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Escola, Democratização da Leitura e Poesia em Corpo e Voz

Célia Sebastiana Silva (Cepae-UFG)
Ilma Socorro Gonçalves Vieira (Cepae-UFG)
Pitias Alves Lobo (Cepae-UFG)
Vivianne Fleury de Faria (Cepae)

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Considerações iniciais

O conceito de escola, polêmico por natureza, apresenta uma fratura histórica quanto ao seu papel em uma sociedade desigual, injusta e classista. Busca-se, neste artigo, discutir o ideário de Antonio Gramsci, intelectual e marxista revolucionário, crítico e vítima do fascismo italiano, sobre uma proposta de escola unitária, cujo processo educativo não depende da distinção de classes sociais nem da ruptura entre o pensar e o fazer da concepção neoliberal. Antes, a formação do intelectual deve se voltar para uma educação ampliada (omnilateral), integral, humanizada e que tenha o trabalho como princípio educativo.

Demonstrados os fundamentos do conceito de escola unitária proposta por Gramsci (2001) no campo da educação, será feita uma articulação de tal conceito com as possibilidades de se discutir a ação escolar por meio do trabalho com a leitura literária, em específico com a leitura de poesia, vez que, dentre os bens simbólicos disponíveis no universo da cultura literária, o texto poético costuma ser o menos privilegiado, principalmente no âmbito escolar. À medida que contribui para o desenvolvimento do senso crítico e criativo, ético e estético do indivíduo em toda a sua amplitude, a leitura de poesia pode promover uma ressignificação no modo de se relacionar com o conteúdo escolar e uma mudança do aluno de um estado de passividade diante das aulas dadas para uma participação mais ativa, autônoma e emancipatória, desde que conduzido, orientado e mediado em suas ações, como, de fato, se requer no chamado protagonismo escolar.

A escola na modernidade, a formação dos intelectuais e a defesa de um modelo de escola

A escola, em todos os seus níveis, incluindo os estudos universitários, produz a sua “plêiade” de intelectuais. Na modernidade, isso assume um papel expoente, pois essa instituição assumirá os princípios educativos que, hegemonicamente, irão ensinar, reproduzir, instrumentalizar e formar o “novo homem” diante dos signos do capital, ou seja, a eficiência, a eficácia e a produtividade necessariamente precisam da domesticação dos corpos e de uma práxis societária dos sujeitos produtores da riqueza (os trabalhadores) para definir funções hierarquicamente conduzidas para aqueles que “pensam” e para aqueles que “fazem”. Em contraposição, para Gramsci (2004), todos os homens, mesmo no mais simples trabalho manual, são, em potência, intelectuais, mas nem todos têm, na sociedade, a função de intelectuais, ou seja, objetivam e exteriorizam uma forma de ser social e de existir na vida real.

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Não obstante essa constatação, os conteúdos concernentes ao espaço escolar advêm da vida real, do trabalho objetivado e das necessidades de operar, gerar, produzir e reproduzir um determinado tipo de homem na sociedade, mas também é responsável pela formação dos “novos intelectuais” que irão “governar” a vida. Em razão disso, é importante destacar, também, a relação domínio-hegemonia dentro dos grupos sociais fundamentais. Nesse sentido, Gramsci (2004, p. 18) assevera:

[...] assim como se buscou aprofundar a "intelectualidade" de cada indivíduo, buscou-se igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá-las. Isso resulta das organizações escolares de graus diversos, até os organismos que visam a promover a chamada "alta cultura", em todos os campos da ciência e da técnica. A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto mais extensa for a “área” escolar e quanto mais numerosos forem os “graus” “verticais” da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado.

