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Poesia é Resistência: a Poética do Fluxo Sanguíneo em uma Formação Leitora-Literária Estética e Política

Glayce Kelly PIRES (PPGEEB- CEPAE-UFG)
Vivianne Fleury de FARIA (CEPAE-UFG)

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O poema como ponto de encontro entre a poesia e o homem

O poema é gênero literário que faz parte da infância e é facilmente reconhecido pelas rimas. Com efeito, todos podemos reconhecer um poema, pois, dificilmente, haverá quem nunca tenha lido, cantado ou escrito um deles, de modo que pessoas de todas as idades conseguem recitar inúmeros versos que permanecem na memória ao longo da vida, independentemente de seu nível de escolaridade formal.

Essa característica rítmica, que pode facilitar a memorização, é o elemento mais antigo e também permanente da linguagem, como assevera Octávio Paz (2012). Para ele, a linguagem nasce do ritmo, fator que condiciona que todas as expressões verbais sejam ritmadas de alguma forma e, assim, é por essa estrutura que se fundamentam os poemas, capazes de ecoar o pensamento e as divagações humanas.

A partir disso é que Octávio Paz afirma que o poema é uma “forma natural de expressão dos homens” (PAZ, 2012, p. 83) e, desse modo, é a forma linguística que reúne contradições de estilo e de composição, acompanhando as modificações impostas pela linguagem, transpondo as imposições estilísticas e indo além, ao transcender as funções que lhe foram atribuídas por estudiosos de diferentes gerações. Para Paz (2012), o poema é, portanto, o ponto de encontro entre a poesia e o homem, criado por uma técnica que morre no próprio instante da criação.

Apesar dessa já conhecida capacidade de construção ritmada, o poema, enquanto exercício paradoxal de um “servo da linguagem” (2012, p. 31) e, ao mesmo tempo, dela transgressor, é a expressão por meio da frase ou do conjunto de frases, da imagem ou menção poética. Dessa forma, Paz adverte que, apesar das inúmeras classificações e especificidades de cada figura de linguagem, por exemplo, a metáfora, a paronomásia, a alegoria, entre outras, todas elas têm em comum a característica de preservar a pluralidade de significados, muitas vezes divergentes, mas que são, sobretudo, marcas da própria contraditoriedade humana. O autor evidencia que as contradições presentes nas imagens poéticas resultam escandalosas, porque desafiam o princípio da contradição. Afirma: “a realidade poética da imagem não pode aspirar à verdade. O poema não diz o que é, mas o que poderia ser”. (2012, p. 105).

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Esse entendimento de que as imagens poéticas reúnem as contradições humanas e são materializadas a partir de elementos sonoros e rítmicos faz do poema uma espécie de criação universal e, assim, sua apropriação não pode ser limitada como um saber que só será efetivado pela rigidez de um ensino formal. Não fosse uma era em que os estratagemas do capital se apropriassem de todas as relações sociais e de todos os espaços possíveis, talvez a experimentação poética se desse em seu próprio lócus de origem, seja ao experimentar as grandezas do ínfimo, ao perceber as insignificâncias do mundo de Manoel de Barros, seja ao ouvir os murmúrios entre as casas da velha cidade nos versos de Cora Coralina. Não seria difícil supor, com isso, que pessoas de todas as idades e de todas as classes sociais se renderiam à leitura dos mais diversos poemas produzidos em diferentes eras, por diferentes gerações, sem questionamentos que remetessem ao entendimento da ordem literal da linguagem.

Nesse sentido, Alfredo Bosi (1997) identifica que a era marcada pela difusão dos valores burgueses do capitalismo e do imperialismo, em que a prioridade é dominar e consumir, ocasiona o detrimento de importantes questões humanas, “como a fantasia e o devaneio” (1997, p. 65), e, assim, esse contexto gerido pela priorização de mecanismos de interesse comercial provoca o furto à criatividade, condição própria das criações poéticas.

Nessa sociedade, portanto, alimentada quase que exclusivamente pelos preceitos do capital, as práticas humanas são reduzidas tão somente às funções do trabalho e do consumo, com o ser humano tornando-se cada vez mais incapaz de apropriar-se poeticamente do mundo que o cerca ao ser iludido pelas imposições propagandísticas da indústria cultural, que atua a serviço do capital e, consequentemente, condiciona os sujeitos a uma incompreensão das questões humanas subjetivas, como se fosse possível aniquilá-las. É a partir da acepção da capacidade de proporcionar um retorno ao que é fundamentalmente humano, a despeito das mais diversas violações sociais e institucionais, que o texto poético irrompe nesse contexto industrial, tal qual a flor de Drummond, que brota no meio do concreto asfáltico, apesar da indiferença dos passantes sempre atrasados pelo tráfego cotidiano.

