O Clássico na Literatura de Cordel e o Processo de Formação do Leitor Literário
Ceylla de Souza Furtado (PPGEEB/CEPAE/UFG)
Célia Sebastiana da Silva (Cepae-UFG)
Introdução
Este artigo pretende mostrar a relevância de se trabalhar a obra clássica e a literatura de cordel para o processo de formação do leitor literário na Educação Básica, bem como a relevância da obra clássica para o indivíduo e para a sociedade, tendo como objeto de análise a pesquisa “O clássico na literatura de cordel e o processo de formação do leitor literário”, aplicada em uma escola pública de Goiânia, com crianças do 5º ano, com idade média de 10 anos, e que tinham na cultura popular as suas origens.
Por muito tempo, a literatura ficou à margem de propostas pedagógicas escolares e, mesmo quando estas apareciam, recebia uma abordagem pedagogizada, utilitarista ou de mera abordagem gramatical, deixando de lado a apreciação do seu valor estético e as condições sociais de leitura e escrita que o texto literário pode proporcionar.
Dada essa questão e tendo em vista a relevância de se trabalhar a obra clássica ao lado da literatura de cordel para o processo de formação do leitor literário na Educação Básica, a pesquisa, cujos resultados este artigo pretende mostrar, buscou responder à questão “A relação entre o texto popular e o erudito pode favorecer o processo de formação do leitor literário na Educação Básica por meio da leitura da obra Romeu e Julieta em sua versão em cordel e na tragédia clássica?”.
Para tanto, a proposta da leitura do cordel na escola pretendeu mediar e dialogar com a leitura do clássico para o processo de formação do leitor literário, dando ao cordel um espaço de proeminência, visto que seus elementos e características atestam a influência da cultura erudita em sua estrutura e temática, ou seja, a influência da própria obra clássica, sendo possível considerá-lo um tipo de clássico da literatura popular.
Assim, a pesquisa em questão teve seu aporte teórico em considerações de documentos importantes, como PCNs (1998) e DC-GO (2019), e de pesquisadores, como Carvalho (2006), Mastroberti (2011), Antunes e Ceccantini (2004), Zilberman (1988), Bloom (2001), Calvino (1993), Machado (2002), Borges (2003), Soares (2004), Candido (1995), Bourdieu (2011), além de outros que discutem e incentivam a leitura do cordel na escola, como Marinho e Pinheiro (2012), Alves, Souza e Garcia (2011), Cascudo (2012) e Truco (2019), entre outros.
Quanto ao que se pretendeu com a pesquisa, o objetivo primário foi investigar como a dialogia entre o popular e o erudito favorece o processo de formação do leitor literário na Educação Básica por meio da leitura da obra Romeu e Julieta em sua versão em cordel e na tragédia clássica; os objetivos secundários foram apresentar a literatura de cordel como possibilidade para a promoção da fruição estética literária, para o conhecimento e o respeito às variações linguísticas; compreender como se dão os diferentes usos da língua nas diversas situações de comunicação e de expressão literária; evidenciar como é possível o leitor se apropriar de uma literatura que vá além da sabedoria popular, instigando-o a conhecer a obra clássica, para que esta deixe de ser um privilégio de pequenos grupos.
Logo, para alcançar tais objetivos, foi aplicada uma sequência didática em que constaram as etapas: tema, objetivo, conteúdo, público-alvo, número de aulas, tempo estimado para cada aula, materiais, desenvolvimento e avaliação.
Leitura do clássico na escola
A leitura dos clássicos na escola justifica-se do ponto de vista de que é preciso apresentar e incentivar essas leituras junto ao aluno. De acordo com Calvino (1993, p.13), “a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os “seus” clássicos”. Ou seja, a opção de qual será o clássico preferido cabe ao leitor, cabendo à escola dar a ele os instrumentos dessa escolha.
Nesse sentido, o papel da escola na formação do leitor do texto clássico é de suma importância, já que nem todos os alunos têm a oportunidade de conhecer um clássico fora do ambiente escolar e, se a opção de escolha é um direito do aluno, entende-se que a escola tem o dever de oportunizar o conhecimento de tais leituras.
