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Reflexões Sobre a Escola e o Ensino de Literatura Infantil

Débora Rodrigues de Almeida – PPGEEB-CEPAE/UFG
Vivianne Fleury de Faria – PPGEEB-CEPAE/UFG

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Introdução

A linguagem/comunicação literária possibilita a confrontação com a diversidade social e cultural, permite ao leitor que perceba a si mesmo como sujeito social, aquele que se constrói por meio das interações, que carrega as marcas e os enunciados de seu grupo, que influencia e é influenciado, que tem consciência de sua história e sabe que ela dialoga com outras histórias – aquele que não é visto como um produto da consciência individual, mas como um processo, sempre em construção, contraditório e aberto à mudança. Esse sujeito se reconhece como social porque conhece seu lugar, está preparado para entender e viver a sua época, pois sabe que as atividades humanas estão permeadas por jogos simbólicos que se dão através das linguagens e, na medida em que lê, decodificando o código escrito, compreende a necessidade de “ler” todos os símbolos, as situações, as pessoas, o mundo. Conforme Colomer (2007):

O objetivo da educação literária é, em primeiro lugar, o de contribuir para a formação da pessoa, uma formação que aparece ligada indissoluvelmente à construção da sociabilidade e realizada através da confrontação com textos que explicitam a forma em que as gerações anteriores e as contemporâneas abordaram a avaliação da atividade humana através da linguagem (2007, p. 31).

Este artigo dispõe sobre a relação entre escola e literatura infantil. Busca apresentar acontecimentos, pensamentos, concepções e ideais que marcaram, em especial, o século XVIII, e contribuíram para a modulação do conceito de infância, da escola e do gênero literário infantil tal como são conhecidos atualmente.

Regina Zilberman (1984; 2012) e Ligia Cademartori Magalhães (1984) afirmam que a escola de moldes burgueses e a literatura dirigida às crianças surgiram em decorrência da preocupação - fenômeno moderno - que se criou em torno da infância.

Os primeiros livros para crianças foram produzidos ao final do século XVII e durante o século XVIII. Antes disso, não se escrevia para elas, porque não existia a “infância”. Hoje a afirmação pode surpreender; todavia, a concepção de uma faixa etária diferenciada, com interesses próprios e necessitando de uma formação específica, só aconteceu em meio à Idade Moderna [...] (ZILBERMAN, 2012, p.34).

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Para as autoras, a origem da literatura infantil e da escola se confundem, mesmo sabendo que a primeira antecede o advento da segunda (ARROYO, 1968), sobretudo na literatura oral - histórias eram contadas para as crianças pelos adultos em todas as épocas. Contudo, no período em questão, a literatura infantil passou a ser usada a serviço da escola e ambas passaram a compartilhar as funções de instruir, educar, moralizar as crianças/alunos, tornando difícil separar literatura infantil de literatura escolar ou observar os pormenores que ora distanciam, ora aproximam a arte da palavra da instrução pedagógica.

A literatura infantil como seleção, publicação e distribuição de textos destinados à criança teve seu início vinculado à pedagogia. O aspecto meramente lúdico de um texto não justificava a sua publicação, apenas o critério de utilidade educativa legitimava a difusão de histórias infantis. Esse didatismo prepondera, maciçamente, até o surgimento de obras como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, A ilha do tesouro, de Robert L. Stevenson e as histórias de Mark Twain: As aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huclkeberry Finn. Com esses autores, o moralismo conformativo perdeu terreno, embora isso não tenha significado a remoção do jugo pedagógico a que estava submetida a literatura infantil. Exceções à parte, o predomínio dos objetivos pedagógicos não desapareceu, quando muito trocou de roupa, isto é, a preocupação pedagógica dessa literatura definida pelo seu destinatário é tão marcante que se torna, na maioria dos textos, indissociável dos demais elementos da composição [...] (MAGALHÃES, 1984, p.41).

