Intertextualidades literárias de autoria feminina: dialogia e resistência discutida em sala de aula da Educação Básica
Célia Sebastiana Silva (Cepae-UFG)
Ilma Socorro Gonçalves Vieira (Cepae-UFG)
Vivianne Fleury de Faria (Cepae-UFG)
A construção da autonomia é um processo que demanda tempo. Pode ser iniciado na infância dos sujeitos e deve constar dos principais objetivos a serem alcançados pela escola. Esse entendimento nos faz crer que nenhum conteúdo escolar se justifica se não estiver associado à possibilidade de contribuir para que os estudantes desenvolvam uma consciência crítica que lhes permita avançar na compreensão da realidade e de sua própria condição como sujeitos que, em suas singularidades, participam da composição de uma coletividade. Educar, nesse sentido, envolve sutilezas que atravessam o olhar sensível do professor, disposto a investir na abertura de caminhos para que seus alunos se iniciem e avancem na construção de uma capacidade de pensar o mundo e de transformá-lo com base em uma ética comprometida, primordialmente, com a valorização da vida, tanto da própria, quanto a do outro.
A promoção do acesso à arte cumpre, desse modo, uma função fundamental, pois favorece a mobilização de várias camadas que constituem a condição humana. De modo particular, tratemos da arte literária, que, no dizer de Candido (2011, p. 177), “é fator indispensável de humanização”. Partimos da compreensão de que a leitura literária, em sua função estética, promove a travessia necessária para que o leitor se sinta, ainda que momentaneamente, na condição do outro e, assim, alcance progressos em sua consciência, sobretudo no que diz respeito à diversidade humana, que tanto nos convoca a percebê-la assim como a considerá-la nas mais diversas circunstâncias em que o bem comum não pode ser esquecido.
Na direção dessa premissa, cumpre reconhecer a legitimidade dos discursos que passam pelas obras, se entrecruzam e se amplificam, a partir do processo de recepção, que põe em movimento a teia discursiva constitutiva de cada leitor. Esse reconhecimento é importante, especialmente por permitir a valorização do diálogo que se estabelece entre várias obras e entre elas e seus leitores. A promoção da leitura literária na sala de aula da Educação Básica, nessa perspectiva, se constitui como um valioso caminho para a construção de novos discursos, que, partindo de anteriores e de forma progressiva, contribuem para o desenvolvimento de novas subjetividades, para a flexibilização do olhar para o mundo e, por conseguinte, para o aprimoramento da condição humana.
Investir no sentido de promover o acesso das crianças e dos jovens à leitura de literatura de modo a evitar que a experiência estética seja reduzida a uma atividade pedagógica é, assim, um desafio a ser assumido na atuação docente comprometida com a formação leitora em sua perspectiva emancipatória. Em se tratando de jovens leitores, contribui de maneira significativa o convite para um olhar atento aos diálogos suscitados pelos textos literários, aos procedimentos empregados pelos autores, na busca de interação com seus leitores, aos processos intertextuais que, explícita ou implicitamente, se deflagram na produção de sentido de cada obra.
Neste estudo, apresentamos um trabalho desenvolvido em sala de aula da Educação Básica, que teve, como ponto de partida, a leitura literária e, como ponto de chegada, a escrita criativa de estudantes da 3ª série do Ensino Médio, do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação, da Universidade Federal de Goiás, em (data). Como a intertextualidade constituiu o aspecto ressaltado tanto durante a leitura literária quanto na produção escrita dos estudantes, aqui também discutimos o processo intertextual observado em algumas produções literárias de autoria feminina, nas quais o discurso polifônico se estabelece a partir da presença de vozes historicamente mantidas à margem de discursos reconhecidos como legítimos nas sociedades de raízes patriarcais eurocêntricas, como é o caso da obra tomada como referência para as produções dos estudantes: a coletânea intitulada Poemas da recordação e outros movimentos, de Conceição Evaristo (2017).
Além dessa coletânea, no entanto, ainda serão aqui enfocadas obras literárias produzidas por outras escritoras brasileiras também bastante expressivas na contemporaneidade: Ana Maria Machado e Adélia Prado. Na produção de Ana Maria Machado, a intertextualidade analisada diz respeito às relações estabelecidas entre o discurso literário e o discurso da historiografia, que favorecem a problematização de eventos do passado histórico e da maneira como eles constam nos registros oficiais. Na poesia de Adélia Prado, será observado o diálogo estabelecido com um dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, em um processo intertextual que faz ressaltar a voz feminina que se ergue vigorosa diante dos desafios da vida, contrapondo-se à estagnação possível de prevalecer no universo masculino, em razão de uma exacerbada sensibilidade frente ao mundo como este se apresenta. Na produção de Conceição Evaristo, por sua vez, a intertextualidade é observada em determinados poemas que dialogam, ora com a poesia de Drummond, ora com a poesia de Adélia Prado, de maneira a se ressaltar a voz feminina em condição ainda mais desafiadora, por evidenciar a perspectiva da mulher negra no contexto de uma sociedade altamente racista, que é a brasileira.
Para essa discussão, indispensável colocar em pauta alguns aspectos em torno da origem e da definição do termo “intertextualidade”.
