A literatura no entrelaçamento entre vida e arte: diálogos sobre contos bernardeanos
Janete Lopes da S. Araújo – RME-GOIÂNIA-GO
Keila Matida de Melo – FE/UFG
a sua obra foi quase toda memorialista, escreveu sobre o que viu e sentiu. não inventava: recriava ... como “cientista do sertão”, deixou milhares de páginas escritas com todos os assuntos, aprofundados nos usos e costumes do povo interiorano.
(bariani ortencio, 2015)
A leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de fadas, o autor inclina-se sobre nós, toca-nos de leve com suas palavras e, de quando em quando, uma lembrança escondida se manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos expressar revela-se com uma nitidez surpreendente.
(Petit, 2013)
Considerações iniciais
Este capítulo tem como objetivo apresentar diálogos estabelecidos com alunos de uma sala de extensão, multisseriada, da Educação de Jovens e Adultos (EJA), de uma escola municipal de Goiânia, Goiás, acerca de contos do escritor Carmo Bernardes, mais especificamente de três contos presentes no livro Reçaga, sendo eles: “Reencontro”, “O adeus das suindaras” e “Ouvindo um companheiro que pagava aluguel”. Esse diálogo ocorreu por meio de Tertúlia literária dialógica e os dados foram coletados no primeiro semestre de 2022. Ao todo, houve a participação de três adultos entre 28 e 50 anos de idade e 16 idosos entre 60 e 78 anos.
Sobre a tertúlia, necessário esclarecer que ela é considerada uma prática de leitura dialógica, em que as pessoas que dela participam refletem sobre textos literários, aprofundando o entendimento que possuem de si, do outro e do mundo. O diálogo ocorre pela interação, pela escuta atenta e respeitosa, pela partilha de experiência. Na tertúlia, não há sobreposição de sentidos, todos os sentidos provocados pelos textos são pensados e analisados conjuntamente; a autoridade relacionada ao tempo de escolarização também é desconsiderada, ou seja, o aluno, mesmo analfabeto, pode participar da dinâmica, tendo respeitados voz e vez. Já a escolha por Carmo Bernardes ocorreu em função do atrelamento das autoras deste estudo no projeto de pesquisa intitulado Saberes da (e sobre a) literatura, desenvolvido na Faculdade de Educação da UFG. Nesse projeto, a produção desse autor foi analisada por um período de dois anos. Das temáticas abordadas nos contos, duas delas ganharam ênfase: a questão da mulher e da criança. Como resultado, foi possível notar o entrelaçamento entre vida e arte enquanto sentidos provocados pela leitura da literatura. Os questionamentos levantados pelos participantes e a atuação ativa deles na leitura dos contos expressaram a forma como a leitura literária seduz, enriquece, incomoda, desassossega, ampliando a possibilidade de participação do sujeito no mundo, ao entender melhor este mundo, mesmo que esse entendimento seja oriundo de outras lentes, de facetas outras da experiência. Situação que assegura, de maneira ímpar, o caráter formativo profundo da literatura, evidenciando a importância de seu lugar na escola e em outros tantos espaços de formação do leitor e constituição de cidadania.
As obras de Carmo Bernardes, como nos dizem as epígrafes acima, nos arrebatam para lugares construídos por meio das lembranças de objetos, imagens e fatos. São leituras que evidenciam aspectos profundos ao pensarmos sobre nós mesmos e nossa trajetória de vida, nos impele a tornar explícitas coisas que, muitas vezes, pensávamos não saber pelo simples fato de não refletirmos sobre elas e, principalmente, ter que colocá-las em palavras. Todo esse processo gera formação.
Sendo assim, foi lançado um convite aos alunos de uma sala de extensão, multisseriada , da Educação de Jovens e Adultos (EJA), para lerem uma obra literária de Carmo Bernardes. Após apresentar um pouco da vida e obra do autor, e do seu processo de criação, por meio de resumos de textos e recortes de jornais, a proposta foi aceita como um desafio, pois trata-se de estudantes que estavam retomando ou mesmo iniciando o processo de escolarização, ou seja, com pouca ou nenhuma escolaridade, com pouca ou nenhuma vivência de experiência literária na escola e/ou em casa. Isso por vários motivos, como sucessivas desistências, evasões, dentre outros.
O ambiente de estudo que este estudo retrata é, como já dito, uma sala de extensão, multisseriada, da EJA de uma escola municipal de Goiânia-GO. Dentre os participantes estão três (3) adultos entre 28 e 50 anos de idade e 16 idosos entre 60 e 78 anos. Esses estudantes, residentes na capital do Estado – Goiânia –, na maior parte de suas vidas, viveram a infância e parte de sua juventude em regiões outras, uma das alunas, por exemplo, é venezuelana, recém-chegada ao Brasil.
Para tal desafio, a proposição foi desenvolver, com algumas adaptações, uma atividade de leitura literária denominada Tertúlia Literária Dialógica (TLD), uma atividade que, comprovadamente por meio de várias pesquisas, abre um campo de possibilidades e potencialidades para o ato de ler, mesmo para pessoas com dificuldade de decodificar os códigos da escrita. A TLD é inclusiva, pois em sua estrutura organizacional torna-se possível incluir sujeitos de diferentes origens sociais e culturais, isto é, o fato da pessoa ainda não saber ler não é impeditivo para participação nessa atividade. Nela, a ideia que é fomentada não implica fazer uma análise da obra literária, mas criar espaços para reflexão e diálogo em que o grupo vai tecendo interpretações e sentidos, compartilhando experiências sobre o cotidiano, sobre a vida, e construindo conhecimentos em torno de uma mesma obra lida. O que torna essa atividade especial é, portanto, os sentidos construídos a partir das diversas contribuições dos participantes, suscitados pela leitura compartilhada.
A TLD é considerada uma prática de leitura dialógica, que se caracteriza como “[...] el proceso intersubjetivo de leer y comprender un texto sobre el que las personas profundizan en sus interpretaciones, reflexionan críticamente sobre el mismo y el contexto, e intensifican su comprensión lectora a través de la interacción con otros agentes, abriendo así posibilidades de transformación como persona lectora y como persona en el mundo” (Valls, Soler, Flecha, 2008, p. 73).