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Lígia Cademartori Magalhães (1984) aponta para o perigo da pedagogização do gênero - situação em que os autores destinados ao público infantil escrevem para atender a um conjunto de interesses didáticos, normalizadores ou moralizantes - e alerta sobre o estreito vínculo entre literatura infantil e pedagogia, pois vê nessa relação um favorecimento para a criação e perpetuação de padrões e normas e, por conseguinte, o comprometimento do valor estético das obras.

É necessário, portanto, apontar as diferenças entre literatura infantil e literatura escolar. Nesse sentido,Leonardo Arroyo (1968) afirma ser necessário estabelecer limites entre os gêneros que, apesar de partilharem seu destino – ser lido por uma criança – divergem quanto à forma, essência e intenções formativas. Objetiva-se esclarecer esses limites entre literatura escolar e literatura infantil a fim de analisar suas funções, o papel que desempenham na escola e na sociedade.

A título de inquietação e reflexão, Ildeu Moreira Coêlho (2013) questiona: qual o sentido da escola? Para o filósofo, essa escola, da qual também falam Zilberman (1984, 2012) e Magalhães (1984), carrega vícios desde sua constituição e os vem reproduzindo até os dias atuais. Pensada em meio à Revolução Industrial, visava a atender aos interesses de ordem econômica e política, buscava o controle moral e intelectual dos alunos e, portanto, das futuras gerações. Sua função se alternava entre formar adultos trabalhadores (mão de obra) e “cidadãos” que contribuíssem para a manutenção do Estado e da máquina pública (pagadores de impostos) (ZILBERMAN, 2012). E o que será que mudou no século XXI?

Ademais, versa-se sobre os rumos da escola e do conhecimento. Coêlho (2013) chama atenção para o real sentido da escola, do conhecimento, das artes e linguagens e leva a refletir sobre a formação não somente do aluno, mas convida a pensar sobre a formação humana, do homem que vive em sociedade e se interessa pelo bem comum. Do homem que pensa, interroga, critica e não se conforma com nada, pois percebe a incompletude da vida, da ciência, dos saberes e de si mesmo, compreende o significado do conhecimento vivo e se vê em constante formação e transformação.

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A arte na escola: heranças e sentido

O modelo escolar tal qual é conhecido pode ser compreendido como fruto tanto dos anseios burgueses quanto dos iluministas do século XVIII, os primeiros pautados pela técnica, produtividade e pelo pragmatismo econômico, e os segundos, pela racionalidade e objetividade científicas da época. Para atender às demandas da sociedade na era moderna, a escola – encarregada oficial do ensino das crianças – teve que se adequar a fim de colaborar para a formação de um novo tipo de homem (ZILBERMAN, 2012): um homem moderno, que preza o conhecimento, a civilidade e o consumo. Difundiu-se e valorizou-se, nesse período, o pensamento de que as crianças deveriam ser mandadas à escola para serem formadas, educadas, instruídas e, assim, consequentemente, se tornarem pessoas melhores. Escola era sinônimo de proteção e segurança para as crianças, ou, pensando como Zilberman (2012), sinônimo de controle e isolamento.

Nesse contexto, não havia preocupação em promover a reflexão, o pensamento e os questionamentos. Havia pouco espaço para a criatividade e para o debate de ideias, condições essenciais, conforme Coêlho (2013), para a construção do conhecimento. O sentido da escola se resumia em “guardar” crianças e passar-lhes informações (ZILBERMAN, 2012). Perdida entre as preocupações cotidianas – métodos de ensino, burocracias, controle da disciplina dos alunos etc. –, a escola do século XVIII não cumpria o papel que deveria cumprir, i.e., o de educar e formar em sentido amplo o “novo homem”: aquele que pensa, que é racional, que é cidadão, que tem direitos e participa de várias formas da sociedade na qual está inserido (COÊLHO, 2013). Para o autor, a escola