Algumas considerações sobre a intertextualidade
A noção de intertextualidade se fundamenta no princípio do dialogismo desenvolvido por Mikhail Bakhtin nos anos de 1920. Na compreensão do filósofo russo, a linguagem, oral ou escrita, realiza-se na interação verbal e toda e qualquer enunciação é orientada pelo contexto no qual se estabelece e pelos interlocutores envolvidos no discurso (2009). Para esse pesquisador da linguagem, o discurso não é individual, porque se constrói entre pelos menos dois interlocutores, seres sociais, e porque mantém relações com outros discursos. É, pois, o discurso de natureza social, cultural ou ideológica. Assim, por mais simples que seja, todo discurso se constitui em uma rede complexa de inter-relações dialógicas com outros enunciados.
Nessa perspectiva, o discurso, elemento dialógico, opõe-se à ideia de monólogo que, constituído de apenas uma voz, reconhece somente a si mesmo e o seu objeto. Composto de duas ou mais vozes, o discurso leva em conta a palavra do(s) interlocutor(es) e as condições concretas da comunicação verbal. E, no processo dialógico que o discurso encerra, os falantes e interlocutores se estabelecem como seres históricos e sociais, pois cada enunciado proferido é orientado por uma visão de mundo, que reflete a procedência sócio-histórica e cultural do sujeito falante.
Essas ideias são valiosas premissas para os estudos em diversos campos da linguagem, em especial no âmbito da literatura. Com base nelas, a pesquisadora búlgaro-francesa Julia Kristeva elaborou, nos anos de 1960, o conceito de intertextualidade, que foi retomado e rediscutido, posteriormente, por outros estudiosos, como os franceses: Laurent Jenny (1979), Gérard Genette (1979) e Michael Riffaterre (1980). Além desses, outros pesquisadores, como o também francês Roland Barthes (2008), refletiram sobre a intertextualidade, ao discutirem questões relacionadas às teorias do texto e do discurso, bem como a respeito da literatura comparada e da teoria e da crítica literária de modo geral. No Brasil, contribuem com os estudos relativos à intertextualidade Sandra Nitrini (1997), José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros (2003), entre outros.
Em linhas gerais, todos os estudos voltados às relações entre os textos têm como ponto de partida a teoria da intertextualidade desenvolvida por Kristeva (2005), mas procuram ampliar o conceito, apontando aspectos mal resolvidos e introduzindo, de maneira crítica, novas noções, que contribuem, principalmente, para confirmar a complexidade da problemática intertextual.
Em O demônio da teoria: literatura e senso comum, livro que apresenta uma análise crítica a respeito da teoria literária francesa produzida no final da década de 1960 à década de 1970, o pesquisador francês Antoine Compagnon discute as noções de intertextualidade desenvolvidas a partir de Kristeva, tendo em vista as relações entre a literatura e a realidade, questão que, em sua opinião, só pode ser formulada em termos de “ilusão referencial” (2010, p. 107). Partilhando do pensamento de Roland Barthes acerca da teoria do texto realista, Compagnon entende que
A referência não tem realidade: o que se chama de real não é senão um código. A finalidade da mimèsis não é mais a de produzir uma ilusão do mundo real, mas uma ilusão do discurso verdadeiro sobre o mundo real. O realismo é, pois, a ilusão produzida pela intertextualidade (COMPAGNON, 2010, p. 108).
Isso porque “O que existe por trás do papel não é o real, o referente, é a Referência, a ‘sutil imensidão das escrituras’” (BARTHES apud COMPAGNON, 2010, p. 108, grifo do autor). Assim, o lugar da realidade é tomado pelos vários textos da rede dialógica e a intertextualidade se constitui como a referência.
Para Compagnon, a noção de dialogismo desenvolvida por Bakhtin contém uma abertura superior sobre o mundo e sobre o “texto” social. Nesse sentido, a obra de Bakhtin contrapõe-se às concepções dos formalistas russos e franceses, que fechavam a obra em suas estruturas imanentes, e “reintroduz a realidade, a história e a sociedade no texto, visto como uma estrutura complexa de vozes, um conflito dinâmico de línguas e de estilos heterogêneos” (COMPAGNON, 2010, p. 109). Por outro lado, Compagnon considera que a intertextualidade calcada no dialogismo bakhtiniano fechou-se sobre o texto e o aprisionou novamente na sua literariedade essencial, ao se restringir a “uma relação de copresença entre dois ou vários textos”, como definiu Genette, e ao se empregar simplesmente para substituir as antigas noções de “fonte” e de “influência” para designar as relações entre os textos.
A teoria de Michael Riffaterre, cuja concentração está nas estruturas linguísticas, é para Compagnon exemplar no que diz respeito à restrição do dialogismo bakhtiniano na noção de intertextualidade. Riffaterre, segundo Compagnon, distingue a linguagem cotidiana da linguagem literária, considerando que as palavras se referem aos objetos na primeira e, na segunda, a unidade de sentido não seria “a palavra, mas o texto inteiro, e as palavras perderiam suas referências particulares para se relacionarem umas com as outras no contexto e produzir um efeito de sentido chamado significância” (COMPAGNON, 2010, p. 110, grifo do autor). Nesse sentido, o contexto não é senão texto (ou cotexto), pois não se situa no real. O intertexto, por sua vez, é a percepção, por parte do leitor, de relações entre uma obra e outras que a precederam ou se lhe seguiram. Assim, os textos literários “são autossuficientes e não falam do mundo, mas de si mesmos e de outros textos” (p. 110).