A constatação de que a Escola produz os seus próprios intelectuais desenvolve a ideia em rota de coerência gramsciana com as postulações marxianas na assertiva de cada qual segundo a sua capacidade e cada qual conforme as suas necessidades (MARX, ENGELS, 2007). Diante disso, a preparação dos grupos de intelectuais está relacionada a uma perspectiva omnilateral - a articulação de todas as capacidades humanas e integradas ao saber fazer e ao fazer sabendo e da direta ruptura com a unilateralidade e a divisão do trabalho manual com o intelectual. Essas considerações não excluem, evidentemente, as habilidades/capacidades subjetivas, particulares e singulares dos sujeitos educados/educandos para determinados trabalhos na sociedade. Nesse sentido, Gramsci (2004, p. 19-20) discorre: “À mais refinada especialização técnico-cultural, não pode deixar de corresponder a maior ampliação possível da difusão da instrução primária e o maior empenho no favorecimento do acesso aos graus intermediários do maior número”.

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É importante salientar que cada país, região ou povoado, a partir de sua inserção histórico-cultural, desenvolverá os seus intelectuais e as suas gradações articuladas com a produção material e cultural de seu contexto. Cabe ressaltar também que “A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada” (GRAMSCI, 2004, p. 20). Essa mediação decorre dos criadores aos administradores da educação como pode ser constatado no postulado gramsciano:

[...] no mais alto grau, devem ser postos os criadores das várias ciências, da filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os mais modestos “administradores” e divulgadores da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada. O organismo militar, também neste caso, oferece um modelo destas complexas gradações: oficiais subalternos, oficiais superiores, Estado- Maior; e não se devem esquecer os cabos e sargentos, cuja importância real é superior ao que habitualmente se crê. É interessante notar que todas estas partes se sentem solidárias, ou, melhor, que os estratos inferiores manifestam um “espírito de grupo” mais evidente, do qual recolhem uma “vaidade” que frequentemente os expõe aos gracejos e às troças. (GRAMSCI, 2004, p. 21-22).

O exemplo colocado, por vezes, é tido como um exemplar da “rigidez” das posições dos intelectuais na esfera da produção pelas relações com a hierarquia militar. É importante salientar, contudo, que, conforme o método da filosofia da práxis, a volatilidade das posições atua conforme a necessidade, a capacidade e o desenvolvimento social da instrumentalização humanista e técnica dos sujeitos em uma possível sociedade regulada. Essa perspectiva consolida, pela proposta gramsciana, a Escola Unitária, que propõe a ruptura de uma educação fragmentada, unilateral, especializada (para atender à divisão técnica e social do trabalho pró-Capital), dicotômica (corpo versus mente), teorista e praticista.

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Recuperar o modelo da Escola Unitária significa, também, trazer à tona a crítica às divisões e separações daqueles que podem saber daqueles que podem fazer sem “saber”. Para Gramsci (2004, p. 33): “A divisão fundamental da escola em clássica e profissional era um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, enquanto a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais.”. A abolição desse tipo de divisão propunha, na organização escolar, a interação da competência técnica com uma postura política do conjunto dos participantes (professores, coordenadores, diretores, alunos e outros) de um “colegiado deliberativo”, como se pode constatar hodiernamente em algumas instituições escolares mais voltadas à participação coletiva.

A apreensão das capacidades individuais para a qualificação do próprio coletivo foi uma tônica recorrente no nascedouro das pedagogias socialistas, no início do século XX, mas, em Gramsci (2004), assume uma perspectiva de desenvolver uma hegemonia nos marcos do capitalismo.

Pode-se afirmar, portanto, que, para o estudioso, uma proposta de escola, de formação de intelectuais e a consequente luta pela hegemonia de uma concepção de homem, mundo e sociedade promovem uma articulação fundamental, via filosofia da práxis, a um projeto político e a uma concepção de Estado guiado pelo Partido (o intelectual coletivo). E assim estão colocados os elementos do necessário consenso a ser produzido com uma coerção pedagógica (que tem na Escola um espaço fundamental) até atingir um patamar de autonomia dos sujeitos que, persuadidos da missão histórica de sua emancipação, possam ter a organicidade dessa tarefa revolucionária como intelectuais.

