Entrevista com João Anzanello Carrascoza
Célia Sebastiana Silva
Ilma Socorro Gonçalves Vieira
Vivianne Fleury de Faria
Para boa parte de crianças e jovens da sociedade brasileira, o contato possível com a cultura literária é quase sempre na escola, o que torna a prática da leitura literária um grande desafio para professores e outros mediadores de leitura nesse espaço. Mas, no processo de formação do leitor, a relação autor-livro-leitor assume dimensão de elevada importância. Nesse sentido é que se propõe aqui um diálogo com o autor João Anzanello Carrascoza, cuja escolha não foi aleatória. Trata-se de um escritor muito lido e muito bem recepcionado por crianças e jovens na escola de Educação Básica, embora a riqueza de sua produção não tenha uma destinação etária específica.
Nascido em Cravinhos, interior de São Paulo, o escritor, formado em Publicidade e Propaganda, é doutor em Ciências da Comunicação pela USP e integra o time dos grandes prosadores da literatura brasileira contemporânea. Ele escreve livros que encantam adultos, jovens e crianças. Com prosa fluida e olhar afetivo e atento para a infância, seus livros capturam a sensibilidade do leitor sem deixar de aguçar o olhar crítico de leitores os mais diversos. Entre os vários prêmios que sua obra obteve, estão Eça de Queiroz e Guimarães Rosa, o Prêmio FNLIJ, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, na categoria Jovem, tendo sido um dos ganhadores no 57º Prêmio Jabuti. Além de prêmios internacionais recebidos, seus livros foram traduzidos para diversos idiomas e brindam agora públicos de vários países.
Nesta entrevista, cujo objetivo era ouvir um pouco da voz do escritor sobre suas impressões a respeito de leitura, literatura e escola, a conversa escapa de seu tom trivial e alcança o fato estético com imagens e alegorias carregadas de uma sensibilidade estética capaz de despertar “melodias esquecidas na alma de alguém”, para parafrasear Rubem Braga. Se o que se pretende é promover uma reflexão sobre a literatura e os seus desdobramentos no leitor e na escola, ninguém melhor que um escritor capaz de desautomatizar o nosso olhar, aguçar a nossa percepção e promover a nossa reumanização. Com a palavra o escritor João Anzanello Carrascoza:
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Mc Luhan, um crítico literário do início do século XX, diz que as mídias são extensões do corpo dos jovens. Em sua opinião, quais os desafios para que a leitura literária alcance essa nova geração tão afeta à imagem, ao vídeo, às redes sociais, à brevidade, à volatilidade?
McLuhan fez esta afirmação, sim, na obra Os meios de comunicação como extensões do homem, e também teorizou que há meios quentes (com conteúdos de maior dificuldade de assimilação) e os frios (com mensagens mais facilmente assimiláveis). Os desafios contemporâneos são, entre outros, incentivar os jovens a transitarem tanto pelos meios quentes (como a literatura, por exemplo) quanto pelos frios (a televisão, a mídia digital), a fim de adentrarem em camadas mais fundas do mundo do sensível, além de ensinar a eles a literacia midiática – como aprender a ler o mundo, a palavra, a imagem. É essencial a convivência com a tecnologia, que libera todos de tarefas repetitivas e mecânicas, mas sem que deixemos de usar a nossa capacidade de operar relações racionais e emocionais complexas.
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Para onde caminha a promoção do livro e da leitura literária com os novos suportes digitais?
Caminha para o destino que lhes dermos. Os meios tradicionais de leitura devem permanecer, mas os novos vão se impondo como expansão de possibilidades. A História tem nos mostrado que uma descoberta nem sempre anula uma anterior, mas que ambas seguem em convivência. Os elementos arcaicos da cultura sobrevivem e continuam influentes em meio ao emergente. Como nos lembra Lucia Santaella, o leitor contemporâneo é ubíquo: lê no suporte papel, salta para um site com hipertexto, de lá vai para uma rede social na qual o gênero e o grau de interação são outros, e, subitamente, está de volta ao seu bloco de anotações.
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Em seu ponto de vista, qual a importância da literatura para o aprofundamento de uma compreensão de arte como direito humano?