Compagnon conclui que, de Bakhtin a Riffaterre, as injunções da intertextualidade foram reduzidas a ponto de a realidade não fazer mais parte dela. Acrescenta que, ao desenvolver a teoria da transtextualidade, Genette limita a intertextualidade à presença efetiva de um texto em outro, “utilizando a complexidade das relações intertextuais para eliminar a preocupação com o mundo que estava contida no dialogismo” (COMPAGNON, 2010, p. 111).
José Luiz Fiorin também reconhece limitações nos estudos relativos à problemática intertextual. Tendo em vista as noções desenvolvidas por Bakhtin de “discurso bivocal” (em que se encontram duas vozes) e de “discurso objetivado” (discurso da personagem representada), Fiorin afirma que o conceito de intertextualidade ignorou esse segundo fenômeno, o qual se apresenta na forma de discurso direto, palavras entre aspas etc., nos romances. Para ele, esse “fenômeno não pode ser ignorado, pois é ele que dá ao romance a característica da plurivocidade” (BARROS e FIORIN, 2003, p. 35).
O conjunto dessas discussões confirma a relevância da teoria elaborada por Julia Kristeva, sob a alcunha “intertextualidade”, tanto para os estudos da linguagem literária quanto da linguagem não-literária. A esse conjunto somam-se as tentativas de construir uma teoria que abarque a totalidade do complexo fenômeno da intertextualidade com os esforços para ampliar a compreensão do fenômeno por meio da problematização de aspectos mal resolvidos nas teorias construídas. Se, por um lado, cada estudo dá a impressão de que se propõe a desconstruir o(s) estudo(s) precedente(s), por outro, estabelecendo o princípio fundamental comum entre eles, tais estudos dialogam entre si e instituem um campo fértil para se pensar a multiplicidade de relações como uma marca essencial da vida humana, que se realiza de modo específico e pleno por meio da linguagem.
Literatura e história em diálogo
As discussões acerca da intertextualidade sinalizam para a riqueza do diálogo entre literatura e história, presente em inúmeras narrativas ficcionais que têm como matéria-prima para a composição de seus enredos fatos e acontecimentos do passado histórico. Contextos e sujeitos que participaram de eventos registrados por historiadores fornecem os principais elementos para a construção do romance histórico, alicerçado no princípio da verossimilhança e, em certa medida, comprometido com o que se registra como verdade dos fatos.
Para uma reflexão sobre esse diálogo, vale ressaltar algumas diferenças fundamentais entre a narrativa histórica e a narrativa literária: a primeira é construída a partir de fontes documentais, relatos e outros vestígios que remetem aos fatos e acontecimentos do passado e apresenta um discurso que reflete compromisso com a verdade; a segunda é uma ficção que pode se apresentar em diferentes gêneros narrativos, seja o conto, a novela ou o romance, sem qualquer compromisso com a verdade. Desse modo, enquanto “a História estuda apenas o particular”, “a poesia permanece no universal” e, assim, se constitui “mais filosófica e de caráter mais elevado que a História” (ARISTÓTELES, s/d, p. 252).
Observar essas diferenças é relevante porque elas são determinantes na definição da postura a ser assumida pelo leitor no ato da recepção das obras. Entretanto, não se pode desconsiderar que, na tecedura do enredo, o historiador e o literato lançam mão dos mesmos recursos expressivos, ao buscarem a coerência narrativa, e, embora o historiador se empenhe para construir um discurso neutro, as marcas ideológicas manifestas na seleção desses recursos se impõem de modo a não se efetivar a neutralidade esperada. Tampouco ela se efetiva em nível da linguagem que, segundo White (1994, p. 145), “é contaminada politicamente”. Nessa perspectiva, a representação da verdade não constitui um traço definitivo da narrativa histórica que, assim como a literária, se encontra condicionada aos limites da dimensão discursiva.
Contribuem, significativamente, para refletirmos acerca das relações entre o discurso histórico e o discurso literário estudos como o desenvolvido pela canadense Linda Hutcheon (1947), intitulado Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção, publicado em 1991, no qual é discutida a natureza do discurso das obras em que ficção e realidade se articulam de modo a instaurar a problematização de eventos do passado histórico. Na definição da pesquisadora, a “metaficção historiográfica” é a narrativa em que eventos do passado histórico se entrelaçam com eventos ficcionais, permitindo uma polifonia no discurso narrativo, de maneira que os discursos das margens – da mulher, do negro, do índio, do colonizado, por exemplo, em geral silenciados nas narrativas históricas oficiais – se ressaltam e resultam na apresentação multifacetada dos fatos e acontecimentos históricos.
