Capítulo 3: Ensaios: memórias literárias e formação profissional

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1. Ensaio de Ana Maria Siqueira Silva.

Mary Baleeiro. Aquarela Ana Maria. Fev. 2019. 15x21
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1.1 Memórias Literárias e Agregadas

Tive a honra de ser escolhida pela Karol, para escrever um ensaio de memórias literárias. Ela não sabe, mas me pediu para afiar uma faca e me cortar com ela toda e, depois, fazer um bolo de chocolate com os retalhos das minhas carnes. Podem achar que eu estou loucamente exagerando, com razão, porque é verdade. Neste ano eu realizei o sonho de iniciar o mestrado que vinha tentando há 10 anos, mas ao mesmo tempo fiquei insana, desesperada porque minha família entrou em colapso por causa de memórias.

Memórias que para mim eram bonitas, para outras pessoas da minha família eram terríveis e responsáveis, inclusive, por crises de pânico e terror. As mesmas memórias, olhadas de pontos de vista diferentes, que se mostraram e derrubaram nossas estruturas. Desse modo, sem querer, a Karol me colocou para restaurar memórias positivas e reestabelecer laços memoráveis de infância comigo mesma e com a minha família.

Primeiramente, pediu-nos para definir memória, mas eu não sei definir. Talvez porque essa seja uma dessas palavras indefiníveis, porque participam de um mundo para além do que é físico e que preserva da morte o que é importante para nós. Talvez seja um dispositivo capaz de trazer o passado de volta em forma de imagens preservadas em nossa mente e talvez esse dispositivo tenha a capacidade de, a partir dessas imagens de acontecimentos que foram reais, criar e imaginar coisas novas para que possamos ver o mundo de outra forma. Às vezes melhor, às vezes pior, dependendo do nosso estado de ânimo.

Comumente, o que é memorável o é porque ocorreu em companhia de outras pessoas. Mas, normalmente, há discrepâncias entre as lembranças dos mesmos acontecimentos vividos, cada um tem sua memória particular.

Sobre as minhas memórias em relação à formação como leitora, posso dizer que comecei a frequentar a escola na época da ditadura. Minha formação, se não foi diretamente influenciada por esse regime, foi indiretamente, porque meus professores certamente receberam formação mais tecnicista que a minha. Para acabar de completar, isso se deu numa cidade do interior de Goiás. Fui formada dentro da mentalidade de que ser professor é para as pessoas que não conseguiram ser médicas, engenheiras, dentistas, porque no imaginário das pessoas dessa época, essas profissões mais bem conceituadas são as que rendem mais dinheiro. No caso das artes e da música, já seria muito pior: coisa para quem não quer trabalhar.

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A Karol me pediu para escolher objetos que contassem minha trajetória de leitura e eu escolhi uma lamparina (de querosene – aquela que deixa o nariz cheio de fumaça preta), porque era à luz dessas lamparinas que meu pai e minha mãe liam à noite para mim e meus irmãos, como também era à noite, à luz dessas lamparinas que aconteciam as sessões de contação de histórias, pelos viajantes e vizinhos, em especial o Seu Florentino, um velhinho engraçado e contador de histórias, que sempre aparecia em casa e contava inúmeras histórias inventadas, que nunca se repetiam. Uma caixa (baú) que tinha múltiplas funções na minha casa, como guardar coisas, móvel que minha mãe utilizava para passar roupas com ferro à brasa, e mesa de estudos para mim e meus irmãos, meias, para a leitura ser com os pés quentinhos em dias frios e de chuva, chocolate, chá, uma janela do lado e, por fim, um dicionário, um caderno, lápis, borracha e apontador, pequenos objetos que me acompanham até hoje. Uma ressalva para o dicionário que agora é a internet mesmo.

Escolhi, como pessoas importantes na minha trajetória como leitora, meu pai e meu filho mais velho, o Víctor. Meu pai, porque foi a pessoa mais importante na minha trajetória como leitora. Morávamos na zona rural, quando eu era pequena e, antes que fosse para a escola (que ele reativou, por meio de muitos esforços para sensibilizar a comunidade e as autoridades da época), meu pai comprou alguns livros infantis, os quais ele e minha mãe liam para mim e meus irmãos, à noite.

Um tempo depois, ele se inscreveu num tipo de clube do livro em uma biblioteca da cidade mais próxima (Silvânia), no qual levava cinco livros e tinha direito de trocá-los toda semana. Por um bom tempo ele aparecia em casa com livros diferentes para ler para a gente. Eram livros de literatura infantil, normalmente os clássicos de Andersen e dos Irmãos Grimm. Líamos à noite, à luz de lamparina, porque meu pai trabalhava durante o dia todo na roça. Ele também escrevia poemas nessa época e eu achava isso incrível. Ele participava também de um programa cultural da extinta Caixego, o qual disponibilizava um álbum de figurinhas e histórias que eram montadas à medida que se entregava uma latinha de moedas juntadas ao longo de um certo tempo. Meu pai foi uma referência para mim, por toda a vida, porque, mesmo em uma dificuldade brutal, não perdia o gosto pelas histórias e pelos poemas. Meu pai me contou que, infelizmente, com a chegada da televisão, o meu gosto pelas leituras diminuiu drasticamente, quando eu era pequena.

Infelizmente, como minha primeira educação foi no final e logo após a ditadura, só tive contato com obras clássicas importantes depois que fui para a faculdade. Costumo dizer que sou filha da ditatura e que, por isso, minhas leituras são deficientes. Li muito autoajuda e literatura espírita logo depois que terminei o Ensino Médio. Penso que é porque parei de estudar, me casei e era a esse tipo de leitura que eu tinha acesso, na época. E, por incrível que pareça, sinto que essas leituras me ajudaram a passar por um período espinhoso da minha vida, que foram 10 anos aproximadamente.

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A outra referência é meu filho mais velho, porque ele adora ler e vive compartilhando suas experiências literárias comigo. Quando ele e o irmão eram pequenos, eu copiei o hábito do meu pai de ler para eles, todos os dias, antes que eles dormissem. Lembro-me bem que o livro que eles mais gostaram foi Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Lemos muitos livros, principalmente os clássicos (A Pequena Sereia, Cinderela, Branca de Neve, A Rainha da Neve, etc.) em traduções de versões sem muitas modificações e mais próximas das originais, que costumam ter finais macabros, inclusive.

Hoje, meu filho é um "devorador de livros", lê muito mais do que eu, coisas variadas. Já aprendeu sozinho a língua inglesa lendo livros nesta língua e procura aprender, também sozinho, outras línguas, como o alemão e o japonês. Ou seja, meu filho tornou-se um exemplo de leitor para mim. Casei-me jovem, com um homem que me proibia de estudar e trabalhar. Mas a sede de conhecimento conseguiu me retirar do “mundo encantado de Amélia”. Como não havia mais a possibilidade de estudar para um curso como os mencionados acima, fiz vestibular para Pedagogia, que era um curso que eu poderia fazer em metade do período e havia ônibus da prefeitura de Silvânia, cidade onde eu morava, que levava os alunos e buscava em Anápolis, cidade onde fiz meu curso. Tive a sorte de ter excelentes professores e, ao iniciar o curso, tive a certeza de que ser professora era o que eu mais queria ser. Nesse aspecto, as artimanhas do acaso estiveram a meu favor.

Vários livros foram muito importantes para a constituição da pessoa que sou hoje. Memórias de uma Gueixa, por exemplo, é um livro maravilhoso (narra em detalhes a formação e os percalços pelos quais uma gueixa passa), que fez com que eu assimilasse elementos que me proporcionaram forças e argumentos para levar a cabo o meu divórcio, coisa que foi indispensável para que eu continuasse viva. Mesmo. O Último Bailarino de Mao, uma extraordinária autobiografia de Li Cunxim, um bailarino, coreógrafo respeitadíssimo na atualidade, tem um valor emocional especial para mim, porque o li assim que...

Mas o livro que pegou o meu cérebro e virou do avesso foi Vigiar e Punir, de Foucault. Li esse livro a pedido de um professor de Filosofia da Educação, no curso de Pedagogia, em 2003, se não me engano. Eu já havia entrado em contato com o pensamento marxista, por meio de alguns textos avulsos e aulas dos professores do curso. É importante ressaltar que na minha época escolar (Ensino Fundamental e Médio) eu não tive acesso a nenhum tipo de leitura crítica. Nunca havia estudado Filosofia, Sociologia, não tive aulas decentes de Artes, no geral. O Ensino Fundamental foi feito até a antiga 3ª série, na zona rural, em sala multisseriada. Quando meu pai percebeu que minha aprendizagem estava deficiente, enviou-me para morar com meus avós e estudar em colégio de freiras. Nessa escola eu tive uma educação de menina.

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É, inclusive, interessante destacar que no colégio eu conseguia, quase sempre, tirar as melhores notas da sala. Quando fui para o Ensino Médio, as salas eram mistas (com rapazes e moças) e, por mais que tentasse, não conseguia de jeito nenhum alcançar os primeiros lugares. Eles eram sempre dos meninos, egressos do Ginásio Anchieta, colégio exclusivo para o Ensino Fundamental, antigo 1º grau, dos meninos da cidade, na época.