Não obstante essas postulações, situam-se, com uma exposição mais sintetizadora da proposta de Escola Unitária, as seguintes afirmações:

A escola unitária ou de formação humanista (entendido este termo, “humanismo”, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional), ou de cultura geral, deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. [...] A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família no que toca à manutenção dos escolares (GRAMSCI, 2004, p. 36).
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Com esse conceito ampliado e a defesa da educação escolar pública, estatal e, por coerência didática gramsciana, gratuita e de qualidade, estende-se a esse último termo uma breve formulação que permite recuperar o “tirocínio psicofísico necessário” (GRAMSCI, 2004) a qualquer entrada na escola, ou seja, a fundamental disciplina coletiva e individual para a apreensão, compreensão e ação dos sujeitos.

Nesse sentido, é o corpo sendo disciplinado à ação intelectiva da autonomia (GRAMSCI, 2004). É perceptível que, em nenhum momento, a proposta gramsciana declina em facilidades, em pieguices e, muito menos no estudo parcial (no processo de escolarização) dos objetos, dos fenômenos e da práxis social. Antes, prevê uma organização escolar na direção de uma possibilidade histórica que se materializa na concepção de que:

O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-se e emprestando-lhes um novo conteúdo [...] Os elementos sociais empregados no trabalho profissional não deve cair na passividade intelectual, mas deve ter à sua disposição (por iniciativa coletiva e não de indivíduos, como função social orgânica reconhecida como de utilidade e necessidade públicas) institutos especializados em todos os ramos de pesquisa e de trabalho científico, para os quais poderão colaborar [...]. (GRAMSCI, 2004, p.40).

A ampliação do entendimento sobre a escola unitária estende-se pela academia e universidades, combatendo, via intelectuais, os conteúdos folclorizantes e mistificadores do movimento do real, atribuindo a essa iniciativa uma função organizativa, de ruptura com a retórica considerada desprovida de consistência pedagógica. Mas,

uma inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, “persuador permanente”, já que não apenas orador puro - mas superior ao espírito matemático abstrato; [...] chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica (GRAMSCI, 2004, p. 53).
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Essas seriam algumas considerações gramscianas sobre a escola e as suas implicações na conjuntura sócio-histórica mais ampla em que se insere o jovem em formação, especialmente, no âmbito da cultura.

A escola, a cultura e a modernidade: a formação do leitor literário na escola

Na sociedade atual, o acesso aos bens e às práticas da cultura letrada ainda se dá de forma insatisfatória e desigual, o que justifica debater questões relativas à leitura e à formação de leitores para que esses bens e práticas possam ser não somente democratizados, mas também usufruídos, de fato e de forma mais significativa, pelos sujeitos sociais.

Não se discute, portanto, a imprescindibilidade da leitura literária para a formação do indivíduo que pertence a uma sociedade, cujas práticas são determinadas, em larga medida, pela palavra impressa ou digitalizada. Também não se desconsidera a urgência para a democratização da leitura no Brasil, materializada em políticas de incentivo à leitura via programas de distribuição de livros, planos de ampliação de acervos de bibliotecas públicas e outras ações de iniciativa pública ou privada. O que se percebe, no entanto, é que ainda há uma exclusão sociocultural e econômica na formação do leitor na escola. De igual forma, há um estrangulamento do processo de democratização da cultura, cujos critérios, para se realizarem de forma eficaz, pressupõem um modelo de escola comprometida com a formação estética e a ampliação constante da qualidade e da quantidade de bens culturais que a experiência humana pode realizar. O que se vê, na realidade das escolas brasileiras, no entanto, é, além de um retrocesso no sentido de tornar a escola cada vez mais compartimentada em suas especialidades, também um processo de elitização da cultura e da leitura. Nesse último caso, em grande parte pela dificuldade de acesso ao livro. A pesquisadora Graça Paulino (2001), ao discutir o letramento literário, numa bem construída metáfora para mostrar um vergonhoso fosso social no Brasil, afirma que o acesso ao livro - e a um consequente letramento literário - está restrito às alamedas da cidade e evita as perigosas vielas sem recursos. Isso deixa mais de 80 milhões de leitores em potencial à espera de que livros baratos se aproximem de suas casas, para que possam vê-los, pegá-los e comprá-los.