Embora na dinâmica da atividade, a escolha da obra a ser lida é decidida conjuntamente, no caso deste estudo, foi escolhida a única obra do autor disponível na biblioteca da escola. O critério, portanto, usado foi encontrar a obra disponível na biblioteca escolar. Afinal, como afirma Cândido, a partir da reportagem de Xavier (2006), “As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada”. Os livros presentes na biblioteca e em outros espaços, pela qualidade estética que possuem, no caso os literários, ampliam a experiência do leitor, alargando seus horizontes de vida. Para isso, é importante o fato da mediação na leitura literária proporcionar uma experiência dialógica rica, significativa e atrativa ao ponto de tentar levar o leitor a se interessar em frequentar a biblioteca, a fim de buscar um livro, ler e relê-lo, vivenciando novas experiências tão significativas quanto a que nos propusemos a fazer.
Na biblioteca escolar, como dito, foi encontrado o livro de contos Reçaga, de Carmo Bernardes. A escolha por Carmo Bernardes ocorreu em função dos estudos realizados no Projeto de extensão “Saberes da (e sobre a) literatura” que acontece na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Nesse projeto, por vários anos, estudamos a produção de Carmo Bernardes, buscando nela identificar temas transversais, ou seja, temas que atravessam as obras, estando presente em várias delas. Esse mapeamento exigiu que conhecêssemos a produção bernardeana, que é bastante rica. Neste estudo, os integrantes do projeto, em grupo ou individualmente, produziam textos a partir dessas temáticas e esse texto era discutido e analisado com o grupo. Tal ação despertou o interesse em compartilhar a produção de Carmo Bernardes com os estudantes, no caso da EJA. Por isso a ida à biblioteca. Por isso, a escolha de Reçaga, livro de contos do autor.
Segundo Simonsen (1987, p. 02), a palavra conto origina-se de contar, do latim computare, que quer dizer “enumerar os episódios de um relato”. Não há nada mais natural na trajetória humana que o contar e ouvir histórias. Desde a infância entramos em contato com essa maravilhosa experiência contada ou mesmo cantada. Ao fazer uma primeira leitura da obra, tivemos a certeza de que teríamos muitas conversas e experiências para compartilhar, afinal, como diz a sabedoria popular: “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Depois disso, surgiu outra questão: o livro seria lido como um todo ou apenas alguns contos seriam considerados? Circulando o exemplar do livro no círculo de alunos e dialogando com eles, optamos por lermos alguns contos até o encerramento do primeiro semestre do ano de 2022, período em que encerrava a licença da professora titular e a substituta se despedia da turma. Foi entregue para cada aluno cópias com os nomes dos títulos dos contos, e foi lido, pela professora, cada um deles. Os estudantes olhavam, tentavam reler os títulos com ajuda dos colegas, conversavam, desconfiavam sobre o que cada um deveria estar contando a ela. Por fim, foram escolhidos dentre os títulos, três que lhes chamaram mais atenção, sendo eles: “Reencontro”, “O adeus das suindaras”, “Ouvindo um companheiro que pagava aluguel”. A escola prontamente encadernou cópias muito bem-feitas com capas e entregou aos estudantes os contos selecionados para que cada um deles pudesse acompanhar as leituras em sala e em casa.
Pela dinâmica da TLD, a cada semana é definido o trecho a ser lido previamente para que cada participante possa destacar a parte que mais gostou para ler e comentar com o grupo. Nesse sentido, a cada tertúlia, a obra vai sendo explicada, apresentada e contextualizada por todos os participantes. Os trechos, páginas ou capítulos, podem ser lidos em sala de aula, mas as pesquisas demonstram que quando são lidos previamente em casa a atividade fica mais dinâmica e se ganha mais tempo para diálogos. O fato de compartilhar leitura para além da sala de aula, com público externo, amplia o alcance dessa prática e pontes significativas são criadas entre leitores. No caso em estudo, foi decidido que, devido à dificuldade da maioria dos estudantes para realizar uma leitura com fluência e compreensão, isso seria feito em sala de aula e diariamente. A cada dia da semana foi separado o tempo de uma hora para a realização da leitura, para a marcação de trechos que chamou atenção de cada participante, para a releitura em voz alta do trecho escolhido, seguido da explicação sobre a razão que lhe foi atribuído significado especial. Dessa forma, os participantes foram formando suas contribuições e construindo os diálogos. A atividade teve duração de abril a junho de 2022.
A leitura literária como abertura ao encontro e ao diálogo
A leitura literária deve ser vista como arte, e como arte assume muitos saberes, conforme assegura Barthes (2013). Para o autor, a literatura, além de trapacear a própria língua, sendo um exercício libertário de linguagem, abrange todas as ciências, ou seja, todas as ciências estão contidas no texto literário. O autor esclarece que:
[...] a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por outro lado, ele permite designar saberes possíveis - insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionar durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa, ou melhor; que ela sabe algo das coisas - que sabe muito sobre os homens. (Barthes, 2013, p. 19).
Em consonância à Barthes, Compagnon (2012, p. 64) afirma que “a literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia [...] porque ela faz apelo às emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões de experiência que os outros discursos negligenciam, mais que a ficção reconhece em seus detalhes”. Andruetto (2012) defende que ir à ficção permite que o leitor conheça mais e melhor as grandezas, mas também as contradições e misérias humanas. Isso amplia a experiência do leitor inconformado com uma vida única. Para a pesquisadora:
[...] a narrativa de ficção continua existindo como produto da cultura, porque vem para nos dizer sobre nós [...]. Uma narrativa é uma viagem que nos remete ao território de outro ou de outros, uma maneira, então, de expandir os limites de nossa experiência, tendo acesso a um fragmento de mundo que não é nosso. Reflete uma necessidade muito humana: a de não nos contentamos em viver uma vida única e, por isso, o desejo de suspender um pouco o transcurso monocórdio da própria existência para ter acesso a outras vidas e, por outro, o acesso a aspectos sutis do humano que até então nos haviam sido alheios. (Andruetto, 2012, p. 54).
