Capítulo 1: Compartilhando Memórias e Saberes

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1. Introdução

Memórias e leituras compartilhadas é um trabalho de busca pela identidade por meio da produção de memórias de leituras literárias realizadas por professores. É a tentativa de entendimento da relação intrínseca entre os professores e as suas rememorações de leituras literárias desde suas infâncias até o momento atual, em que se constituem como sujeitos que também promovem essa mesma leitura em sala de aula.

Refletindo sobre o processo de produção de memória e de rememoração como constituição de identidade, acredito que a leitura literária seja um dos campos mais fecundos para tratar de temas transversais ligados tanto às pluralidades culturais quanto às diversidades individuais e sociais, e às linguagens (ALMEIDA, 2019, p. 10).

As pessoas, em geral, precisam ouvir as opiniões dos outros, antes de formarem as suas próprias, e, constantemente, mudam de posição (ou fundamentam melhor sua posição inicial) quando expostas à discussão em grupo. O mediador, aquele que propõe a oficina, o compartilhamento de ideias, memórias e saberes, deve criar um ambiente propício para que diferentes percepções e pontos de vista venham à tona, sem que ocorra nenhuma pressão para que seus participantes votem, cheguem a um consenso ou estabeleçam algum plano conclusivo. O moderador é um facilitador do processo de discussão, e sua ênfase deve recair no jogo de interinfluências da formação de opiniões sobre um determinado tema (GONDIM, 2003, p. 151).

A memória, então, é entendida como memória discursiva. Como aponta Courtine (1981 apud DRESCH; LEBEDEFF, 2010, p. 6), é a “memória coletiva construída nas próprias práticas discursivas”.

A sequência didática aqui apresentada faz parte de minha pesquisa de mestrado para o Programa de Pós-graduação em Ensino na Educação Básica (PPGEEB) CEPAE – UFG, intitulada: “Memória e formação de professores leitores: imaginário, subjetividades e afetividades literárias” (2019). O produto educacional desta pesquisa, que a princípio seria apenas um portfólio com os ensaios de memórias das seis professoras participantes da investigação, com o tempo e com a necessidade que o próprio trabalho exigiu, assumiu diferentes formatos, constituindo assim uma coletânea de trabalhos.

Acredito que a realidade educacional seja dinâmica e não previsível em suas diferentes manifestações: mesmo nas exigências burocráticas e sistematizadas e mais ainda nas subjetividades em salas de aula com diferentes sujeitos, na enunciação linguística e nas relações entre professores e alunos, nas escolhas simbólicas e de rememoração que constituem os trabalhos dos professores (neste caso específico, em relação às leituras literárias). Esta dinamicidade na realidade educacional exige um estabelecimento de um diálogo entre as teorias e as práticas educacionais, exigência que perpassa as ações educativo-escolares.

A valorização dos saberes docentes, do professor como sujeito que age e que nunca se repete, que tem toda uma memória de vivência escolar e pré-escolar (pré-docência), faz parte de uma categoria teórica que emerge em 1980 e se expande nos anos de 1990 por meio de diferentes pesquisas que reconhecem a existência de saberes específicos que caracterizam a profissão docente, além das pesquisas desenvolvidas pelos professores.

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Para Tardif (2002, p. 216), o saber docente é plural e se compõe de vários saberes provenientes de diferentes fontes, são denominados por disciplinares, curriculares, profissionais e experienciais. Esses saberes, afirma o autor, precisam ser considerados pelas instituições em suas propostas formativas, pois é sobre eles que a profissionalidade e a autonomia docente se ressignificam e tomam sentido na ação dos professores.

Esta sequência didática tem como proposta investigar componentes subjetivos e afetivos de leituras literárias, como forma de contribuir para os estudos teóricos e metodológicos na formação de professores leitores, por meio das subjetividades e afetividades que envolvem suas memórias e lembranças de leituras.

Este trabalho é realizado por meio de leituras literárias e estudos míticos, simbólicos e científicos acerca da memória e sua relevância na formação de professores leitores de diferentes áreas do conhecimento, entretanto, com foco em professores e graduandos de Língua Portuguesa e Literatura e de Pedagogia. A importância deste estudo se dá por percebermos dificuldades enfrentadas por professores ao se depararem com educandos considerados não leitores ou leitores que não se sentem mais estimulados pela palavra escrita e pelas imagens mentais produzidas por meio desta. Estimular essas leituras a partir das próprias lembranças de leituras é um caminho difícil, mas importante e interessante, que os professores leitores precisam percorrer para buscar ampliar tanto as potencialidades intelectuais, quanto estimular as vivências pessoais de seu público leitor, seus educandos.

Neste estudo, a proposta é contribuir para o envolvimento de professores e seus pares em experiências de leituras literárias e de rememoração. São ofertadas cinco oficinas que são chamadas de encontros, trabalhadas como rodas de conversas e com bases metodológicas nas metodologias do Grupo Focal, da História Cultural e da História Oral. Iniciamos as nossas considerações na primeira roda de conversas pelas memórias de leituras literárias constituídas na infância e nos pretensos lugares nos quais tais leituras aconteceram e tais memórias se estabeleceram, com a família, na escola, passando pelas memórias constituídas na adolescência, tanto as individuais, de escolha por prazer de cada leitor, como as coletivizadas e obrigatórias no processo escolar.

A partir daí, as rememorações dos professores passaram para seus lugares de memória da e na graduação e no processo de formação profissional, até chegarem ao momento atual, enquanto atuam como professores mediadores de leituras literárias. São as lembranças de leituras que passarão para o indivíduo (sujeito leitor) na sua constituição como sujeito de identidade subjetiva e socialmente construída.

