Os Impactos dos Atuais Direcionamentos das Políticas Educacionais Brasileiras no Ensino da Sociologia
Somente quis sugerir que o sociólogo, como homem da sociedade de seu tempo, não pode se omitir diante do dever de pôr os conhecimentos sociológicos a serviço das tendências de reconstrução social.
(FLORESTAN FERNANDES, 2004)
Introdução
Apesar de uma história recente, os caminhos da sociologia enquanto disciplina ministrada na educação básica é reconhecidamente tortuoso, permeado de avanços e recuos em sua institucionalização, em uma dinâmica entrelaçada com a própria história da Educação no Brasil, que por sua vez também se encontra na dinâmica da própria formação social brasileira.
Com a criação da Lei nº 11.684 de 2008, que tornou obrigatório o ensino de sociologia em todas as séries do ensino médio, sua inclusão na Política Nacional do Livro Didático (PNLD) e no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), o entusiasmo no conjunto dos profissionais das Ciências Sociais foi grande em relação à consolidação da área na educação básica. Convivia-se na recente conjuntura com a ampliação de vagas e cursos em Ciências Sociais, que acompanharam a política de expansão das instituições de ensino superior entre os anos de 2003 e 2016. Os desafios suscitados giravam basicamente em torno de como consolidar o ensino de sociologia quanto às suas práticas, à formulação de materiais pedagógicos, à formação do profissional diante de uma nova demanda e à sua adequação à realidade de jovens do ensino médio brasileiro. Pôde-se constatar, ainda, o aumento do número de pesquisas sobre esta área de ensino (ENGERROFF; CIGALES; THOL, 2017).
Considerando-se a relevância social destes desafios, a legitimidade desse entusiasmo assenta-se no fato de que a volta do ensino de sociologia na educação básica fez parte do conjunto de conquistas dos movimentos sociais da educação, que se forjaram especialmente no período denominado como redemocratização brasileira a partir da década de 1980. Essa progressividade de conquistas, mesmo com descaminhos e ritmos fora do idealizado, chocou-se, entretanto, com as posteriores reverberações socioeconômicas no Brasil da crise sistêmica que circunda o capital internacional desde meados de 2008. Dentre estas, a instabilidade das instituições políticas representativas teve como epicentro o golpe jurídico-parlamentar que depôs a presidente Dilma Rousseff por um processo de impeachment frágil e pouco legítimo do ponto de vista de muitos analistas (JINKINGS, DORIA, CLETO, 2016).
A atual conjuntura de políticas públicas no Brasil é marcada por uma recente rearticulação do bloco de poder no Estado, que exclui o Partido dos Trabalhadores (PT) e aproxima setores históricos da direita política, como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e os Democratas (DEM), sob o comando do até então vice-presidente Michel Temer e sua agremiação, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Esta reconstituição no bloco no poder, que apresentou-se como sustentáculo de uma possível saída da crise econômica no Brasil (visando superávit primário e a reversão da queda das taxas de lucro), caracteriza-se pelo aprofundamento da agenda de interesses do capital, assentada em reformas voltadas à redução do custo da reprodução da força de trabalho, a desnacionalização e privatização de recursos estratégicos e, de forma mais aguda, o movimento de reprimarização econômica.
194O objetivo deste texto é convidar o(a) leitor(a) à reflexão sobre os impactos das recentes mudanças das políticas educacionais quanto ao ensino da sociologia, a partir da complexidade das conexões da trama social e política que urde o campo da luta de classes na sociabilidade do capital. Para tanto, temos como ponto de partida a reflexão sobre a sociologia no contexto educacional brasileiro e sua funcionalidade ao sistema social, com fim a apresentar a natureza das orientações educacionais no contexto neoliberal e de reestruturação produtiva, sobretudo quanto à necessidade de formação de um(a) trabalhador(a) de novo tipo. Em seguida, analisaremos de forma mais aproximada ações públicas e privadas que ganharam terreno na formulação das políticas educacionais e que repercutem diretamente sobre o ensino de sociologia, nosso enfoque de análise.
