uma intriga que amarre o enredo. O drama inteiro, aliás, apresenta um tom digressivo. No primeiro ato, esperamos que nos seja apresentado o estabelecimento do conflito, como na maioria das peças de teatro. Porém a antipeça se inicia com um estranho diálogo. Esperamos que o casal Smith seja apresentado nesse diálogo. O esperado diálogo de apresentação, entretanto, mais desloca do que situa o espectador. Tudo ali aparece de forma incoerente e desconexa:

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[...] O pêndulo inglês soa dezessete batidas inglesas.

Sra. Smith
Veja só, são 9 horas. Nós comemos sopa, peixe, batatas com toucinho, salada inglesa. As crianças beberam água inglesa. Comemos bem, esta noite. Isto porque moramos nos arredores de Londres e nosso é Smith.

O Sr. Smith, continua sua leitura e estala a língua. (A Cantora Careca, 1997, p.13)

A hora dada pela madame Smith em contraposição às batidas do relógio é o primeiro indício de que o diálogo está desconectado dos elementos referenciais da realidade. A forma artificial e deslocada da fala da senhora Smith não nos ajuda a compreender a situação e, embora essa fala apresente dados sobre as personagens, ela, ao mesmo tempo, não esclarece nada. E o diálogo continua com a mulher falando desconexa e desenfreadamente e o marido a estalar a língua como resposta. O leitor, no entanto, tende a concentrar-se no que está por vir, seguindo as expectativas do teatro tradicional. O leitor ou espectador se questiona, então, sobre o papel da cantora careca e sobre quando ela irá aparecer. Mas a peça não apresenta nenhuma cantora, seja ela careca ou não. Daí afirmarmos que, nessa obra, não há tensão, como a entende Emil Staiger, que seria um nó na diegese do enredo que remeteria à expectativa do desenrolar da situação no futuro da ação. O drama não pode ocorrer no nível dos fatos, pois ele é irredutível àquilo que Aristóteles chamou de argumento, e Todorov de história, e outros teóricos de enredo. Se se tenta extrair o argumento desse drama, o principal não será mencionado: a antipeça começa com a cena na casa dos Smith na qual a Sra. Smith explica o que tiveram no jantar; em seguida, chega Mary, a empregada; depois, a família recebe a visita dos Martin; na sequência, os Smith saem para se vestir; então, os Martin descobrem que são casados; os Smiths voltam, reclamam que, embora eles não soubessem da visita dos Martin, ficaram quatro horas sem comer para esperá-los; a conversa se inicia com dificuldade e começam, a partir daí, a contar anedotas; chega o capitão dos bombeiros, que entra na conversa; Mary quer entrar também, mas é rejeitada; o bombeiro vai embora e a conversa ganha um tom de jogo verbal ao mesmo tempo que se torna uma briga; e, quando chega o grau mais elevado da falta de sentido e frenesi, as luzes se apagam e se escuta a “conversa” das personagens em um ritmo cada vez mais rápido, até que ela para bruscamente e a primeira cena se repete, só que, dessa vez, com os Martin. Contado assim o enredo, porém, corre-se o risco de fugir completamente à intenção do autor ao compor a antipeça. E, mais do que em qualquer outra peça ou obra literária, o enredo aqui não diz nada.

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Jacquart apresenta o conceito de Oscar Brockett sobre a progressão dramática de uma obra, que deveria aumentar o suspense, revelar novos aspectos psicológicos e aumentar a intensidade emotiva quanto mais se aproxima do momento decisivo ou da peripécia, mas descarta essa regra para as peças de Ionesco (1974, p.165). A estrutura quinária tradicional e seus elementos tais que a exposição, desenvolvimento da ação, ápice, peripécia e desfecho (elementos que correspondem aos atos nas peças tradicionais) estão ausentes, ou seja, vez que rompe com o tipo de conflito tradicional, Ionesco não divide a antipeça em atos. O objetivo da obra é, ao contrário, questionar as codificações do gênero. O seu conflito é estabelecido em outro nível, como em um movimento abstrato, musical.

