Home

Narrativas Infantis e Formação do Leitor Literário no Primeiro e Último Ano dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental

Denise Cristina Camilo de Lima (PPGEEB/ CEPAE/UFG)
Célia Sebastiana Silva (CEPAE/UFG)

pag.114 próxima página

Introdução

Segundo Coelho (2000), a literatura infantil exerce uma função ímpar como agente transformador da sociedade, ao estabelecer a relação leitor/livro e leitor/texto como o auxílio essencial da escola. Corroborando esse pensamento é que se justifica este artigo de apresentação da pesquisa ainda em andamento intitulada “Narrativas infantis e formação do leitor literário nas séries inicial e final do Ensino Fundamental I”, pois reafirma a importância da literatura infantil no processo de formação da criança como leitor literário e na sua constituição como sujeito. Outra justificativa tange o interesse de se ressaltarem as possibilidades de mediação/diálogo que as narrativas infantis oferecem à formação do leitor literário na roda de análise que considera os sujeitos. Também, refere-se ao desejo de apresentar um produto educacional de pesquisa aplicável em sala de aula, visando à melhoria do ensino na Educação Básica.

A definição do tema da pesquisa parte da reflexão feita sobre um problema evidenciado na realidade de uma escola da rede pública de ensino, que se refere à ausência da prática de leitura literária pelos alunos, provavelmente devido ao pouco estímulo recebido tanto no âmbito escolar quanto no familiar. Azevedo (2004, p.38) já nos orienta sobre essas questões, ao afirmar que muitas crianças, infelizmente, não recebem, tanto dos pais quanto dos professores e da sociedade, o contato e o acesso à leitura. Assim, terão menos condições de se tornarem leitoras e adquirirem interesse pela literatura.

A partir dos dados do insatisfatório índice da população não leitora no Brasil, de 44% (Retratos da Leitura no Brasil, 2016, p.38), e, de posse da crença nos prejuízos que a ausência da prática de leitura pode vir a acarretar no desenvolvimento cognitivo, emocional, social e na aprendizagem da criança, surgiram algumas inquietações e, junto a elas, as seguintes perguntas: “Por meio da mediação de narrativas infantis, é possível formar o gosto pela leitura?” “Como uma mediação de leitura de narrativas infantis, no primeiro e quinto anos do Ensino Fundamental - anos iniciais, pode contribuir para a formação do leitor literário?” Nessa lógica, a pesquisa tem como objetivo verificar como se dá a mediação de leitura de narrativas infantis nas etapas de ensino citadas e de que modo ela contribui para a formação do leitor literário.

página anterior pag.115 próxima página

A pesquisa vem se apoiando na teoria sociocultural de Vygotsky e em renomados referenciais teóricos da educação. As discussões propostas se estruturam em três partes.

A pesquisa-ação, de abordagem qualitativa, que tem como campo de pesquisa a escola da rede pública de ensino do município de Inhumas - GO. E, como participantes diretos, os alunos do 1º e 5º anos do Ensino Fundamental - anos iniciais, escolha definida pela possibilidade de se estabelecer um paralelo comparativo entre as duas turmas para perceber a trajetória leitora da criança nessa etapa.

Ainda, tem como técnicas básicas para a coleta e interpretação dos dados: a aplicação de questionários (docentes e discentes); a produção e aplicação de uma sequência didática com as literaturas infantis: O que os olhos não veem, de Ruth Rocha; A princesa que escolhia, de Ana Maria Machado e Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof; a observação participante; e a utilização de estratégias de extensão de incentivo às famílias para a prática da leitura.

O produto educacional da pesquisa, incorporando a sequência didática e o relato fundamentado da experiência ainda em andamento, busca cumprir com o compromisso político e educacional de deixar para outros profissionais uma ferramenta que possa contribuir com a melhoria do ensino da Educação Básica, ou seja, pretende-se, ao final dos trabalhos, disponibilizar o material na plataforma digital “Medium.com”, para que ele possa ser acessado por quem por ele se interessar.