Em estudo dedicado à literatura hispano-americana, o pesquisador brasileiro André Trouche (2006) também contribui para essa discussão ao analisar pontos essenciais das obras que adotam a “atitude escritural de tomar o histórico como intertexto ativo” (p. 27). Ele verifica que, no processo de estruturação da escritura americana, essa atitude vem sendo tomada desde as primeiras crônicas da conquista, seja como paráfrase subserviente, seja como paródia contestadora. A tese de Trouche se baseia na “evidência de que o processo literário hispano-americano apresenta uma sensível unidade construída a partir de uma atitude escritural comum de transferir à ficção o resgate e o questionamento da experiência histórica” (p. 44). Para desenvolver essa tese, o pesquisador analisa a trajetória na qual se estabeleceu o gênero narrativo nas obras que ele denomina pelo composto “narrativas de extração histórica”, entendido como “o conjunto de narrativas que encetam o diálogo com a história como forma de produção de saber e como intervenção transgressora” (p. 44).
Trouche desenvolve seu estudo a partir de quatro romances históricos de épocas distintas, os quais confirmam para o pesquisador a inadequação dos termos “romance histórico” e/ou “novo romance histórico” propostos pela crítica, devido à abrangência do paradigma que ele se propôs a analisar. O pesquisador observa que a afirmação do componente histórico no ficcional foi se efetuando, progressivamente, com a substituição do maravilhoso na arquitetura narrativa e na configuração do gênero épico. Enquanto na epopeia clássica, o herói partia sempre do universo do real, mas, devido à condenação “às peripécias que ultrapassavam os limites do humano, inscrevia-se no campo do maravilhoso, do mítico, do ficcional”, na epopeia latina, na epopeia medieval e na epopeia renascentista, o maravilhoso aparece “relegado a mero artifício retórico” (TROUCHE, 2006, p.34). Desse processo, originou-se a novela de cavalaria, que rompe com o estatuto da verdade e institui a relação de verossimilhança que marcaria a transição do romance medieval para o romance moderno, no qual seria atribuída ao leitor, e não mais à verdade, a função de legitimar a coerência narrativa. Trouche considera que o romance, ao estabelecer uma nova convenção de verossimilhança, privilegia sobremaneira a matéria de extração histórica, o que se atesta pelo surgimento do romance histórico no início do século XIX.
A partir do século XX, todavia, houve uma transformação fundamental e o romance histórico tradicional cedeu lugar ao romance histórico romântico, que introduziu questionamentos à versão apresentada pela história oficial. No entanto, continuava-se “apostando na possibilidade de uma verdade histórica, de uma versão verdadeira da história” (p. 40). A grande transformação ocorreu nos anos de 1970, quando começaram a surgir narrativas que tomaram o histórico como intertexto, abandonando completamente qualquer pretensão de substituir uma versão por outra. Conectadas à tendência desconstrutiva do pós-estruturalismo, essas narrativas expressaram uma nova concepção de história e de discurso, questionando a capacidade de conhecer o passado e de representá-lo por meio da linguagem, o que “leva [levou] tanto à quebra do pacto de veracidade, celebrada pelo discurso histórico, como à quebra do pacto de verossimilhança no campo ficcional” (TROUCHE, 2006, p. 41).
Para o estudioso, essas duas perspectivas demarcam a trajetória entre o romance histórico e a “metaficção historiográfica”, conforme conceituado por Linda Hutcheon. A partir dessa constatação, as análises de Trouche sobre as narrativas de extração histórica se baseiam nas proposições de Hutcheon acerca da metaficção historiográfica, reafirmando a ideia defendida também por White, de que tanto a escrita da história quanto a da literatura são, antes de mais nada, discursos, construtos linguísticos “altamente convencionalizados em sua forma narrativa (nada transparente, portanto) e parecem ser igualmente autoconscientes e intertextuais, desenvolvendo-se em constante e contínuo diálogo com outros textos de outras linguagens” (TROUCHE, 2006, p. 41).
No recorte deste estudo, destacamos algumas narrativas da escritora brasileira Ana Maria Machado, que convidam o leitor a se inserir na rede dialógica constituída de discursos que evidenciam aspectos relacionados a processos históricos de grandes impactos para o Brasil e que refletem o potencial criativo da narrativa ficcional: Tropical sol da liberdade (1988), O mar nunca transborda (1995) e Do outro mundo (2002).
Nessas narrativas literárias, os textos relacionados à colonização da América e à ditadura militar no Brasil são absorvidos como estruturas linguísticas fixadas no discurso oficial da história e, por meio do processo ficcional, se abrem para uma revisão crítica capaz de contribuir para a construção de uma consciência histórica. Diferentemente do que ocorre nos romances históricos, em que se ressaltam figuras representativas dos processos históricos referenciados, nessas narrativas instaura-se a “descentralização do sujeito” (HUTCHEON, 1991), ao serem explorados universos de personagens fictícias que representam os que partilharam daqueles processos, mas não foram considerados nos registros oficiais.
Por serem frutos da criação literária, essas personagens são plenas de flexibilidade e se constituem segundo a ótica escolhida para se promover a revisão crítica dos fatos e acontecimentos que muito influenciaram a formação da identidade dos povos da América, especificamente a do Brasil. São personagens que trazem em si o traço da pluralidade, ao mesmo tempo em que se estabelecem como indivíduos dotados de peculiaridades, de vitalidade, cada um com uma motivação diferente para revisitar o passado histórico. Elas não têm “assento nos cartórios de registro civil da sociedade”, por isso são dotadas da liberdade para analisar, denunciar e recuperar a experiência histórica da sociedade, conforme observa Trouche (2006) nas narrativas de extração histórica.
