UNIDADE I
Os caminhos para o ensino de biologia: ensinar para quem?
"O ideal da educação não é ensinar o máximo, maximizar os resultados, mas é acima de tudo aprender a aprender, aprender a se desenvolver, e aprender a continuar a se desenvolver, mesmo após deixar a escola." Jean Piaget
Antes de discutirmos sobre os recursos pedagógicos e as metodologias, é necessário nos conscientizarmos sobre o tipo de ensino que queremos oferecer aos nossos educandos, ou seja, qual a importância desse ensino na vida dos indivíduos enquanto alunos e enquanto cidadãos. A educação básica, que compreende a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei no 9394/96. Apresenta, ainda, o ensino médio como a etapa final da Educação Básica (art. 35) e a define como a conclusão de um período de escolarização que tem por finalidade o desenvolvimento do indivíduo, assegurando-lhe a formação comum para o exercício da cidadania. Porém, o que se observa é que o ensino continua norteado pelas exigências impostas pelo Concurso Vestibular (que está com os dias contados) e pelo Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), em desvantagem do propósito conferido pela LDB.
Nos quatro últimos anos do ensino fundamental, a biologia faz parte da disciplina de ciências, que também engloba os conteúdos de física e química, sendo o professor de biologia o responsável pelas três áreas. Neste sentido, ao discutirmos o ensino de biologia (EB) no ensino médio, não podemos nos furtar em discutir o ensino de ciências (EC) no ensino fundamental. Um fator fundamental para promover o ensino nestas áreas é a escolha dos conteúdos a serem desenvolvidos, a fim de que o indivíduo seja capaz de usar o que aprendeu em benefício próprio e coletivo na tomada de decisões.
Há algumas décadas, muito vem se discutindo sobre o avanço da ciência e tecnologia e sua relação com a sociedade. Nas três últimas décadas, com a problemática do aquecimento global, da destruição da camada de ozônio, das mudanças climáticas, da poluição etc., a educação ambiental vem sendo discutida em todas as áreas e nos níveis educacionais. Com isso, a relação ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (CTSA) torna-se alvo de grandes estudos e debates devido à importância para o desenvolvimento do indivíduo como cidadão (CACHAPUZ et al., 2005).
As rápidas transformações no mundo do trabalho, os meios de informação e comunicação e o avanço tecnológico recaem vigorosamente na escola, elevando a disputa para torná-la uma conquista democrática concreta na sociedade atual. Não é fácil transformar práticas e culturas tradicionais das escolas que aumentam a exclusão social. Porém, as crianças e os jovens devem ser educados para obterem condições para enfrentar as exigências do mundo contemporâneo. Para isso, esse propósito deve demandar esforços não só do professor, mas também de diretores, funcionários, pais de alunos, grupos sociais organizados e governantes.
A educação científica, durante um longo período, foi entendida como um processo de transmissão de saberes produzidos pela humanidade às novas gerações, tendo o professor uma privilegiada posição de conhecedor quase absoluto do conhecimento e/ou fonte oficial do saber e da cultura (CARVALHO et al., 2000). Devido a isso, a formação epistemológica do professor daria margem para evidenciar o conhecimento científico sobre o pedagógico. É inquestionável e consensual que o professor das Ciências precisa ter o domínio das teorias científicas e de suas ligações com as tecnologias, mas não é bastante para um desempenho docente efetivo. A atuação profissional desses professores, seja de EC ou de EB, necessita de um conjunto de saberes e práticas que não se resuma a um domínio adequado de procedimentos, conceitos, modelos e teorias científicas (DELIZOICOV, ANGOTTI e PERNAMBUCO, 2002).
Independentemente do domínio de conteúdo e procedimentos, os professores sempre se deparam com a pergunta dos alunos: “Professor, para que serve isso que estamos estudando?”. Refletindo sobre isso os professores devem se fazer outra pergunta: “Quais são os saberes que o indivíduo deve possuir para lhe conferir uma educação básica em relação ao EC/EB e para que possa exercer sua cidadania?”.