Ao não se reconhecer nem se confirmar como instituição, ela desliza no operacional e, negando sua natureza, torna-se organização. A preocupação com seu quotidiano, estrutura, funcionamento, gestão e aspectos burocráticos; e o grande interesse pelo como deve acontecer o ensino e a aprendizagem e pelos resultados obtidos parecem falar mais alto que a dúvida, o questionamento e o pensamento. [...] A lógica pragmática e instrumental da organização supõe que, se a escola está funcionando bem, não há porque se preocupar com seu significado e finalidade [...] (COÊLHO, 2013, p. 62, grifos do autor).
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A escola contemporânea, herdeira de tantos valores e conquistas, moldada no “seio” de revoluções históricas, influenciada por princípios fundamentais, como os da república e da democracia, pouco conseguiu compreender de seu sentido e continua, em alguns aspectos, reproduzindo mitos a respeito do conhecimento e da aprendizagem. Moldada também por vícios e contradições em sua essência e história, prossegue reduzindo o saber à informação, verdade pronta, produto e mercadoria a serem transmitidos aos alunos (COÊLHO, 2013).

Assim como o conhecimento científico, o conhecimento advindo da literatura é, na maioria das vezes, apresentado aos alunos como algo pronto e imutável – não se questiona sua gênese, pouco menos se debate sua forma. As telas, esculturas ou letras se somam, como nomes e números, aos conteúdos curriculares e, portanto, expõem as dificuldades para provocar a sensibilidade, a imaginação e a reflexão dos estudantes. O conhecimento poderia ser abordado como construção, algo que foi criado, cultivado e, pois, passível de crítica e interrogações, porque é algo vivo, incompleto, imperfeito e em constante transformação.

No caso da literatura infantil, quando abordada em situação de ensino, carece de ser apresentada como conhecimento vivo, que transforma, que provoca, que estabelece relação com o seu leitor, impossível de se mensurar totalmente. Carregada de linguagem e recursos próprios, a obra literária infantil é, de certa forma, suscetível à participação do leitor mirim, que, ao lê-la, acaba por atribuir-lhe diversos significados. Ao interagir com o texto propriamente literário, as crianças estabelecem uma espécie de comunicação, troca dialógica com ele (BAKHTIN, 2010). Por não ser algo pronto e inacabado, é passível de ser preenchido, ou seja, por não ser coisa, produto ou simplesmente resultado, é carregado de lacunas, espaços vazios a serem ocupados por dúvidas, inquietações, angústias.

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O gênero literário, assim como outros gêneros do discurso, é carregado de enunciados ambíguos – sentidos, intenções comunicativas (BAKHTIN, 2010). Supõe a participação do leitor (receptor), pois é posto para provocar em alguém alguma atitude. Quando se reage à leitura de um texto, estabelece-se uma comunicação com ele, participando de sua composição como uma espécie de coautor. No processo de comunicação dialógica, o leitor é instado a participar da construção de sentidos no texto, tornando-se também responsável pelo ato comunicativo em questão.

[...] Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante [...] (BAKHTIN, 2010, p. 271).

Os saberes, assim como acontece nas artes e na literatura – supõem a participação do leitor, ouvinte e espectador –, devem ser apresentados aos alunos “como realidade cultural, interrogação, pensamento, compreensão, criação [...]” (COÊLHO, 2013, p. 69) para que estes possam se sensibilizar, possam despertar para a criação e superar a mera reprodução de informações. “Ao provocar a inteligência dos estudantes de todas as idades e condições socioculturais, porém, a aula torna-se um pensar alto diante dos alunos” (COÊLHO, 2013, p. 74). Quando a escola compreende que o importante no ensino não é o conteúdo, a informação ou a novidade, mas o sentido, pressupostos e implicações do que é feito e lido em seus espaços, começa a criar possibilidades para a transformação dos educandos, respeitando-os como seres inteligentes, colaborando para uma formação crítica e humanizada, capaz de influir em todos os aspectos da vida em sociedade.