No romance Tropical sol da liberdade (1988), a protagonista é uma mulher que representa os que viveram de forma engajada o período de ditadura militar no Brasil e, por isso, sofreram com a repressão e a condição de exilado. Por meio dessa personagem em processo de retorno à casa da mãe no Brasil, marcada pelos vários anos de sofrimento, a obra aborda aquele período nebuloso e o que a ele sucedeu após a abertura política. As lembranças do passado vivido associadas às experiências do presente constituem um diálogo no interior da personagem e são responsáveis pelo questionamento dos fatos dados como oficiais pela história.
No romance O mar nunca transborda (1995), o tema central é a sucessão das várias gerações que povoaram o litoral brasileiro durante a colonização. A obra alterna dois núcleos narrativos: no primeiro, desenvolve-se a história da personagem Liana, uma jovem jornalista brasileira, residente em Londres, e que conserva um grande apego à sua terra natal; no segundo, a história dessa terra é ficcionalizada pela personagem, com base na memória coletiva e na memória histórica. No segundo núcleo narrativo, o enfoque é sobre o ponto de vista dos “colonizados”. Os sofrimentos dos brasileiros que habitavam o litoral durante o período de colonização são trazidos à tona por meio do discurso de uma personagem feminina dos tempos atuais, mas imbuída das dores de seus antepassados. Em uma reconstituição ficcionalizada daquele período, percorrendo séculos com um diálogo entre o histórico e o ficcional, essa personagem evidencia as perspectivas dos sujeitos da margem do discurso oficial e marca o lugar da mulher, que, mesmo tendo vivido a perda da paz e de vários de seus entes queridos, posiciona-se firme em resistência à opressão imposta pelos estrangeiros.
Já a narrativa Do outro mundo (2002) traz a história de um grupo de quatro jovens amigos, que entram em contato com uma menina dos tempos do final da escravatura no Brasil. Chamada Rosário, essa menina aparece para o grupo de amigos e conta sua história e a de seu povo quando ocorreu a abolição. Ela encerra seus momentos de contato com o grupo, incumbindo a um dos garotos a tarefa de escrever aquela história “para que nunca mais exista nenhum cativo” (MACHADO, 2002, p. 101). A narrativa recorre ao sobrenatural para recuperar e questionar a experiência histórica dos negros escravizados no Brasil durante o período que ainda trazia bem presentes os reflexos da colonização. Para isso, explora o mais alto grau da excentricidade, ao dar voz a uma criança do sexo feminino e negra, que foi vítima, junto com seu povo, da crueldade dos “senhores de engenho”. Em seu retorno de outro mundo para denunciar as crueldades e as injustiças praticadas no passado, há sinais de uma força que transcende tanto os limites entre a vida material e imaterial quanto as fronteiras entre o sentimento de individualidade e o de coletividade.
A descentralização dos sujeitos nessas narrativas literárias permite entrar em pauta não apenas “o que” aconteceu, mas também “o como” e “o porquê” dos acontecimentos (BURKE, 1992), e isso é fundamental para o progresso da consciência coletiva na perspectiva de que aquelas formas de opressão não mais se repitam (RICOEUR, 2007). Assim, os processos de colonização e de escravatura no Brasil bem como o da ditadura militar constituem, como diria Trouche (2006), “intertextos ativos” na poética de Ana Maria Machado, porque mantêm um diálogo com o ficcional, alicerçado no questionamento da experiência histórica, no juízo de verdades absolutas, na reflexão sobre a ontologia e a identidade do povo brasileiro de modo geral.
Do ponto de vista da recepção, a liberdade de que dispõe a narrativa ficcional para explorar e problematizar esses processos históricos cumpre papel capital para a construção de uma consciência histórica, uma vez que, pelo mecanismo da identificação, o leitor pode realizar a travessia necessária para se reconhecer como “trança de gente”, como resultado de um “trançar de histórias” iniciado com os nossos antepassados e que seguirá se construindo com as pontas das gerações futuras. A promoção de uma leitura literária na Educação Básica que leve em consideração a importância da construção dessa consciência histórica pode, portanto, encontrar valiosas referências em narrativas como as mencionadas, por elas configurarem um projeto estético e ideológico de autoria feminina, tão sensível às peculiaridades desse gênero quanto às condições dos diferentes sujeitos historicamente desprestigiados na sociedade brasileira.
Leitura literária e escrita criativa no Ensino Médio
A partir dos princípios da dialogia traçados nos estudos de Mikhail Bakhtin, é possível compreender o processo intertextual como um diálogo que transpõe os limites do texto, ao dinamizar também elementos não localizáveis na dimensão discursiva, conforme se observa, por exemplo, acerca dos conteúdos da memória afetiva revisitados no ato da leitura. Compreendidas a partir dessa perspectiva, as relações entre os textos funcionam como aberturas para a inserção dos mais variados discursos que permeiam o tecido histórico-cultural da sociedade, de modo que a leitura em sala de aula, especialmente dos textos literários, pressupõe leitores em real atividade, desfiando e trançando uma pluralidade de fios para a construção de sentidos em cada obra.