O olhar para a compreensão de infância e literatura infantil

Segundo Cadermartori (2010, p. 24), “Se o homem se constitui à proporção da formação de conceitos, a infância se caracteriza por ser o momento basilar e primordial dessa constituição, e a literatura infantil pode ser um instrumento relevante dele”. Esse olhar atento da escritora sobre a existência de uma relação entre a constituição da criança como sujeito e a literatura infantil reforça a importância da discussão dos temas em questão, constatada na história da humanidade. Segundo Colomer (2003), em conformidade com a ideologia burguesa da sociedade, a princípio, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Porém, no século XVII, com a valorização da família pela sociedade assiste-se a uma mudança na forma de tratar a criança, que começa a receber uma atenção diferenciada. Em consequência, ocorre o surgimento da concepção de infância “[...] com o reconhecimento e a legitimação de algumas necessidades infantis diferenciadas em relação aos adultos” (COLOMER, 2003, p. 160).

página anterior pag.116 próxima página

Ainda, segundo Colomer (2003, p. 160), de forma inter-relacionada ao acontecimento anterior, dá-se o subsequente afloramento da premência de se produzir “[...] uma literatura específica para os primeiros anos de vida e sobre a função educativa”. Esta intenção utilitária definida na gênese da obra da literatura infantil ainda persiste nos tempos atuais, tanto que acaba por tolher a condução que ela permite ao leitor de obter conhecimento do homem e da sua realidade contextual, ou seja, de cumprir com o objetivo da literatura de acordo com Todorov (2010, p. 86): o de “[...] representar a existência humana”.

A formação do leitor literário

A capacidade de atuação da literatura infantil na formação do leitor literário, de acordo com Zilberman (2003, p. 46), “[...] dá-se dentro de uma faixa de conhecimento, não porque transmite informações e ensinamentos morais, mas porque pode outorgar ao leitor a possibilidade de desdobramento de suas capacidades intelectuais”. Fanny Abramovich (1993) certifica o poder da prática da literatura infantil no processo da formação integral da criança, que ocorre de forma natural e prazerosa, sem o rigor das exigências, na seguinte frase: “Quando uma criança escuta a história que lhe conta penetra nela simplesmente, como história. Mas existe uma orelha detrás da orelha que conserva a significação do conto e o revela muito mais tarde” (ABRAMOVICH, 1993, p. 24). Portanto, torna-se relevante ressaltar que é nesse processo contínuo que a criança vai se constituindo e tornando-se conhecedora do mundo e da sociedade que integra.

Na seleção do livro literário, é imprescindível considerar, segundo Zilberman (1982, p.26), aquela “[...] criação que tem índole edificante”, “qualidade estética” e “aspecto inovador”, sendo este último “[...] o ponto de partida para a revelação de uma visão original da realidade, atraindo seu beneficiário para o mundo com o qual convivia diariamente, mas que desconhecia”. Nesse sentido, Todorov (2010, p. 76) afirma que a literatura liberta, pois nos faz “[...] compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver”.

página anterior pag.117 próxima página

Daí a importância da efetivação da leitura literária na escola e do papel do professor no processo de descoberta do prazer pela leitura e saberes que a literatura infantil é capaz de proporcionar, por meio da “[...] percepção dos temas e seres humanos que afloram em meio à trama ficcional” (ZILBERMAN, 2003, p. 29). Assim sendo, ressalta-se a necessidade do rompimento com a forma tradicional das práticas de escolarização da leitura literária, que acabam por didatizar os textos e, ao fazerem isso, deixam de valorizar, nas relações entre o texto e o contexto, “[...] as múltiplas visões que cada criação literária sugere” (ZILBERMAN, 1982, p. 28) e a “[...] compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica” (FREIRE, 1992, p.11-12).

Essa relação entre texto e contexto se complementa na relação dialogismo e intertextualidade e é ressaltada na discussão sobre a formação do leitor, tendo, nas contribuições teóricas de Bakhtin (2003), a explicação de que todo texto é voz que dialoga, que produz sentido numa situação de interlocução entre leitor e produção linguística, num processo de comunicação ininterrupto que se apresenta relacionado a diversificados contextos. Ressalte-se, portanto, a importância do processo de comunicação viva na formação do leitor literário, cuja função é “[...] propiciar determinadas experiências com a linguagem e com os sentidos – no espaço de liberdade que só a leitura possibilita, e que instituição nenhuma consegue oferecer” (CADERMATORI, 2010, p.09), i.e. uma experiência estética de construção de repertório, que possibilita à criança trazer para si um universo a mais de ideias, palavras e emoções, para além daquele que ela já está construindo nas suas interações com o meio social. Um alargamento de horizontes que a literatura infantil realiza voltada para a cultura, ou seja, para o “[...] ‘conhecimento do mundo e do ser’, como sugere Antônio Candido, o que representa um acesso à circunstância individual por intermédio da realidade criada pela fantasia do escritor” (ZILBERMAN, 1982, p.25-26, grifo da autora).