O texto literário, nesse sentido, se difere de outros textos, como os informativos. Ele não tem caráter utilitarista. Importante lembrar que a literatura cria mundos que só existem no texto, ou seja, a literatura é obra de ficção cuja virtualidade é a própria vida, assegura Andruetto (2012, p. 55). Em função disso, um texto literário não quer ensinar as coisas sobre o mundo, mas por ele é possível refletir sobre esse mundo, sobre as relações, que são variadas, múltiplas, imperfeitas, contraditórias. Por isso, o mediador de leitura não pode prescrever o certo e o errado em relação ao sentido de um texto. Ele precisa compreender porque certo sentido foi construído, o que isso tem a ver com a experiência do leitor. A dinâmica da tertúlia subsidia-se em princípios que consideram a criação de sentido, a inteligência cultural, o diálogo igualitário. Esses princípios, além de outros, dão voz ao leitor, independentemente do tempo de escolarização que ele possui, como já pontuado.
A participação dos leitores já teve início no contato inicial com a obra, na decisão por ler ou não a obra como um todo, na escolha dos contos a serem lidos. Um trabalho que não foi individual, mas coletivo, porque mesmo na releitura dos títulos dos contos e dos sentidos possíveis acarretados por esses títulos um leitor amparou-se no outro. Vínculos, portanto, foram sendo tecidos em termos de expectativas. Sobre Reçaga, os personagens dos contos vivem temas ligados à vida simples na roça ou em pequenos povoados. Aspecto típico da produção bernardeana, ilustrado também em romances como Nunila, Memórias do Vento, Jurubatuba. As histórias são contadas por narradores que participam do enredo.
Em termos de escrita, segundo Santos (2007, p. 101), Bernardes faz uso de uma escrita marcada pela oralidade, aproximando-se da linguagem falada pelo povo e que também representa a história vivida pelo próprio autor, criando-se, assim, “[...] uma cumplicidade que lhe permite perceber que vale a pena manter- se nessa forma de escrita. [...] Sua proposta é transmitir uma concepção de mundo, [...] um canal de linguagem que transmite uma memória” (Santos, 2007, p. 101). A produção de Carmo Bernardes então reflete um vivenciar a partir da experiência potencializando o poder da palavra. Para Silva (1997, p. 8), a escrita de Carmo Bernardes não só mescla a linguagem erudita e popular, mas ele também reinventa vocábulos, outra característica da produção do autor são os “[...] dito sentenciosos. Esse artifício, que soa como provérbio ou moralidade, atesta uma visão de mundo do sertanejo, [...] compondo uma espécie de filosofia cabocla”, como, por exemplo, “Na verdade, gente é um bicho sem conserto” (Bernardes, 2013, p. 119), “O seguinte é que tudo mal começado resulta mal acabado” (Bernardes, 2013, p. 109).
Não sem razão, os estudantes se identificaram com os personagens, com suas histórias, com seus modos de vida e permaneceram motivados a participar da atividade de leitura. Quando precisavam faltar a aula pediam para não ser feita a atividade naquele dia, pois não queriam perder a sequência do conto, inclusive manifestavam satisfação ou frustração quanto ao final dos enredos, dando sugestão para outros finais, e nessa conversa com Carmo Bernardes contavam suas próprias histórias. “Assim, pondo em relação significativa diversas histórias sobre nós mesmos também aprendemos a compor nossa própria história. E a modificá-la” (Larrosa, 1996, p. 474, tradução nossa).
Os contos bernardeanos forneceram vínculos de afinidades para muitas memórias. Para Bosi (2022, p. 31),
A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo.
E foi assim mesmo que ocorreu, os alunos compartilharam uma multiplicidade de sentidos, fizeram, a partir da literatura, leituras de seu mundo e do mundo do outro.
Santos (2007, p. 100) alerta que a provocação de Bernardes é dotar sua escrita de seres que nela se apresentam, de situações que ali se configuram como algo mais que fruição. Ele quer interferir na vida de quem o lê. Quer, a seu modo, transmitir uma lição ou uma norma de vida. Tarefa que parte da noção de narrador, tal como concebe Walter Benjamin, segundo expôs Santos (2007), especialmente os narradores das antigas sociedades ainda calcadas na transmissão oral de conhecimentos. Desse modo, os contos bernardeanos foram alimento em imagens, em sensações e ideias capazes de nutrir histórias de vida, práticas cotidianas e sentimentos inúmeros. Por esse caminho, Bosi diz que “As coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos. Onde está nossa primeira casa? Só em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos” (Bosi, 2022, p. 27). A partir dessas conversas os estudantes fizeram o retorno às primeiras casas e a muitas outras, nesse exercício de registrar histórias outras vividas e agora compartilhadas, trazendo vestígios de lugares, de tempos históricos unidos por várias vozes. Foi nesse exercício de diálogo e de alteridade, como pontua Bakhtin (2003), que a tertúlia ocorreu.
No entrecruzamento entre vida e arte: a mulher e a criança
Nos contos de Carmo Bernardes, a mulher e a criança se fazem presentes. No primeiro caso, nas tramas dos contos em Reçaga, evidencia-se a fragilidade das meninas desprotegidas por seus responsáveis e violentadas; as mulheres traídas por seus maridos ou companheiros, tendo que fazer vista grossa para isso; as que cuidam do patrimônio e da família sozinhas, mas são enganadas e roubadas por espertalhões e aproveitadores. Há ainda mulheres silenciadas pelo dever de esperar do homem atitudes e modo de governar suas vidas e a dos filhos, bem como mulheres modernas, com costumes e aparência de moradores de cidade grande, que cuidam da casa e da família.
As discussões promovidas em “O adeus das suindaras” e “Ouvindo um companheiro que pagava aluguel” foram:
Eu vejo que sou vencedora, mesmo passando por muita coisa ruim com os maridos que tive. Não permiti que me diminuíssem ou chegasse a bater. (Socorro, 2022).
Se a mulher perdoa a traição do homem, é como se não estivesse fazendo mais que a obrigação dela. E quando o homem perdoa a traição da mulher? É visto da mesma forma? (Professora, 2022).