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O cidadão literariamente letrado seria, então, aquele que cultiva e assume, como parte de sua vida, a leitura do texto literário, preservando seu caráter estético, aceitando o pacto proposto e resgatando objetivos culturais em sentido amplo e não os objetivos funcionais do ato de ler. Sabe-se, por óbvio, que uma escola fragmentada, divisionista, separatista, entre o que vai para as alamedas e o que vai para as vielas, não é capaz de promover a democratização cultural e, por consequente, a da leitura literária. Conforme Zilberman (1985), historicamente, o processo de escolarização é uma condição para a escalada na sociedade, que premia aqueles com sólida formação intelectual. E, se o ato de ler se volta para o objeto literatura, esta, sim, pode romper com os laços ideológicos que convertem a escola na “sala de espera” da engrenagem burguesa e, se há que ler literatura, que isso seja feito de modo pleno e capaz de efetivar a revolução duradoura, no bojo do ideário liberal em que a escola foi gerada (ZILBERMAN, 1985), mas com o qual precisa romper, pode-se acrescentar, na esteira do pensamento gramsciano.

Em sentido semelhante, Magda Soares (2004) salienta que a democratização cultural, “entendida como distribuição equitativa de bens simbólicos” (SOARES, 2004, p.19), e a leitura literária, como um bem simbólico por excelência, deveriam ser uma condição para a plenitude do compartilhamento de recursos elementares e representativos da cultura em seu sentido amplo, embora muitas variáveis constituam barreiras para esse acesso equitativo, como, por exemplo, as raras e precárias bibliotecas públicas, as pouquíssimas livrarias (quando há, são apenas em meio às alamedas, como já citado na voz de Paulino) e o preço dos livros. Para mudar essa desigualdade de acesso a bens culturais seriam necessárias mais que uma mudança educacional e cultural, também uma mudança de ordem estrutural e econômica. Para Soares (2004), a leitura literária também democratiza o ser humano, posto que o faz perceber a diversidade e a complexidade do homem e da sociedade e o traz para mais próximo do estrangeiro, do desigual, do excluído, despertando-o para o senso de justiça e de igualdade.

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Ainda nessa esteira, a antropóloga e pesquisadora, Michele Petit (2009) destaca que a literatura ajuda no espessamento simbólico e exerce papel essencial na reconstrução de tempos difíceis, muitas vezes ajudando também na compreensão de si mesmo e no entendimento do mundo de forma mais aprofundada. Com isso, é mais possível recriar o chão perdido e superar as dores.

Diante disso, é indispensável situar a escola no papel que ela deve exercer essencialmente, quando se discute a formação do leitor literário. Embora a responsabilidade pela democratização de bens culturais seja muito mais ampla que a da escola ( como já dito), esta é, muitas vezes, em vista dos minguados recursos socioculturais de crianças, jovens e adultos, o único espaço possível de contato com a cultura literária. Por isso cabe a ela garantir a presença de determinados livros e ajudar sua leitura no contexto, reconhecê-los como introduzidos numa tradição, imersos num sistema literário, no marco de uma cultura e de uma língua (ANDRUETTO, 2017, p. 87).

Uma escola, uma experiência

Integrando uma das unidades da Universidade Federal de Goiás (UFG), o Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE- UFG) é uma instituição que tem o objetivo de zelar pela educação em seus diferentes níveis, da Educação Infantil à Pós-graduação em Ensino na Educação Básica. Essa instituição-escola atua na pesquisa, no ensino e na extensão de forma integrada e, por ser também um campo de estágio da graduação, faz com que a ação de educar os alunos e formar os futuros professores desenvolva competências e abordagens que tenham a excelência dos envolvidos nesse processo. Ou seja, o CEPAE assume um papel relevante na formação docente, vez que, entre suas funções, está a de desenvolver a relação teoria-prática em um laboratório que busca a qualidade do processo ensino-aprendizagem, seja da perspectiva do aluno da Educação Básica, seja da do docente em formação pela atividade do estágio ou pela formação continuada no mestrado em ensino da educação básica.