Machado (2002) defende que ler literatura, o que inclui o clássico, é uma forma de resistência a uma tática desenfreada de consumo disposta à sociedade atual. As pessoas são incentivadas a comprar de forma compulsiva e distraída, deixando de lado o que lhes é essencial e muitas vezes acessível, de forma que não lhes resta tempo para ler. O acesso à literatura é impedido dentro de um processo que visa a entreter o leitor em potencial e sucumbi-lo em um consumismo desenfreado.
Sabe-se que os alunos da atual geração estão envolvidos nessa tática consumista, que os distancia cada vez mais de obras literárias de valor, como é o caso dos clássicos. Portanto, cabe à escola oferecer resistência a esse movimento contrário ao desenvolvimento intelectual do aluno, fazendo da leitura dos clássicos um instrumento que resista a uma cultura massificada e acomodada ao consumo incessante.
À medida que os alunos forem expostos a tal leitura, maior a possibilidade de significar e ressignificar o mundo que os cerca, inclusive criticá-lo, o que justifica que, bem ou mal, ele deve conhecer certo número de clássicos na escola, como assevera Calvino (1993). Para tanto, vale compreender o que é um clássico literário, sua importância na história da humanidade e na vida do homem.
Costuma-se confundir clássico com aquilo que já passou ou que ficou ultrapassado, algo que saiu de moda e, portanto, algo que não deve mais ser revisitado, mas talvez reinventado e distanciado. Para outros, pressupõe-se que já é conhecido de todos e os tempos são outros, com muitos avanços e inovações a serem perseguidos, não havendo mais lugar para voltar atrás no que já foi consolidado.
Porém, basta um mínimo contato em sala de aula para se constatar a ausência de um conhecimento no que se refere aos clássicos literários. Alguns conseguem reconhecer, de forma aligeirada, expressões como “presente de grego”, “o amor de Julieta e Romeu”, “doenças crônicas”, “tempo de vacas magras”, “lavar as mãos”, entre muitas outras expressões que se perpetuam até os nossos dias pela oralidade e em muitas versões, gêneros e adaptações, como músicas, filmes e séries. Contudo, o que ninguém – ou a grande maioria – conhece são as histórias que estão por trás de cada uma dessas expressões, ou seja, os clássicos que se eternizaram ao longo de gerações, mas que têm ficado presentes apenas nesse tipo de manifestação e, ao que parece, não o suficiente para fazer jus ao seu valor literário, social e individual.
Calvino (2007, p. ) diz que “o clássico estabelece uma relação pessoal com quem o lê”, o que corrobora o que Bloom (2001, p. ) diz ao tratar da função da leitura ou do por que ler: uma fórmula da leitura seria “encontrar algo que nos diga respeito, que possa ser utilizado como base para avaliar, refletir, que pareça ser fruto de uma natureza semelhante à nossa, e que seja livre da tirania do tempo”. Blomm ainda considera que “uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem caráter universal” (BLOMM, 2001, p. ).
Assim, nada mais apropriado do que a leitura da obra clássica, por apresentar um caráter universal e temas como amor, renúncia, sofrimento, redenção, inveja, preconceitos, denúncias sociais, entre outros, que atravessam épocas e com que os homens, em cada geração, conseguem se identificar em algum momento. Tal identificação e as descobertas do que já sabíamos ou que julgávamos saber, mas que foram ditas primeiro nos clássicos geram no leitor uma satisfação ou um prazer que faz com que ele eleja o “seu” clássico e a ele não seja indiferente, como dispõe Calvino (2007).
Nesse sentido é que este artigo vê na leitura dos clássicos um instrumento fundamental no processo de formação do leitor literário, pois este, de acordo com Bloom (2001, p. ), se forma essencialmente na solidão e “lê por iniciativa própria, e não segundo interesses que, supostamente, transcendam o ser.” Dessa maneira, o clássico possibilita ao leitor solitário o prazer estético, exercendo nele, segundo Calvino (2007), uma influência particular, pois se impõe como inesquecível e oculto nas dobras da memória.