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Bosi defende que o poema, enquanto “técnica autônoma de linguagem” (1997, p. 147), pode trazer marcas profundas do pensamento humano e adquirir um caráter de subversão aos preceitos capitalistas que tendem a anular as proposições de ordem humana e social. Logo, fundamentada pelas discussões propostas por Alfredo Bosi, compreende-se que a poesia é resistência, já que ela preserva sempre um caráter de luta em meio à difusão propagandista das superficialidades da era industrial, como adverte o autor (1997). Como base nessa proposição de poesia-resistência, é imprescindível que a formação escolar básica seja constituída por uma formação leitora-literária, a fim de garantir um direito humano fundamental, como defende Antonio Candido (2004).

Para além das estratégias de pretexto: o texto poético no seu devido lugar de fruição estética

A defesa da Literatura enquanto um direito humano foi proferida por Antonio Candido, pela primeira vez, em 1988. Na ocasião, o crítico literário afirmou que, por tratar-se de uma manifestação universal, as criações literárias provocam uma satisfação estética inerente à abstração e à fabulação. Nesse sentido, a literatura e todas as formas de arte, para Candido, são necessárias à sobrevivência. Em suas próprias palavras: “uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (2004, p. 191).

A partir da compreensão de que a literatura é um direito assim como a poesia é sempre resistência, é fundamental garantir que haja a devida apropriação de textos literários no contexto escolar de ensino ao considerar a responsabilidade da escola em garantir o cumprimento de seu ideal formador. É nesse espaço, afinal, que residem as maiores chances de assegurar que haja uma experiência desprovida das imposições utilitaristas que permeiam a sociedade.

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Vale salientar que a prática da leitura literária, por vezes, é associada à ideia de tempo perdido, em uma lógica de formação pautada pela transmissão de conteúdos e saberes. Os preceitos utilitaristas da sociedade de consumo têm, desse modo, grande espaço na formação básica pela via do ensino escolar e, pois, o grupo alunado, muitas vezes, desde a sua formação inicial, costuma receber inúmeras cobranças de atendimento de expectativas diversas nesse modelo educacional que impõe metas competitivas desde cedo. Logo, características tão comuns ao psiquismo humano, como a imaginação, a apreciação e a ludicidade são negligenciadas durante esse processo formativo.

Essa questão torna-se ainda mais acentuada quando se trata do texto poético. Conforme salienta Lígia Averbuck, os textos poéticos têm sido, constantemente, preteridos da formação escolar, seja por preconceito ou por incompreensão por parte dos professores. Para ela, é urgente que a escola garanta espaço para que os alunos sintam e apreciem o texto poético, pois, em suas palavras, “a poesia, forma do imaginário, apela à imaginação, domínio em que a criança se movimenta livremente” (1982, p. 68).

A defesa de Lígia Averbuck parte da premissa de que o texto poético tem um importante papel formador no psiquismo e, por conseguinte, é preciso garantir que a escola assegure o seu lugar. Afinal, é pela literatura que será garantida, a todos os estudantes, uma formação para além do utilitarismo e, no caso do texto poético, além do desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade, a chance de uma formação que garanta o refinamento estético.

De outro lado, tão grave quanto a omissão da poesia, é a sua inserção como meio de atender a objetivos os mais diversos, seja para trabalhar um assunto transversal, como ética e meio ambiente, muito comum na educação infantil e na primeira fase do Ensino Fundamental, seja como estratégia de ensino de gramática normativa, presente a partir da segunda fase do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. Essas propostas de ensino discrepam da função primordial da poesia, ao desconsiderar a fruição estética, sensorial e imagética que ela proporciona. Por isso a urgência em escamotear as proposições que provocam o esvaziamento da poesia no contexto do ensino escolar e priorizar, portanto, espaços de leitura pautados pela devida apropriação dos textos poéticos.