Eu gostaria de poder, às vezes, de minha parte, despojar a ação teatral de tudo o que ela tem de particular; seu enredo, os traços acidentais de seus personagens, seus nomes, sua classe social, seu quadro histórico, as razões aparentes do conflito dramático, todas justificativas, todas explicações, toda lógica do conflito. O conflito existiria de outra maneira, não haveria teatro, mas não se saberia a razão disso. Pode-se falar de dramatismo a respeito de pintura, de obras figurativas como as de Van Gogh, ou de obras não figurativas. Esse dramatismo resulta simplesmente de uma oposição de formas, de linhas, de antagonismos abstratos, sem motivações psicológicas. Fala-se de dramatismo de uma obra musical (IONESCO, Notes et Contre-Notes, 1991, p.167, tradução nossa).

Ressalte-se aqui a afirmação de Ionesco: o “dramatismo resulta simplesmente de uma oposição de formas, de linhas, de antagonismos abstratos, sem motivações psicológicas”. Kristeva (p.152) explica que a “personagem” não era conhecida pelos Gregos, para os quais ela não era nada mais que um actante dotado de caráter ético (“baixeza ou nobreza”), responsável pelo desenrolar da narrativa, e que manifestava sua natureza pela qualidade de suas escolhas. No mundo grego, as escolhas eram sempre anunciadas e os actantes não escolhiam de forma contrária àquilo que anunciavam. Por outro lado, as personagens de Ionesco não são guiadas por alguma forma de ética. Fala-se, para designar seu teatro, de “dramatismo de uma obra musical” (IONESCO apud JACQUART, 1974, p. 167, tradução nossa). Assim, uma característica do diálogo de Ionesco, segundo Jacquart, é a oposição, a disputa entre duas personagens. Oposição que segue o dramatismo musical, ao modo da réplica de uma frase musical a outra, com os seus motivos quase nunca aparentes. À medida que a incomunicabilidade chega ao seu paroxismo, ao fim da peça, mais os diálogos ganham a expressão de uma briga, um “bate-boca”, embora não façam o mínimo sentido e se enquadrem mais naquilo que acima se chamou de “jogo verbal”. No entanto, essa briga sem sentido parece indicar que a falta de comunicação encontra-se no centro das disputas entre os homens.

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Sra. Smith
As ratazanas têm pestanas, as pestanas não têm ratazanas.

Sra. Martin
Não mexa na chave.

Sr. Martin
Deixe a chave.

Sr. Martin
Enxota o chacal.

Sr. Smith
Enxota o chacal, chacal não o enxota.

Sra. Martin
O chacal se encharca.
(IONESCO, 1997, p.142).

Aristóteles (1991, p.212) apresenta quatro tipos de mudança nas situações das personagens dramáticas para demonstrar qual seria a mais adequada ao herói da tragédia. A primeira que ele cita é a de homens muito bons que passam de uma boa para uma má situação. Essa alteração no destino das personagens não deve ser utilizada pela tragédia, pois suscita repugnância, ao invés do efeito desejado, que é o terror e a piedade. Tampouco se deve representar homens muito maus que passem de uma situação ruim para uma boa ou ao contrário, quer dizer: homens maus não devem ser protagonistas de uma tragédia. O acontecimento digno da tragédia é aquele em que um homem de virtude mediana comete algum erro e se precipita em desgraça. Porém, nenhum desses casos se aplica às personagens d’A Cantora Careca e, muito dificilmente, alguém poderia explicar, psicologicamente ou por um julgamento de caráter, a evolução das personagens dentro da antipeça. A explicação de Jacquart (1974, p. 106, tradução nossa) esclarece onde podemos situar tais personagens: “A personagem se situa em um cruzamento de perspectivas. Pode-se encará-lo como uma imagem do homem, indo da criatura “viva” ao boneco, passando pelo símbolo e pela alegoria”. Jacquart ainda indica que a personagem pode ser apenas uma estrutura em relação a uma rede composta pelas outras personagens “que se opõem ou associam segundo os diversos tipos de correlações” (1974, p. 106, tradução nossa). As personagens de La Cantatrice se enquadram na categoria de bonecos; são marionetes, que só existem em decorrência da situação a ser apresentada. Elas se dissolvem e, junto e com elas, o próprio signo linguístico. Nesse ponto, a teoria da oposição da língua em blocos do estruturalismo é que é discutida: a différence de Saussure. Jacquart chama as personagens da peça de “marionetes intercambiáveis” (1974, p. 119, tradução nossa) e cita como exemplo o fato de a cena inicial se repetir ao fim com personagens diferentes.