Assim, embora a escola tenha o papel importante de apresentar e mesmo mediar essa leitura com o aluno, o processo de formação do leitor literário vai além da própria escola, pois é algo que acontece intimamente entre o leitor e a obra que ele lê.
Outro aspecto importante da defesa da leitura dos clássicos é a sua estreita relação com a democratização cultural da leitura literária, que pode se valer da concepção dada por Soares (2004) de democracia cultural como distribuição equitativa de bens simbólicos, considerados como aqueles que são, fundamentalmente, significações e, só secundariamente, mercadorias.
Para tanto, a leitura literária, que Soares (2004) considera aquela que se faz por prazer, por opção e não por obrigação, é assumida como bem simbólico. Tal abordagem pode ser problematizada, visto que a leitura literária só é possível ser prazerosa a partir do momento em que a escola assume o seu papel de dar ao aluno instrumentos para que ele possa fazer suas escolhas literárias, o que implica no dever de apresentar-lhe certo número de obras, ainda que, eventualmente, como leitura obrigada.
Portanto, a leitura literária enquanto bem simbólico, de que trata Soares (2004), pressupõe um ambiente escolar que compreendeu o seu papel como promotor, como aquele que promove, e não como um mero espaço que dispõe de acervos e os deixam dispostos sem qualquer mediação ou planejamento que possam possibilitar, de fato, o acesso à obra literária.
Soares (2004), em consonância com Candido (1995) e Machado (2002), defende o direito à leitura – e, nesse sentido, ela trata da leitura enquanto leitura literária, sob dois sentidos: enquanto Candido (1995) defende o direito à literatura entendendo-a como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos, portanto fator indispensável de humanização, Machado (2002, p.19) defende esse direito mais especificamente como o direito à leitura do clássico enquanto forma de resistência, pois, para ela, direito e resistência são duas boas razões para se chegar perto do clássico.
Nesse sentido, a pesquisa de que trata este artigo se apresenta como mais um instrumento de democratização da leitura literária, visto que se propõe também como forma de acesso a uma cultura que a grande maioria dos alunos não têm em casa. Poder oferecer ao aluno, no ambiente escolar, a leitura do clássico, tanto na sua versão original quanto em sua adaptação em cordel, é oferecer-lhe o que Bourdieu (2011) chama de capital cultural.
Na concepção de Bourdieu (2011), entende-se capital cultural como sendo o conhecimento “legitimado socialmente” que o aluno traz de casa, bem como outras "heranças", como a postura corporal e a habilidade de falar em público, que diferenciam um grupo de alunos de outros dentro da escola. Assim, eles tendem a ser julgados, no ambiente escolar, pela quantidade e pela qualidade desse conhecimento e pelo seu desempenho na sala de aula, selecionando grupos e mantendo as desigualdades sociais.
Muitas são as críticas com relação ao papel da escola como mantenedora dessa “ordem”, mencionada por Bourdieu (2011) e, nesse sentido, é importante o envolvimento da escola em trabalhos e pesquisas que busquem perspectivas de dar ao aluno acesso ao capital cultural de forma equitativa, sem supervalorizar aqueles que já possuem parte desse capital, mas dando acesso igualmente aos que não o possuem na mesma proporção.
Logo, trabalhar o clássico na perspectiva da democratização cultural da leitura literária pode ser um meio de garantir ao aluno, tanto para aquele que veio de uma “cultura socialmente privilegiada” quanto para o que veio de uma “cultura desprivilegiada”, o acesso a um tipo de capital cultural, visto que, como já foi tratado, o clássico é um bem cultural que deve estar disponível a todos, dados os seus tantos benefícios para a humanização do leitor, para a percepção de si mesmo e para a resistência e o desmascaramento na luta pelos direitos humanos.
Nessa perspectiva, a pesquisa abordou o clássico de forma que fosse possível também conscientizar e valorizar a cultura popular, por meio da sua leitura via literatura de cordel, que também tem o seu lugar de proeminência como clássico da literatura popular. Assim, tanto a adaptação quanto o original ganharam uma dimensão equitativa e buscaram acessar também a diferença de capital cultural entre os alunos.