Quando os amigos e a família ficam sabendo que ele perdoou uma traição, cai matando em cima do homem, ele perde a reputação. (Rosa, 2022).
Mas às vezes o homem diz que perdoa pra fazer maldade depois. (Domingas, 2023).
O homem e a mulher, se vão dar uma chance pro outro, tem que esquecer o que aconteceu. Não pode ficar falando toda vez que tá com raiva, acusando. (Francisco, 2022).
Muitas vezes, o homem diz que perdoou, mas ele fica prestando atenção nela, qualquer deslize ... (Rosa, 2022).
Nem precisa deslizar. Ele já fica procurando meio pra brigar. Ele começa a brigar por causa da roupa, igual aconteceu com minha vizinha. Quando ela sai pra dançar, mesmo que seja com ele, ela não pode ir de vestido ou de saia, tem que ser de calça. Ele manda e ela obedece. (Anizia, 2022).
Se a mulher aceita que o marido ou namorado agrida uma vez, ele vai continuar fazendo e cada vez mais violento. Isso no mundo inteiro. (Francisco, 2022).
Nos dois contos a mulher é silenciada, e os estudantes percebem isso, interligam a história à vida, apresentam exemplos, questionam, se identificam, aspecto característico da literatura. Além disso, eles expressam a dimensão do humano marcado pelo interdito: o homem diz que perdoa, mas não perdoa, vigia, controla; mesmo que não precise perdoar, procura meios de brigar, de governar a mulher. As atribuições do homem e da mulher têm impacto externo à própria relação, pois os estudantes argumentam, por exemplo, que perdoar fere a reputação; que a violência que acomete a mulher, e se repete se se permitir isso, acontece no mundo todo. Como afirma Andruetto (2017, p. 21), “[...] as subjetividades de quem escreve e de quem lê são sempre caixas de ressonância do social, e que toda palavra individual é um concerto de ecos e de dissidências da palavra social”.
Ainda sobre os contos, há de se destacar que a mulher do inquilino, a moda de esposa de um certo tempo, não podia tomar o lugar do marido, mesmo que fosse para defender a família: “Minha mulher mordeu os beiços e ficou amuada, tirando uma linha nos pés daquela corja, ringindo os dentes de ódio faltava só avançar e me estraçalhar na unha” (Bernardes, 1972, p. 80).
Me chamou a atenção na leitura o poder do homem sobre a mulher, mas nós mulheres temos os mesmos direitos dos homens. Aqui [na história] a mulher não tem o direito de fala. Eu morava no interior, na roça, igualzinho a história. Nós temos os filhos e temos os netos, por isso sempre temos esperança de mudanças. (Irene, 2022).
Lá onde nós morávamos as esposas não podiam sentir prazer com o marido, se demonstrasse ela até apanhava, porque estava querendo ser uma mulher a toa, na hora da intimidade, a esposa tinha que ficar quietinha. A esposa era só para ter filho e cuidar da casa. Elas eram dominadas pelo marido, não tinham liberdade, eles eram como se fossem o pai, davam a comida, mas não tratavam com carinho, era uma prisão, continuava mandando na vida da mulher, eu fui dessa época. Hoje a mulher trabalha fora, tem independência. (Geralda, 2022).
Quando chegava nosso compadre lá em casa, eu não podia sair na porta ou na sala pra receber e conversar não, só meu marido é que podia ficar na sala conversando. Meu marido me chamava como se eu fosse uma desconhecida: - Dona Maria traz um cafezinho pro compadre. Eu tinha que ir de cabeça baixa, não podia nem cumprimentar o amigo da família. (Marta 2, 2022).
Isso foi uma realidade também do meu país, de todo lugar, toda a América do Sul. Essa situação da mulher submissa, só para atender as necessidades do marido, filhos, casa. Hoje quando eu liguei a televisão cedinho, 6h30min para assistir a oração, depois, nas notícias, passou o caso do homem que estava suspeitando que a mulher estava traindo ele. Quando a mulher dormiu, ele a amarrou na cama e cortou todo o cabelo dela. Ele não matou, mas fez essa violência querendo castigá- la. (Norma, 2022).
A realidade das mulheres em tempos históricos diferentes é retratada nas falas dos estudantes. A ausência de direito não se restringia à fala, mas também à postura, à indiferença no sentido de distanciamento – deixar de ser esposa e servir ao homem simplesmente. A mulher também assumia atribuição na família, como cuidar de casa, dos filhos e do esposo, sem que tivesse direito ao prazer, à liberdade, ao afeto. Se o poder do homem se fez e se faz ainda presente na sociedade e em outros países da América Latina, isso não ocorre sem conflito, sem resistência, sem indignação. Os estudantes argumentam o direito de a mulher ter voz e vez, de ter desejo, de não se sujeitar, de não se silenciar. A literatura, portanto, incomoda, desconcerta. A experiência que ela possibilita, nesse transitar entre vida e arte, interroga o existir.
Se a literatura acarreta identificação e indignação, ela, assim como a vida, não se esquiva do contraponto, da contradição, mulheres com outras posturas também são apresentadas como a “[...] mulher vestida numas calças compridas costuradas nela, [...] trajada de macho [...] botou defeito em tudo, indagou do que não era de sua conta, quase matou minha mulher de antipatia” (Bernardes, 1972, p. 79). Esse trecho é ilustrativo do olhar de estranheza e agressividade do homem em relação à mulher “trajada de macho”, mas também da própria esposa que sentiu antipatia da outra por interrogar tudo, reforçando a ideia da mulher silenciosa e adequada aos padrões sociais.
Carmo Bernardes também expressa situações outras como a personagem Tiá Benta, que tinha voz, vez e propriedades, mas era inocente, não teve esperteza suficiente para lidar com Vico e seu sócio: “Tiá Benta deu a eles procuração em cartório, de modo que ficaram com o direito em todo o desfrute da fazenda [...]” (Bernardes, 1972, p. 54). Um dos diálogos promovidos a partir desse trecho foi:
Lá onde eu moro, tem o meu salão de beleza. Está tudo mofado, eu pedi ao dono pra descontar no aluguel os reparos que eu precisei fazer pra não estragar minhas coisas, ele não aceitou de jeito nenhum. Ele fala que se não está bom então eu que me mude. Eles acham que só porque a mulher é sozinha, ela não sabe seus direitos, que é fácil passar pra trás. (Rosa, 2022).