Passamos aqui a nos referir a uma experiência de leitura e escrita criativa desenvolvida com estudantes concluintes do Ensino Médio, partindo de um olhar atento aos procedimentos literários empregados pela escritora brasileira Conceição Evaristo em sua coletânea Poemas da recordação e outros movimentos, publicada em 2017. Nesta obra, as relações intertextuais estabelecidas, ao mesmo tempo em que apontam para uma crítica autoconsciente acerca dos processos históricos que definiram a trajetória de vida sofrida da escritora e de seus antepassados, convocam o leitor para uma travessia entre a sua condição e a condição dos sujeitos representados na produção poética. Assim, a partir da apreciação da coletânea, os jovens leitores, mais que desenvolver uma consciência sobre as injustiças sociais ainda tão presentes no contexto brasileiro, puderam investir na busca por um discurso poético que lhes permitisse uma expressão sensível de si mesmo ou a experimentação de um outro modo de existir e viver.
Para os jovens leitores, o poema de abertura da coletânea, “Recordar é preciso”, foi a chave de acesso às memórias de um eu lírico marcado pelas dores e sofrimentos de seus antepassados, trazidos às terras brasileiras em condições desumanas em navios negreiros. Ainda que as aulas da disciplina de História tenham cumprido seu papel de informar quando e como ocorreu aquele processo e os seus desdobramentos na trajetória do povo brasileiro, várias produções dos estudantes evidenciaram que o encontro com a poesia de Conceição Evaristo, mais que propiciar a construção de conhecimentos, promoveu avanços significativos na sua consciência histórica e social. A fruição estética, nesse sentido, se constituiu como mecanismo fundamental para um movimento profundo, experimentado por meio da literatura que, conforme defendeu Candido (2011), confirma o ser humano na sua humanidade por atuar no subconsciente e no inconsciente.
As relações intertextuais estabelecidas de forma explícita em vários poemas da coletânea, como se vê em “Cremos” (dedicado ao poeta Nei Lopes), em “Só de sol a minha casa” (dedicado a Adélia Prado) e em “No meio do caminho: deslizantes águas” (dedicado a Carlos Drummond de Andrade), foram referências importantes para o exercício da escrita criativa dos estudantes. Antes desse exercício, porém, a leitura dos poemas de Evaristo enfocou os mecanismos linguísticos criados pela poeta para dialogar com seus conterrâneos Drummond e Adélia Prado, instituindo um procedimento literário baseado na subversão no plano ideológico, não para uma sobreposição, mas para fazer ser ouvida uma voz ainda silenciada: a da mulher negra que, embora herdeira de uma história de discriminação racial e injustiça social, se mantém firme na luta cotidiana.
Essa subversão pode ser observada no poema “No meio do caminho: deslizantes águas” (2017, p. 101-2), em que se estabelece um diálogo com o poema “No meio do caminho”, de Drummond (2002, p. 267). Enquanto, na produção deste poeta, a ênfase na imagem de uma pedra no caminho pode sinalizar para uma estagnação diante de um obstáculo, a imagem poética das águas deslizando sobre “áspera rocha”, na produção de Evaristo, sugere uma força de resistência e uma capacidade de contornar os desafios e superar as barreiras impostas pela vida. Essa força já se anuncia no tom altivo e respeitoso da dedicatória que segue o título do poema: “Ao Drumond, com licença, pois sei das pedras e também das águas das Gerais” (EVARISTO, 2017, p. 101, grifos da autora).
As atividades de leitura propostas aos concluintes do Ensino Médio, com enfoque nas relações intertextuais estabelecidas na produção poética de Conceição Evaristo, conduziram a uma análise de outra poesia de autoria feminina, que também se levanta para dar um recado importante acerca da força desse gênero a partir de um diálogo com a poesia de Drummond. Referimo-nos ao poema “Com licença poética”, de Adélia Prado (1993, p. 11), no qual, contrapondo-se ao tom melancólico sugestivo de um eu lírico profundamente afetado pelas coisas do mundo, ressalta-se a voz da mulher para marcar, altivamente, um posicionamento perante a sociedade como ela se apresenta.
Em um processo intertextual explícito, Adélia Prado alude aos versos de Drummond (“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”) que, em sua expressão feminina, marcada pela subversão, ficam: “Quando nasci, um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira.”. Ao invés de “um anjo torto”, que vive “na sombra”, na poesia da poeta surge a imagem de um anjo que festeja a vida e sinaliza para uma trajetória na qual predomina a resistência capaz de inaugurar um novo modo de ser e de viver a condição feminina: “Inauguro linhagens, fundo reinos / – dor não é amargura”. E, na sugestão de uma postura inversa à apresentada nos versos drummondianos (“Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus, / se sabias que eu era fraco.”), a poesia de Adélia Prado revela um olhar para a vida em que a ideia de “fraqueza” parece não encontrar lugar: “Minha tristeza não tem pedigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô. / Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou”.