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Quanto às leituras desprovidas de sentido, Marisa Lajolo observa que a maioria das práticas escolares colocam o texto poético como um repositório de ocorrências linguísticas a serem estudadas. De modo assertivo, Lajolo defende que o texto literário não é nem deve ser pretexto para nada. Em suas palavras: “ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos [...]” (1982, p. 59). Para a autora, o texto literário existe na dimensão artística em que há o encontro entre dois sujeitos que partilham, apenas, do ato solitário: de um lado, quem escreve e, de outro, quem se propõe a lê-lo.

Nessa concepção, Lajolo desenvolve as proposições de que a escola deve garantir e priorizar o contato dos leitores com os textos literários, o que torna obsoletas as comuns práticas de leituras escolares fundamentadas a partir de exercícios de verificação, comumente aferidas por um professor tido por guardião do saber, que costuma desconsiderar as inúmeras possibilidades de leitura propiciadas por esse extraordinário encontro entre subjetividades. Pelo contrário, essas atividades defasadas contribuem para a alienação de todo o processo de leitura literária e não são favoráveis à formação de leitores, o que deveria ser substancial no Ensino Básico.

Compreende-se, portanto, que, se a escola cumprir sua função formadora e priorizar os espaços necessários à expansão da criação e da imaginação, condições inerentes aos alunos, além de garantir, sobretudo, o espaço respeitoso para esses sujeitos serem quem são, criativos por excelência, a experiência com a leitura de poesia pode conduzir os discentes a uma melhor compreensão do mundo e de si mesmos.

Dessa maneira, compreendidos os preceitos de que os textos literários não devem ser pretextos para nada e, no caso específico deste estudo, que o texto poético não pode ser encarado como um repositório de ocorrências linguísticas, mas que a devida apropriação leitora deve ser pautada por um espaço cedido à criatividade e à ludicidade, além de oportunizar a fruição estética, apresenta-se, a seguir, uma análise da obra poética Sangria, de Luíza Romão, com vistas a indicá-la para a leitura em sala de aula.

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O corpo feminino (re)existe: a poética do grito em Sangria, de Luíza Romão

Luíza Romão nasceu em 8 de agosto de 1992, em Ribeirão Preto. Filha de professores, a slamer graduada em Artes Cênicas garantiu suas primeiras vitórias em 2014, na ocasião em que venceu o “Slam da Guilhermina” e o “Slam do 13” e garantiu o segundo lugar no “Slam BR”. Luíza aliou suas habilidades performáticas e seus conhecimentos teatrais à proposta de poesia falada e, desse modo, garantiu sua legitimação neste formato de batalhas poéticas, “um espaço de afeto que hoje a faz ser considerada uma das mais importantes e expressivas slamers da cena paulistana” (LOUSA, 2017, p. 117). Esse cenário de batalha de poesia propiciou-lhe suas primeiras vitórias e, a partir disso, segundo entrevista concedida pela escritora à pesquisadora Pilar Lousa (2017), após acumular vitórias nos slams, a poeta sentiu a necessidade de materializar seu trabalho poético até então restrito ao campo da oralidade.

E, assim, surgiu Sangria em uma proposta de projeto multiplataforma que integra poesia, fotografia e produção multimídia. Na versão impressa, Luíza Romão reúne 28 poemas, divididos em seis capítulos, em uma proposta de livro bilíngue. Esses 28 poemas fazem alusão ao ciclo menstrual que, em média, acontece em 28 dias. Desse modo, com um poema para representar cada dia de um ciclo feminino, a obra impressa conta, ainda, com uma proposta de figuração em lombada invertida, acompanhada de imagens fotográficas impactantes do corpo da própria poeta.

Estas imagens resultam de um trabalho de fotografia com posterior ressignificação com barbante vermelho, que remete ao sangue menstrual, e metais, que representam a violência imposta à mulher desde sempre e, no caso dessa proposta poética, a violência da colonização – um estrupo, segundo o eu lírico. Assim, elas integram o projeto estético-gráfico de Sangria em que a conjugação do barbante vermelho e o metal sobre a fotografia de partes do corpo feminino remetem à violência ancestral impingida à mulher. Ao dispor, em cada página, um poema acompanhado por uma imagem fotográfica assim composta, a proposta em formato de calendário é reiterada no texto.

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As fotografias que compõem a obra fazem referência às mais diversas agressões impostas à mulher ao representarem um corpo violentamente marcado. É possível salientar que reside na poética uma proposta de ressignificação do corpo desse ser-mulher, pois, enquanto as imagens trazem à tona um corpo marcado pelas violências, os poemas ecoam um lirismo de resistência. Logo, esse corpo violentamente massacrado deixa de ser considerado um corpo-objeto, como pressupõe a cultura do patriarcado, e torna-se um corpo-sujeito, já que ele (re) existe, sangra, pensa e grita por si mesmo.