O fato de ser mulher pressupôs desconhecimento de direitos, ignorância, ou mesmo ingenuidade, como mostrou o conto. Todavia, como aventou Rosa, a mulher também conhece seus direitos e percebe as injustiças que acometem sobre ela. Discussão similar, no caso específico sobre aluguel, ocorreu com a leitura do trecho de “Ouvindo um companheiro que pagava aluguel”: [...] só porque aluga uma casa contra a sua vontade, por motivos de atrapalhações nos negócios, o freguês atrasa com o pagamento do aluguel, não pode fazer aquilo que aquele homem estava fazendo [...] Devo é dinheiro de aluguel, não desaforo” (Bernardo, 1972, p. 81). O diálogo decorrente do trecho mencionado foi:
Mas eu concordo que tem que mandar o inquilino, que não paga o aluguel, ir embora, porque o dono está contando com aquele dinheiro. Aqui na história o dono agiu errado, mandou outros inquilinos irem no imóvel, antes de estar desocupado. Mas a pessoa que trabalhou e conseguiu um imóvel para renda, tem o direito. Na história o homem parece que ficou com vergonha porque veio o oficial da justiça fazer o despejo, e já veio o caminhão para pegar a mudança dele, sem nem saber para onde a família iria, se tinha onde ficar. Olhando o lado do dono do imóvel, ele está no direito dele, mas é muito triste para o inquilino essa situação. (Rute, 2023).
Isso mostra um pouco da desigualdade social no Brasil? O que vocês acham? Por que a maioria dos brasileiros não conseguem comprar sua casa própria, mesmo trabalhando muito? (Professora, 2023).
Sim. Muita desigualdade. Feliz de quem ainda consegue pagar um aluguel. Comigo aconteceu de eu ser despejada, uma vez, porque eu entregava o aluguel para o filho do dono e ele não passava o dinheiro para o pai. Foi uma injustiça. Agora eu fiquei esperta, onde estou morando exijo um recibo toda vez que pago o aluguel. (Rosa, 2023).
Hoje em dia não está muito diferente a situação, muitas pessoas estão morando nas ruas, sem proteção nenhuma. Na televisão falou que no setor Campinas está virando uma segunda Cracolândia. Mas lá não tem só viciados não, tem também pessoas que não tem onde morar. (Geralda, 2023).
O debate sobre ter onde morar, pagar ou não o aluguel, ser ou não enganado se estendeu, como visto, pelos contos. O fato de a professora ter chamado a atenção para a questão das desigualdades sociais expôs a situação de vulnerabilidade, da ausência de proteção do sujeito que está na rua, que pagou o aluguel mas foi enganado, foi despejado e nem teto teve para se proteger. Então, se os contos abordam a expropriação da terra, expressam também a desigualdade social, a impossibilidade de ter, de permanecer no lugar. Leituras outras, a contrapelo, arrazoam o direito de quem, pelo trabalho, adquiriu o imóvel e de quem, “por negócio”, “adquiriu” a posse de terra. Neste caso, mesmo quando Tiá Benta compreende o ocorrido, o conselho dado a ela era “largar de mão”, “A pois então. Tudo amarrado, registrado de preto e branco, era o caso de que se pegasse a mexer muito acabava era dando pau na cabeça. Sabe justiça como é” (Bernardo, 1972, p. 56). Isto posto:
A Tiá Benta perdeu o direito dela sobre a fazenda porque assinou procuração sem ler o que tava escrito. Eu também perdi meus direitos trabalhistas por que não sabia ler. Os colegas também foram enganados. Eu trabalhei na limpeza de um colégio dezoito anos. A escola teve que ser fechada, mas o dono deu a palavra dele que iria pagar os direitos aos poucos, parcelado. Todos nós confiamos na palavra dele e assinamos o documento concordando com o que ele escreveu dizendo que nós não tínhamos mais nada a receber. Ele não pagou a ninguém, mesmo com advogado nós não conseguimos receber. Eu acabei aposentando por idade. Mas esse antigo patrão pagou na justiça de Deus, porque hoje ele vive num quartinho de favor. (Marta 2, 2022).
O comentário do participante sobre o conto bernardeano expressa aspectos da história da alfabetização no país, em que o aprendizado em migalhas das letras se faz necessário apenas para ler manuais ou mesmo mandamentos capazes de manter a ordem social. Esse conhecimento rudimentar é mais produtivo ao sistema capitalista, em que o ler e o escrever se restringem à aquisição de algumas habilidades técnicas. Mais do que isso “O cidadão, pelo código escrito, torna-se responsável por seus atos. Assinar o próprio nome já significa isentar o poder de qualquer culpa em relação à ignorância do indivíduo. Assinar o próprio nome tem o significado de submeter-se à lei, ao contrato” (Melo, 1997, p. 46). E foi o que ocorreu, ao assinarem o documento, os trabalhadores da escola perderam direito porque confiaram no patrão. A assinatura representou a isenção de direito e a responsabilidade sobre aquilo que estava registrado no papel.
De forma semelhante aconteceu com Tiá Benta e a procuração assinada por ela teve como consequência a expulsão dos moradores do campo, apesar de que “O Vico não exigiu saída de ninguém. Tanto ele como o sócio eram boas pessoas, não andavam desacomodando vizinho nenhum” (Bernardes, 1972, p. 54). Devido à ingenuidade de Tiá Benta ao fazer negócio com Vico e seu sócio, não só ela, como todo o povo morador de Campo Alegre foram, sim, expulsos de suas casas, de seus terrenos. A dupla trouxe maquinários e saiu arando tudo “[...] acabaram arando a fazenda toda.” (Bernardes, 1972, p. 54). Para lucrar com a plantação de arroz, não respeitaram nem o cemitério onde estavam aqueles que foram tão importantes na história dos moradores, derrubaram as árvores nativas e fonte de alimentos e remédios da região. Não teve como continuar com a criação dos animais que os alimentavam. Os trabalhadores naturais do lugar perderam seus empregos porque não sabiam tocar lavoura no novo sistema e novas tecnologias “[...] e todos tiveram que ir se retirando um por um [...]” (Bernardes, 1972, p. 54). A visão que esse trecho gerou nas estudantes foi:
Meu esposo vendeu tudo o que nós tínhamos na roça e quando chegamos aqui em Goiânia não conseguimos comprar nem uma casa pra morar. Tivemos que morar onde hoje são as vielas, porque era mais barato e quem vinha de fora ainda conseguia comprar. (Anizia, 2022).