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No campo da formação nas áreas de linguagem, em específico em relação à Literatura e à Língua Portuguesa, o CEPAE tem se constituído e firmado como um espaço privilegiado de investigação e de ensino e como um provocador da interlocução na escola, não como estratégia, mas como princípio. Assim, ao estimular o gosto pela leitura literária, mediante a exploração do caráter estético da linguagem, busca aperfeiçoar o espírito crítico do aluno em sua relação com o mundo real e proporcionar-lhe uma maior compreensão de si e de sua relação com a vida, com o mundo e com os seres com os quais mantém diálogo.

A cultura, a poesia e a voz: a formação do jovem na e para além da escola

Considerando-se a intensa estratificação social na realidade brasileira, o acesso ao patrimônio literário, na escola e na sociedade, passa a ser uma necessidade e, por isso, a leitura pode e deve ser levada ao maior número possível de cidadãos como um bem tão essencial como alimentação, saúde, educação (CANDIDO, 2010), uma vez que é possível que o aluno ou cidadão não tenha, na escola ou em outros espaços, o acesso à literatura. Dessa forma, pode-se afirmar que é inquietante o desafio de promover o acesso a bens culturais e franquear a experiência estética por meio da socialização da leitura de poesia, vez que, historicamente, a leitura tem se constituído por uma concepção individualista do ato de ler e de exclusão do leitor de espaços públicos e de participação efetivamente coletiva. Isso distancia a leitura literária da expressão mais humana, que é a aproximação com vida, desde o seu estado mais comezinho ao mais excelso.

É nesse sentido que se pode afirmar a importância de se colocar o texto literário em performance, uma vez que, conforme Zumthor (1997), grande parte dos produtos das artes da linguagem se identificam com a escrita em detrimento da valorização da experiência oral do poema. Além disso, a oralidade do poema, em outro sentido, favorece a apreensão de sentidos do texto. De acordo com Bajard (1999, p.96),

Por serem polissêmicos, o texto de ficção e o texto poético permitem múltiplas interpretações. Se a releitura pode ser fonte de novos sentidos, mais ainda podem sê-lo as sucessivas transmissões vocais do texto. O mesmo poema, dito e redito, ao contar com a contribuição da sonoridade da voz, do gesto, do olhar, pode produzir diferentes cantos sem se esgotar.
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Em sentido semelhante, Alfredo Bosi (2003), ao discorrer sobre a interpretação da obra literária, aponta que, por não serem transparentes os sinais gráficos que desenham a superfície do texto literário, é necessária a interpretação. E o crítico afirma, ao se referir ao “tom”, que, caso seja capaz de “dar, em voz alta, o tom justo ao poema” [seja esse tom patético, irônico, festivo, satírico, fúnebre, grave e outros], o leitor “já terá feito uma boa interpretação, isto é, uma leitura ‘afinada’ com o espírito do texto” (BOSI, 2003, p.269).

Entendendo, portanto, a importância de que a ação de ler vai além da decodificação do texto escrito e do espaço da escritura, foi criado, no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE- UFG), o projeto de extensão denominado TRAPPO – VOZ E POESIA, um grupo de vocalização de poemas cuja proposta é desenvolver um trabalho voltado para performances relacionadas à poesia, corpo e voz, com o objetivo de dar ênfase a essa relação e socializar a poesia no e para além do espaço acadêmico. Requer, portanto, uma formação, em via dupla, que envolve tanto o vocalizador quanto o ouvinte, pois o texto em performance pressupõe “a voz, o gesto e o cenário para a sua transmissão; e também necessita de sua percepção, escuta, visão e identificação das circunstâncias” (ZUMTHOR, 2007, p. 61-63). Somente uma escuta eficiente permite ouvir, no silêncio de si mesmo, a voz que vem de outra parte (ZUMTHOR, 2007).