Reestruturação produtiva e educação no Brasil: os direcionamentos educacionais no contexto neoliberal
O exercício de análise aqui empenhado não prima por considerar o ensino de sociologia de forma isolada em si mesmo, ainda que isso signifique empreender a problematização de uma totalidade da realidade social muito complexa e que, certamente, não se esgotará neste texto. Entretanto, consideramos que só é possível compreender a condição do ensino de sociologia de uma forma rica de sentido se partirmos das mediações com o contexto histórico no qual se insere.
Segundo István Mészáros (2005, p. 35), em uma sociedade organizada pela separação entre capital e trabalho, a educação institucionalizada se torna funcional por fornecer “os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”. Podemos adicionar também a funcionalidade da educação enquanto mercadoria reificada e que gera mais valor, objeto, portanto, de acumulação de capital – isso nos ajuda muito a entender a situação precária do sistema público de ensino que tem cada vez mais cortes de recursos orçamentários. Nesse sentido, os processos educacionais e os processos mais abrangentes de reprodução social do capital estão umbilicalmente ligados.
Antes de avançarmos para a análise propriamente da contextualização do ensino de sociologia no Brasil em tempos de neoliberalismo e reestruturação produtiva, é importante ressaltar brevemente algumas especificidades do capitalismo brasileiro a partir do século XX. Isso se faz necessário para a compreensão da singularidade da consolidação do neoliberalismo no Brasil, que teve seu auge a partir dos anos de 1990.
Florestan Fernandes (2004), ao pensar a estrutura da sociedade brasileira, observa que o regime de classes em sociedades nacionais possui uma lógica que combina um certo grau de autonomia do desenvolvimento interno com um controle estratégico e direto das estruturas internacionais de poder. No caso brasileiro, uma sociedade que foi erigida sobre uma ordem colonialista escravocrata, a inserção enquanto uma nação capitalista emancipada é caracterizada por uma condição tipicamente tardia e de dependência econômica, sociocultural e política (FERNANDES, 2004).
Dessa forma, a integração do Brasil no sistema econômico mundial foi marcada pela especialização nas atividades produtivas ligadas a uma economia primária-exportadora, que prevaleceu em todas as fases históricas da evolução mundial do capitalismo e sua divisão internacional do trabalho (POCHMANN, 2000). Esta posição heteronômica na economia internacional gera um grande contingente da classe trabalhadora brasileira extremamente precário e superexplorado – não-pago, semi pago ou pago de modo ultradepreciado frente ao padrão médio internacional de assalariamento – que não consegue usufruir integralmente de uma estrutura de bem-estar social gerada pelo padrão civilizatório capitalista, como garantias sociais, dentre elas a educação (FERNANDES, 1972).
195Podemos relacionar esta caracterização com a evolução histórica das políticas educacionais no Brasil. Justamente pela subordinação da lógica educacional institucional aos imperativos da dinâmica econômica e produtiva, a universalização da educação no Brasil avançou na medida em que se desenvolvia uma sociedade urbano-industrial e urbano-comercial, que demandava uma especialização da força de trabalho, que pudesse ser escolarizada/alfabetizada para lidar com os códigos e linguagens de um mundo moderno e racionalizado.
A própria institucionalização das Ciências Sociais no Brasil seguiu esse movimento, apesar da existência do ensino de sociologia no sistema escolar pouco antes do surgimento dos primeiros cursos acadêmicos (MEUCCI, 2000). Não por coincidência, nas primeiras décadas do século XX (que marcam o início da industrialização brasileira) se origina a primeira cátedra de sociologia, em São Paulo, com a criação da Escola Livre de Sociologia Paulista (1933). Havia uma demanda de uma disciplina científica especializada capaz de lidar com os problemas sociais provocados por um processo de modernização brasileira. Também têm relevância neste processo necessidades ligadas ao próprio projeto modernizador e integrador empreendido pelas classes dominantes, que incluiu a constituição de uma identidade nacional (moral civilizadora), por sua vez auxiliada pelas investigações sobre a formação social brasileira – destaque para os estudos de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda, considerados como grandes intérpretes do Brasil.