Leitura do cordel na escola
Conforme já dissemos, a pesquisa pretendeu dar à leitura de cordel um espaço de proeminência na escola e em consonância com Marinho e Pinheiro (2012), que ressaltam a necessidade de se efetivar a leitura desse gênero, tendo como foco a formação de leitores.
Para Alves, Souza e Garcia (2011), a escola tem o papel de estimular a circulação da cultura oral pela importância da poesia oral na infância, que possibilita uma socialização de vivências artísticas rica em ritmos, em fantasia e em criatividade. Nessa perspectiva, eles defendem a leitura do cordel na escola, tendo em vista a sua relação com a cultura oral. Afinal, o cordel originou-se da cultura oral e continua sendo um gênero que deve ser declamado e até mesmo cantado.
Ao se considerar a formação de leitores, não cabe à escola tratar a literatura de cordel apenas como ferramenta para contribuir com a assimilação de conteúdo. Para uma significativa experiência de leitura dos folhetos, a escola deve possibilitar ao aluno a convivência com os diversos poemas em cordel, dentro das suas diversas temáticas: as narrativas de aventura, de proezas, de pelejas, de notícias cheias de invenções, de brincadeiras, de folia da bicharada, dos ABCs, de abordagens bem-humoradas de diferentes temas e situações – tudo, como afirmam Marinho e Pinheiro (2012, p.12), “pelo viés da gratuidade e não pelo pragmatismo de suas informações.”
E, tendo em vista essa relação do cordel com a cultura popular e oral, ler cordel na escola pressupõe um envolvimento com essa cultura popular, considerando a realidade sociocultural em que está inserida a escola. Marinho e Pinheiro (2012) defendem que a escola deve estar provida de um procedimento metodológico que oriente o trabalho com cordel de modo a favorecer o diálogo com a cultura da qual ele emana, assim como, ao mesmo tempo, prover uma experiência entre professores, alunos e demais participantes do processo, sendo importante valorizar as experiências locais, descobrir formas poéticas que circulam no lugar específico de cada leitor.
A literatura de cordel, de acordo com Alves, Souza e Garcia (2011), tem sua origem relacionada ao hábito de contar histórias e, por esse motivo, há uma forte presença da oralidade em seus impressos. Ela se constitui como um gênero que, originalmente, era expresso por cantadores, que divulgavam essa literatura por onde iam de forma cantada.
Teve início no século XVI, quando o Renascimento passou a popularizar a impressão dos relatos que, pela tradição, eram feitos oralmente pelos trovadores. Logo, de acordo com Truco (2019), essa poesia oral ganhou a forma impressa em folhetos, que, em Portugal, foram denominados volantes, na Espanha Pliegos sueltos e, na América de língua espanhola, Compuestos ou Corridos.
No Brasil, de acordo com Truco (2019), não existe um consenso sobre o surgimento da literatura de cordel, porém afirma que a literatura de cordel brasileira foi fortemente influenciada pelos volantes portugueses, tanto no formato dos folhetos, como na estética e poética inicial.
Marinho e Pinheiro (2012, p. 18-19) afirmam que:
A expressão “literatura de cordel” foi inicialmente empregada pelos estudiosos da nossa cultura para designar os folhetos vendidos nas feiras, sobretudo em pequenas cidades do interior do Nordeste, em uma aproximação com o que acontecia em terras portuguesas. Em Portugal, eram chamados cordéis os livros impressos em papel barato, vendidos em feiras, praças e mercados. (...)
Portanto, a tradição desse tipo de publicação veio da Europa e, no século XVIII, já era uma publicação comum, especialmente em Portugal, que já permitia a sua negociação.
Por ser um gênero poético, Alves, Souza e Garcia (2011) consideram que os autores cordelistas se preocupam com o rigor da linguagem e buscam uma linguagem perfeita se utilizando de determinados tipos de estrofes: sextilhas, septilhas e décimas. Entre elas, a mais utilizada é a sextilha e os versos predominantes são as redondilhas maiores, ou seja, versos de sete sílabas poéticas, com rimas mais incidentes em ABCBDB.
Tendo em vista o rigor poético que caracteriza o cordel, é possível pensar em elementos da própria cultura erudita passando pela sua escrita, como apresentam Teixeira e Oliveira (2017) ao tratarem sobre o Movimento Armorial, fundado na década de 70 pelo escritor Ariano Suassuna.