página anterior pag.118 próxima página

Resultados

Por hora, conforme já dissemos, a pesquisa está em andamento. Contudo, as perspectivas de resultados promissores já se fazem perceptíveis na ação de planejar o trabalho com a sequência didática que propõe uma interação verbal com as narrativas infantis das três renomadas escritoras, conforme Busatto (2006, p.76), mediante a experiência estética que envolve “Narrado, narrador e ouvinte: três momentos de um mesmo jogo de encantamento e prazer”. Assegura-se, nessa proposta de vivência literária, na roda de leituras, a circulação intersubjetiva dos textos de literatura infantil. Então, com a participação e o posicionamento de “todos” os envolvidos dentro de uma experiência estética, deverão ser priorizados a construção e o aprimoramento, através da leitura literária, da capacidade aberta e crítica de cada um.

Nesse processo, tem sido possível constatar a efetivação do objetivo da pesquisa: visualizar a forma como se dá a mediação da leitura de narrativas infantis nas turmas do primeiro e quinto ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental e suas contribuições na formação do alunado enquanto leitor literário. O paralelo comparativo entre as duas turmas do primeiro e quinto anos intenciona reforçar a convicção de que a formação do leitor literário deve ser pensada desde o início do ingresso escolar e para além dos anos subsequentes. Assim sendo, prioriza um processo dinâmico e contínuo que valoriza o trabalho com a mediação de narrativas infantis, visto que as “[...] histórias existem para serem contadas, serem ouvidas e conservarem aceso o enredo da humanidade” (BUSATTO, 2006, p. 17).

Nesse sentido, a efetivação da pesquisa se solidifica pela ação estimuladora e motivadora da prática de leitura literária tanto no âmbito educacional, com a realização da experiência estética, quanto no familiar, com a extensão da prática de leituras. E, como resultado, pretende-se a possibilidade da obtenção da elevação do índice da população leitora no Brasil.

página anterior pag.119

Conclusão

O artigo intenta mostrar, na comprovação do poder da experiência estética com o corpus literário da pesquisa em andamento, que as narrativas infantis trazem contribuições tanto à formação do leitor literário quanto à constituição da criança como sujeito. Elas propiciam a criação do prazer pelas leituras literárias, o alargamento de horizontes de conhecimento sobre o mundo, a construção do repertório de linguagem e das capacidades aberta e crítica para atuar junto à sociedade e “vivermos dialeticamente os problemas”. (CANDIDO,1970, p. 177).

Por fim, torna-se importante ressaltar que a coleta de dados da pesquisa ainda não foi concluída. Mas já se pode afirmar que “O segredo do poder da história é a compreensão essencial de que o importante não é o que acontece na história. O que vale é o que acontece dentro de nós, que a ouvimos” (SIMMS, 2004, p.64 apud BUSATTO, 2006, p.75).

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 1993.

AZEVEDO, Ricardo. A formação de leitores e razões para a literatura. In: SOUZA, Renata Junqueira de. (Org.). Caminhos para a formação do leitor. 1ed. São Paulo: DCL, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BUSATTO, Cléo. A arte de contar histórias no século XXI. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2006.

CADEMARTORI, Ligia. O que é Literatura Infantil? 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 2010.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.

FAILLA, Zoara. Retratos da leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2016. Disponível em: . Acesso em: 17 de abril de 2019.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1992. (Coleção Polêmicas do nosso tempo)

MACHADO, Ana Maria. A Princesa que escolhia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

ORTHOF, Sylvia. Maria vai com as outras. São Paulo: Ática, 2005.

ROCHA, Ruth. O que os olhos não veem. São Paulo: Moderna, 2012.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 3ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura infantil na escola. 2ª ed. São Paulo: Global, 1982/2003.