A partir dos anos de 1930 e 1940 observamos a nacionalização da disciplina de sociologia escolar, mas, conforme afirma Meucci (2000), comprometida com os interesses ideológicos da ditadura do Estado Novo. Ao longo da trágica história democrática brasileira, que se reveza com períodos ditatoriais e de exceção, a sociologia foi paulatinamente perdendo espaço e sendo substituída por outras denominações como Estudos Sociais, Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e Cívica, Formação Social – todas essas visando a formação de uma cidadania tutelada e controlada pelo projeto de Estado das classes dominantes, que teve como seus anos mais duros a experiência da ditadura civil-militar (1964-1985).
Somente com o movimento de redemocratização e a luta pelo fim do regime ditatorial no final dos anos de 1980 é que houve a possibilidade da volta do ensino de sociologia associada à formação de uma prática cidadã democrática. Isto, certamente, imbuído por um clima social em que os movimentos sociais e as classes populares conseguiram imprimir no novo pacto que resultou na Constituição de 1988 (chamada de “Constituição cidadã”) algumas demandas históricas. Adiante, abordaremos o próprio significado atribuído à ideia de cidadania no avanço do processo neoliberal no Brasil, o qual alterou-se e contrasta de forma contraditória com a perspectiva dos movimentos sociais populares e da própria Constituição “cidadã”.
Já nas décadas finais do século XX, especificamente a partir da década de 1970, a sociedade contemporânea passa a vivenciar um conjunto de transformações que afetaram suas formas de ser e realizar-se, tanto nas esferas da materialidade quanto da subjetividade. Estas transformações sob a ordem social do capital se assentam sobre o terreno dos impactos do ideário neoliberal e da reestruturação produtiva flexível. Trata-se de respostas a uma crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009), que abre um processo depressivo contínuo após um longo período de acumulação que ocorreu no apogeu do modelo de produção fordista e o Estado de Bem-Estar-Social (Keynesiano). Seus impactos se expressam em profundas mutações no mundo do trabalho e nas políticas públicas do Estado.
196No cenário da reestruturação produtiva, segundo Antunes:
O capital deflagrou, então, várias transformações no próprio processo produtivo, por meio da constituição das formas de acumulação flexível, do downsizing, das formas de gestão organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos alternativos ao binômio tayalorismo/fordismo, em que se destaca especialmente o “toyotismo” ou o modelo japonês (ANTUNES, 2009, p.49).
As consequências práticas deste cenário no mundo do trabalho são: a intensificação das condições de exploração da força de trabalho, o crescimento do desemprego estrutural e de postos de trabalhos precarizados, aumento da fragmentação da classe trabalhadora e destruição do sindicalismo de classe. O quadro que se manifesta, portanto, é de uma expansão do capital que intensifica ainda mais a exploração social do trabalho (vale lembrar também dos recursos naturais), levando à constatação de que não havendo limites nesse processo de expansão converte-se em uma processualidade incontrolável e profundamente destrutiva (MÉSZÁROS, 2009).
A acumulação flexível exige uma produção vinculada à demanda, visando atender às exigências mais individualizadas do mercado consumidor, fundada no trabalho em equipe e multivalente, sob uma estrutura horizontalizada e terceirizada (ANTUNES, 2009). Impõe-se ao trabalhador(a) sua adequação a um perfil mais “competente”, participativo, multifuncional polivalente, de uma subjetividade fragmentada que faz apologia ao individualismo exacerbado (ANTUNES, 2009).
Segundo Batista (2010), eleva-se à centralidade a educação básica e sua funcionalidade quanto à formação profissional que garanta uma força de trabalho que possua as “competências” para atender as necessidades do mercado. Competências estas ligadas às funções técnico-operativas que exigem “a capacidade de manipular signos, símbolos e códigos, de modo que as comunicações orais e escritas tornam-se imprescindíveis à atividade produtivas” (SOUZA, 2010).