Assim, conforme atesta Heloisa Buarque de Hollanda no prefácio da obra, trata-se de uma nova proposta de poesia feminista em um dos seus melhores momentos, pois, para a pesquisadora, em alusão às figuras das tecelãs e bordadeiras, esse corpo poético foi/é tecido em um discurso que traz à tona a teia de violências das quais resultam as subjetividades femininas. As reflexões históricas e políticas são constituídas em torno das imagens do corpo da mulher, imagens tanto textuais quanto gráficas, caracterizando a proposta estética de Sangria. Desse modo, insurge em Sangria “uma poesia que tira sua força estética de cruzamentos possíveis: a passagem destemida do lírico para a oralidade áspera, do cíclico para o mosaico, da palavra para o movimento, da palavra para a imagem” (HOLLANDA, 2017, s/p). Para Heloisa Buarque de Hollanda “Sangria não é apenas mais um livro de poemas; Sangria é um projeto literário sobre a História do Brasil visto pelas entranhas de uma feminista contemporânea” (2017, s/p).

A professora Luciana Borges (2020) aponta que essa obra apresenta uma cronologia circular sob uma ótica de “modo fêmeo”, como a intitula a pesquisadora. No que ela chamou de odisseia do útero, os poemas constituem-se de forma ambígua e paradoxal, como um retrato do país e suas mulheres, indicando a potência da obra para a rebelião e a transformação. Conforme defende, “o elemento fundador escolhido pela poeta para construir esse percurso será o órgão talvez mais ‘feminino’ e anatomicamente denunciador da feminilidade castrada: o útero e seus principais processos fisiológicos: ovulação, menstruação, gestação” (BORGES, 2020, p. 2).

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Assim, em Sangria, a analogia se instala entre a mulher e a terra brasileira e, a partir disso, se compõem as demais figuras nos poemas. Conforme atestou Alfredo Bosi (1997), o efeito analógico se alcança a partir da recuperação do enunciado, pois a analogia extrapola a simples fusão, já que ela enriquece a visão. Em Sangria, observa-se a analogia do corpo feminino com a terra-mãe, constantemente violentada desde a colonização dos portugueses, em um lirismo que rompe com os limites da performance, da linguagem escrita e do papel ao trazer à tona a representação de um corpo constituído pelo imbricamento de acontecimentos tanto biológicos quanto sociais, fator que torna esse corpo político.

De fato, esse projeto poético é revestido por um elemento simbólico, essencialmente feminino e constituinte de um interdito universal: o sangue menstrual. Na obra Totem e Tabu, ao analisar as similaridades quanto às restrições sexuais em diferentes grupos humanos, o psicanalista Sigmund Freud (2012) observa que os tabus seriam proibições impostas em tempos remotos, que foram, de certo modo, violentamente condicionadas às gerações posteriores. Segundo Freud, essas proibições foram mantidas de geração em geração, “talvez simplesmente devido à tradição, levada pela autoridade dos pais e da sociedade” (FREUD, 2012, p.19). O próprio termo Tabu, conforme sugere a discussão proposta pelo psicanalista, remete a uma ambivalência, pois, ao mesmo tempo que contém a ideia de sacralidade, é também associado à impureza e, logo, ao proibido.

A partir desses estudos, Freud (2012) identificou que é comum tornar-se tabu a pessoa ou algo diretamente ligado ao tabu. Apesar de a mulher não ter sido o objeto desse estudo freudiano, em vários momentos,a o teórico menciona que a menstruação, também chamada de dias das regras femininas, o parto e o pós-parto são tabus universais. Como essas condições são inerentes a várias etapas da vida de uma mulher, não é difícil de compreender por que a mulher se constitui, ela mesma, também, um tabu.

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Apesar dessa contribuição freudiana nesse estudo que leva ao entendimento de como se dão certos processos proibitivos em diversas culturas, é pelos estudos das simbologias que compõem o imaginário que se dará a compreensão do sangue menstrual nesta poética, i.e., como elemento figurativo e simbólico.

Gilberto Durand apontou que a imagem do sangue menstrual corresponde ao arquétipo “nefasto por excelência” (2001, p. 99). Para o autor, a valorização negativa do sangue menstrual é um arquétipo coletivo, dada a infinidade de associações negativas aos períodos menstruais das mulheres nas mais diferentes culturas. Todo esse temor ao sangue menstrual, segundo Durand, tem replicado, no imaginário, o conceito da mancha sangrenta como algo sujo tanto física quanto moralmente.