Disse tudo isso para demonstrar que eu via o mundo, de certo modo, como neutro. Acreditava que conseguiria ter uma vida melhor por meio dos estudos e que quem não conseguia era preguiçoso, não se esforçava, etc. Portanto, ler Vigiar e Punir foi dilacerador. Foucault faz um histórico da violência nas prisões, das punições exercidas sobre criminosos ao longo do tempo, para concluir escancarando o modo como as relações de poder estão infiltradas em cada instituição social, como somos vigiados uns pelos outros e pelo Estado. Vigiar e Punir mudou a forma como eu vejo o mundo, abriu portas para a crítica a determinados tipos de leitura (porque eu não sabia selecionar as minhas leituras) e plantou em mim a necessidade de estudar Filosofia, o que fez e faz com que eu procure e escolha melhor minhas leituras.

A Karol quis saber quais livros eu tenho em casa e esta foi uma tarefa bem difícil, porque eu tenho muita coisa e fazer uma lista seria até cansativo. Portanto, vou citar o que é mais importante para mim, no momento da escrita deste ensaio. Tenho muita coisa, mas ainda tem muita coisa que eu quero ter. Estou fazendo minha pequena biblioteca de Filosofia. Já tenho A Política e a Ética, Nicômaco, de Aristóteles, A República, de Platão, Paideia, de Jaeger, Antígone, Édipo Rei, Édipo em Colono, Electra, Agamênon, Os Persas, As Bacantes, algumas versões da Odisseia e da Ilíada de Homero (mas nenhuma do jeito que eu quero, ainda), alguns livros de Vernant e de Vidal-Naquet, para a minha pesquisa, algumas obras de Rousseau, Platão, Nietzsche, Wittgenstein, Hannah Arendt, Kant. Alguns livros infantis de mitologia grega e alguns pelos quais sou apaixonada, O Lobo Negro, O Prato Azul Pombinho, da Cora, e uns 20 livros que guardo comigo porque acho que são bons para contar as histórias na sala de aula: ou porque as histórias são boas, mais originais ou porque podem auxiliar na aquisição do processo de leitura e escrita.

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Sobre as minhas leituras da adolescência, tenho a dizer que lia mais na época das férias. Minha família tinha uma pequena chácara para onde íamos. Na verdade meu pai morava lá sozinho e minha mãe ficava conosco na cidade. Aos finais de semana e nas férias íamos para lá. Na adolescência eu não gostava de ir, então, dava um jeito de não ir aos finais de semana e ficava na casa da minha avó. Mas nas férias eu não tinha escolha, então pegava livros na biblioteca ou pedia emprestado a um tio meu que tinha alguns livros numa estante. Lembro-me bem de ler Olhai os Lírios do Campo, de Veríssimo, vários livros da série Vaga-Lume, Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro Vasconcelos, O Menino do Dedo Verde, A Ilha Perdida, Robinson Crusoé, Poliana Menina, moça e mulher, Memórias de um Gigolô, de Marcos Rey – este livro eu peguei escondido na estante de um tio meu, depois foi um bafafá, porque eu era bem nova. Os adultos me perguntavam com semblante irônico sobre o que eu estava achando do livro e eu respondia que era uma história de um dono de fábrica de carros e que não estava entendendo bem. Mentia e achava que acreditavam, porque eu ainda não tinha entendido bem o significado da palavra gigolô. O livro era bem grosso e eu só fui entender do meio dele para frente.

Depois, logo no 1º ano do Ensino Médio, tornei-me espírita e minhas leituras se restringiram à literatura deste segmento. Romances, livros explicativos da doutrina espírita, etc.

Sobre a minha formação leitora na escola, infelizmente não me lembro de ter nenhuma leitura obrigatória. Estudei em colégio de freiras da 4ª a 8ª série. Considero que minha educação foi bastante tecnicista. Os professores se limitavam aos textos do livro didático, que era comprado e precisava ser “vencido”. Não me lembro nem de visitar a biblioteca da escola, que não era pequena, mas nunca estava aberta aos alunos. Era restrita às freiras do colégio.

Em relação às leituras da faculdade, fazia pesquisas para além do que algum professor tinha solicitado, dependendo do meu interesse. Foi na faculdade que entrei em contato com as ideias de Marx, Foucault, Altusser, Saviani, Paulo Freire, etc. Para quem estava acostumada com a literatura paz e amor, aquilo para mim foi um soco no estômago. E eu adorei. Mas as exigências da faculdade não davam muito tempo para leituras literárias ou paralelas. Tinha duas crianças pequenas, era bem complicado, inclusive. Mas entrei na faculdade e saí outra. Quando terminei a faculdade, li toda a sequência Crepúsculo para descansar a mente, porque meu filho mais novo queria ler e, na época, minha cunhada me advertiu que era uma leitura pesada, que se tratava de vampiros.

Imaginem que nem na época de término da faculdade eu ainda conseguia discernir muito bem literatura clássica de literatura de massa. A verdade é que eu não sei muito bem quando isso se deu. Talvez depois que meu filho mais novo começou a se profissionalizar em ballet clássico, quando entrei em contato com obras clássicas verdadeiras, como as tragédias preparadas exclusivamente para o Ballet, como Giselle, O Corsário, La Bayadére, La Fille Mal Gardée e até mesmo O Lago dos Cisnes, que é a obra mais conhecida nesse segmento. Na Faculdade de Filosofia, entrei em contato com as obras dos filósofos clássicos, o que também abriu portas para as tragédias gregas e epopeias, principalmente.

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Sobre leituras livres e obrigatórias, na época da escola, lembro-me das leituras livres, até porque não tive as obrigatórias. Tinha exercícios intermináveis, obrigatórios. Mas leituras, não. O projeto educacional da ditadura funcionou bem. Na época da faculdade, penso que as leituras obrigatórias foram essenciais para eu ampliar minha visão sobre o mundo e minha prática pedagógica.

Se pudesse, eu mudaria a minha história de leitura. Teria entrado em contato com os clássicos desde cedo e me habituado a eles muito antes, para aproveitá-los, mesmo. Teria lido todas as obras de Shaekespeare, Dostoiévsky e Machado de Assis. Mas, mesmo assim, considero-me leitora, porque sempre estou lendo alguma coisa. Atualmente estou me dedicando ao mestrado que eu sonhei em fazer por tanto tempo (mais especificamente, 10 anos), então, dedico-me às leituras referentes ao meu projeto o máximo que posso e tenho aprendido muito com isso.

Não posso deixar de dizer que a disciplina Metodologia no Ensino de Literatura que fizemos no Cepae ajudou muito com o referencial teórico que fundamenta meu estudo, mas também para a vida. A professora Célia nos ensinou a ler poemas decifrando-os, o que tentei reproduzir com meus alunos, na leitura da Teogonia e eu acho que funcionou superbem, apesar de todos os percalços normais no dia a dia de uma escola.

É desafiador saber que ainda existem tantas obras que eu gostaria de ler. Talvez isso seja um estímulo para a própria preservação da vida, em dias tão sombrios como os que estamos vivendo na atualidade. Em sala de aula eu tento ser uma professora melhor do que meus próprios professores foram comigo. Algumas vezes eu penso que consigo, mas muitas, não. Contudo, compreendi que os livros devem estar disponíveis para as crianças, principalmente quando são pequenas e se interessam mais, porque ainda não criaram aversão. Penso, inclusive, que devemos pensar nos motivos por que algumas crianças, a maioria talvez, não têm o hábito da leitura.

Portanto, acredito que memória e afetividade influenciam sobremaneira nas minhas práticas como professora, porque, com certeza, não reproduzo aquilo que eu penso não ter dado certo comigo, ou que me limitou como leitora. Faço questão de levar meus alunos à biblioteca, de dar incentivos aos que mais leem, de levar gibis e livros para a sala de aula com frequência, leio uma história todos os dias, mesmo para os maiores (6º ano), tento apresentar autores consagrados, como Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Machado, Silvya Orthof, Ruth Rocha, Manoel Bandeira, Cecília Meireles, dentre outros.

Este texto é escrito em uma época estranha. Utopicamente, acreditamos, quando jovens em tempo escolar, em uma história linear, na qual fatos como o avanço tecnológico e o fim da ditadura militar no Brasil prometiam um futuro livre de preconceitos, numa sociedade em que o conhecimento seria disponível para qualquer pessoa. Pensávamos, inclusive, que a escola e a figura do professor seriam dispensáveis, porque cada qual poderia ir em busca do conhecimento desejado por si mesmo, já que estaria disponível nas redes, bastaria se dispor a pesquisar. Contudo, ao contrário, vivemos tempos sombrios em que todas essas supostas conquistas estão ameaçadas por uma avalanche de notícias falsas na internet, jornais e revistas e as liberdades individuais, conquistadas à custa de suor, sangue e lágrimas por diversos heróis e revolucionários, sendo ameaçadas por uma onda de fascismo e ódio que se repete não só no Brasil, mas em diversos países do mundo.