A literatura desnaturaliza o olhar, promove a observação aguçada do cotidiano, amplia o nosso universo imaginário, e, sobretudo, nos reumaniza.
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Como um escritor cuja produção é voltada para o público infantojuvenil, qual a sua percepção quanto à relação entre o jovem leitor, a literatura e a escola?
Minha produção literária, ajustando melhor a pergunta, é voltada para todas as idades, o que inclui as crianças e os jovens, tanto quanto os adultos. Gosto de pensar em cada texto que escrevo como um rio, com as suas margens, a sua profundidade, a coloração de suas águas, o movimento próprio de sua correnteza. O leitor é quem decide se nele vai só molhar as mãos ou mergulhar, ou sair com o barco de seu repertório e descobrir bancos de areia, paisagens ribeirinhas, mistérios ao longo de seu curso. E nessa aventura, de levar o leitor até esse rio, de incentivá-lo a conhecer a sua singularidade, de estar com ele nessa contemplação, nesse exame, ou nesse nado, é que está o papel da escola, do professor, que igualmente pode se rejubilar, se enriquecer, se refluir como gente entre os demais de sua coletividade.
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Em geral, cada pessoa tem um sistema para selecionar leituras. Qual é o seu?
Um sistema simples: abrir-me inteiramente para a pluralidade, escolher os temas que me são próximos, mas também os distantes, dar espaço para o que é familiar e, na mesma medida, para o estranho, estar atento para as cintilâncias do acaso.
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Em tempos de discursos de ódio, de redesenho de barbárie, de fundamentalismos acirrados, o que pode a literatura?
A literatura pode e deve ser o que ela é sempre: produto do espírito humano, espaço de afetos, poço do qual retiramos a nossa eussociabilidade, lócus onde se vê a exuberância da diferença.
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Na sua obra, parece que as dimensões do passado e do presente surgem com mais força, talvez por serem os lugares de fundação da memória e da experiência.
Sim. E não é uma escolha, é a consciência do meu existir nesse aqui e nesse agora, que se tornam imeditamente menos aqui e agora e mais ali e há pouco; é esse ímpeto propulsor que me faz escrever o que acontece (o presente) no momento em que deixa de acontecer (o passado).
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Quais livros formaram o escritor João Anzanello Carrascoza? E mais: qual foi o papel da escola na formação do leitor João Anzanello Carrascoza?
Como afirmei acima, sobre acolher a pluralidade, eu sou um escritor porque, antes de tudo, me sinto plenamente um leitor. E, desde menino, um leitor de tudo o que encontrei nas escolas onde estudei, nas bibliotecas públicas que sempre frequentei. A minha formação, portanto, se fez com os que eu tinha ao alcance: a poesia, o conto, a crônica, o romance, tantos os clássicos nacionais quanto os estrangeiros. Aprendi na escola que o universo é feito pelo diverso – daí estar apto para abraçar todo tipo de leitura, sem pré-julgamento. Quem sabe como é o rio, a sua temperatura, o desenho de seu leito, é o leitor que nele se banha.
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Você entende a narrativa, especialmente a do conto, como um “caracol da linguagem”, como afirma Cortázar, ou concorda com Octavio Paz, ao afirmar que, ao contrário da poesia, a prosa é uma reta que segue sempre adiante com uma meta precisa?
O conto exige um caracol da linguagem para cumprir a meta da narrativa: chegar ao desfecho contundente – seja a imprevista ascensão, seja o esperado abismo.
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Como ser um leitor atento às bases da arte literária, conforme você propõe como um critério para a escrita criativa?
Quando fazemos expedições aos rios, vamos desvelando como são, quais os seus diferenciais, a doçura ou não de suas águas, quais tipos de peixes (e cobras) nele são autóctones. Assim também eu penso em relação à criação literária (de um rio): o bonito de um feito está, ainda no tempo de sua inexistência, em ter sido feito com os cuidadosos detalhes que lhe dão singularidade.
Essa discussão faz parte do capítulo I da Tese de Doutorado intitulada “Relações intertextuais na obra de Ana Maria Machado: ficção e história, teoria e criação literária”, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.
As discussões aqui apresentadas podem ser encontradas, de forma ampliada, no capítulo II da referida Tese de Doutorado, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.