Meu pai morava na roça, lá na Bahia, ele tinha as vaquinhas pra família tomar o leite e comer carne. Quando não teve mais saúde pra cuidar, fomos pra cidade em Correntina. O dinheiro não deu pra comprar uma casa, ficamos morando de aluguel, mas ele passou dificuldade pra sustentar a família. Todos nós queríamos estudar, mas só os mais novos conseguiram um pouco de estudo. Quando finalmente meu pai conseguiu comprar uma casinha, já estava muito debilitado e faleceu. Até essa casa tomaram de nós, lá na Bahia. (Rita, 2022).
A situação presente na escrita de Carmo Bernardes não se limita à questão da mulher, à perda de direito, mas à falácia como estratégia para expulsão do homem do campo, o ingresso do maquinário como símbolo do arauto do progresso, como recurso de apagamento da memória, de destruição do campo e da tradição do mundo rural. O sertanejo expulso do campo ou forçado a vender a terra é incapaz, por falta de recurso suficiente, saúde ou profissão, de adquirir casa própria; e mesmo na cidade ele é enganado. Essa é a ideia reforçada na fala dos próprios estudantes e que se encontra presente também em outras obras do autor, como Nunila e Memórias do Vento.
Se no mundo rural, no “antes”, “criavam galinha em abundância, havia combinação entre os vizinhos de cada um possuir um leitão solto, não faltava pasto pro animal de sela. Enfim todo mundo vivia calçado com esses recursos de que o pobre se socorre sem ser preciso comprar” (Bernardes, 2013, p. 104), no “depois”, como consequência da sanha do progresso:
Todo o pessoal do Campo Alegre tinha ficado nas condições de não poder possuir nem uma galinha no terreiro, suas mulheres se obrigando a ir lavar roupa no rio, distante mais de légua, queimando as unhas por falta de lenha, e o arraial do Bitaco tomou um progresso absurdo. Lugarzinho encruado, que nunca passou da igreja e uma rua rala com as casas dos empregados da coletoria, cartório e juizança, num ano, se tanto, redobrou de tamanho. Foi só o maquinismo de lavoura arada urrar na redondeza, descortinar o mato todo, aterrar as aguadas e entupir os caminhos da vizinhança, e o arraial pegar a encher-se de mudanceiros. (Bernardes, 2013, p. 108).
Oliveira (2016), ao analisar o mundo rural a partir do olhar de escritores clássicos da literatura goiana e tocantinense, como o próprio Carmo Bernardes, mas também Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis, Bariani Ortêncio, dentre outros, afirma que a ocupação desses territórios – Goiás e Tocantins – esteve articulada a grupos dominantes. Inicialmente, pela colonização, posteriormente por aqueles que assumem o controle do processo de exploração dos pobres, impossibilitando-os de adquirir condições mínimas de subsistência. A história tem mostrado interpretações sobre esse fato. Uma delas, como resultado da modernidade, da industrialização, do progresso como solução para todos os problemas, rotulando quem pensa diferente disso como “resíduos do passado”. Para o pesquisador, “os sujeitos sociais retratados nessa literatura vivem em um universo de expropriação, exploração e são quase sempre mediados por questões relacionadas à terra” (Oliveira, 2016, p. 98).
A criança também se faz presente nos contos. Neste caso, ela é vista como um adulto em miniatura, com obrigações determinadas, devendo obediência sem nenhuma explicação ou mesmo justificativa, como acontece com o menino de “Reencontro”, “E eu, enquanto menino que não podia com as ferramentas de carpinteiro de meu pai, tinha que ajudar naquilo tudo” (Bernardes, 1972, p. 29). As obrigações, como colher anil, deveriam ser feitas mesmo debaixo de chuva, e antes que o cuspe da mãe dona Sinhana no chão secasse. Ele também labutava fazendo cinza, e para ficar uma cinza forte, como deveria para o anil ficar bom, tinha que ser com coivara verde e com as plantas certas, que ele aprendera a reconhecer com a mãe, bem como todos os detalhes dos afazeres eram passados de geração para geração.
Aprendia a separar os galhos de cada planta específica, amassá-los da maneira certa e colocá-los para curtir, com nem muito sol e nem muita sombra, tudo na medida certa. Daí para frente só a mãe poderia mexer, com as mãos bem lavadas. O sofrimento do menino era enorme, tinha os braços franzinos de criança arranhados pelos espinhos da mata, o rosto e o corpo cobertos de fumaça preta, a quantidade de vezes que sofrera constipações já não dava nem para contar. O menino trazia forte em sua memória a imagem de uma mãe guerreira, trabalhadora e conhecedora da natureza, com as unhas sempre escurecidas pela tintura ferrete da labuta com o anil. Diálogos inúmeros foram estabelecidos pelo conto, como ilustram os excertos abaixo:
Eu comecei a trabalhar com seis anos de idade. Eu aprendi a fiar pra fazer nossas roupas. Eu também colhia o anil pra tingir os fios que eu fiava. Era só trabalho. (Marta 2, 2022).
Eu só conheci o anil que a gente comprava em forma de pedrinha. (Professora, 2022).
Essa pedrinha é feita dessa planta. Minha mãe também colhia essa planta de anil. (Marta 1, 2022).
Minha mãe tingia as linhas de algodão assim: ela colhia aquelas folhas de anil, colocava para ferver, depois jogava sal na água e colocava as linhas dentro. Deixava de molho para tingir. A gente também tingia a roupa ou o tecido com lama preta, lá em Minas Gerais. (Marta 1, 2022).