Mas, se a trajetória de resistência feminina refletida nos versos de Adélia Prado convoca um olhar em direção ao reconhecimento das potencialidades da mulher frente aos desafios de cada tempo, na poesia de Conceição Evaristo essa convocação é amplificada, pois são agregadas a esses desafios as dores advindas do preconceito sofrido no corpo e na alma pela mulher que continua a linhagem dos africanos escravizados no Brasil. Isso pode ser observado na relação intertextual estabelecida entre os poemas “Dona doida”, de Adélia Prado (1991, p. 108), e “Só de sol a minha casa”, de Conceição Evaristo (2017, p. 99-100). As duas produções poéticas recuperam lembranças afetivas da figura materna, sugestivamente das próprias autoras. São, entretanto, memórias que diferem substancialmente, em razão do contraste entre as condições sociais nas quais viveram as poetas.
No poema de Adélia, as lembranças da mãe são ativadas com o cair da chuva, que faz uma mulher já madura reviver um instante da infância: quando “choveu grosso / com trovoadas e clarões” e “Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, / decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos”. O instante após a chuva é lembrado, nesse caso, associado ao aconchego da casa, onde talvez jamais tenha havido preocupação quanto à subsistência da família.
No poema de Evaristo, por outro lado, as lembranças da casa materna, embora repletas de amorosidade, vêm acompanhadas de um calor que não aquece, mas queima, deixando cicatrizes profundas nas memórias de infância da poeta que assim se dirige à sua conterrânea: “A Adélia Prado, com licença, que também sou mineira” (EVARISTO, 2017, p. 99, grifos da autora). Os versos iniciais já estabelecem um contraponto bem definido, em relação ao poema “Dona doida”, de Adélia Prado, com os signos linguísticos “chuva” e “sol” em literal contraste semântico:
Durante muito tempo,
também tive um sol
a inundar a nossa casa inteira,
tal a pequenez do cômodo.
Pelas fendas do machucado zinco,
folhas escaldantes de nosso teto,
invasivos raios confrontavam
pontos de mil quenturas,
onde jorrantes jatos de fogo
abrasavam o vazio
de um estorricado chão.
Em dias de maior ardência,
minha mãe alquebrava
seu milenar e profundo cansaço
no recorte disforme de um buraco
– janela sem janela –
acontecido no centro de uma frágil parede.
(rota de fuga de uma presa a inventar
a extensão de um prado)
[...]
E mesmo partindo de versos como esses, que introduzem o leitor em um ambiente nada acolhedor, a poesia de Evaristo guarda um traço de otimismo, de um olhar que não se curva diante das dificuldades encontradas no percurso da vida, ao contrário, ergue-se na busca por algo que possa manter viva a esperança:
Eu não sei por quê, ela olhava o tempo
e nos chamava para perscrutar
em que lugar morava a esperança.
Olhávamos.
Salvou-nos a obediência. (EVARISTO, 2017, p. 99-100).
Essas e outras relações intertextuais observadas no conjunto de poemas de Conceição Evaristo se desdobraram em outros processos da mesma natureza, configurados na escrita criativa dos jovens leitores já mencionados neste breve estudo. A título de ilustração, há os seguintes poemas:
Marrom ardente Uma vez, quando eu era menina, corri para abrir o portão de casa
tamanha a vontade de abrir o portão para papai.
Mamãe lavava roupas no grande quintal de casa
que disfarçava a pequenez da casa
onde todos dormiam juntos em um colchão
Meu irmão correu na frente
nossos pés levantavam uma nuvem marrom
Mamãe gritava para que não me deixasse chorar.
Enquanto ele abria o portão, chorei
Mamãe, cheirando a amaciante, me afagava
Mamãe não gostava daquele marrom ardente
que nos rodeava todo dia e sujava nossa vida
Seu suor era heterogêneo
não se misturava com aquela realidade
Agora procuro seu afago diante do verde de nossa prosperidade.
Giovanna
(Diálogo com “Só de sol a minha casa”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 99-100.)
Vozes Fortes
Ecoou, Ecoou, Ecoou
E mesmo de tão longe chegou
a ouvidos jovens, brancos, que nunca imaginou
a ouvidos velhos e negros que um dia sonhou
com o dia em que, em cima das trouxas,
na frente de suas próprias cozinhas
com suas, suas roupas sujas nas mãos
gritariam com vozes fortes
o orgulho de ser negra
o orgulho de ter lutado
o orgulho de ainda estar lutando
orgulho, orgulho, orgulho
ECOOU, ECOOU, ECOOU
Isabela
(Diálogo com “Vozes-Mulheres”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 24.)
Pedras e Caminhos, Caminhos de Pedra Pedras
Fazem difícil o caminho;
Se tornam como grandes muros;
Fazem perder a vida, o rumo e o destino;
Deixam memórias fundidas em experiências.
Caminhos
Trazem sentido às pedras
Que se tornam nossa forma de seguir em frente,
Fazem a vida continuar e seguir seu rumo
E deixam memórias fundidas em experiências.
Vinícius
(Diálogo com “No meio do caminho: deslizantes águas”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 101-2.)
Diáspora
O banzo fez de mim sua morada,
e da minha terra só me restou a saudade.
A última lembrança de minha mãe
me fere mais que as chibatadas que me marcam,
espero que pelo menos farinha e água não lhe falte.