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Para finalizar, vou replicar aqui uma postagem que fiz no Facebook, em homenagem aos meus alunos do curso de Pedagogia, que também eram professores, em 2013 ou 2014. Replico porque essas reflexões, hoje, são mais atuais que naquela época.

1.2 Homenagem aos meus alunos/professores

Sabem por que eu não mudo de profissão devido às condições, muitas vezes, sub-humanas a que os professores são submetidos? Porque eu acredito que ser professor é uma das maneiras mais nobres de se viver. Se isto for feito com dignidade. Porque o conhecimento é a única coisa, que ninguém, nunca, poderá tirar de mim ou dos meus alunos. Meu sonho é torná-los, através do conhecimento, LIVRES! Livres para poderem escolher que atitude terão em relação a cada coisa que a vida cotidiana lhes pede ou lhes impõe. Ser professor é ter a chave para mudar o mundo! Pena que nós, professores, ainda não enxergamos isso!

A Alemanha, na época anterior à instauração do nazismo, era um país bastante desenvolvido no que diz respeito à educação. Como explicar que as pessoas comuns, indivíduos aparentemente regidos por uma moral, notadamente os pais de família de comportamento exemplar, mudaram de perspectiva de uma hora para a outra e aderiram ao nazismo e seus ideais de raça pura, tornando possível um dos fatos mais atrozes e absurdos da humanidade? É impressionante a facilidade com que o regime se instalou na Alemanha e causou um fenômeno que levou seres humanos a serem considerados supérfluos. Hitler teve um largo apoio público.

Como, um país com uma educação tão desenvolvida pode se envolver num movimento que provocou tanta barbárie? Então a educação daquele povo não serviu para nada? Qual o papel dos professores nesse processo?

Hannah Arendt diz que as pessoas obedientes são as mais perigosas. Parece estranha e absurda esta afirmação, mas se considerarmos que os obedientes são aqueles que seguem as regras estabelecidas por terceiros e que estas, dependendo da situação, podem ser modificadas, deduzimos que os seguidores obedientes das normas podem mudar de opinião (postura), juntamente com as regras. Foi uma situação similar que tornou o nazismo possível. Parece menos perigosa a maldade das pessoas más e mais destrutiva a de pessoas comuns, que se colocaram a serviço de uma obra de destruição de massa, que cometeram crimes secretos e seguiram vivendo em paz. Terminada a última guerra mundial foi encontrada, num campo de concentração nazista, a seguinte mensagem dirigida aos professores:

“Prezado Professor, Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas."

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2. Ensaio de Aline Gomes Machado

Mary Baleeiro. Aquarela Aline. Fev. 2019. 15x21
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2.1 Memórias de leitura

Meu gosto por leitura começou cedo. Antes mesmo de aprender a ler e escrever. Não podia ver um livro, que já pegava e pedia para alguém ler. Até tentava me arriscar na leitura, mas aos quatro anos de idade isso ainda não era possível para mim.

Um dos dias mais felizes da minha vida foi quando tive a oportunidade de ir à escola pela primeira vez. A escola era o caminho mais próximo dos livros e de todas as aventuras que uma boa história poderia me trazer por meio da imaginação. Sou daquelas que perde a parada do ônibus por estar vagando em pensamentos.

Minha mãe, apesar do pouco estudo, foi minha principal professora, com ajuda dela, eu, aos seis anos de idade, no dia 12 de junho, li com total consciência a primeira palavra: cacau. Daí por diante a leitura e a escrita já eram concretamente parte da minha vida. Antes disso, já conseguia decifrar algumas palavras, mas tratava-se mais de “decorebas” do que de uma leitura propriamente dita.

Com uma imaginação muito fértil, já criança, me imaginava professora. Aos oito anos de idade, a classe estava formada, meus primos e irmãos, ainda em fase de alfabetização, eram os alunos, e eu, a professora. Divertia-me lendo os contos de livros cedidos pelo colégio em que estudava, eles eram os principais materiais na brincadeira de escolinha. Meus preferidos eram os livros com contos nordestinos ou poemas com rimas. Meu poema preferido era Dorme, Pretinho, do autor Sérgio Capparelli. Esse poema foi um tapa na cara! Como podia um menino tão pequeno dormir em uma cama de jornal e na rua? Foi meu despertar para a compreensão das desigualdades sociais.

A partir daí, comecei uma nova atividade: escrever poemas. Meus pais não tinham condição financeira para comprar livros aos filhos, então, minhas leituras, para além das obrigatórias nos livros didáticos da escola, eram os meus próprios textos, que guardava até pouco tempo, registrados em um diário.

Certo dia, uma professora, ao perceber meu fascínio pela leitura, me indicou uma biblioteca de outra escola pública, localizada no bairro em que eu morava, a escola em que eu estudava não tinha biblioteca. Como era muito nova, dependia dos meus pais para visitar tal local, então, essas visitas ocorriam apenas quando tinha algum trabalho escolar para fazer. Eu fazia o trabalho bem rapidinho e aproveitava que estava ali para pegar alguns livros com os contos e poemas de que gostava, mas não podia levar para casa.

Para ampliar minhas possibilidades de diversão, já que ler era uma diversão para mim, qualquer trocadinho que eu ganhava, juntava e ia a uma revistaria comprar um livro, que na época, por volta dos anos 2000, era comercializado pela revista Recreio, que lançava em valor promocional pequenos livros com a história do Brasil, a fauna e flora da Amazônia, entre outros. Nessa época, eu estava com 10 anos de idade.

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Aos 11 anos, GANHEI meu primeiro livro, esse não era cedido pela escola, dessa vez, não teria que devolver. Era um livro voltado para a adolescência, chamado Coisas que toda garota deve saber. Li o livro inteiro em uma noite, assim que cheguei em casa.

Não sei se começou com a leitura desse livro, ou se no meio do caminho algo aconteceu, mas a partir daí comecei a ter gosto por livros escritos por mulheres e por um bom tempo minhas leituras eram apenas de livros escritos por autoras. Minha escola já possuía uma pequena biblioteca e me lembro de que gostava muito dos livros da Cecília Meireles e principalmente da Clarice Lispector. Esse gosto perdurou até o término do Ensino Médio, quando já trabalhava e podia comprar meus livros.

No Ensino Médio, a coletânea destinada ao vestibular das universidades públicas de Goiás ampliou meu repertório literário e pude perceber que, além de poemas e contos nordestinos, eu gostava muito de romances de suspense e mistério, percebi isso com a leitura do livro A Confissão de Flávio Carneiro. Sem perder os gostos antigos, outros dois livros que foram marcantes nesse período pré-vestibular foram O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, e Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector.

Da faculdade até os dias atuais, como professora e mestranda, minhas leituras obrigatórias e aquelas do pouco momento de lazer estão voltadas para obras de cunho marxista, de autores da área da Educação Física, Sociologia e Educação que discutem as temáticas corpo, educação física e educação com base no materialismo histórico-dialético. Às vezes, com uma frequência mínima em comparação às leituras obrigatórias à minha profissão e escrita da dissertação, leio livros um pouco diferentes das temáticas já citadas, mas que de uma forma ou de outra são obras com base na realidade e na luta de classes. São obras voltadas para o feminismo que retratam as lutas das mulheres ou mesmo o Ser mulher (base filosófica e/ou fenomenológica). Foram lidos recentemente: Outros jeitos de usar a boca, de Rupi Kaur, o Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, A Velhice, de Simone de Beauvoir, e Memória e Sociedade – Lembranças de velhos, de Ecléa Bosi.

Outro livro lido recentemente foi 50 poemas de revolta, da Companhia das Letras.

Após fazer esse relato, percebo que boa parte do que me constitui enquanto Ser, dentre minhas crenças e subjetividades, dialogam com as leituras que realizei. Sob esse ponto de vista, não sei dizer se sou aquilo que leio ou se leio por aquilo que sou. Penso que seguirei sem saber.

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3. Ensaio de Sandra Almeida Ferreira Camargo

Mary Baleeiro. Aquarela Sandra. Fev. 2019. 15x21
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3.1 Memórias literárias formativas

Minhas memórias literárias estão intrinsecamente relacionadas à minha trajetória de formação. Por isso, pensar meu processo de apropriação das práticas de leitura e escrita me faz relembrar as dificuldades e os muitos obstáculos superados para que eu conseguisse retornar aos estudos, após anos longe da escola, e lutar para concluir minha formação e me tornar uma leitora e professora. Minhas memórias literárias e formativas apresentam inúmeras contradições, uma vez que meu pai nunca teve a oportunidade de estudar, de se sentar em uma carteira escolar, como ele sempre lamentava, e minha mãe só pôde concluir o ensino fundamental, na Educação de Jovens e Adultos, anos após o casamento, e com as filhas já adolescentes, como popularmente dizem “já criadas”. Assim, fica evidente que não foi fácil me tornar uma formadora de leitores, personalidades, enfim, de consciências mais humanizadas.