A noção de competências diz respeito a um conjunto de habilidades que a educação do trabalhador deve levá-lo a adquirir e desenvolver. Surgida no espaço das fábricas, assenta-se na lógica que foca na constituição de atributos individuais – ao tratar precisamente de competências individuais, em contraposição à qualificação para o posto de trabalho, predominante no fordismo-taylorismo.
Zarifian (2001) afirma que as competências se relacionam, ainda, com o envolvimento pessoal dos indivíduos enquanto sujeitos das ações, caracterizando-se por capacidades dos indivíduos de tomar iniciativa e assumir responsabilidades diante de situações profissionais concretas. Podemos ressaltar, neste arranjo, a demanda pela capacidade de resiliência que sujeita o trabalhador a uma conformação psicofísica capaz de se adequar às várias mudanças que podem ocorrer ao longo do processo produtivo.
Às redefinições na rotação do capital, alinha-se a matriz político-ideológica neoliberal que, de cariz conservador, questiona:
(…) a regulação keynesiana macroeconômica, a propriedade pública das empresas, o sistema fiscal progressivo, a proteção social, o enquadramento do setor privado por regulamentações estritas, especialmente em matéria de direito trabalhista e representação dos assalariados (DARDOT, LAVAL, 2016, p.189).
No caso brasileiro, o neoliberalismo ganha força a partir dos anos de 1990, com as políticas empreendidas pelo governo Fernando Collor, aprofundando-se a partir da gestão de Fernando Henrique Cardoso. O fato é que destas décadas até os dias atuais, perpassando os precedentes governos do Partido dos Trabalhadores, o Estado brasileiro manteve-se alinhado aos interesses dos investidores internacionais e dos bancos e fundos de investimentos nacionais, organizando os interesses das demais frações burguesas nas rotas do campo financeiro (BOITO JR., 2006).
197Boito Jr. (2006) sintetiza os elementos que qualificam a política neoliberal e auxiliam na caracterização destas relações na formação social brasileira:
Um elemento geral e permanente da política neoliberal que atende ao interesse do conjunto da burguesia e do imperialismo é a política de desregulamentação do mercado de trabalho, de redução de salários e de redução ou supressão de gastos e direitos sociais [...]; O segundo elemento importante do modelo neoliberal, a política de privatização, não é tão ecumênico como o anterior. Esse elemento tem marginalizado o pequeno e o médio capital e favorecido apenas as grandes empresas monopolistas e o imperialismo. [...] A partir da privatização das empresas de energia elétrica, o capital estrangeiro começou a investir significativamente na compra de estatais, processo que atingiu o seu clímax na privatização das empresas de telefonia, quando capitais de origem espanhola e portuguesa tiveram um papel predominante no processo [...]; O terceiro componente da política neoliberal é mais exclusivista que o segundo, pois marginaliza uma parte do grande capital, que é a fração hegemônica no bloco no poder [...]. Apenas o setor bancário do capital monopolista e o capital imperialista têm seus interesses plenamente contemplados por essa política mais restrita (BOITO JR., 2006, p. 272-274).
É possível afirmar que a dependência estrutural encontrou bases ideológicas e materiais para se reproduzir a partir da estratégia neoliberal de desenvolvimento, arrimado na disseminação ideológica de que reformas estruturais de incentivo ao livre funcionamento dos mercados, o fortalecimento da iniciativa privada e menor presença estatal nas atividades econômicas seriam medidas condicionantes de crescimento econômico com distribuição de renda (MARIANO, 2016). Caracterizada por Amaral (2007, p. 01) pela “transferência de recursos (valor, nos termos marxistas) na forma financeira, através do pagamento de juros e amortizações em razão de endividamentos externos crescentes”, destaca-se que esta nova fase da dependência:
[...] aprofunda as condições estruturais da dependência e, por outro lado, assume uma maior face na valorização do capital fictício, que é um tipo de capital que se desdobra tendo como base o capital portador de juros financiador do investimento produtivo (AMARAL, 2007, p. 01-02).