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O problema da referencialidade e do signo linguístico se encontra abordado em todos os diálogos da peça. O diálogo sobre os Bobby Watson traz à superfície a fragilidade dos referenciais. Vejamos um trecho: “[...] E a tia de Bobby, a velha Bobby Watson, poderia muito bem, por sua vez, se encarregar da educação de Bobby Watson, a filha de Bobby Watson. Assim, a mãe de Bobby Watson, Bobby, poderia se casar de novo.” (A Cantora Careca, 1997, p.24). Essa fusão de personagens é também responsável por um efeito de circularidade, da capo: a cena final é quase exatamente a cena do começo, com a diferença de que, agora, ao invés dos Smiths, quem se encontra no palco são os Martins, repetindo palavras e ações da primeira cena. Chama a atenção do leitor a repetição do mesmo termo referencial para tratar uma série de referentes diferentes. A ironia do autor fica, entretanto, clara: o “diálogo” (lembrem-se que o marido dá por resposta um estalar de língua) burguês é indiferente: pais, mães, tias, filhos, filhas, sobrinhos, tanto faz. As personagens e as histórias são sempre as mesmas. Aqui não só a história se alterna com as mesmas personagens, mas também as personagens se alternam na mesma história, numa circularidade que compõe um outro aspecto da peça: Jacquart (1974, pp. 175-176) compara o Nouveau Théatre à música moderna, na qual o ritmo desempenha um papel de extrema importância. O que conduz esse drama ao movimento de “fala e silêncio”, “aliás pausas e silêncios e vazios linguísticos abundam[...]”. A partir de agora, a tensão não será mais regida pelo enredo e seus elementos, mas simplesmente pela “alternância de tempo forte e tempo fraco”.

Essa confusão de signos é generalizada: as personagens se dissolvem, perdem sua individualidade, representam tipos, funções. Todas as personagens, os Martin, os Smith, a empregada, Mary, o capitão, são funções que se perdem atrás de seus nomes genéricos e seus estereótipos. Mary não é somente Mary, é Mary, a empregada (la bonne). Aliás, dos vários modos de se apresentar uma personagem, Ionesco escolheu o mais inusitado para Mary: ela aparece em cena e, de forma intempestiva, lança a fala: “Eu sou a empregada”. O seu papel fica assim restrito à sua posição enunciativa que decorre de sua posição social, de modo que, quando esta demonstra o desejo de participar da pequena reunião dos Martin com os Smith, e narrar uma anedota para eles, estes se mostram indignados ante a insolência da empregada. Essa questão pode ser explicada pelo lugar ocupado pelo sujeito do discurso, como analisado por Foucault no capítulo “A Formação das Modalidades Enunciativas”, do livro A Arqueologia do Saber (2008, p.57). Assim, Mary não é um ser humano, ela é, antes, o lugar que ocupa enquanto sujeito do discurso, o lugar “empregada”. Por isso, as outras personagens se negam a ouvir o poema que a empregada deseja recitar, pois o lugar que ela ocupa no discurso não lhe dá a prerrogativa de se expressar no mesmo nível dos patrões. A fala de M. Smith é clara a esse respeito: “Você realmente não sabe o seu lugar, Mary...” (A Cantora Careca, 1997, p. 118). A explicação de Jacquart confirma a construção das personagens da peça no modo que acabamos de apontar:

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[...] a análise psicológica da ‘arte do retrato’ e os estudos de costumes caíram de seu pedestal. Nas primeiras peças de Ionesco, a personagem serve de suporte a uma situação. Simplificada, estilizada ao extremo, desumanizada, ela remete sempre a outra coisa que não ela mesma. (JACQUART, p. 119, tradução nossa).