A educação científica, como objetivo social prioritário, começou a ser discutida no final dos anos 1950. A partir da década de 1970, começou a ocorrer a democratização do acesso à educação fundamental pública, mas foi nas duas últimas décadas do século XX que a expressão “alfabetização científica” foi utilizada por pesquisadores responsáveis pelos currículos e por professores de ciências. Em 1999, durante a Conferência Mundial sobre a Ciência para o século XXI, em Budapeste, foi declarada a necessidade de favorecer e divulgar a alfabetização científica em todas as culturas e em todos os setores da sociedade, com o objetivo de melhorar a participação dos cidadãos na tomada de decisões relacionadas à aplicação dos novos conhecimentos. Para isso, os estudantes deveriam aprender a resolver problemas concretos e a satisfazer as necessidades da sociedade, utilizando suas competências e conhecimentos científicos e tecnológicos (CACHAPUZ et al., 2005).
Como a ciência para todos está presente nas discussões dos educadores, um ponto crucial dessas discussões seria pensar um currículo básico para todos os estudantes. De acordo com Marco (2000 apud CACHAPUZ et al. 2005), diferentes propostas surgiram, mas todas tiveram três elementos comuns para o currículo científico básico:
Alfabetização científica prática, que permita utilizar os conhecimentos na vida diária com o fim de melhorar as condições de vida, o conhecimento de nós mesmos, etc. Alfabetização científica cívica, para que todas as pessoas possam intervir, com critério científico, em decisões políticas. Alfabetização científica cultural, relacionada com os níveis da natureza da ciência e da tecnologia e a sua incidência na configuração social (MARCO 2000 apud CACHAPUZ et al., 2005, p.22).
Para Krasilchik (2008), o conceito de “alfabetização biológica” (ou científica) é um processo contínuo de construção de conhecimentos necessários a todos os indivíduos que convivem nas sociedades contemporâneas. Por isso, uma alfabetização científica básica deve permear o currículo escolar, uma vez que os espaços educativos têm a capacidade de oferecer uma integração diversificada dos estudantes com os múltiplos saberes científicos que perpassam todas as áreas do conhecimento humano. A autora descreve quatro níveis de alfabetização científica:
- Nominal – quando o estudante reconhece os termos, mas não sabe seu significado biológico.
- Funcional – quando os termos memorizados são definidos corretamente, sem que os estudantes compreendam seu significado.
- Estrutural – quando os estudantes são capazes de explicar adequadamente, em suas próprias palavras e baseando-se em experiências pessoais, os conceitos biológicos.
- Multidimensional – quando os estudantes aplicam o conhecimento e as habilidades adquiridas, relacionando-os com conhecimentos de outras áreas, para resolver problemas reais (KRASILCHIK, 2008, p.12).
Atingir o nível multidimensional seria a meta das discussões dos educadores no EC ou no EB. Desta forma, além de compreender os conceitos básicos da disciplina, os alunos devem estar capacitados a articular o seu pensamento de forma independente, aplicando seu conhecimento na vida e intervindo para resolver os problemas (KRASILCHIK, 2008).
Entretanto, não é tarefa fácil romper com referências firmadas e utilizadas há décadas e adotar novos saberes e posturas para a construção de um novo ensino. No entanto, Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002) destacam alguns desafios urgentes para as transformações que a educação escolar necessita enfrentar, incidindo sobre os cursos de formação inicial e continuada dos professores. De forma resumida, são eles:
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Superação do senso comum pedagógico – a apropriação de conhecimentos ocorre pela simples transmissão mecânica de informações.
Esse tipo de senso comum está marcadamente presente em atividades, como: regrinhas e receituários; classificações taxonômicas; valorização excessiva pela repetição sistemática de definições; funções e atribuições de sistemas vivos ou não vivos; questões pobres para prontas respostas igualmente empobrecidas; uso indiscriminado e acrítico de fórmulas e contas em exercícios reiterados; tabelas e gráficos desarticulados ou pouco contextualizados relativamente aos fenômenos contemplados; experiências cujo objetivo é a “verificação” da teoria ...
Esses tipos de atividades de ensino acabam caracterizando a ciência como um produto acabado e inquestionável, que favorecem a ciência morta e só reforçam o desligamento do uso de modelos e teorias para a compreensão de fenômenos naturais e provenientes das transformações humanas.
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Ciência para todos – é um desafio pôr o saber científico ao alcance da população escolar sem precedente, uma vez que, além do contingente estudantil ter aumentado, as formas de expressão, as crenças, os valores, as expectativas e a contextualização sociofamiliar dos alunos são outros. Não se pode mais ter um ensino voltado predominantemente para formar cientistas na educação básica.