É sob este prisma que o Brasil dos anos 1990, bem como interpreta Oliveira (2000), inicia um processo de erosão simbólica dos direitos, expressada no abandono paulatino das agendas de governo do compromisso com direitos e demandas coletivas fundamentais – que retomaremos na segunda parte deste texto.
A educação (assim como outras áreas sociais) é convertida em um setor de serviços não-exclusivos, estimulando sua conversão à lógica mercantil com forte expansão do setor privado e redução do papel do Estado nos investimentos e na regulação, admitindo inclusive a participação do setor empresarial na sua gestão e formulação de políticas públicas. Com seus alinhamentos e contradições presentes nos últimos governos que marcaram o final do século XX e o início do século XXI, esta foi a tônica hegemônica das classes dominantes e que perpassou as políticas educacionais brasileiras nas últimas duas décadas. Podemos elencar como principais eixos característicos: a) redução do compromisso do Estado, centrando-se apenas na educação básica e na formação profissional de natureza instrumental, b) incentivo das parcerias público-privadas em todos os níveis e modalidades de ensino, legitimando as iniciativas empresariais, c) expansão do setor privado na educação, em especial na modalidade do ensino superior, d) subordinação das políticas de financiamento às diretrizes de ajuste fiscal e juros altos que alimentam o sistema financeiro da dívida pública.
198Soma-se, ainda, o fortalecimento na área da educação do ideário ligado às teorias do capital humano – que valoriza o desempenho individual como determinante da condição de cada um na sociedade – e da Responsabilidade Social Empresarial – que por meio de instituições e fundações do chamado “terceiro setor” passam a ocupar lugar privilegiado no trato da “questão social”.
Por certo, estas redefinições não ocorreram de forma harmônica. Muito ao contrário, as resistências empreendidas pelos movimentos sociais brasileiros propiciaram que, desde a redemocratização brasileira, as empreitadas neoliberalistas tenham enfrentado e sido condicionadas a institucionalizar conquistas significativas às lutas da sociedade civil organizada. Voltando a análise propriamente do ensino de sociologia, sua volta às escolas da educação básica representa, em parte, uma conquista dessas lutas, mas em outra a sua inserção na lógica curricular ditada pelas forças políticas hegemônicas das classes dominantes.
O ensino da sociologia no contexto das recentes reformas
A lei nº 9.394/96, que estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, recolocou a sociologia na educação básica apontando o seu domínio, juntamente com a filosofia, como “necessários ao exercício da cidadania”. Mesmo assim, a figuração da sociologia nesta peça legislativa evidencia dubiedades: não deixava objetivamente concreta a forma de sua participação no sistema de ensino como disciplina obrigatória. Na prática significou relegar o conhecimento como um “tema interdisciplinar” a ser diluído nas disciplinas ligadas às ciências humanas ou não, à critério das instituições de ensino.
Tal interpretação foi confirmada nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM), do Parecer CNE/CEB 15/98 e da Resolução CNE/CEB 03/98. A não atribuição da sociologia como uma disciplina pela legislação, aprofundou por um lado o seu não reconhecimento e/ou ocultamento proposital como uma disciplina científica autônoma, colaborando para a ideia de que qualquer profissional ligado às ciências humanas ou áreas afins poderia ministrar seu conteúdo.
Em 1997, foi apresentado um Projeto de Lei (PLC n. º 9/2000), de autoria do Deputado Federal Padre Roque Zimmermann, para tornar obrigatória a sociologia e a filosofia no ensino médio. Este projeto vinha a atender as reivindicações das entidades estadual e nacional de sociólogos, como da Federação Nacional dos Sociólogos - Brasil (FNSB). Entretanto, após o projeto de lei ter sido aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, o mesmo foi vetado (veto nº 33 de 2001) no dia oito de outubro de 2001, pelo então presidente, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Como aponta a própria justificativa do veto, tratava-se de evitar um ônus para o Estado com mais duas disciplinas a serem ofertadas – uma postura que encarna e concretiza a perspectiva neoliberal. A conquista da aprovação da obrigatoriedade da disciplina só se deu, após anos de muita luta, no ano de 2008 (Lei nº11.684/2008).