A purificação da linguagem pela arte

Essa desconstrução da linguagem não é um niilismo, ao contrário, é um aspecto da obra moderna e a tentativa de reabilitar a comunicação. Linda Hutcheon (1984), em seu livro Narcissistic Narrative, demonstra que a ruptura da metaficção com os modelos tradicionais e realistas da literatura não seria o suicídio desta, mas somente a sua adequação a novas necessidades de expressão, dado que a literatura antiga se gastou dialeticamente e uma nova literatura a substituiu, parodiando seus clichês para superá-los. Emmanuel Jacquart põe essa questão nos seguintes termos: “Notaremos em particular o paralelo com a música e a pintura abstratas, a busca do acontecimento único e, enfim e principalmente, a procura do drama puro. A noção de “pureza” é a noção-chave” (JACQUART, 1974, p. 167, tradução nossa). Com outras palavras Alexandre Barbosa fala o mesmo: “Recusando, assim, uma linguagem, a da literatura, para a invenção de uma outra, a da Literatura (desta vez consumida pelo próprio ato da recusa), o artista elabora o esquema necessário para uma realidade nova” (BARBOSA, 1974, p. 46). E, nesse caminho de explicações, Ionesco nos revela a finalidade da negatividade na arte:

Quando há novidade de expressão, é um sinal de valor. A renovação da expressão é a destruição dos clichés, de uma linguagem que não quer dizer mais nada; a renovação da expressão resulta do esforço de tornar o incomunicável novamente comunicável. Aí reside, portanto, o objetivo, talvez, principal da arte: fazer a linguagem retornar à sua virgindade. (IONESCO, Itineraires Littéraires, 1991, p. 135, tradução nossa).
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Considerações finais

Trabalhar a antipeça de Ionesco permite aos alunos uma série de aprendizados de linguagem, seja no âmbito do francês como língua estrangeira, seja em outras disciplinas, como História ou redação. Nessa experimentação semiótica conduzida pelo autor, ficam claras as possibilidades de temas para discussão e análise. As relações de causa e efeito da linguagem são alteradas, a linguagem referencial é abalada, os diálogos se tornam jogos musicais e assim em diante. Entretanto, o professor não deve se encantar pelo canto da sereia. Esse drama é uma forte crítica da linguagem e uma excelente oportunidade de fazer os alunos refletirem sobre uma série de usos linguísticos que parecem inquestionáveis, mas que escondem, todavia, sofismas e manipulações, como as analogias, tão bem apontadas e descartadas por Ionesco, ou as relações de causalidade e necessidade. Esses construtos pré-moldados pela língua são abalados no texto aparentemente caótico de A Cantora Careca. No entanto, uma vez aprendida a lição desse aparente caos, a linguagem se renova criticamente contra o terreno comum dos discursos desgastados.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultural, 1987. ().

BARBOSA, João Alexandre. A Metáfora Crítica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: Teoria da Cultura de Massa. Seleção de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental I. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2008.

HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metaficcional paradox. London/ New York: Methuen, 1984.

IONESCO, Eugène. A Cantora Careca. Mayenne : Imprimerie Floch, 1980.

_____. A cantora careca. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1997.

_____. Notes et Contrenotes In : DÉCOTE, Georges (org). Itineraires Littéraires. Paris : Hatier, 1991.

JACQUART, Emmanuel. Le Théâtre de Dérision. Paris: Éditions Gallimard, 1974.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo : Editora Perspectiva, 1974.

____. Le Temps Sensible : Proust et l’expérience littéraire. Paris : Gallimard,1994.

KARPÍNSKAIA O. G. ; REVZIN I. I. Expérimentation sémiotique chez E. Ionesco (A Cantora Careca et La Leçon). In: Semiotica IV. Paris : 1971.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

STALLONI, Yves. Écoles et Courants Litteraires. Paris: Lettres Sup, 2002.

TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: Análise Estrutural da Narrativa. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.