Não obstante a forma poética, métrica e ritmo, o cordel acolhe, essencialmente, elementos da cultura popular, como a cultura regional nordestina e o folclore brasileiro; os elementos do conto, com suas narrativas heroicas; as figuras emblemáticas e astuciosas; o humor e a sátira.
Esses elementos ganham forma nos folhetos de cordel através da xilogravura, ilustrações feitas a partir da técnica da xilografia – processo de fazer uma gravura entalhada na madeira com auxílio de objetos cortantes para, posteriormente, utilizando rolos de borracha embebidos em tinta preta, gravá-la no contato com a folha onde será feita a ilustração para que a imagem fique impregnada no local.
Essa técnica também chegou ao Brasil através dos portugueses, que já a utilizavam em sua cultura. Com o passar dos anos e a modernização da indústria editorial, o cordel ganhou cores e muitos foram também publicados em formato de livro, como é possível constatar nas páginas de Marinho (2011), do seu livro Romeu e Julieta em cordel, objeto desta pesquisa.
Dessa forma, o cordel tornou-se um gênero de fundamental importância dentro da literatura, já que resgata o valor estético e o diálogo social que a literatura pode trazer ao leitor.
Leitura do clássico em cordel e da tragédia de Shakespeare em versão traduzida para o Português
A leitura da obra clássica e do folheto de cordel na escola foi aplicada na Escola Municipal Jardim América em Goiânia, feita com alunos do 5º ano, com idade aproximada de 10 anos. Para tanto, valeu-se das obras Romeu e Julieta em cordel, escrita e adaptada pelo poeta repentista e cordelista Sebastião Marinho da Silva, e da obra clássica Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em uma versão traduzida para o português.
A obra em cordel narra, em versos, a tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, extraindo da obra shakespeariana toda a grandeza da tragédia, ainda que como uma recriação com elementos novos que mostram que o poeta não quis simplesmente apresentar uma cópia, em versos rimados, do velho drama teatral.
Partiu-se do pressuposto de que ler o clássico na versão em cordel poderia ser uma forma de marcar a memória afetiva da criança, visto que ela pode encontrar no cordel identificações e vivências, que, pelo seu caráter popular e suas raízes na tradição oral, é também rico em humor e carregado de musicalidade, entre outros atributos que o caracterizam e o respaldam como gênero literário, desfazendo assim alguns mitos quanto ao distanciamento da linguagem do original, por exemplo.
A aplicação da pesquisa iniciou-se com a obra em cordel e foi sequenciada com a leitura também do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare, valendo-se de uma sequência didática para direcionar e garantir a aplicabilidade do projeto e para efetivar a apresentação final, como produto educacional, de um e-book com o relato das experiências de leitura e escrita dos alunos, bem como a experiência de um recital em cordel, que foi denominado de Festival de Cordel, promovido como trabalho final na escola.
A partir da aplicação da sequência didática programada, foi escrito um relato/narrativa (integrado à proposta do e-book), com as reflexões das vivências, dos objetivos que foram alcançados ou não, os entraves que, por vezes, se interpuseram à pesquisa, as observações, o empenho e a criatividade dos alunos diante do tema proposto.
Os relatos de experiência descritos na pesquisa, bem como os anexos com fotos dos momentos de leitura, no Cantinho da Leitura e em sala de aula, do Festival de Cordel, das atividades de produção escrita e das xilogravuras que os alunos fizeram, puderam atestar o envolvimento de cada um deles, tanto na aceitação da proposta quanto nos questionamentos feitos com relação ao final trágico da história de Shakespeare.
Nos registros que os alunos fizeram através da releitura e reescrita da obra, ao darem novos finais para a história numa tentativa de escrita em cordel, foi possível ver o anseio de cada um em ter uma história com final feliz: na grande maioria de suas recriações, Romeu e Julieta ficaram juntos e constituíram família até serem aceitos novamente por seus pais. Na oportunidade, os alunos realizaram também, de forma interdisciplinar, com as professoras de Arte, produções em xilogravuras de forma adaptada, bem como fizeram também a escrita de cartas se colocando no lugar dos personagens Frei Lourenço e Julieta, na tentativa de impedir a tragédia final.