Pretendemos, com este trabalho, chegar a todos os professores e estudantes e quem mais se interessar pelas temáticas da memória e da leitura literária, com propostas de compartilharmos nossas memórias de leituras, propormos novas e velhas leituras, trocarmos conhecimentos no que diz respeito ao ensino de literatura e a leitura literária em sala de aula.

2. Sequência Didática para as oficinas

Uma sequência didática é um conjunto de oficinas e de atividades escolares sobre um gênero textual, organizado de modo a facilitar a progressão na aprendizagem da leitura e escrita. Elaborada inicialmente pela equipe de didática das línguas da Universidade de Genebra, foi adaptada para que pudéssemos nesta proposta desenvolver atividades para trabalhar com o gênero memórias e com as memórias de leituras literárias dos professores participantes.

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O trabalho com as lembranças é um meio estratégico de vincular o ambiente em que os professores vivem a um passado mais amplo e alcançar uma percepção viva deste passado, o qual passa a ser não somente conhecido, mas sentido pessoalmente. Trata-se, antes, de resgatar memórias de leituras literárias desses professores que, passadas continuamente aos seus alunos pelas palavras, pelos gestos, leituras, pelo sentimento de comunidade e de destino, ligam docentes e educandos em suas relações cotidianas em sala de aula.

Recuperar essas memórias servirá de estímulo para professores e alunos numa tentativa de melhorar a relação de parceria entre ambos. Permite mostrar o valor de pessoas que vêm da maioria desconhecida do povo, traz a história para dentro da comunidade ao mesmo tempo que extrai história de dentro dela, propicia o contato entre gerações e pode gerar um sentimento de pertencer ao lugar onde se vive, contribuindo para a formação de seres humanos mais completos e entendedores de seus direitos cidadãos como sujeitos pensantes e produtores de saberes.

Levar os professores, e estes, consequentemente, seus alunos, a serem narradores de suas memórias literárias, é propiciar que desenvolvam, sobretudo, a habilidade de narrar, uma vez que narrar memórias é uma habilidade que se aprende.

Depois de compartilhar as memórias de leituras literárias com seus alunos, juntos, então, poderão reconstruir/recriar essas memórias, sem precisar fazer uma transcrição exata da realidade, pois o ato de narrar é sempre uma criação.

Ao narrar algum acontecimento pessoal de forma literária, o imaginário do narrador atua em suas memórias transformando-as de forma a ser recolhido e guardado o que não serve para aquele momento e destacados aspectos rememorados que possam ser mais envolventes para o interlocutor, dando uma “vida” da qual o interlocutor ouvinte ou leitor possa compartilhar (LEITE, 2011).

Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), memória é “aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; lembranças, reminiscência”. E memórias: “relato que alguém faz, muitas vezes na forma de obra literária, a partir de acontecimentos históricos dos quais participou ou foi testemunha, ou que estão fundamentados em sua vida particular”.

É possível “tomar gosto” pela leitura e pela escrita quando nos debruçamos no processo de ler e entender o outro, suas recordações, as relações semânticas entre memórias, lembranças, reminiscências, entre outros, que muito poderão nos ajudar a elucidar sobre tudo aquilo que entra em jogo no processo de leitura e escrita das memórias no âmbito escolar, oportunizando ao aluno a possibilidade de ser autor.

Aqui são oferecidas cinco oficinas/encontros de formação para professores de qualquer área de conhecimento. A proposta é que estes profissionais da educação compartilhem suas memórias, suas leituras literárias, seus saberes docentes. As oficinas podem ser desenvolvidas em qualquer ambiente, terem uma média de 20 participantes e é importante que este mesmo grupo participe de todas elas, que são sequenciais.

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Depois da sequência das oficinas, são apresentados seis ensaios de seis professoras participantes de minha pesquisa de mestrado, já citada. Os ensaios que finalizam esta sequência didática e que aparecem como referências de leitura na oficina de número 5 são um dos produtos de minha investigação no mestrado, são leituras que se constituíram como escritas, são escritas individuais alimentadas pela coletividade dos encontros, pelas lembranças das outras que nos fizeram também relembrar momentos distintos ou parecidos.

A escrita de si, antes de tudo, infere um pensamento, uma rememoração e até mesmo formas do dizer e do não dizer de si. O processo de narrativização do eu, do si mesmo, pode se tornar difícil à medida que o narrador memoriza as informações sobre si mesmo e necessita ainda, além de sua própria memória, das memórias de outros que conviveram com ele e que possam lhe esclarecer alguns fatos.

A necessidade do lembrar e do que lembrar, do que dizer e do que não dizer é que vai constituindo e organizando fatos e aspectos de cada sujeito que se narra, e por isso, o presente vai se refazendo a partir do que se lembra do passado. “Rememorar é também reatualizar o presente e a visão de si mesmo” (ALMEIDA, 2019, p. 148).

Autobiografia, biografia, relato oral, depoimento oral, história de vida, história oral de vida, história oral temática, relato oral de vida e as narrativas de formação são modalidades tipificadas da expressão polissêmica da história oral. Nas pesquisas na área da educação adota-se a história de vida, mais especificamente o método autobiográfico e as narrativas de formação, como movimento de investigação-formação, seja na formação inicial ou continuada de professores/professoras (SOUZA, 2007, p. 67).

De acordo com Souza (2008, p. 96):

É pertinente entender que as narrativas ganham sentidos e se potencializam como processo de formação e de conhecimento porque encontram na experiência sua base existencial. A construção da autonarração inscreve-se na subjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num tempo da consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si mesmo.

A sequência didática com a proposta de cinco oficinas nos moldes de rodas de conversas como foram realizadas na minha pesquisa, os ensaios (escritas de si) escritos pelas professoras participantes daquela e as aquarelas da artista plástica Mary Baleeiro são produtos complementares que constituem o produto educacional final de meu estudo.