Essa união das trevas com o sangue menstrual pode ser exemplificada pelo mito da Kali dos Bambara: segundo Durand, a deusa Kali simboliza a obscuridade, a noite e a feitiçaria, além de corresponder à imagem da rebelião, da desordem e da impureza. Ainda segundo ele, nesse mito de raiz pré-ariana, a deusa Kali, mulher desordenada e agitada, ao ser banida da obra da criação, se circuncidou com as próprias unhas e dentes, fator que fez surgir as primeiras menstruações nas mulheres. Desde então, nas palavras de Durand, “ela polui tudo em que toca e introduz o mal no universo, quer dizer, o sofrimento e a morte” (2001, p.111), sendo, constantemente, representada pela comum figura da velha louca e perigosa que perambula descalça e mal vestida. Loucura.

Como demonstrado, o sangue menstrual persiste como um tabu e está associado à impureza e à parte ameaçadora da feminilidade, apesar de corresponder a um ciclo natural do corpo feminino, com exceção das mulheres trans ou de específicas condições genéticas. É com base nessa figura arquetípica do fluxo sanguíneo que a poética da obra Sangria é estruturada, como pode ser observado no excerto do poema homônimo à obra, “Dia 27. Sangria”:

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café ouro borracha
ciclos dentro e fora de mim
sanguessugas de cartola inglesa
mamando-me até o fim

sou a terra que absorve a seiva
a barragem prestes a eclodir
SEI SANGRAR POR MIM MESMA
meu útero é uma bomba
e não precisa de fósforo
para explodir (ROMÃO, 2017, s/p.)

Se o fato de ser mulher e sangrar constitui um interdito cultural associado à impureza, esse eu-lírico não só se apropria desse arquétipo para constituir seu lirismo, como indica que esse verso deve ser lido aos gritos, o que é sugerido pelas letras em caixa alta. Em um tom de desdém aos demais incapazes de sangrar ciclicamente e ainda permanecerem vivos, é possível apreender, portanto, que, da condição interdita dada à menstruação e, consequentemente, às mulheres, verter-se em sangue extrapola a ideia de um ato puramente fisiológico. Nessa poética, “sangrar por si mesma” torna-se um atributo específico de um corpo autônomo, a ponto de elevar esse ser que o habita à capacidade de transmutar-se, plenamente, entre a vida e a morte.

E é a partir desses poemas que remetem ao arquétipo do sangue menstrual que se constituirão as demais figuras poéticas da obra em questão, em uma tessitura discursiva que tem por objetivo mostrar uma outra versão de acontecimentos históricos e políticos. Trata-se de uma revisão da História que, até então, tem sido, constante e prioritariamente, replicada pelo viés do homem branco e colonizador. E, como se sabe, as produções artísticas que ousaram destoar desse padrão hegemônico foram constantemente relegadas à marginalidade dentro dessa imposição de cultura colonial.

Sobretudo interessa propor a discussão da colonização sob esse novo enfoque em sala de aula, ou seja, sob o prisma da mulher colonizada, no caso, a indígena, vítima – simbolicamente e de fato – de estupro. A leitura literária na escola, nesse caso de poesia, visa à formação de um leitor crítico, destituído de preconceitos limitantes e aberto a ressignificar a história oficial.

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De fato, no primeiro capítulo de Sangria, intitulado “Genealogia”, o eu-lírico recupera os fatos históricos do processo de colonização brasileira e, desde já, aponta sua indisposição para repetir sempre a mesma narrativa, apresentando uma outra versão como uma espécie de reparação histórica, como pode ser observado nos seguintes versos: “eu queria escrever a palavra brasil/ mas a caneta/ num ato de legítima revolta/feito quem se cansa/ de narrar sempre a mesma trajetória/ me disse ‘PARA/ e VOLTA” (ROMÃO, 2017, dia 1°). Assim, nesse primeiro dia cíclico, o eu-lírico recupera, de forma irônica, o contexto de violação que permeou toda a cultura nos idos do processo de colonização e, a partir da figura do pau-brasil, árvore que deu nome ao país, ela ratifica que o estupro é uma problemática social que remonta ao ideal “colonizar”, já que faz parte de uma cultura que tem por valorização o falo ou, grosso modo, o pau patriarcal.