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A formação do leitor literário

A formação crítica e humanizadora pode despertar na criança a capacidade de se colocar no lugar do outro, de enxergar além de si mesma: a empatia. Possibilita pensar e preocupar-se com o coletivo e o bem comum, a partir de um embasamento lógico simples: desejar para as outras pessoas aquilo que se deseja e se idealiza para si próprio. Esta seria uma característica exclusiva dos seres humanos, pois, não agindo apenas por instinto – como os animais –, o homem consegue estabelecer relações de convivência e reciprocidade.

A busca por essa formação poderia ser uma constante nas civilizações, pois é isso que, de fato, torna as pessoas seres humanizados e não somente seres humanos enquanto espécie – homo sapiens. Seria possível primar por aquilo que é público, que é do interesse de todos, porque as ações, o comportamento e as ideias de um indivíduo refletem ou afetam o modo como pensam, falam ou agem outros indivíduos. Realmente, mesmo com todas as suas particularidades, as pessoas estão sempre, de uma forma ou de outra, estabelecendo relações umas com as outras.

Vale ressaltar a contribuição das artes e da literatura para a formação das crianças e da sociedade. “As obras de cultura se constituem como atos que conferem sentido ao mundo, à vida, à ação social e individual [...]” (COÊLHO, 2009, p.183, grifos do autor). Enquanto conhecimento vivo, a literatura infantil não pode ser resumida à literatura escolar, não pode ser meio de transporte para conceitos e informações, fazendo-se necessário, portanto, reivindicar o seu viés artístico.

Ao observar a literatura como um direito de todo cidadão, bem incompressível, agente de humanização (CANDIDO, 2011), compreende-se o papel necessário do texto literário no âmbito formativo das crianças. Contudo, a abordagem da literatura se dá através da leitura de textos artísticos, necessariamente completos, que não é possível substituir o texto literário por fragmentos de textos ou por nenhum outro gênero não literário. A obra literária atinge e impressiona de maneira única, dado que apresenta estrutura e organização para isso. Quanto a isso, Ceccantini(2011) afirma:

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Quem se vê na posição de mediador de leitura tem por dever ser bastante exigente e seletivo nos títulos que indica, não se deixando satisfazer com textos banais, didatizados, simplificadores, feitos de encomenda pelo mercado para atender a esta ou aquela faixa etária, a esta ou aquela série escolar, a este ou aquele tema da moda, por inserir-se nas diretrizes educacionais A, B ou C. É preciso não ter medo de colocar nas mãos das crianças, o quanto antes, textos literários densos, de maior complexidade, de ampla envergadura, textos cuja leitura deixe marcas profundas na personalidade de quem os lê (CECCANTINI, 2011, p. 119).

A obra literária como objeto estético, construção artística carregada de simbologia, apresenta-se como uma estrutura poderosa na propagação de conhecimentos inerentes à vida humana. Capaz de contribuir para a ampliação da percepção de mundo, é indispensável ao processo de formação que constitui as pessoas enquanto seres humanos. O texto literário permite que o leitor vivencie, através de sua forma e sentido, diferentes sensações e sentimentos e, por meio da história e da linguagem, possibilita que experimente realidades diferentes das que vive.

Nesse sentido, infere Todorov (2009) que a literatura ensina a viver, pois tem potencial para tornar os sujeitos mais sensíveis e próximos de seus semelhantes. Enquanto obra de cultura, provoca angústia ou paz por intermédio do que apresenta, desperta o senso crítico e o aguça para o levantamento de debates que permeiam a existência humana. Enquanto conhecimento humano:

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro [...] (TODOROV, 2009, p. 76).
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A formação leitora, assim como todas as formações, é contínua. O leitor, o cidadão, o ser humano estão sempre em formação. A sociedade que desqualifica a educação reduzindo o conhecimento à informação e o ensino a métodos, recursos ou técnicas não promove o pensamento e a reflexão inerentes aos processos formativos contínuos. Conforme Coêlho (2009; 2013), ao pensar e refletir, o aluno desenvolve sentimentos de inquietude, percebe sua condição de incompleto e, igualmente, busca por respostas, complementação e, concomitantemente, mudança.