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Ciência e tecnologia como cultura – o trabalho docente precisa ser direcionado para sua apropriação crítica pelos alunos, de modo que se incorpore efetivamente no universo das representações sociais e se constitua como cultura. A ação docente demandará construir o entendimento de que o processo de produção de conhecimento que caracteriza a ciência e a tecnologia constitui uma atividade humana, sócio-historicamente determinada, submetida a pressões internas e externas, com processos e resultados ainda pouco acessíveis à maioria das pessoas escolarizadas, sendo um processo de produção que precisa ser apropriado e entendido. Assim, a concepção de ciência e tecnologia aponta para um conjunto de teorias e práticas culturais.
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Incorporar conhecimentos contemporâneos em ciência e tecnologia – os conhecimentos de ciência e tecnologia vêm sendo expostos de forma contínua e sistemática, porém, o sistema escolar trabalha de forma reduzida na divulgação desses conhecimentos. A produção de materiais didáticos, como os didáticos, os paradidáticos e materiais digitais em páginas na rede web e CD-ROMs, tem considerado os conhecimentos mais recentes, os quais vêm sendo utilizados por uma minoria de professores. Neste sentido, os conhecimentos de ciência e tecnologia fundamentais para a formação cultural dos alunos devem ser incorporados de forma mais incisiva e abrangente pelo sistema educacional.
- Superação das insuficiências do livro didático – ainda é consenso que o livro didático é a principal referência como instrumento de trabalho utilizado pela maioria dos professores.
Pesquisas realizadas sobre o livro didático desde a década de 1970 têm apontado para as suas deficiências e limitações, implicando um movimento que culminou com a avaliação institucional, a partir de 1994, dos livros didáticos distribuídos nas escolas públicas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).
Apesar de o livro didático atualmente ser produzido por pesquisadores da área, tem-se a clareza de que o professor não pode tê-lo como única fonte de referência didática. As contribuições paradidáticas, como livros, revistas, jornais (impressos e digitais), CD-ROMs, TVs educativas e de divulgação científica (cabo ou parabólica), rede web e laboratório para aulas práticas devem estar mais presentes e de forma mais organizada na educação escolar. Além disso, os espaços de divulgação científica e cultural (museus, laboratórios abertos, planetários, parques especializados, exposições, feiras e clubes de ciências) devem fazer parte do processo de ensino-aprendizagem de forma planejada e articulada, e não apenas serem tomados como espaços educativos de lazer ou complementares.
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Aproximação entre pesquisa em ensino de Ciências e ensino de Ciências – apesar de a pesquisa em educação em Ciências ser recente, desde aproximadamente a segunda metade do século XX, a nossa produção é comparável à dos países mais avançados. Os resultados dessas pesquisas têm sido bastante difundidos devido ao número de congressos, revistas para publicação e referências mútuas utilizadas. Todavia, o debate sistemático e a reconstrução do resultado das pesquisas não têm chegado de forma adequada às salas de aula e na prática dos docentes dos três níveis.
Salvo poucas exceções, a formação de professores, na maioria dos cursos, desconsidera essas perspectivas, ficando mais próxima das décadas de 1970 e 1980 do que as atuais. Essas perspectivas implicam em mudanças estruturais e de atitudes dos envolvidos nessa formação.
Em nosso entendimento essas perspectivas não podem ficar restritas a uma modalidade específica da formação, como uma prerrogativa muitas vezes atribuída à formação continuada, mas devem permear todas as suas dimensões e modalidades: inicial e continuada, presencial e à distância, específica da área e de cunho mais geral (DELIZOICOV, ANGOTTI e PERNAMBUCO, 2005, p. 42).
Com a produção e difusão dos parâmetros curriculares nacionais (PCN) pelo Ministério da Educação (MEC), no final da década de 1990, era meta para o EB difundir os princípios da reforma curricular e orientar o professor na busca de novas metodologias e abordagens (PCN, 1999). Assim, para Krasilchik (2008), os objetivos do EB são aprender os conceitos básicos, analisar o processo de investigação científica e analisar as implicações sociais da ciência e da tecnologia, considerando-se as seguintes dimensões:
ambiental – motivando o aluno a analisar o impacto da atividade humana no meio ambiente e a buscar soluções para os problemas decorrentes; filosófica, cultural e histórica – levando o estudante a compreender o papel da ciência na evolução da humanidade e sua relação com a religião, a economia, a tecnologia, entre outras. (KRASILCHIK, 2008, p.20).