Conforme mencionei, meu pai não teve oportunidade de estudar. Meus avós morreram quando meu pai era criança e foi o seu irmão mais velho, que era seu padrinho, que o adotou e criou. O pouco que meu pai aprendeu e desenvolveu nas práticas de leitura e escrita foi com seus sobrinhos que tinham a sua idade e tinham permissão para frequentar a escola, e assim, eles o ensinavam nas horas vagas. Papai ressaltava que teve infância distinta daqueles meninos, pois precisava ajudar no trabalho braçal da roça para plantar e colher o alimento da família.

Embora não tenha vivenciado o processo de ensino e aprendizagem escolar, papai valorizava muito os estudos. Ele sempre nos dizia que os conhecimentos que ensinavam na escola e que tornavam as pessoas mais sábias eram algo que jamais poderia ser tirado de nós. Para ele, a leitura é uma riqueza sem possibilidade de ser quantificada, resumida a números que lhe definia um nível de valor. E por isso, papai compreendia que estudar era nosso dever e exigia que tivéssemos total compromisso com nossa formação. Lembro-me bem de ouvi-lo dizer desde que eu era bem pequena: “o conhecimento é a maior riqueza que uma pessoa pode possuir. Este ninguém poderá te roubar”.

Assim, fui alfabetizada em casa pelas minhas irmãs mais velhas, que brincavam de ser professoras embaixo dos nossos pés de abacate, goiaba e manga no fundo do nosso quintal, na periferia do bairro em que morávamos, ainda hoje conhecido como “a invasão”. Naquele quintal não apenas eu, com seis anos de idade, mas também os filhos dos vizinhos foram todos alfabetizados pelas minhas irmãs. Foi assim que mergulhei no mundo da leitura.

Recordo que as “meninas professoras” organizavam os horários das aulas durante a tarde, de uma maneira que havia o momento da escrita, da leitura do conteúdo, e havia o horário das leituras literárias. Aguardávamos ansiosamente o momento da leitura das histórias. Elas não interpretavam as vozes de cada personagem em tonalidades diferentes, como belamente fazem os contadores de história nos dias atuais. Porém, havia um fascínio que nos encantava. Elas simplesmente liam, e nós tínhamos o dever de ficar em silêncio, porque depois as “professoras” queriam ouvir as partes de que mais gostamos, e todos tinham que dizer algo.

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Tenho nítida a lembrança de viajar em meus pensamentos enquanto ouvia as histórias narradas. É bem verdade que as professoras nem sempre nos apresentavam literaturas “adequadas” à nossa idade. Nem sei se literatura pode ser enquadrada em níveis de idade especificamente biológica, para serem consideradas como adequadas a certo público, uma vez que compreendo que uma das funções da literatura é nos apresentar tempos e espaços diferentes, é nós fazer caminhar nos trios da imaginação, e nesse campo vale toda curiosidade, criatividade e imaginação. Inclusive sobre o desconhecido.

Recordo-me que minha irmã Nilsa gostava de ler histórias que teria continuação sempre nas próximas aulas. Ela dizia que isso mexia com a nossa imaginação, nos deixaria curiosos pela continuidade. Só sei que funcionava direitinho. Mal esperávamos o início das aulas para chegar o momento das histórias. E realmente eram momentos mágicos de curiosidade e muita diversão. E meu desejo de aprender a ler era cada dia maior, porque também queria poder pegar o livro e sozinha ler sem ter que esperar por ninguém.

A coleção de livros literários denominada Coleção Vaga-lume era o referencial teórico mais utilizado pelas minhas irmãs. Lembro-me bem do livro que contava a história do Zezinho, o dono da porquinha preta, do autor Jair Vitória. Não sei se esse livro é uma das lembranças mais fortes na minha memória dessa época porque papai também criava porcos e nosso amor pelos filhotinhos era imenso. Certo é que essa história sempre esteve gravada em minha memória. Da mesma forma, adorava ouvir minha irmã ler A Ilha Perdida, de Maria José Dupré, eu recriava em minha mente toda aquela narrativa, só mudava as personagens. Por muitos anos desejei vivenciar aquela aventura junto a minha melhor amiga, e apostava que um dia aconteceria.

Também me lembro das histórias clássicas do João e Maria narradas oralmente por minha mãe no momento de dormir. Era curiosa para ler a história no livro. Ficava imaginando a imagem de João e Maria. Queria visualizar as cores e formas que havia na floresta. E também queria saber se minha mãe contava a história como era de verdade, ou se ela diminuía a história a cada vez que contava, para dormirmos mais cedo. Ela contava a história da Rapunzel, só que de forma diferente daquela contada no livro. Eu sabia que as histórias contadas por minha mãe sem o livro eram mais fantasiosas, mas aquelas que minhas irmãs liam, essas sim tinham imagens e sempre começavam e terminavam da mesma forma, não havia surpresas diferentes com novos acontecimentos a cada vez que elas liam. Mas eu gostava de ouvir todas elas.

Aos poucos fui aprendendo a reconhecer as primeiras letras nos livros de literatura infantil que minhas irmãs me apresentavam, e nas “tarefinhas” que elas me passavam. Muitas vezes as perguntas eram orais e sobre os acontecimentos das histórias que eu ouvia, pois ainda não sabia ler e escrever sozinha. No entanto, com algum tempo, quando papai e mamãe se surpreenderam, eu já estava lendo e escrevendo as primeiras palavrinhas: papai, mamãe, maninha. O nome do nosso cachorrinho Veludinho e das frutas preferidas, melancia, uva, banana... E assim o tempo passou e chegou o momento tão esperado de ir para a escola.

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Lembro-me bem da minha primeira professora na turminha pré-escolar da escola estadual do meu bairro. O nome era Aureli! Como esquecer daquela moça tão bonita e meiga. Ela gostava muito de nos dar quebra-cabeças e outros joguinhos para montar, enquanto nos observava, e outras vezes enquanto fazia pequenas trancinhas e colocava lacinhos coloridos nos meus cabelos. Mas eu achava estranho os momentos da história na salinha de aula com ela. Ela nunca levava livros literários, sempre contava histórias oralmente e elas eram sempre curtas, eu dizia que eram histórias pequenas que ela mesma inventava, porque nunca tinha livros. Eu achava muito esquisito, porque a gente não via a imagem das personagens de quem ela contava as histórias. E ela sempre trocava os nomes e confundia as falas. E eu não entendia por que ela não levava os livros.

Às vezes a professora Aureli até nos dava umas tarefinhas com nenhuma palavra, apenas com desenhos feitos para nós pintarmos. Eu, curiosa que só, vivia perguntando por que ela não escrevia no quadro para nós copiarmos e respondermos no caderno e por que não levava livros de verdade para nós lermos e conhecermos os personagens. Ela respondia que só podia fazer isso nas outras séries seguintes. E ela achava muito interessante meu interesse e o fato de eu já conseguir ler e escrever tão pequena.

Recordo-me de que ela achou necessário conversar com meu pai para explicar que estar avançada na leitura e escrita estava adiantando meu processo de desenvolvimento e que isso nem sempre fazia bem às crianças. Papai ouvia com respeito e quando chegava em casa dizia que o que não fazia bem era ficar só brincando sem ter tarefa para casa. E logo dizia para minhas irmãs me darem reforço passando tarefas para eu fazer em casa.

Quando fui para a antiga primeira série, só permaneci na turma por um mês, a professora disse que eu estava muito avançada, assim, fui transferida para a segunda série e achei maravilhoso ficar na sala com crianças maiores. Mas nem tudo foi tão bom como eu imaginava. A escolarização dos processos educativos nem sempre possibilita ou acrescenta o prazer em aprender, em conhecer e descobrir o mundo. Os métodos de ensino, a didática utilizada por cada professora e professor, podem interferir diretamente no desejo de aprender das crianças. E, além disso, o processo doloroso da discriminação racial se fez presente na minha trajetória de aquisição da leitura e da escrita.

Como mencionei, meu processo de formação se iniciou em minha própria casa, junto às pessoas que eu amava, certamente o afeto que envolvia o processo de apropriação das primeiras palavras influenciou positivamente o meu desenvolvimento e gosto pela leitura. E assim, foi fácil apaixonar-me pelos livros e pela escrita ainda que, de forma bem primária. É possível dizer que nos primeiros anos escolares ainda mantive minha paixão pela leitura, sempre pegava livros literários emprestados na biblioteca da escola pública em que estudava e os lia em casa durante a tarde. Lembro-me de que gostava de ler histórias de magia, pois enquanto lia me sentia dentro do mundo que a história me contava, assim podia me transformar no que desejasse e viver coisas que nunca viveria no mundo real, por ser negra e pobre.

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Entretanto, após os primeiros anos de escola, comecei a vivenciar situações que para mim naquele momento se apresentaram como barreiras, e que, sem dúvida, interferiram na continuidade do desenvolvimento da minha aprendizagem, pois os fatos ocorridos aos poucos foram me silenciando na sala de aula. Refiro-me ao preconceito que se manifestava abertamente e às discriminações que passei a enfrentar.