O banzo me traz a memória
os dias em que meus filhos foram levados embora.
A diáspora nos afastou e me lançou ao chão
ao vê-los sendo arrastados como animais.
Meu corpo se cansou de tanto sofrimento.
Queria um dia poder conhecer a tal vida que ouço falar.
Lavínia
(Diálogo com “Filhos na rua”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 16.)
A preocupação não adormece nos dias das mulheres
A preocupação não adormece
na rotina das mulheres
A clareza não diminui
o risco das vidas das mulheres.
A vigilância não soa mais protetiva para as mulheres…
Há mais defloramento,
que patrulhamento.
A preocupação não adormece nos dias das mulheres.
Olhos repletos de lágrimas
Testemunham o desrespeito
presente nos dias das mulheres.
O cansaço e rendimento
testemunham o desrespeito
presente nos dias das mulheres.
Nem no dia,
nem na noite
crianças, moças e pessoas com vaginas, ou sem, terão paz,
pois aqueles que as ameaçam
permanecem de olhos abertos.
Maria Heloísa
(Diálogo com “A noite não adormece nos olhos das mulheres”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 26.)
Brincadeiras: o mundo da imaginação
Dedicado à Evaristo, que me inspirou e me trouxe nostalgia.
Monstros e heróis estavam em roda
Anéis com poderes os derrotaram
Correndo pra lá e pra cá
Ar, água, fogo e terra.
Amarelinha desenhada no chão
Não podia tocar fora
Uma casa se transformava
Uma mansão era criada.
Primos, sobrinhos e vizinhos
Todos juntos na rua
Amarelinha, poder, pega bandeirinha
Inocência por todo lado, só vendo o lado bom da vida
Quando crescemos, sonhamos em voltar.
Anna Clara
(Diálogo com “Brincadeiras”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 46.)
Amigas: uma conexão
Como diria Evaristo,
hoje carrego nas mãos
a pedra retirada do meio do caminho.
Enxugaram elas
as lágrimas de tristeza
que em meu rosto caíram
de profundas confissões e amarguras.
Se responsabilizam, então,
pelas lágrimas de felicidade e risadas bobas
que conseguiram fazer surgir em mim
quando a pedra não saía de meu caminho.
Meu abrigo inesperado,
minha família escolhida,
experiências que compartilham,
que compartilho
Uma conexão
uma parte de mim
que ainda não conhecia.
Júlia
(Diálogo com “Amigas”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 31-2.)
Recordar é viver para nos compreender Para Evaristo, me pego recordando e tentando me isentar dos mistérios além das águas.
Me recordo do pequeno eu, crescido com medo de ser quem sou
E com vergonha de se mostrar para o mundo.
Me sentia eternamente náufrago no meio de (diver)gente
Recordar é preciso.
Até sair da caixinha que me prendia
Muitas rochas apareceram no meio do caminho.
As vagas lembranças foram se transformando em grandes feitos
grandes mudanças.
Até que surgiu uma paixão profunda por mim mesmo.
As rochas continuam, mas se tornaram menos pesadas
E os mistérios continuam nesse longo processo.
João Victor
(Diálogo com “Recordar é preciso”. In: EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 11.)
Conforme evidenciam essas produções, a fruição estética promovida pela leitura literária e o aceite por parte dos jovens leitores do convite para uma imersão em um exercício de escrita criativa resultaram em um entrecruzar de novos discursos, constituindo uma rede dialógica da qual os jovens leitores participaram de modo ativo tanto na construção de sentido dos poemas lidos quanto na expressão de olhares sensíveis, baseados, muitas vezes, também em experiências de vida mobilizadas por meio da apreciação da poesia de Conceição Evaristo. Nesse sentido, é possível concluir que as atividades realizadas potencializaram um processo de amadurecimento que foi além do domínio da leitura e da escrita e leva ao reconhecimento da multiplicidade de perspectivas sob as quais o mundo pode ser percebido.
Dessa maneira, confirma-se a relevância de toda ação que a escola possa desenvolver com a finalidade de garantir o acesso dos estudantes à leitura literária, tendo sempre em vista propiciar condições para que esse acesso possibilite a entrada dos leitores na corrente de um diálogo que os desafie a refletir sobre sua própria condição de sujeitos que, inequivocamente, seguem de mãos dadas com outros sujeitos do passado e do futuro.
Um enfoque nas intertextualidades de autoria feminina, instauradas na narrativa ficcional ou na composição poética, cumpre, assim, um papel fundamental, porque pode favorecer o aprofundamento no processo de formação humana dos jovens leitores, ao apontar para a “descentralização do sujeito”, conforme discutido por Hutcheon (1991), e abrir caminhos para que sejam reconhecidas e contempladas também as perspectivas de outros sujeitos da margem, como a criança, o ancião, o negro, o índio e tantos outros sujeitos responsáveis pela construção da rede dialógica do tecido discursivo da sociedade, da história e da cultura.
Referências
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Essa discussão faz parte do capítulo I da Tese de Doutorado intitulada “Relações intertextuais na obra de Ana Maria Machado: ficção e história, teoria e criação literária”, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.
As discussões aqui apresentadas podem ser encontradas, de forma ampliada, no capítulo II da referida Tese de Doutorado, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.