Os alunos, conhecendo os avanços da ciência e tecnologia, podem relacionar os conceitos biológicos básicos na prevenção e cura de doenças, bem como fundamentar e resguardar posições éticas relacionadas a temas polêmicos, como propriedade das descobertas científicas, aborto, eutanásia, terapia com células tronco, biodiversidade e relações internacionais, construção de usinas hidrelétricas e nucleares etc.
Para ilustrar a importância dessa vertente no EC/EB, cito um exemplo característico da ausência de formação dos cidadãos referente ao conhecimento científico e tecnológico – o acidente com o Césio-137, em Goiânia. Esse acidente poderia ter sido evitado se o entendimento sobre radioatividade (benefícios e malefícios) fosse disseminado em uma educação básica. Ou, pelo menos, o símbolo internacional da radiação (trifólio) fosse conhecido por todos.
Um dos maiores acidentes com o isótopo Césio-137 teve início no dia 13 de setembro de 1987, em Goiânia, Goiás. O desastre fez centenas de vítimas, todas contaminadas através de radiações emitidas por uma única cápsula que continha césio-137. O instinto curioso de dois catadores de lixo e a falta de informação foram fatores que deram espaço ao ocorrido. Ao vasculharem as antigas instalações do Instituto Goiano de Radioterapia (também conhecido como Santa Casa de Misericórdia), no centro de Goiânia, tais homens se depararam com um aparelho de radioterapia abandonado. Então tiveram a infeliz ideia de remover a máquina com a ajuda de um carrinho de mão e levaram o equipamento até a casa de um deles. O maior interesse dos catadores era o lucro que seria obtido com a venda das partes de metal e chumbo do aparelho para ferros-velhos da cidade. Leigos no assunto, não tinham a menor noção do que era aquela máquina e o que continha realmente em seu interior. Após retirarem as peças de seus interesses, o que levou cerca de cinco dias, venderam o que restou ao proprietário de um ferro-velho.
O dono do estabelecimento era Devair Alves Ferreira que, ao desmontar a máquina, expôs ao ambiente 19,26 g de cloreto de césio-137 (CsCl), um pó branco parecido com o sal de cozinha que, no escuro, brilha com uma coloração azul. Ele se encantou com o brilho azul emitido pela substância e resolveu exibir o achado a seus familiares, amigos e parte da vizinhança. Todos acreditavam estar diante de algo sobrenatural e alguns até levaram amostras para casa. A exibição do pó fluorescente decorreu 4 dias, e a área de risco aumentou, pois parte do equipamento de radioterapia também fora para outro ferro-velho, espalhando ainda mais o material radioativo.
Algumas horas após o contato com a substância, vítimas apareceram com os primeiros sintomas da contaminação (vômitos, náuseas, diarreia e tonturas). Um grande número de pessoas procurou hospitais e farmácias clamando dos mesmos sintomas. Como ninguém fazia ideia do que estava ocorrendo, tais enfermos foram medicados como portadores de uma doença contagiosa [...].
[...] As remediações não foram suficientes para evitar que alguns pacientes viessem a óbito. Entre as vítimas fatais estava a menina Leide das Neves, seu pai Ivo, Devair e sua esposa Maria Gabriela, e dois funcionários do ferro-velho. Posteriormente, mais pessoas morreram vítimas da contaminação com o material radioativo, entre eles, funcionários que realizaram a limpeza local.
O trabalho de descontaminação dos locais atingidos não foi fácil. A retirada de todo o material contaminado com o césio-137 rendeu cerca de 6.000 toneladas de lixo (roupas, utensílios, materiais de construção etc.). Tal lixo radioativo encontra-se confinado em 1.200 caixas, 2.900 tambores e 14 containers (revestidos de concreto e aço) em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, onde deve ficar por aproximadamente 180 anos [...].
[...] Atualmente as vítimas reclamam da omissão do governo para a assistência da qual necessitam, tanto médica como de medicamentos. Fundaram a Associação de Vítimas contaminadas do Césio-137 e lutam contra o preconceito ainda existente.
O acidente com Césio-137 foi o maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora das usinas nucleares.
Por Líria Alves – Graduada em Química. Fonte: brasilescola.com