Outro aspecto importante a ser contextualizado é a ideia de cidadania presente na legislação educacional, na qual o conhecimento sociológico é tido como uma das condições necessárias. Na legislação tal definição não se apresenta de forma nítida e especificada, mas em um movimento pendular contraditório que faz com que a noção de cidadania ora esteja voltada para uma concepção emancipatória e humanizadora, ora esteja focada na noção de um indivíduo-cidadão-consumidor voltado para o mercado de trabalho. Temos por certo que este movimento resulta das tentativas de individualizar e despolitizar os sujeitos sociais, almejadas pelas classes dominantes para a desconstrução do conceito de cidadania formulado pelos setores populares organizados em movimentos sociais que inclui a universalização dos direitos sociais.
199Sabemos que a construção da cidadania está amplamente vinculada ao processo de construção democrática de um país, constituindo um ponto de disputa entre diversos setores sociais. Com o avanço do neoliberalismo, o conceito de cidadania fundado na universalização de direitos reconhecidos e garantidos pelo Estado é substituído por outro, que se apoia na crescente desresponsabilização do Estado sobre a garantia dos direitos de cidadania. Fato é que este movimento de redefinição do conceito de cidadania pelo neoliberalismo repercute sobre a consolidação do ensino de sociologia no sistema educacional básico brasileiro.
O conhecimento sociológico, dada a sua natureza científica e crítica ao analisar a realidade social, muitas das vezes se contrasta com as interpretações hegemônicas que perseveram ideologicamente na manutenção de um status quo, em que grupos dominantes se beneficiam e garantem sua permanência na dominação social. Daí seu potencial contraditório de formação de um sujeito politicamente ativo e crítico em relação à concepção de cidadania neoliberal. O próprio documento “Orientações Curriculares do Ensino Médio” reconhece o papel da sociologia em “desnaturalizar” e “estranhar” o mundo social instituído, o que pode ser percebido como uma ameaça para alguns setores da sociedade brasileira. Em muitos casos, por uma correlação e contextualização de forças sociais, os profissionais do ensino de sociologia fizeram valer aquilo que Florestan Ferandes (2004) atribui ao papel da sociologia no Brasil como uma disciplina crítica e militante a serviço da construção democrática e do desenvolvimento social.
Não por acaso, após uma conjuntura de crise política e social, que se abre a partir de 2013, o ensino de sociologia voltou a sofrer um forte revés por pelo menos dois movimentos que se articulam politicamente em um mesmo bloco político. De um lado, localizado na sociedade civil, o surgimento de movimentos conservadores como o “Escola sem Partido” tem provocado perseguições e ameaças a profissionais da educação, sobretudo professores de sociologia e demais ciências humanas. De outro lado, a aprovação da lei nº 13.415/2017 institui a Reforma do Ensino Médio retirando a obrigatoriedade da sociologia enquanto disciplina na educação básica.
O movimento “Escola sem Partido” reverbera o intento de segmentos da sociedade civil ligados ao campo do conservadorismo em sufocar qualquer iniciativa de constituição de um saber plural que constitua uma consciência holística e crítica, e incentive a prática de uma cidadania ativa. Tendo como primeira aparição a divulgação de um sítio na internet em 2004, ganhou visibilidade a partir de 2014, quando entraram em diversas casas legislativas (em todos os níveis) projetos de lei sobre a pretensa ideia de “neutralidade escolar” com fim a combater uma suposta doutrinação ideológica em curso no país. Quantos aos conteúdos considerados negativamente ideológicos, destacaram-se as temáticas relacionadas a gênero e sexualidade. A partir deste cenário, foram variadas as notícias sobre docentes em várias instituições de ensino sofrendo perseguições e ataques nas redes sociais, além de alguns casos em que ocorreram notificações extrajudiciais, cujos embasamentos assentaram-se nas argumentações fornecidas pelo “Escola sem Partido”.