Ademais, para que a literatura cumpra seu papel vital é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso (TODOROV, 2009). Seja através da leitura, de debates ou da realização de atividades, a tarefa da escola deve ser a de proporcionar aos alunos o acesso aos sentidos do texto literário: se ele vai instruir, moralizar, educar, transformar, dependerá da relação que se estabelecerá entre texto e leitor, vez que, conforme Todorov, “cabe ao leitor tirar de um livro a moralidade ali presente” (2009, p.85).

A Escola e o ensino de literatura infantil

Conforme Zilberman (1984; 2012), as histórias destinadas exclusivamente às crianças surgiram em um contexto de ascensão da família burguesa, de redefinição do status concedido à infância na sociedade, e de reorganização da escola. A emergência de uma literatura direcionada aos leitores mirins está associada à pedagogia, visto que a preocupação com a infância na Idade Moderna se transformou em mecanismo de controle de tudo aquilo que a ela se destinasse (ZILBERMAN, 1984; 2012) e várias foram as “ferramentas didáticas” utilizadas na escola para a “proteção infantil”. Nos livros, o que se via eram histórias elaboradas para serem convertidas em instrumento da nova instituição de ensino, a escola, que deveria zelar pela formação moral e intelectual de seus alunos.

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Devido ao contexto em que surgiu, a literatura infantil careceu, por muito tempo, de um estatuto artístico e de um reconhecimento em termos de valor estético (ZILBERMAN, 1984). No Brasil, pouco compreendida enquanto arte, foi, em sua gênese, denominada de literatura escolar (ARROYO, 1968), acreditando-se que as narrativas infantis, como os contos e as fábulas, deveriam, por regra, possuir cunho pedagógico.

Ainda conforme Arroyo (1968), sempre existiu literatura. Desde as primeiras civilizações se produzia, se escrevia, se contavam e recontavam histórias. No entanto, às mesmas histórias às quais os adultos tinham acesso, também tinham as crianças. Existia literatura, mas não existia literatura pensada para um destinatário exclusivo. As crianças liam e ouviam diversas narrativas, não importava o que estas abordavam: de Homero, com a Ilíada e a Odisséia, a Deföe, com o universal Robinson Crusoe, passando por Fontaine e suas fábulas, Perrault e seus contos. É a partir de Fénelon (1651-1715) e dos irmãos Grimm (1785-1859) que se começa a falar em histórias e leituras para as crianças (ARROYO, 1968). Contudo, tais escritos carregavam tanta qualidade literária que eram apreciados por todas as faixas etárias, pois encantavam tanto os pequenos quanto os adultos.

Um dos problemas da literatura infantil a partir do século XVIII, quando já organizada e escolarizada, residiu no fato de que os autores passaram a escrever para alunos e não para crianças, afastando-se, portanto, ao que parece, da concepção ampla de literatura e, com isso, deixando de promover o papel provocador, sensibilizador e crítico das obras literárias. As viagens de Gulliver, de Jonathan Swiff; Aventuras de Pinóquio, de Carlo Lorenzini; e A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson são obras que formaram gerações de crianças e adolescentes e ainda continuam formando, porque possuem características bastante peculiares: são leituras que permitem imaginar, apelam à fantasia e ao humor e trazem conhecimento de mundo através das vivências de seus personagens, diferentemente da literatura escolarizada, em que ficam explícitos os objetivos pedagógicos e moralizantes no enredo, no perfil e na fala dos personagens.

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Em uma obra literária, o autor deve priorizar a “forma”, ou seja, a qualidade estética intrínseca a qualquer tipo de arte, e não o conteúdo moralizante (CANDIDO, 2011).Em literatura o “o quê” e o “para quê” devem estar submetidos ao “como”. A “arte da palavra” deve ser lida enquanto criação, construção, composição e não apenas pelo assunto que apresenta – ela não atua nos leitores apenas através do tema. O efeito das produções literárias, conforme infere Candido (2011), se dá através da ação simultânea de três aspectos:

[...] Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos com estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente (CANDIDO, 2011, p.178-179).