Em um lirismo ácido, o leitor é convidado a conhecer uma outra versão do período que remonta aos anos de 1500 ao longo dos nove poemas que compõem o primeiro capítulo. Como o título do capítulo sugere, “Genealogia” caracteriza-se por trazer, em lirismo, uma crítica em torno da “filiação”, uma postura de questionamento frente aos discursos oficiais que foram engendrados pela ótica do colonizador e, secularmente, repassados pelos discursos históricos institucionalizados. Trata-se de uma proposta de reflexão em torno de fatos históricos de formação do país sob um viés de denúncia às inúmeras violações ao feminino, a despeito da naturalização dessas práticas em uma cultura fundamentada por uma política colonial.

Cíclico é o corpo feminino, cíclica é a história brasileira para a poeta. E é nesse enlace cíclico, de vida-morte-vida, que os poemas se constituem ao longo dos capítulos seguintes, intitulados respectivamente: “Descobrimento”, “Tensão Pré-Menstrual”, “Corte”, “Ovulação” e “Menstruação”. E, ao lado dessa revisão histórica proposta, também reside a proposta de revisão da história da mulher.

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No entanto, encerrado o capítulo da história, ou quinto capítulo da poética, esse corpo poético irrompe em sangria no sexto e último capítulo. Do ponto de vista fisiológico do corpo feminino, o período menstrual é indício de que o óvulo não foi fecundado e, logo, não haverá gravidez nesse período. Assim, esse corpo verte em sangue, marcando o início de um novo ciclo. É a perfeita simbologia de vida-morte-vida, inerente ao órgão uterino. Essa simbologia de vida, morte e renascimento é atrelada ao discurso poético de modo que o encerramento da proposta é constituído por um discurso de esperança, como pode ser atestado nos seguintes versos: “eternidade é só para os deuses/ a noite precisa desabar para o sol nascer/ paredes se desfazem mês a mês/ a hemorragia se torna alívio/ e bandeira/ se meu mundo cair/ farei uma festa/se meu mundo cair/ é sinal de revolução” (ROMÃO, 2017, dia 28°).

Assim, segundo a poética de Sangria, apesar dos reveses históricos e políticos que acometem o corpo e a terra, o encerramento da obra em “Lútea” traz um duplo e profícuo sentido: faz referência tanto à última fase do ciclo menstrual, chamado de fase lútea, quanto ao verbo lutar, em uma aproximação linguística da sonoridade de seu modo imperativo, dotado ainda do sufixo de gênero feminino “a”.

Sim, porque entende-se que lutar é a condição para a construção de uma nova história, assim como a possibilidade de fecundação de um novo óvulo. “Lútea” finaliza a obra com essa proposta de possibilidade de (re) construção. Desse modo, se, tradicionalmente, o corpo da mulher foi usado por uma cultura patriarcal e falocêntrica, colocando-o em posição de objeto a serviço de interesses sexuais, agora esse corpo feminino se autorrepresenta como lócus de resistência às violências e violações do patriarcado.

Se esse corpo-sujeito grita, portanto, é preciso que se faça por ouvi-lo. Sendo a escola um dos espaços possíveis de formação de sujeitos críticos, a leitura de Sangria nas aulas de Literatura representa uma possibilidade de proporcionar aos educandos o acesso a poemas que trazem “ao grito” identidades silenciadas por uma cultura patriarcal.

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Referências

AVERBUCK, Ligia Morrone. A Poesia e a escola. In: ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na Escola: As alternativas do professor. Porto Alegre: mercado aberto, 1982.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1997.

BORGES, Luciana. A odisseia mensal do sangue: a poesia ativista/feminista em Sangria, de Luíza Romão. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e66322, 2020.

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Ouro sobre o azul, 2004.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 2. ed. Tradução: Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2012.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Prefácio. In: ROMÃO, Luíza. Sangria. Edição do autor: Selo do Burro, 2017.

LAJOLO, Marisa. (Org.). O texto não é pretexto. In: _______. Leitura em crise na Escola: As alternativas do professor. Porto Alegre: mercado aberto, 1982.

LOUSA, Pilar Lago. Corpo, Voz e Resistência: A (des) construção da representação feminina nas obras poéticas de Elizandra Souza e Luiza Romão. Dissertação. (Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás), Goiânia, 2017.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

ROMÃO, Luíza. Sangria. São Paulo: Edição do autor: Selo do Burro, 2017.