200As raízes sociais deste movimento estão podem ser localizadas em uma elite antipopular, que tem como aliados alguns setores da classe média que buscam espelhar semelhança. Antipopular pois é sociopática em relação às classes pobres, mas também por ser cimentado em fundamentações LGBTfóbicas, heteronormativas, patriarcais, machistas, racistas e religiosamente intolerantes (de verniz cristão fundamentalista). Não por acaso, estas iniciativas congregam parlamentares de vários partidos fora do espectro da esquerda, quais sejam membros da bancada evangélica, entusiastas da ditadura militar, defensores da pena de morte e da “cura gay”, ideólogos do liberalismo e das privatizações (AÇÃO EDUCATIVA, 2016). Considerando o espectro da luta de classes, localiza-se, portanto, no campo da burguesia que interpreta ameaças não somente nas ideias, teorias e reflexões que geram um pensamento crítico, mas também no crescimento da ação política coletiva de sujeitos que se envolvem justamente em questões como gênero, classe, sexualidade, raça, política e ideologia, e que colocam em xeque toda uma estrutura social de opressão, exploração e dominação.
Em relação à Reforma do Ensino Médio ( lei nº 13.415/2017), a regressão pode ser considerada de décadas de conquistas na educação brasileira. Como uma das primeiras iniciativas do governo Michel Temer, a proposta de reforma foi imposta por vias anti-democráticas, por uma Medida Provisória (MP nº746/2016) feita de forma açodada e sem o mínimo de diálogo e participação da sociedade civil. Isso provocou um dos maiores movimentos de protestos e ocupações da história brasileira por parte de estudantes da educação básica em mais de mil escolas em todo o país, apoiados por trabalhadores (as) da educação e pelas comunidades em geral.
Tal medida provisória, convertida em lei e articulada com um pacote de medidas de ajuste fiscal – como a proposta de Emenda Constitucional (EC nº 95/2016) que congela por 20 anos os investimentos em áreas como saúde e educação, a Lei da Reforma Trabalhista e o projeto de lei da Reforma da Previdência –, propôs uma mudança na estrutura do atual sistema do ensino médio abarcando uma flexibilização da grade curricular. Este novo modelo, defendido sob uma suposta possibilidade de escolha por parte dos estudantes de ênfase em uma área de estudos, supõe uma parte comum e obrigatória a todas as escolas (Base Nacional Comum Curricular) e outra parte a ser oferecida à critério das escolas. Fato é que no caso das escolas públicas, impossível é desarticular a constituição destes critérios das condições orçamentárias para estruturação física e contratação de professores – orçamento este anunciadamente reduzido no bojo do ajuste fiscal.
Os perigos encrustados no novo modelo imposto por esta reforma, que perpassam o cerceamento de conhecimentos e, sobretudo, um provável alargamento da distância curricular entre escolas públicas e privadas (e, portanto, das possibilidades de acesso entre estudantes dos ensinos público e privado), revelam o compromisso com uma agenda de interesses do capital, que urgia na aprovação de medidas que mantenham o regime de acumulação e a saída da crise econômica sob o desmonte da estrutura de proteção social das classes trabalhadoras. Afinal, como afirmaram os porta-vozes do governo, a Constituição Federal não cabe no orçamento.
201De início, em sua primeira versão, a proposta de Reforma do Ensino Médio atacou diretamente disciplinas como a sociologia, filosofia, educação física, educação artística e língua espanhola, retirando-as a condição de disciplinas obrigatórias. Disciplinas estas justamente ligadas a uma formação humanística, reflexiva, crítica e da livre expressão. A sociologia deixou de ser uma disciplina obrigatória para tornar-se um “conteúdo”, o que representa na prática a sua dissolução a sabor das instituições de ensino bem como de suas condições. Ao final, o golpe foi maior, afetando todas as outras disciplinas, com exceção da matemática, língua portuguesa e língua inglesa (esta última ofertada a partir do sexto ano do ensino fundamental).