Assim, os novos obstáculos que se apresentaram na escola foram fazendo com que eu perdesse o encanto que sentia pela leitura e escrita, pois eu sonhava em ser uma das 12 princesas, assim como aquelas dos contos de fadas que eu tanto lia. Porém, isso começou a mostrar-se impossível, pois logo ia compreendendo que todas as princesas eram brancas, com olhos azuis e longos cabelos lisos e loiros. Suas roupas eram fantásticas, lindas e bem desenhadas. Moravam em belos castelos, cercadas de muito luxo, onde jamais vivenciavam qualquer tipo de necessidade. A minha realidade era bem outra. E isso os colegas da sala de aula faziam questão de destacar: “negra do cabelo enrolado, roupas simples e gastas, sempre o mesmo calçado, e moradora de favela”. Não existiam princesas negras nos contos de fada, ou seja, na literatura que era apresentada pela professora em sala de aula.

Recordo-me de que na terceira e quarta séries a escrita de textos era uma atividade que era dada como castigo pela professora. Se conversássemos em sala de aula ou descumpríssemos suas ordens, éramos obrigados a fazer cópias de extensos textos, não nos era permitido criar histórias, nada de usar a criatividade. Tínhamos que sentar em uma cadeira na frente da sala virada para a turma, que olhava e ria o tempo todo daquela situação de exposição e humilhação. Ou ainda, dependendo do erro cometido, a cópia do texto era feita de pé, atrás da porta. Mas o castigo variava de acordo com a professora que o aplicava. Outras vezes, a professora não permitia que saíssemos para o recreio e tínhamos que ficar na sala com a porta fechada, fazendo cópia de textos fragmentados do livro didático. Textos que não apresentavam nenhum sentido. E se tinha algum, se perdia pela forma que era imposto, como tortura física e psíquica.

Hoje, penso que se, ao contrário de nos mandar copiar textos de diferentes gêneros soltos, sem significado algum naquele momento do nosso processo de aprendizagem, as professoras nos orientassem a ler livros literários e depois compartilhar as histórias com a turma, seria muito mais formativo e eficaz. Certamente no início da leitura ainda poderíamos até achar que era um momento de pagar sentença pelas ações de desobediência em sala de aula. Porém, ao adentrar no mundo da história que cada livro nos contaria, com certeza a nossa imaginação infantil nos levaria a exercitar nossa criatividade, assim, desenvolveríamos as habilidades percepção, atenção, curiosidade e também a nossa habilidade de escrever e criar novas histórias. Como sabemos, é por meio da leitura que aprendemos o novo, a cada palavra, frase ou estrofe conhecemos um pouco mais.

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Infelizmente, a maneira como acontecia na sala de aula fez com que a produção escrita fosse compreendida como sinônimo de repressão e castigo. Aos poucos fui perdendo aquele grande desejo que tinha de estar na escola e de aprender, de ler e escrever. As piadinhas por parte dos colegas e, muitas vezes, até por parte das professoras, faziam com que eu me sentisse inferior e diminuísse o meu desejo de estar naquele espaço, e tudo o que dali fazia parte passou a ter uma representação negativa para mim. Assim, situações objetivas e subjetivas tentavam dizer que meu lugar não era nos bancos escolares e sim em qualquer outro lugar que reafirmasse minha “condição de inferioridade” pela cor da minha pele.

Além da literatura, acredito que a disciplina de História, entre as outras, seria uma das que mais poderiam ser utilizadas para desfazer essa visão hipócrita e distorcida que ainda hoje está presente no interior da escola, universidade e demais espaços sociais, sobre o negro, sua cultura e história, mas, com o auxílio dos livros didáticos que sempre apresentavam os negros em situação de escravidão e inferioridade, eram reforçadas as piadas, as brincadeiras e, por fim, a visão preconceituosa sobre o negro.

No entanto, nos diferentes contextos da vida escolar, vivenciei diversificadas experiências no que diz respeito à minha própria formação como aluna da escola pública, vinda da classe trabalhadora, e principalmente como leitora. É indispensável enfatizar que após várias decepções, humilhações e constrangimentos ao permanecer na escola, por pressão dos meus pais e imposição social, tive também o contentamento de encontrar boas educadoras que contribuíram para que eu interiorizasse o desejo de apropriar-me dos conhecimentos que poderiam me dar esperança de alcançar um objetivo diferente, de enxergar o mundo de outra forma, de vivenciar outras realidades que não fossem determinadas pelo meu pertencimento étnico-racial e de classe.

Compreendo que só agora é possível fazer essa reflexão sobre todo o processo educacional que vivenciei, pois hoje sei lidar com o preconceito racial e superar as discriminações, sem deixar que estas me impeçam de caminhar. Porém, é claro que quando vivenciava aqueles momentos repletos de preconceitos e discriminações e que sentia individualmente na pele todos os conflitos de uma sociedade racista e classista, eu não tinha maturidade ou autonomia que me permitisse pensar ou mesmo fazer esta análise. Mas posso afirmar que muitas das questões que me despertam inquietações, no tocante à formação de leitores e da personalidade dos alunos em nossas escolas públicas atuais, já estavam presentes naquela época e, infelizmente, ainda permanecem. Embora nos dias atuais tenhamos uma rica produção literária que enfatiza a beleza e as diferentes culturas dos povos negros.

Entendo que todo o contexto discriminatório e preconceituoso tem se manifestado por séculos de forma a silenciar o negro na sala de aula e nos demais espaços de poder. A população negra é invisibilizada no contexto geral da sociedade com a finalidade de que permaneça na condição de submissão, o que interfere significativamente no processo de formação de suas personalidades, e no desenvolvimento da consciência. Senti na pele, por ser negra, o impacto deste contexto educacional; vivenciei no espaço escolar todo um processo discriminatório, classificatório e competitivo, o mesmo que presenciei anos depois na universidade. Compreendo que isso ocorre por estar imersa em um sistema que predefine possibilidades e direitos de escolha por considerar e hierarquizar algumas categorias que vão desde o pertencimento de classe, a cor da pele e textura dos cabelos.

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Minhas memórias literárias se constituem por contradições e processos de rupturas e fragmentações que ainda hoje tento organizar. Quando cursava o primeiro ano do curso de contabilidade em um colégio público da rede estadual, decidi me casar, tinha a idade de dezesseis anos. Assim, logo que deixei a casa de meus pais, deixei também de atender à pressão que eles faziam para que eu concluísse a educação básica. Abandonei os estudos e me dediquei apenas ao meu casamento, à igreja evangélica que passei a frequentar e ao primeiro filho. Alguns anos depois, percebi que sem ter no currículo a formação básica jamais conseguiria uma vaga no mercado de trabalho, competitivo e com exigências por competências que eu não tinha. Por necessidade, retornei aos estudos, novamente para o colégio público estadual, e ali cursei o ensino médio na modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Durante o meu segundo ano na EAJA, surgiu um concurso pela Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, fui aprovada para o cargo administrativo e desenvolvia a função de merendeira em um Centro de Educação Infantil (CMEI). Quando concluí o Ensino Médio e também por causa das vivências na instituição de Educação Infantil, me reaproximei da educação e minhas memórias me trouxeram as boas lembranças do desenvolvimento da aprendizagem naquela escolinha informal do meu tempo de infância. Recordei-me do quanto me encantava pelo processo de ensino e aprendizagem, do respeito que tinha pelas minhas irmãs que eram professoras, percebi que vivenciava essa mesma admiração pelas professoras do CMEI em que trabalhava. Tendo acesso contínuo aos agrupamentos infantis, me encantava pelas atividades desenvolvidas com as crianças e decidi que também queria me tornar professora. Dediquei-me a estudar com o objetivo de ser aprovada na Universidade Federal de Goiás. Sendo funcionária administrativa da SME de Goiânia, naquele momento, desempenhando a função de limpeza, não teria condições financeiras para pagar uma faculdade privada.

Passava noites inteiras estudando para alcançar meu objetivo. Aos poucos ia compreendendo melhor a importância fundamental de termos bons professores que orientassem o rigoroso processo de apropriação de conhecimentos científicos, pois o que naquele momento eu intuía e hoje compreendendo cientificamente é que não aprendemos individualmente – aprender é sem dúvida um processo histórico, cultural e social. Recorri a um curso pré-vestibular, mas no terceiro mês, devido às condições financeiras, precisei desistir.

Prossegui os estudos em casa, seguindo as orientações dos planos de aulas que os professores haviam apresentado nas primeiras aulas daquele cursinho. Certo é que, por meu esforço pessoal e pela contribuição e incentivo de algumas das minhas irmãs (principalmente da Adelice e Nilsa) e, claro, do papai, de professoras colegas de trabalho e outras pessoas que faziam parte das minhas vivências sociais, fui aprovada no primeiro processo seletivo de vestibular que realizei na UFG, para o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação, no ano de 2004/2005.