Portanto, as crianças podem “aprender” bastante através da literatura, muito embora o processo de uma aprendizagem com ela seja diferente. A literatura proporciona ao leitor conhecer diferentes culturas e realidades através de uma narração bem como experimentar diferentes sentimentos quando o leitor se identifica e se emociona com uma personagem. Não é necessário pedagogizar a obra literária infantil afastando-a de seu viés artístico e literário, pelo contrário, ao priorizar o aspecto didático da escrita, subtrai-se, necessariamente, o seu caráter artístico. A serviço da pedagogia já existem os livros didáticos e paradidáticos, que enfocam conteúdos, conceitos e explicações.

A literatura escolarizada está muito presente no cotidiano das instituições de ensino no Brasil. Em sua grande maioria, no entanto, são ficções que se valem de elementos fantasiosos/maravilhosos, mas com narrativas mal construídas do ponto de vista estético – para dizer o mínimo. No desenrolar dos acontecimentos, tudo culmina em uma “lição”, um “ensinamento” e, normalmente, o conflito é resolvido sem muita coerência, como se os autores subestimassem a inteligência do leitor infantil. Passa-se a impressão de que, por serem feitas para crianças, não carecem de qualidade literária. “A preocupação pedagógica dessa literatura definida por seu destinatário é tão marcante que se torna, na maioria dos textos, indissociável dos demais elementos da composição” (MAGALHÃES, 1984, p. 41). A exemplo estão as obras: Imagens do Sertão, de Cristina Porto; Aventuras de uma gota d’água, de Samuel Murgel Branco; Chico Papeleta e a reciclagem de papel, de Nereide Schilaro Santa Rosa, etc. São praticamente paradidáticos disfarçados e são tratados nas escolas por literatura infantil.

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É mister, logo, refletir sobre um redirecionamento para o ensino de literatura na escola, principalmente por esta ser um local privilegiado para a leitura. Não se pode separar literatura infantil da instituição escola, que hoje encontram-se atreladas no processo de formação da criança/aluno (ZILBERMAN, 2012). A escola é, geralmente, o espaço em que as crianças têm maior acesso ao livro, muitas vezes o único, seja ele de qualquer espécie. Portanto, é de suma importância refletir sobre as leituras ofertadas. No tocante ao livro literário, é preciso evitar que seja substituído por outro, que perca seu espaço na sala de aula ou na biblioteca, vez que cada tipo de leitura carrega consigo um sentido, uma importância, e cada qual tem o seu papel e deverá, portanto, ter o seu espaço:

Tal decisão por uma mudança de rumos implica algumas opções por parte do professor, de um lado, pela escolha do texto e, de outro, pela adequação deste último ao leitor. Dessa maneira, as fronteiras se estendem da valorização da obra literária à relevância dada ao procedimento da leitura (ZILBERMAN, 2012, p. 184).

Existem possibilidades para que a gênese pedagógica da literatura infantil seja superada. Se aproveitada na sala de aula em sua natureza ficcional, que aponta a um conhecimento “de mundo” e “de ser”, a leitura literária pode apresentar-se como elemento propulsor que levará à transformação da escola, tida como contraditória e tradicional (ZILBERMAN, 2012). Ao levar os alunos a refletir, indagar e se colocarem no lugar do outro, a literatura desperta o senso crítico, tão almejado pelos teóricos e educadores e ainda tão distante da realidade escolar. É preciso repensar a abordagem do livro literário infantil, comprometer-se com a relação que este estabelece com o seu leitor. Para tanto, necessita-se de tempo e espaço adequados destinados à leitura literária nas escolas, bem como investimento na formação de professores de todas as fases da Educação Básica.

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Para que isso aconteça, primeiro é preciso haver mudanças nas concepções de educação e formação humanas, o que significa, por extensão, entender que tipo de sujeito e sociedade se deseja formar e construir. Tais ideais influenciam em escolhas significativas dentro das escolas e definem como os saberes e conhecimentos são abordados – o que se ensina, como se ensina, quanto tempo é destinado a determinada prática educativa –; passam pela noção do que a escola considera como importante ou significativo para a formação do educando.