Como atividade voltada para a formação do leitor de poesia, esse projeto de extensão atua na Educação Básica, envolvendo alunos do CEPAE e de outras escolas públicas; na Graduação, envolvendo alunos do curso de Letras, Pedagogia e Artes Cênicas e outros; e na Pós-Graduação do CEPAE, envolvendo alunos e ex-alunos; além de outros participantes da comunidade, com atuação especial em hospitais (para crianças, idosos), asilos de idosos, comunidades periféricas, cadeias públicas, comunidades de cidades do interior, creches e outros. Pretende-se, desse modo, refletir sobre a poesia como objeto estético capaz de despertar a sensibilidade do leitor e/ou do ouvinte e de potencializar-lhe a capacidade de compreensão de outros textos, em razão de os jogos sonoros, os recursos estilísticos, o ciframento da linguagem, as diversas nuanças e ambiguidades instrínsecas ao discurso poético permitirem ao leitor um exercício como coautor na exploração dos efeitos de sentido do texto a partir de sua atuação na audiência ou na performance oral do poema.

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Para tanto, são feitas a leitura e a exploração dos sentidos produzidos pelos recursos morfossintáticos, semânticos, fonológicos no texto poético, enfatizando-se elementos como tamanho dos verso, ritmo, tonicidade, figuras, rimas, aliterações, assonâncias, repetições e como tais elementos podem criar efeitos de sentidos no ato de vocalizar.

Busca-se promover, de forma substancial nos integrantes do grupo, uma ressignificação do modo de se relacionar com o texto poético e, essencialmente, uma mudança do estado de passividade para a participação ativa e autônoma, à medida que são conduzidos, orientados, coordenados em suas ações, mas devem estar também no papel de protagonistas na execução do projeto. Nesse caso, o sujeito (aluno, vocalizador, leitor em potencial) abdica da condição de “mera passividade” como um ‘recipiente mecânico’ (GRAMSCI, 2001, p. 44) e se assume como agente na construção de sua subjetividade com vistas à emancipação humana. Visa-se, portanto, não só um aprendizado quanto às especificidades da formação leitora do texto poético, mas ainda uma formação abrangente no que diz respeito ao papel social, emancipatório e humanizador dos atores envolvidos no projeto.

Considerações finais

Pode-se dizer, assim, que a escola, no caso o CEPAE, por meio desse projeto de educação literária voltado para a formação leitora do aluno e ampliado para a comunidade, apresenta uma proposta de formação sob uma perspectiva omnilateral, como na concepção gramsciana, à medida que busca articular todas as capacidades humanas e integrá-las ao saber fazer e ao fazer sabendo, rompendo com a unilateralidade entre formar para o trabalho, para o intelectual, para a cultura, enfim, para uma concepção fragmentada de mundo. Ler literatura e, em específico, a poesia, nessa relação intrínseca que se estabelece entre leitor e ouvinte por meio da voz como uma extensão do corpo, são fatores decisivos na tarefa de promover a educação de sujeitos sociais e viabilizar a construção de uma consciência histórico-dialética de mundo e de sociedade.

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Referências

ANDRUETTO, Maria Teresa. Elogio da dificuldade: formar um leitor de literatura. A leitura, outra revolução. São Paulo: Sesc-SP, 2017.

BAJARD, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. 2ª. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1999.

BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BOSI, Alfredo. (org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2007.

BRASIL. Orientações curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2010.

ENGELS. Friedrich. MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

FERNANDES, Frederico A. G. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: Editora Unesp, 2007.

GRAMSCI, Antônio. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v.1.

_________________. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v.2.

PAULINO, Graça. Letramento literário: por vielas e alamedas. Revista da Faced, n. 05, 2001.

SOARES, Magda. Leitura e democracia cultural. In: PAIVA, A. et all. Democratizando a leitura pesquisas e práticas. Belo Horizonte: CEALE/Autêntica, 2004.

ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

ZUMTHOR, P. A Letra e a Voz. A Literatura Medieval. Trad. Jerusa Pires e Amálio Pinheiro. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

___________. Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2ª. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

____________. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010