A reforma introduz um modelo curricular baseado em “itinerários formativos”, que organizam a estrutura por grandes áreas do conhecimento a saber: a) linguagens e suas tecnologias; b) matemática e suas tecnologias; c) ciências da natureza e suas tecnologias; d) ciências humanas e sociais aplicadas; e) formação técnica e profissional). A organização das áreas, suas “competências” e “habilidades”, serão ofertadas, segundo a nova lei (lei nº 13.415/2017), “conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”. Na prática, se levarmos em consideração a EC nº 95/2016 e seus efeitos sobre o congelamento de recursos para a educação, isso vai levar a um aprofundamento do sucateamento das escolas públicas que deverão aligeirar e rebaixar ainda mais sua formação em um cenário que impossibilita investir recursos em infraestrutura e contratação de professores por concursos públicos.
A ampliação da carga horária presente nos artigos 1º e o artigo 13º que institui a “escola de ensino médio em tempo integral”, aliadados com diminuição do repasse financeiro, completa o anúncio de uma flexibilização precarizante, baseada no sucateamento e no aumento da intensidade do trabalho. A possibilidade mais pungente é a formalização de uma prática comum já encontrada em muitas escolas, onde na ausência de quadro efetivo de acordo com a demanda, professores assumem uma carga horária extensa, incluindo disciplinas/conteúdos que extrapolam suas formações acadêmicas. Não é muito difícil imaginar o impacto negativo sobre a qualidade na formação educativa assentada sob estas condições.
Por fim, nos requer atenção a introdução do conceito vago e genérico de “notório saber” como condição para o credenciamento de pessoas que estariam aptas a assumirem aulas em áreas técnicas. Além da desobrigação quanto à maior parte das disciplinas, o novo modelo retrocede também quanto à valorização de professores enquanto profissionais com formação pedagógica específica.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que o cenário é nefasto para o ensino de sociologia, para a educação brasileira, bem como para o conjunto da classe trabalhadora brasileira. A análise das políticas educacionais presentes perpassa pela compreensão do projeto político e ideológico em curso que, arquitetado no seio hegemônico das classes dominantes, ajusta “a vida econômica social e cultural; as instituições educacionais, religiosas e outras ao seu domínio” (COUTINHO, 1984, p. 90). Isso exigirá dos profissionais do ensino de sociologia, filosofia e demais afetados pelas reformas energia social e capacidade de mobilização política. O momento nos exige aquilo que Florestan Fernandes (2004) nos chama a assumirmos, com espírito construtivo e responsável: “nossos compromissos perante o futuro”.
202Sobre os autores
RICARDO TAKAYUKI TADOKORO • Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU (2013). Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU (2010). Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano – IF Goiano, campus Ceres. Membro do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) do IF Goiano, campus Ceres.
Endereço de e-mail: ricardo.tadokoro@ifgoiano.edu.br
Endereço do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0749237935234602.
FLÁVIA BASTOS DA CUNHA • Doutoranda em Educacion y Sociedad pela Universitat de Barcelona, UB, Espanha. Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pela Universidade de Brasília - UnB (2012). Especialista em Análise Institucional Esquizoanálise, Esquizodrama pela Fundação Gregório Baremblitt - Instituto Félix Guatarri (2011). Graduada em Filosofia pela Universidade de Brasília- UnB (2006). Professora do Ensino Básico Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano – IF Goiano, campus Ceres. Membro do Laboratório Ágora Psyché (Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília) e do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) do IF Goiano, campus Ceres.
Endereço de e-mail: flavia.cunha@ifgoiano.edu.br
Endereço do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7939737191652382.
Referências
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