Sabe-se que a organização do trabalho pedagógico na maioria das escolas ainda carrega heranças de uma concepção de educação e sociedade marcadas pelo racionalismo e pelo pragmatismo. Sendo assim, observa-se a divisão e, concomitantemente, a priorização de determinadas disciplinas ou saberes e a marginalização de outros. Nesse contexto, há pouco tempo e espaço para a linguagem poética e, por consequência, para a formação do sujeito social defendido por Colomer (2007) e que sabe ler para compreender, ser e estar no mundo.

Conclusão

O ensino de literatura predispõe de condições básicas que, por vezes, faltam nas escolas. É importante a mobilização para a criação de bibliotecas e diferentes ambientes de leitura, bem como investimento em acervos de qualidade. Ademais, as bibliotecas precisam contar com o trabalho do profissional bibliotecário.

Garantidos o lugar e o tempo da leitura literária nas escolas, também é essencial que os educadores saibam o que fazer com a literatura. Sendo assim, necessitam desenvolver competências específicas e possuir alguns conhecimentos determinados que tornem possível a seleção e a interpretação das obras literárias no seio de sua cultura. Desse modo, carecem de formação sólida e ampla, que lhes subsidiará a atuar na formação do leitor literário.

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Conforme Suanno (2009), para além da formação profissional no espaço acadêmico, é relevante ampliar os referenciais culturais dos professores. A autora destaca a necessidade de uma formação cultura a ser incentivada/oferecida nas universidades, e defende ser indispensável refletir com os docentes acerca do valor da cultura na vida de todas as pessoas. Portanto, considera fundamental que os futuros professores estejam inseridos em uma instituição que lhes possibilite, além do ensino de qualidade, com profissionais qualificados (mestres e doutores), a oportunidade de participar de atividades culturais, tais como: leituras, filmes, shows, museus, teatros, exposições; bem como o envolvimento em pesquisas, seminários, grupos de estudo, intercâmbios, política de monitoria, cursos de extensão, palestras, debates, atividades esportivas, cursos de pós-graduação – a fim de contemplar uma formação mais humana, ética e cidadã que abarque as experiências estéticas da vida e acesse o subjetivo e o afetivo do ser humano: uma formação para o“sentipensar”.

A partir do envolvimento com a obra, sua narrativa e ilustrações, os leitores podem experimentar a sensibilidade estética, a vivência de se colocar no lugar do outro, o que proporciona uma reorganização dos olhares, posicionamentos, preconceitos. Candido (2011), ao escrever sobre o direito à literatura, conclama a possibilidade de mantermos o equilíbrio pessoal e social por meio do texto literário, assim como Morin (2009), ao explicitar que a literatura é capaz de ampliar o domínio do dizível. Ambos deixam a lição de que esta é capaz de nos servir como verdadeira escola de vida, pois nos possibilita ver o outro como sujeito.

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Referências

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BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In:______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In:_______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

CECCANTINI, João Luís. Literatura infantil - a narrativa. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prograd. Caderno de formação: formação de professores didática geral. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.

COÊLHO, I. Cultura, educação e escola. In:. (Org.) Educação, cultura e formação: o olhar da filosofia. Goiânia: Editora da PUC Goiás,2009.

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COLOMER, Teresa. Andar entre livros. A leitura literária na escola. Tradução: Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007. Edição PNBE do professor, 2013.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

SUANNO, Marilza Vanessa Rosa. Formação cultural de professores: conhecimento e sentipensar. IX Congresso Nacional de Educação – EDUCERE. III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia. Paraná, outubro, 2009.

TODOROV, Tzvetan. O que pode a literatura?. In:_______. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura infantil na escola. 1 ed. digital. São Paulo: Global, 2012.

ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Lígia Cademartori. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação. 2 ed. São Paulo: Ática,1984.