Quando criança, eu trabalhei muito. Pilava arroz, catava lenha e quando era tempo de chuva tinha que sair mais cedo com minha mãe para juntar mais lenha. Era responsável para colocar água para os animais, fazia de tudo um pouco. A escola era muito longe, tinha que atravessar de balsa, não dava pra ir não. (Maria, 2022).
Meus pais eram muito pobres. Minha mãe trabalhava na roça e em casa, mas tudo bem, é a vida! Meu pai não gostava de trabalhar. Só sabia brigar com os filhos e com minha mãe. (Kihara, 2022).
Eu aprendi a profissão de vaqueiro com meu pai. Comecei de pequeno e meu pai faleceu quando eu tinha 9 anos, então continuei no trabalho para ajudar minha mãe. Depois Deus me deu outra profissão para que eu formasse minha família. (José Luis, 2022).
A vida da criança na roça, como ilustrado no conto, e também reforçado na fala dos participantes, era de labuta, de ajudar a mãe, de muito trabalho. Muitas vezes o filho substituía o pai nesses afazeres, se ele falecesse, por exemplo, como relatou José Luis. Iniciação, de Bariani Ortencio (1959), mostra a ocupação do lugar do pai pelo filho, como se esse lugar fosse marcado pela tradição enquanto herança. A obrigação da criança pobre do campo era atrelada ao compromisso com o trabalho, aprendido de geração a geração. Outros aspectos da infância no mundo rural também foram apresentados:
Eu me lembrei da minha infância, com sete anos já trabalhava na roça de cedo até meio dia. Mas era muito feliz porque depois ia brincar de matar passarinho com estilingue, fazia carrinho de lata, brincava de fazer perna de pau, banhava no rio. Era bom demais. (José 2022).
Eu também tive uma infância muito feliz no interior de Goiás. Era uma vida simples, mas com muita fartura de frutas no quintal, muitas brincadeiras na rua com a meninada toda e até nossos pais entravam na roda de vez enquanto. (Professora, 2022).
Deu saudade de quando morava na roça com meus pais e meus irmãos. Nós brincávamos muito e pegávamos frutas no pé pra comer à vontade. Era feliz e não sabia. (Maria, 2022).
A nostalgia da infância no mundo rural, apesar do trabalho, é expressa na fala dos participantes. Essa infância é marcada pela liberdade, pela criatividade, pelo contato com a natureza, pela vida simples e farturenta, pelas brincadeiras, pela felicidade de um tempo que não volta mais. Diferentemente da criança na relação com o trabalho, em “O adeus das suindaras”, a menina Martinha, de onze para doze anos, foi assediada e quando não conseguiu mais se esquivar teve o abuso concretizado. A tia, que a criava e tinha o dever de protegê-la e defendê-la, não só apoiava o abusador, como obrigava a menina a satisfazer-lhe os caprichos em troca de presentes e agrados. “Martinha teve ímpeto de correr, porque achou a atitude dele meio esquerda, mas Tiá Benta bradava muito com ela por causa dessa má moda de correr dos outros” (Bernardes, 1972, p. 52). Os trechos a seguir mostram o diálogo gerado pelo conto:
É um absurdo, o homem é que veio atrás da menina e a violentou, praticamente com a ajuda da tia que a criava. Depois a menina é que ficou mal vista, mal falada. (Rosa, 2022).
Mas será que essa violência e o preconceito acontecia só naquele tempo? (Professora, 2022).
Continua do mesmo jeito ou pior. E agora todo mundo fica sabendo por causa da internet. (Domingas, 2022).
A história dessa menina me lembrou uma história triste de uns parentes do meu ex-marido. Ele contava que a avó obrigou a própria filha a se casar com o tio, um homem bem mais velho e que ela não amava. Ela ficou tão desesperada que corria para as matas e enfiava os pés dentro das moitas esperando que alguma cascavel lhe picasse e ela morresse pra não casar com o irmão da mãe. (Marta 1, 2022).
A minha vida foi trabalhar de babá quando eu era criança. Saí da roça para trabalhar nas casas de família. Fui muito assediada, ao invés de ganhar escola, ganhei foi assédio dos patrões. Agora consegui aprender a ler e escrever, apesar das muitas dificuldades, estou quase lá. (Divina, 2022).
O episódio do conto provoca indignação e até revolta nos leitores. A leitura, portanto, mesmo narrando a história de uma personagem, suas dores, angústias e medos, fala dos leitores de modo geral, e não sem razão as histórias se assemelham. “A literatura revela assim um mundo que é e não como deveria ser. Ela é paradoxalmente revolucionária na reação, no espelho do que é”, afirma Gonçalves Filho (2000, p. 35). Eco (2003, p. 21) também afirma que as grandes histórias, os grandes contos são imodificáveis porque “contra qualquer desejo de mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá- los. E assim fazendo, qualquer que seja a história [...], contam também a nossa, e por isso nós os lemos e os amamos”. Para ele, necessitamos de lição representativa, de contos que também nos ensinam a morrer.
Nos arremates finais, as potencialidades da literatura
A capacidade que a leitura literária tem de nos provocar, como expresso nas falas dos participantes, as temáticas evidenciadas nos contos, que não foram as únicas, mas as possíveis para este texto, coadunam experiências de vida, modos de ver e de perceber o mundo. Se a literatura é lugar de ruptura, como afirma Andruetto (2017), ou mesmo de desassossegado, como defende J. J. Veiga (1997), isso ocorre também em relação à própria língua, cujo manejo se evidencia numa aproximação do ser sertanejo, num drible criativo entre o uso característico de certo grupo, mas também no domínio de um saber letrado que trapaceia a própria língua. Por isso, Eco (2003) diz que a literatura “mantém o exercício, antes de tudo, da língua como patrimônio coletivo”. Ela também contribui para a formação identitária e comunitária da própria língua, mantendo ainda particularidade sobre ela.