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Minhas vivências no curso fizeram com que eu me encantasse cada dia mais pelo conhecimento científico e me fizeram retomar o valor da leitura e sua fundamental contribuição para o aperfeiçoamento da escrita. Afinal, leitura e escrita são práticas indissociáveis. Foi durante o curso de pedagogia que conheci diferentes gêneros textuais e literários. Recordo-me de termos trabalhado a importância da literatura no processo de ensino e aprendizagem das crianças. A professora Simei Araújo ministrava a disciplina História da Infância e nos propôs trabalhar literatura infantil. Ela nos deixou escolher dois livros, a partir deles deveríamos planejar aulas e apresentar para a turma. Eu escolhi Os cavalinhos de platiplanto, de José J. Veiga, escritor goiano que nasceu em Corumbá de Goiás no ano de 1915. Nesse livro, o autor realiza uma mistura encantadora de fantasia e realidade cotidiana. Assim, consegue trabalhar os sonhos e os sentimentos desde a alegria e a esperança até a tristeza e o sentimento de perda. Tudo isso nos doze contos que apresenta.

O segundo livro que escolhi foi Negrinha, de Monteiro Lobato. É claro que a escolha foi intencional. Era preciso desmistificar certas afirmações sobre o caráter nada racista ou preconceituoso que o autor reafirma em sua escrita. O Sítio do pica-pau-amarelo, outra grande obra do autor, pela qual ele ficou mundialmente conhecido, também apresentava questões a serem refletidas, quando a vovó branquinha (dona Benta) tinha garantido o seu lugar na sala e seu direito de fala, já a tia Nastácia, mulher negra e empregada, estava sempre na cozinha, e quando demonstrava o seu saber, este era relacionado à culinária e ao saber popular pouco valorizado. Enfim, esse segundo livro despertou grandes polêmicas. Durante várias aulas discutimos sobre as reais intenções do autor na época em que escreveu o livro Negrinha.

Certo é que, no mesmo ano em que concluí o curso de pedagogia, realizei o concurso público da prefeitura de Goiânia e fui aprovada. No início do ano seguinte, em 2011, tornei-me professora da Rede Municipal de Educação. Minhas primeiras vivências como professora foram em uma escola de tempo integral, num momento em que a experiência com o ensino integral na rede estava iniciando. Os professores e funcionários enfrentavam muitos problemas para conciliar os tempos e espaços, bem como o processo de ensino e aprendizagem nessa nova forma de organização escolar.

Logo percebi que propor uma bem planejada oficina de leitura e escrita seria uma boa iniciativa para auxiliar os educandos a se apaixonarem pela literatura. A ideia era mostrar às crianças que a leitura não é tortura e não deve ser utilizada como punição. Assim, propus essa oficina e posso dizer que foi um sucesso. Apresentamos muitos trabalhos, desde livros com histórias criadas pelas alunas e alunos, até apresentações teatrais encenando diferentes histórias presentes nos livros literários. Essa oficina contribuiu de forma significativa para o processo de alfabetização dos estudantes e auxiliou no desenvolvimento de inúmeras outras habilidades cognitivas e socioafetivas.

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Desde então, como professora da RME, independentemente da turma que eu assumo a cada ano, sempre desenvolvo projetos de literatura. Acredito que é por meio da leitura que o mundo se revela. E quando digo leitura, não estou me referindo a um único gênero literário, mas sim, a todas as modalidades de leitura que compõem a cultura letrada. Também enfatizo a importância das histórias orais, dos contos populares, sem eles não existiriam os diversos gêneros literários que hoje conhecemos. Minhas memórias literárias me fazem refletir desde o primeiro livro que li para minha família ouvir, A margarida Friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida, até os clássicos de Karl Marx e outros que leio desde a graduação até o presente momento durante o doutoramento em andamento.

A aprendizagem que se efetiva por meio da literatura é imensurável. Ler os poemas ilustres de Conceição Evaristo, ler Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade com suas fabulosas crônicas da vida real, ter o prazer de ler e analisar as palavras e o contexto social explícito em Quarto de despejo, por Carolina de Jesus, fazer o mesmo ao ler Por falar em liberdade, de Beatriz Nascimento, Velhas tristezas, de Cruz e Sousa, ou ainda Nas rotas dos tubarões: o tráfico negreiro e outras viagens, de Joel Rufino dos Santos, ou Navio negreiro, de Castro Alves, entre outras grandes e outros grandes intelectuais, é conhecer e reviver a história com o sentimento de não repetirmos os mesmos erros, e isso nos faz, nos torna cada dia mais humanos.

Enfim, considero que a literatura é uma prática social que deve ser apropriada e desenvolvida por todas as pessoas. Faz parte do processo de formação da personalidade e consciência. É por meio da leitura que as mulheres e os homens se tornam humanizados. Por isso, concordo plenamente com Vygotski quando este afirma que palavra e pensamento se constituem dialeticamente. É assim que as funções psíquicas superiores se desenvolvem.

Desse modo, concluo esta síntese das minhas memórias literárias dizendo que o pensamento não se expressa pelas palavras, como afirmava o bielo-russo já mencionado, o pensamento é a palavra e é por meio desta que o pensamento se constitui. Assim, ler é enxergar e compreender o mundo e escrever é ousar transformá-lo, como afirma o brasileiro Paulo Freire.

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4. Ensaio de Joyci Viegas

Mary Baleeiro. Aquarela Joyci. Fev. 2019. 15x21
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4.1 Memórias literárias

Cresci em meio a livros, discussões políticas, reuniões e conspirações. Como eu amava deitar no sofá e ouvir a conversa dos adultos! Meu pai, figura interessante, que tudo questionava: Deus existe? Por que existe a pobreza? Que bobagem cantar o hino nacional. Lê aqui comigo o livro desse russo. Olha onde fica Cuba. Olha a União Soviética. Caiu o Muro de Berlim. Fora Collor. Greves, arrocho salarial… Nomes que me soavam estranhos, perguntas que muitas vezes não entendia. Marcas profundas na minha alma. Hoje vejo essa mesma história se repetindo em relação ao meu pai com seus netos…

As leituras que marcaram minha infância na escola muito se relacionam a uma professora de português, Josefa, O Estudante 1, 2 e 3, produção de redação e o amor à Língua Portuguesa... Já na adolescência tive minhas leituras marcadas pelos sentimentos de descobertas e melancolias: Cartas ao meu pai, Metamorfose e O processo. Poesias de Florbela Espanca era meu livro de cabeceira, que se misturavam aos amores não correspondidos, frustrações, lágrimas, músicas e mais lágrimas.

Clarice Lispector, Pablo Neruda, Drummond, temas como Ditadura Militar, maio de 1968, Tortura Nunca Mais, O Manifesto Comunista, Filosofia e música rodeavam minha vida de adolescente.

O curso de História se iniciou em 2003 e na minha inocência dos 17 anos não havia passado pela minha cabeça que em um futuro próximo me tornaria professora. Sempre fui muito ligada ao passado, um passado que vive na memória dos meus pais e por isso iniciei meus estudos em História.

Rosa Luxemburgo, Alexandra Kolontai, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Machado de Assis, Paulo Freire, Karl Marx, Hobsbawn, Gilberto Freyre, tantas referências que hoje, a partir desse processo de reconhecimento, já me identifico como uma professora de História. Desde o início, em 2007, venho me construindo e me descobrindo, com inúmeros erros, alguns acertos e certo encantamento por essa profissão. Afinal, quem ensina e quem aprende no fim das contas?

A liberdade do pensar, da crítica, do movimento, da expressão em resumo, a construção da autonomia é o que orienta o meu pensar e a minha prática atualmente. Penso que a experiência me trará em grande medida a prática da liberdade e os limites, tão fundamentais para o estabelecimento dos vínculos no processo ensino-aprendizagem. Mas confesso que em alguns momentos me arrependo de seguir esse caminho da “construção da autonomia” em um ambiente baseado em relações autoritárias.

Mas não poderia ser de outra forma, sigo, então, criando espaços, me atentando aos processos e caminhos de conhecimento, olhando nos olhos e ouvindo meus companheiros de caminhada; os estudantes. Construo minha própria autonomia através deles, e a partir desse princípio que me enche de paixão por essa vida de ser, estar e viver professora.

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5. Ensaio de Danúbia Jorge da Silva

Mary Baleeiro. Aquarela Danúbia. Fev. 2019. 15x21
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5.1 Memórias

As minhas primeiras lembranças a respeito da minha relação com a palavra escrita são de momentos em que eu e minha irmã estávamos sentadas na cama com minha mãe e ela lia em voz alta capítulos do Apocalipse, último livro da Bíblia Sagrada. Lembro-me que minha mãe falava de um “fim do mundo”. Evidentemente aquilo me deixava aterrorizada. Por que o mundo estava acabando, se para mim ele apenas havia começado? O que significa essa tal de marca da besta? Recordo-me de monstros cheios de asas, olhos e coisas terríveis. Minha mãe dizia: vocês pensam que o inferno é horrível? Nem imaginam então como será o lago de fogo para onde vão todos aqueles que não aceitarem Jesus! Durante toda minha infância e grande parte da adolescência as leituras sagradas nortearam meu comportamento, minha forma de estar no mundo e minha sexualidade. O medo daquele lago de fogo foi minha bússola moral por muito tempo.