Nas leituras e registros da obra clássica, feitas logo na sequência do cordel, os alunos demonstraram maior aceitação do final trágico, visto que já não era mais um elemento surpresa para eles. No entanto, se surpreenderam muito com a estrutura da peça teatral e com a linguagem usada por Shakespeare ao expor a personalidade de alguns personagens, como a Ama, Mercúcio e o próprio pai de Julieta.
Os registros feitos pelos alunos sobre a leitura do clássico se deram por meio do Passaporte da Leitura, um instrumento que permitiu registrar alguns dados importantes sobre a obra, como o título, o autor, o gênero, a editora e algumas características das partes da história que o aluno leu: ato, cenas, principais acontecimentos e principais personagens, além de um espaço para o aluno ilustrar a parte da história de que ele mais gostou. Outro recurso importante na conclusão da leitura do clássico foi o filme Romeu e Julieta, dirigido por Carlo Carlei, filme britânico de 2013, que apresentou uma narrativa muito próxima à obra clássica de Shakespeare. A assistência ao filme despertou muitos comentários da parte dos alunos, que estabeleceram comparações entre a narrativa fílmica e a obra lida.
Considerações Finais
A proposta de trabalhar o clássico em cordel e o próprio clássico para a formação do leitor literário demonstrou ser possível e viável, a começar pelos espaços que foram organizados na escola para os momentos da leitura, visto ser este o ambiente de primeiro acesso ao livro literário por grande parte dos alunos, com o intuito de dar lugar de proeminência à leitura literária no espaço escolar.
Nessa perspectiva, foi possível observar que a leitura do clássico Romeu e Julieta, seja na sua adaptação para o cordel ou na própria tradução do original, no gênero dramático, foi imprescindível para as leituras dos alunos da Escola Municipal Jardim América, pois redundaram em atividades que revelaram o quanto eles se envolveram e se dedicaram ao projeto.
Calvino (1993, p. 13 ) diz que “o ‘seu’ clássico é aquele que não pode lhe ser indiferente e que serve para definir você próprio em relação e talvez em contraste com ele.”. Essa afirmação de Calvino (1993) ficou perceptível nas releituras que os alunos fizeram da escrita em cordel com relação ao desfecho que deram para o final da história de Romeu e Julieta.
A grande maioria discordou do final trágico do amor de Romeu e Julieta e criou novas versões, em que Romeu e Julieta conseguiram ser salvos da morte e até constituíram família, receberam o perdão dos pais e foram felizes para sempre. Esse anseio por um final feliz ficou nítido tanto nos apontamentos dos alunos quanto em suas falas registradas nos relatos de experiência.
Ao observar as produções dos alunos nos resultados da pesquisa a partir do que leram e compreenderam tanto do Romeu e Julieta, na adaptação para o cordel, quanto na própria tradução do original, no gênero dramático, foi possível ver o efeito que a leitura literária de um clássico produz nas pessoas e no seu imaginário.
Essas recriações revelaram criatividade, ousadia e o quanto os alunos se aproximaram e se apropriaram das obras de forma a deixar em suas escritas marcas que representaram as suas culturas e os seus valores, não lhes sendo indiferentes, ao contrário, definindo eles mesmos até em contraste com as obras, como mencionou Calvino (1993).
O registro da participação e animação dos alunos na confecção de xilogravuras e no Festival de Cordel, bem como o relato da experiência registrado em forma de e-book, todos em anexo à pesquisa aqui relatada, puderam também atestar, de forma nítida, que é possível, sim, favorecer o processo de formação do leitor literário na Educação Básica através da relação entre um texto popular e um erudito.
Referências
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Essa discussão faz parte do capítulo I da Tese de Doutorado intitulada “Relações intertextuais na obra de Ana Maria Machado: ficção e história, teoria e criação literária”, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.
As discussões aqui apresentadas podem ser encontradas, de forma ampliada, no capítulo II da referida Tese de Doutorado, defendida em 2013 por uma das autoras deste artigo.