Na expressão do dizer pelas palavras, emergem construções sociais sobre a realidade, as relações, as pessoas. No âmbito da literatura, o “verdadeiro e o ficcional se fundem nos processos de criação de uma obra” (Andruetto, p. 109). É isso que notamos na produção bernardeana e nos diálogos estabelecidos sobre ela pelos participantes do estudo. Assim como Silva (1997) defende que a produção bernardeana confronta passado e presente pela junção entre memória cultural e ficção, na tentativa de projetar rumos outros no futuro, os sentidos produzidos pelos leitores rompem com o dado, com o então determinado. Os questionamentos levantados pelos leitores e a participação ativa deles na leitura dos contos expressam a forma como a leitura literária seduz, enriquece, amplia a possibilidade de participação do sujeito no mundo, mesmo que por outras lentes, por outras facetas da experiência. Situação que assegura o caráter formativo profundo da literatura, evidenciando a importância de seu lugar na escola e em outros tantos espaços de formação do leitor e constituição de cidadania.
REFERÊNCIAS
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Tradução Carmem Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
_____. A leitura, outra revolução. Tradução Newton Cunha. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 20017.
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra; Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fonte, 2003.
BERNARDES, Carmo. A ressurreição de um caçador de gatos. 2. ed. Goiânia: Editora UFG, 2013.
_____. Reçaga. 1. ed. Livraria Editora Araújo Ltda: Goiânia, 1972.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia. 4 ed. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2022.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras: al aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. [s.l.]: Paidós, 1997.
FLEURY, Bento. Carmo Bernardes. Diário da Manhã, 24 de março de 2015. Disponível em: https://www.dm.com.br/opiniao/2015/03/carmo-bernardes. Acesso em: 14 maio 2023.
GONÇALVES FILHO, Antenor A. Educação e literatura. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
LARROSA, J. La experiencia de la lectura: estúdios sobre literatura y formación. Barcelona: Laertes, 1996.
MELO, Orlinda Maria. Alfabetização e trabalhadores: o contraponto do discurso oficial. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Goiânia, GO: Editora da UFG, 1997.
OLIVEIRA, Antonio M. O mundo rural na literatura regional de Goiás e Tocantins. Baru, Goiânia, v. 2, n. 1, p. 93-111, jan./jun. 2016. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/baru/article/view/4882. Acesso em: 12 maio 2023.
ORTENCIO, Bariani. Centenário de Carmo Bernardes “o cientista do sertão”. In: Diário da Manhã, Caderno Opinião Pública, 16 de outubro de 2015, p. 4-5. ______. Sertão o rio e a terra. Rio de Janeiro: Ed. Livraria São José, 1959.
PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2013.
SANTOS, Márcia Pereira dos. Relembranças em minguante: interpretação biográfica da obra de Carmo Bernardes. 2007. Tese (Doutorado em História), UNESP, Franca.
SIMONSEN, Michèle. O conto popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
SILVA, Vera M. T. Apresentação. In: BERNARDES, Carmo. A ressurreição de um caçador de gatos . 2. ed. Goiânia: Editora UFG, 2013.
VEIGA, José J. Esses livros foram escritos para desassossegar. In: SOUZA, Agostinho P. Um olhar crítico sobre o nosso tempo (Uma leitura da obra de José J. Veiga. 1987. Dissertação (Mestrado em teoria literária) - Instituto de Linguagem da Unicamp, Campinas.
VALLS, Rosa; SOLER, Marta; FLECHA, Ramón. Lectura dialógica: interaccion es que maejoran y aceleran la lectura. Revista Iberoamericanda de Educacion, n. 46, p. 71-78, 2008. Disponível em : https://rieoei.org/historico/documentos/rie46a04.pdf. Acesso em: 14 maio 2023.
XAVIER, Vitor Hugo. Escritor Antonio Candido inaugura biblioteca do MST e fala da força da instrução. Carta Maior, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: https://www.assufrgs.org.br/2006/08/11/escritor-antonio-candido-inaugura-biblioteca-do-mst-e-fala-da-forca-da-instrucao/ Acesso em: 13 jan. 2023.
De acordo com a PPP (2005), as salas/turmas de extensões foram criadas para atender às especificidades dos educandos da EJA. A SME firmou parceria com instituições diversas, como INSS, Centro de Convivência de Idoso, e outras, que passaram a constituírem-se extensões das escolas municipais da RME de Goiânia.
A partir de 1999 houve a implementação da proposta de organização alternativa para o ensino fundamental de 1a a 4a séries em que turmas multisseriadas poderiam ser formadas juntas, isto é, poderia haver a junção de 1a e 2a séries, de 3a e 4a séries e, em casos extremos, de 1a a 4a séries, podendo, nesses casos, ocorrer em escolas, locais de trabalho ou espaços comunitários, sendo as aulas assumidas pelo professor da RME, funcionando como extensão de uma escola.
Base teórico-metodológica dessa atividade e que a diferencia das demais práticas de leitura: CREA. Comunidade de Pesquisa em Excelência para Todos. Disponível em: https://crea.ub.edu/index/about/ . NIASE. Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa da Universidade Federal de São Carlos-UFSCAR. Disponível em: https://www.niase.ufscar.br/. GABASSA, V.; MELLO, R. R. Comunidades de Aprendizagem: a construção da dialogicidade na sala de aula. Disponível em: http://comunidadesdeaprendizaje.net/wp-content/uploads/2012/04/TeseVG.pdf. . ARAÚJO, J. L. S. Tertúlia Literária Dialógica: desafios e contribuições para o ensino de adolescentes, jovens e adultos em Goiânia-GO. Disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/11235
“Carmo Bernardes foi um dos maiores regionalistas goianos e um dos nomes mais expressivos da literatura sobre o Cerrado. Era um doutor em sertão. Contista, cronista, romancista, crítico de arte. Fez seu nome no cenário das letras de Goiás. Carmo Bernardes nasceu em Patos de Minas, Estado de Minas Gerais em 1915 e faleceu em Goiânia em 1996, aos 81 anos de idade. Residiu em Formosa onde fez seus estudos, depois em Anápolis onde iniciou sua vida profissional como pedreiro e pintor, assim como redator de jornal. Trabalhou no serviço público. Foi contista, cronista, romancista. Membro da Academia Goiana de Letras. Recebeu prêmios internacionais de Literatura” (Fleury, 2015).
Os contos citados também se encontram em Bernardes (2013). Por isso, alguns excertos apresentam essa referência.