Eu também me recordo da minha irmã me ensinando o alfabeto. Sempre que eu conseguia dizer todas as letras sem errar ela me dava uma balinha. Nessa época eu queria muito entrar na escola. Queria tudo que a escola poderia me oferecer; lancheira, cadernos, lápis e borrachas, uniforme e amigos. Depois de esperar bastante tempo para que surgisse uma vaga em uma escola considerada forte no bairro, por causa da minha insistência, minha mãe me matriculou na única que havia vaga, a escola fraca. Se a escola era fraca, logo ficou provado que eu não era (modéstia à parte). Mesmo tendo entrado em maio, fui a primeira a aprender a ler e a escrever. A professora ficou muito orgulhosa e me exibia como uma aluna prodígio. Chamava outros professores e a diretora para ver como eu lia sem gaguejar, como minha letra era bonita... “Você brilhou!”, ela repetia sempre e me enchia de orgulho de mim mesma.

Assim que aprendi a ler, nunca mais quis parar. Lia tudo que estava escrito no muro, para o desespero do meu pai, quando eu decifrei a palavra buceta no muro do vizinho e ele insistia que era botina. Lia a bíblia, lia todos os fragmentos de textos dos livros didáticos. Quando algum me interessava mais eu falava para minha mãe que eu precisava daquele livro porque a professora havia pedido (a Danúbia leitora de bíblia se sentia culpada por mentir). Ela sempre comprava, sem questionar ou duvidar. Eu lia repetidamente, todos os dias. Acredito que o primeiro livro que eu li inteiro foi O bonequinho doce, não me recordo do autor agora. Era um livro usado e já meio desgastado, assim como todos os livros que minha mãe comprava. Ainda hoje conservo o hábito de comprar livros de sebos, por serem de preço mais acessível e pelo charme que só um livro usado e com as páginas amarelas possui.

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A minha relação com a leitura fez com que eu fosse uma excelente aluna até a 4ª série. Tirava notas boas, era popular, queridinha das professoras. Mas algo mudou quando entrei para o ginásio. A adolescência chegou, e junto com ela a timidez, as inseguranças, a baixa autoestima. Na 5ª série passei o ano inteiro sem fazer nenhum amigo, talvez também por isso comecei a frequentar compulsoriamente a biblioteca escolar. Eu passava o recreio inteiro naquele lugar. Lia mais de um livro por semana. Com 11 ou 12 anos eu já havia lido Dom Casmurro e Hamlet. Desde então eu já mostrava predileção por livros de autores consagrados.

Resgatando minhas lembranças, não consigo relacionar meu gosto por leitura a um professor específico. Não me recordo de nenhuma professora lendo algum livro, nem mesmo nas séries iniciais. Todas as atividades de literatura eram mecanizadas, sem graça, e eu não me engajava em nenhuma, até porque já tinha lido livros muito mais interessantes do que aqueles indicados pelos professores. Lembro-me de professores fazendo atividades descontextualizadas, desinteressantes, de irem para a sala e só pedirem para os alunos abrirem os livros e responderem... Isso me faz não querer ser assim e oferecer atividades que façam sentido para os meus alunos. É claro que nem sempre é possível, mas na maioria das vezes eu tento.

Agora na rede pública percebo que essas crianças não possuem muitos modelos de leitores. Muitos vivem com pais e avós analfabetos, em casas de só um cômodo. As condições materiais impedem que essas crianças sejam leitoras. Então a escola precisa elaborar atividades efetivas. Alguns livros banais também tiveram grande impacto na minha adolescência, como O estudante, da autora Adelaide Carraro. É um livro bastante sensacionalista e cheio de estereótipos sobre o uso de drogas. O personagem Renato tinha uma vida perfeita: bonito, bom moço, educado e gentil, até que entra para o mundo das drogas. Ele vai causando um rastro de destruição por onde passa e não consegue se regenerar até que acaba morto pelo seu próprio pai. Durante muito tempo foi o impacto desse livro que impediu que eu tivesse qualquer contato com qualquer tipo de droga durante a minha adolescência.

O meu dia a dia sempre foi rodeado de leitura. Assim que consegui meu primeiro emprego, aos 16 anos, fiz assinatura das revistas Superinteressante e Época. Frequentava a Biblioteca do Sesc, lia no ônibus, mas ia mal na escola. O Ensino Médio foi concluído depois de muito esforço, pois eu já trabalhava e às vezes chegava em casa e não queria ir para a escola, por estar cansada e por achar enfadonho. Mas mesmo assim chegou o momento de decidir o meu futuro. Todos os testes vocacionais que eu fazia sempre apontavam para os cursos de humanas, principalmente Letras e Jornalismo. Analisei a concorrência, coloquei na balança qual dos dois cursos me ofereceria maiores chances de conseguir um emprego e optei por Letras.

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A princípio eu não tinha a menor vontade de ser professora, e por isso licenciatura para mim estava fora de questão. No entanto, com o passar do tempo percebi que minha única saída seria dar aulas. Então comecei a aceitar o fato de ser professora. Foi difícil. Eu pensava: ‘nunca vou saber o bastante para ser professora’. A sorte foi ter encontrado professores encantadores em minha graduação. A primeira foi a professora Sueli Maria de Regino, uma mulher culta, inteligente e que falava de mitologia, de teatro e de poesia de forma muito simples e encantadora. Ela despertou em mim o desejo de ler contos de fadas, mitos e lendas das mais variadas culturas e poetas como Federico García Lorca.

A professora Solange Fiúza também foi uma influência positiva, ela abriu os caminhos da poesia para mim, me fez ler Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Mário Quintana, Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade. Poesia tornou-se o meu gênero literário preferido e a culpa e responsabilidade são todas dela.

Penso que um leitor literário de verdade consegue se lembrar de pelo menos um poema, conto ou romance para qualquer situação da vida. Geralmente é nisso que eu me apego nos momentos difíceis. Foi assim com a morte do meu pai. Eu havia lido Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, há pouco tempo, então muitos trechos e frases ecoavam vez ou outra dentro da minha cabeça. Uma dessas frases surgiu no velório do meu pai, quando eu me recusava a entrar na sala de velório. "A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão tomando conta dele a dentro...". Naquele momento eu pude entender que a literatura tem o poder de nos amparar nos momentos de adversidade, porque todo e qualquer drama e sofrimento já foram enfrentados por algum personagem literário.

Neste momento da escrita, lembro-me que outro texto literário foi crucial para provocar uma cura psíquica em mim. Eu me envolvi em um relacionamento doentio, abusivo e prejudicial. Desvencilhar-me dessa pessoa foi um processo muito difícil, pois havia várias ameaças, agressões e chantagens. Quando essa relação finalmente chegou ao fim, me senti pequena e fraca por ter me deixado prender em algo que parecia uma teia de aranha. Eu me perguntava: ‘mas eu sou feminista, sou bem-informada, como pude entrar nessa cilada?’. E durante muito tempo eu não me perdoei por ter deixado uma pessoa me machucar tanto.

Acontece que um dos meus contos de fadas preferidos é A moça tecelã, de Marina Colasanti. Sempre leio para os meus alunos e para mim. Em uma dessas leituras eu me dei conta de que a moça tecelã também viveu um relacionamento doentio com uma pessoa egoísta que só lhe fazia mal. E que levou tempo até que ela tomasse coragem para destruir tudo aquilo que lhe fazia mal. No entanto, no momento certo ela fez o que tinha que ser feito. Como eu, que também era uma moça tecelã que retomou sua vida assim que foi possível, assim que teve forças para tanto.

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Eu gosto de oferecer leitura a todos que me cercam. Empresto livros de boa vontade, não me magoo se eles não voltarem, o importante é que sejam lidos. Já fiz algumas pessoas lerem Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, e isso se tornou um laço afetivo entre mim e essas pessoas, pois sempre que nos encontramos falamos sobre as personagens. Esse livro me fez empreender uma viagem até Cartagena das Índias e Aracataca, na Colômbia. Conheci lugares citados nos livros de García Márquez, lugares de sua biografia e o mais emocionante foi visitar a cidade natal desse autor. Ao chegar à cidade, em vez de me sentir feliz, como esperava, me senti triste. Era como se eu estivesse mesmo em Macondo, a cidade fictícia de Cem anos de solidão. Logo na entrada me deparei com um trem com mais de 180 vagões. Lembrei-me de um episódio do livro em que três mil operários são assassinados covardemente por estarem protestando por questões simples e básicas. Os corpos foram todos amontoados nos vagões de um trem.

A cidade era pacata, silenciosa e com muitos velhos tristes vagando pelas ruas. Talvez a leitura da obra tenha contaminado a minha visão, mas foi essa a impressão que a cidade de Aracataca deixou em mim. Conhecer a Casa Museu Gabriel García Márquez foi uma das grandes realizações da minha vida, não tenho dúvida disso.

