VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-997623-7-6
Volume 3

Experiências Críticas de Ensino na Educação Básica:

Educação Sexual, Questões Étnico-raciais, Inclusivas e Ambientais

Prefácio

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O Brasil é o homem que tem sede
Ou o que vive na seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo
O que vai é o que vem na contramão?
A Cara do Brasil (Vicente Barreto, 1999)


Reconhecemos amplamente que vivemos em tempos sombrios no mundo e, em particular, nos territórios brasileiros. Cargos institucionais centrais têm sido tomados por grupos que, para além de qualquer alinhamento ideológico, possuem como único projeto político a obtenção de benefícios pessoais imediatos, a perpetuação de privilégios, a privatização de bens públicos e a acumulação desigual de recursos materiais – à custa de violências e devastações generalizadas nos campos ético, democrático, humanitário e ambiental; e dos subterfúgios mais sórdidos para permanência no poder (que, esperamos, que não lograrão êxito). Essa tomada do poder institucional não pode ser entendida como episódio incidental de nossa história, mas sim como parte de uma investida planejada, uma reedição de estratégias de manutenção de quadros econômicos, que, para seguirem impondo seus padrões de dominação, hoje precisam lançar mão do autoritarismo político, do conservadorismo moral, do obscurantismo cultural e do negacionismo científico, como formas de recrudescimento da ignorância intelectual e afetiva e da violência física e simbólica.

Temos apontado também como essas investidas de violência e devastação nos colocaram em estados de surpresa, nos atropelaram e, por vezes, nos paralisaram. Frequentemente, e com espanto, nos vemos pensando como foi possível pessoas que defendem posicionamentos tão desprezíveis terem conseguido tomar, de supetão, cargos de tanta centralidade, trazendo de volta à pauta política questões que supúnhamos há muito superadas.

No campo da Educação, tais investidas se manifestam, sobretudo, em forma de desmontes e retrocessos em políticas públicas impostas de forma verticalizada e não dialogada, e como intervenções, perseguições e vigilâncias do trabalho docente, ameaçando conquistas que considerávamos consolidadas. Entre professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores no campo da Educação é razoavelmente consensual a posição de que é preciso resistir a essas investidas.

Entretanto, uma vez reconhecendo que temos enfrentado gravíssimos retrocessos no campo da Educação, a construção de movimentos de resistência demanda reflexões com respeito a algumas questões cruciais, a saber: Em relação a quais conjunturas sociais e políticas retrocedemos? Em direção a quais lugares queremos que esses movimentos nos desloquem? Ou seja: é necessário qualificar essa resistência. Para que tais movimentos de resistência sejam legítimos e efetivos, precisamos, antes de tudo, sair dos estados de surpresa em que nos colocamos – os quais podem nos levar a posições de isenção ou autoindulgência.

03

Para pensar acerca das conjunturas em relação às quais retrocedemos, devemos refletir sobre os percursos de constituição histórica dos territórios que hoje se denominam Brasil, ao longo dos quais a instituição Escola sempre foi atravessada por tensionamentos entre resistências e retrocessos. Dessa perspectiva, podemos trazer à superfície de nossas consciências memórias sociais apagadas, que nos ensinam que os percursos históricos que nos constituem como corpos-territórios foram e são assentados sobre sucessivas devastações e violências físicas, simbólicas e epistêmicas – que hoje se atualizam com novos genocidas. Essa conscientização pode ajudar a desfazer os estados de surpresa em que, por vezes, nos encontramos, pois nos abre os olhos para o entendimento de que os terrenos que deram sustentação aos atuais desmontes e retrocessos sempre estiveram subjacentes a nossos percursos históricos, ocultados por narrativas idealizadas e romantizadas. Falando de forma mais explícita, tais estados de surpresa podem revelar sintomas de que ainda operamos, em alguma medida, com o mito da cordialidade social e racial em um país que insiste em dissimular sua face violenta e intolerante. Sair dos estados de surpresa em que nos colocamos é um primeiro passo para abdicar definitivamente desses mitos (pois vivemos em tempos de destruir mitos) e encarar nossas histórias. Mais ainda, precisamos refletir acerca de como nos entendemos como sujeitos históricos e como atuamos politicamente nesses percursos, a partir dos lugares sociais em que nos situamos, lugares esses assimetricamente constituídos por intersecções de raça, de gênero, de orientação sexual, de ancestralidades e de origens, de crenças e de ideologias.

Assim, pensar sobre os lugares para onde queremos nos deslocar com nossos movimentos de resistência no campo da Educação requer reflexões sobre nossa atuação política ao longo de nossos próprios percursos subjetivos e profissionais como professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores na área. Por meio dessas reflexões, é preciso abrir mão, em nossos afetos, saberes e fazeres, de ideias de é possível haver uma escola sem ideologia, uma prática pedagógica permeada de ideologia e outra politicamente neutra (como se tem tentando vender nesses tempos sombrios); de que é possível produzir e praticar currículos constituídos apenas por conteúdos disciplinares e não por subjetividades, corporalidades e, sobretudo, por diferenças. Ademais, é preciso assumir a impossibilidade de separar conteúdos disciplinares de questões socialmente críticas, como compromisso ético, epistêmico e político estruturante de nossas práticas docentes e de pesquisa.

É, pois, a partir dessa ótica que as contribuições que integram o presente volume devem ser lidas. As experiências críticas em educação com questões de sexualidade, étnico-raciais, inclusivas e ambientais aqui relatadas nos apontam caminhos para incorporar esse compromisso em nossas práticas.



Victor Giraldo
Programa de Pós-Graduação em Educação
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemático
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Notas

1. https://youtu.be/XJp24DoZ1A0