É claro que tudo isso acaba refletindo na minha prática enquanto professora. Eu trabalho para que o livro vire algo rotineiro na vida das crianças. Eu sei que elas não têm o privilégio de ter um familiar que leia para elas. Por isso, na minha sala sempre tem leitura literária. Acredito que primeiramente os educadores precisam entender que a literatura fala de nós. Ela não existe para ensinar alguma coisa, ela existe para o fazer pensar sobre alguma coisa. Sobre vida, morte, dor, amor, alegria e tudo que movimenta nossa vida. As atividades precisam ter mais relação com a vida. Ao conversar sobre uma obra lida as crianças podem entender muitas coisas ou duvidar de muitas outras. A literatura também o ajuda a organizar o caos e a elaborar alguns sentimentos. Mas primeiramente a leitura precisa ser significativa para o professor.

Certa vez, tive que trabalhar com o livro O pequeno príncipe em uma turma de 6º ano e o trabalho foi desastroso. Reconheço a importância dessa obra para muitos, mas para mim ela nunca significou muito. Então eu não consegui desenvolver nada porque eu estava tentando fazer com que os alunos gostassem e na minha cabeça eu só conseguia pensar ‘Que livro chato!’. Desde então eu prometi a mim mesma que nunca mais trabalharia com alguma obra que não fosse importante para mim. Em outra ocasião, trabalhei com meus alunos o livro A bolsa amarela e foi uma das experiências mais lindas que já tive em minha carreira. As crianças construíram bolsas nas quais colocaram os sonhos, conversamos sobre medos, desejos, problemas familiares e amizade. É muito bom quando você escuta de um aluno: “Professora, este é o melhor livro que já li na minha vida!”. A leitura precisa deixar de ser uma atividade meramente escolar e isso é o maior desafio.

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Um dos melhores livros que já li sobre leitura se chama A arte de ler ou como resistir à adversidade, de Michele Petit. Nele, a autora francesa relata o trabalho de mediadores de leitura que levam literatura para as situações mais adversas: centro de apoio a refugiados, presídios, bairros periféricos e altamente violentos, etc. Nessa obra, a autora fala algo que tem se tornado meu lema como mediadora de leitura: mesmo que aquelas pessoas que tiveram contato com a obra literária não se tornem grandes leitores literários, elas poderão pelo menos acrescentar mais palavras em suas próprias histórias, nomear sentimentos desconhecidos para aprender a lidar com eles. Um dos capítulos da obra relata um trabalho literário feito com crianças que passaram por situações traumáticas e por isso possuíam “um olhar de pedra” que só o contato com contos de fadas foi capaz de desfazer. Vou concluir este relato com alguns trechos maravilhosos do livro citado acima:

“Os livros adoram a errância. Livros que ficam nas bibliotecas são livros tristes.”

“Para os cidadãos vivendo em condições normais de desenvolvimento, um livro pode ser uma porta a mais que se abre; para aqueles que foram privados de seus direitos fundamentais, ou de condições mínimas de vida, um livro é talvez a única porta que pode permitir-lhes cruzar a fronteira e saltar para o outro lado.”

“Os livros eram, naquele lugar, moradias provisórias, a maneira de recriar um pouco a casa perdida.”

“Os textos lidos abrem aqui um caminho em direção à interioridade, aos territórios inexplorados da afetividade, das emoções, da sensibilidade; a tristeza ou a dor começam a ser denominadas.”

“Gostamos de um livro na medida em que algo que acreditávamos perdido, um conhecimento sobre nós mesmos, ressurge. Ler é assistir a esse retorno.”

“Eu compro livros que nem sempre terei tempo de ler, para não arriscar deixar passar aquele que, finalmente, saberá tudo sobre mim.”

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6. Ensaio de Nadja Karoliny Lucas de Jesus Almeida

Mary Baleeiro. Aquarela Karol. Fev. 2019. 15x21
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6.1 Quem lê para mim, me lê?

Faz tempo já... ganhei minha primeira coleção de livros quanto tinha nove meses de idade (isso minha mãe me contou, claro, porque não me lembro). Mas me lembro das primeiras leituras feitas dessa coleção pela minha mãe, ela foi a primeira narradora de minhas aventuras pela leitura, me recordo de relance que ela lia e logo dormia, e a primeira proposta era para eu dormir, mas eu não dormia... Ficava ainda algum tempo remoendo as histórias todas, todas aquelas aventuras coloridas que na maioria das vezes eu não entendia, mas admirava.

Era a Coleção Joinha, artefato bem caro para a época – minha mãe certamente abdicou de alguma coisa para me proporcionar tamanho prazer – essa tal coleção tinha capa dura e furta-cor, as imagens das personagens das histórias se sobrepunham num lance mágico de aparecimento/desaparecimento. Por dentro, os desenhos eram lindos, coloridos, logo seguidos de letrinhas pretas e bonitinhas que me deixavam bastante curiosa... Como acontecia, como, ao fechar cada livrinho, será que as letrinhas se misturavam e bagunçavam toda a história e personagens formando novas aventuras? Como era possível, ao fechar e abrir novamente cada livrinho que as letrinhas como num passe de mágica voltassem novamente aos seus lugares contando sempre a mesma história? Era por isso que eu não dormia logo após cada leitura, era nisso que eu ficava pensando e observando minha mãe dormindo ao meu lado, como ela conseguia dormir? Certamente que já havia desvendado tal mistério!

Tenho a Coleção Joinha até hoje, capas remendadas, personagens repintados por mim e pela minha irmã, novas letras flutuando por cima das letras. Agora eu que leio tais aventuras às minhas filhas, e elas dormem, não durmo logo em seguida como a minha mãe, porque agora fico imaginando se, ao dormirem, minhas meninas sonham com aquelas aventuras das quais também já participei e se em seus sonhos aparecem as mesmas dúvidas e curiosidades que eu tinha ou se elas, sabiamente, como a minha mãe, também já desvendaram aquele antigo mistério. E eu não durmo pensando nisso.

Assim, a leitura e a literatura foram apresentadas a mim. Pelo menos é assim que eu me lembro... Eu tinha três ou quatro anos.

Muito tempo depois, e esclareço aqui que a medida do tempo é para criança, muito tempo depois, já com cinco anos, lembro da minha avó, mãe da minha mãe, vovó Tontonha, pelo tempo que minha irmã e eu ficávamos em sua casa para que os meus pais pudessem trabalhar, entre bonecas de palha de milho, de sisal e de casca de melancia, entre banhos perfumados e comida gostosa, ela também lia para a gente. Só que dessa vez a leitura nunca era a mesma, apesar de o livro ser, e muitas vezes as histórias nem vinham de livro algum, vinham da memória e da criatividade dela. E era tudo tão lindo! E eu achava minha avó a pessoa mais bonita, cheirosa e inteligente do mundo, ela sabia inventar, recontar de forma diferente a mesma história e representar! E novamente, muito tempo depois, já com a inteligência dos sete anos e a dor da perda da minha avó, descobri que ela mal sabia ler, riscava bem seu nome, com letrinhas bem bonitas e esforçadas, e era isso.

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E muitos anos depois, diante do pelotão de livros na solidão da biblioteca, eu haveria de recordar aquela tarde remota em que a minha própria solidão me inundou e me levou a conhecer os Cem Anos de Solidão. O mundo da literatura não era mais recente para mim, mas muitas coisas ainda careciam de nomes e para mencioná-las eu precisava apontar com os dedos e os olhos. O encontro fatídico daquela tarde me remontou há tempos imemoriais em que eu ainda era criança e já tinha despertado em mim o desejo de escrever sobre as águas, fluidas e vãs como se as palavras tivessem vida própria e pudessem me trazer ou me levar a algum lugar. Lugar de acolhimento na solidão, e as leituras passaram a ser solitárias, encontros de tormentos e tormentas de novas descobertas, e passei a fabricar tantos peixinhos dourados quanto Aureliano teria feito, e nesses passos de prestidigitação, uma nova cor encarnada sempre surgia em cada peixe, a minha vocação animal, o meu chamamento eram ouvidos... e como Remédios, a bela, fiquei vagando pelo deserto da solidão sempre acompanhada de mais solidão, “sem cruzes nas costas” amadurecendo nos meus sonos sem pesadelos, nos meus banhos intermináveis, nas minhas refeições sem horários, nos meus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, esperando sempre uma tarde de março em que eu pudesse ser levada entre lençóis, num redemoinho, num rebuliço de vento onde “nem os mais altos pássaros da memória” poderiam me alcançar... então voltei, voltei com um “rabinho de porco” e sabendo da condenação da minha estirpe, dos que leem e amam ler, sabendo disso, fiz da condenação a minha vida, arrasada e arrastada pelos ventos irrefutáveis de quem não consegue se conter, transformei todos os livros em memórias, todas as memórias minha vida. E tudo o que permanece escrito e inscrito em mim, letras, imagens, vozes, pessoas são a literatura que me desenham todos os dias. Do amor e suas ânsias... A ânsia de compartilhar leituras e a necessidade de ouvir vozes que leem. E assim permaneço, até que a idade, o tempo e as memórias me envelheçam.