4. Percepções de estudantes e professores da EJA sobre o racismo: questões sobre o racismo individual e o racismo estrutural
INTRODUÇÃO
Este artigo é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada “Racismo e Educação de Jovens e Adultos: análise do ensino para as relações étnico-raciais em uma escola EJA”, de autoria de Thâmara Nayara Alves Pereira, sob a orientação de Anna Maria Dias Vreeswijk, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica, nível mestrado profissional, da Universidade Federal de Goiás.
Ao longo da dissertação, buscou-se identificar, compreender e problematizar a concepção teórica e a ação prática dos professores quanto à temática racismo no ambiente escolar, em uma escola Educação de Jovens e Adultos (EJA), e analisar o ensino para as relações étnico-raciais na escola. Por fim, buscou-se elaborar e aplicar, como produto educacional, uma sequência didática alinhada com as necessidades de professores e alunos, buscando uma maior adequação da temática racial ao público da EJA.
O presente artigo apresenta um recorte desta pesquisa de mestrado, que é a investigação e análise das percepções sobre o racismo entre alunos e professores da escola campo EJA, assim como também apresenta uma intervenção didática elaborada a partir da análise dessas concepções prévias dos alunos. Para realizar esse levantamento foram analisadas as respostas coletadas em questionários destinados a alunos e professores referentes à prática de racismo, ao entendimento do conceito de racismo e às atividades educacionais voltadas para as relações étnico-raciais.
É necessário afirmar que este trabalho se apropria do termo raça ressignificado pelas ciências humanas, não considerando aqui o seu caráter puramente biológico. Raça é uma construção social e histórica, como afirmam Gomes e Munanga.
Cabe esclarecer que o termo raça foi e ainda é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características fenotípicas, como cor de pele, tipo de cabelo, influenciam, interferem e até mesmo determinam o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. Portanto, o conceito de raça é uma construção social e histórica, produzida no interior das relações sociais e de poder, ao longo do processo histórico (GOMES; MUNANGA, 2004, p. 14-15).
Hall contribui com esse esclarecimento sobre o conceito de raça ao afirmar que,
Conceitualmente, a categoria "raça" não é científica. As diferenças atribuíveis à "raça" numa mesma população são tão grandes quanto aquelas encontradas entre populações racialmente definidas. "Raça" é uma construção política e social. E a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão — ou seja, o racismo (2003, p. 69).
Atualmente, o Movimento Negro trouxe um novo significado aos termos negro e raça, atribuindo a eles um sentido também político.
Contudo, a categoria raça foi ressignificada pelo Movimento Negro brasileiro que, em várias situações, utiliza-a com um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos, bem como o conceito de negro, ao não se limitar às características físicas, mas uma escolha política, por isso o é quem assim se define (GOMES; MUNANGA, 2004, p. 20).
A partir desse referencial teórico, em que se entende raça em seu caráter histórico, social e político, é possível compreender a particularidade racial do público da EJA. Dados nacionais informam que dos 14,4 milhões de analfabetos existentes em 2006 no Brasil 69,4% eram negros. Assim sendo, a modalidade de Educação de Jovens e Adultos tem se constituído em uma alternativa para a população negra: 75% dos estudantes jovens e adultos que participam do Programa Brasil Alfabetizado são negros e 54% dos estudantes que frequentavam a EJA em cursos presenciais, em 2008, eram negros.
Dados do Censo do IBGE/2017 indicam que a taxa de analfabetismo é de 4,2% entre as pessoas autodeclaradas brancas, enquanto a taxa de analfabetismo entre as que se declararam pretas ou pardas chega a 9,9%. Em um recorte que considera as pessoas com 60 anos ou mais, o percentual entre os dois grupos é de, respectivamente, 11,7% e 30,75%. A partir de dados sobre o analfabetismo entre jovens e adultos, Arroyo afirma que os alunos da EJA são, em sua maioria, afrodescendentes.
Percebe-se com esse dado que muitas vezes os negros são excluídos no ensino regular e redirecionados à EJA, modalidade que tem seu valor por ser uma tentativa de inclusão e oportunidades a aqueles que, por diversos motivos, não conseguiram realizar seus estudos na idade considerada adequada. Mas, infelizmente, o que não podemos perder de vista é o descaso governamental com essa modalidade de ensino. As menores verbas educacionais são repassadas à EJA, que tem a menor carga horária e, em diversas situações, assume um caráter meramente certificativo. A Educação de Jovens e Adultos – EJA tem sua História muito mais tensa do que a História da Educação Básica. Nela se cruzam interesses menos consensuais do que na educação da infância e da adolescência, sobretudo quando os jovens e adultos são trabalhadores, pobres, negros, subempregados, oprimidos e excluídos. Os olhares tão conflitivos sobre a condição social, política, cultural desses sujeitos têm condicionado as concepções diversas da educação que lhes é oferecida. Os lugares sociais a eles reservados – marginais, oprimidos, excluídos, empregáveis, miseráveis... – têm condicionado o lugar reservado a sua educação no conjunto das políticas oficiais. A história oficial da EJA se confunde com a história do lugar social reservado aos setores populares. É uma modalidade do trato dado pelas elites aos adultos populares (ARROYO, 2005, p. 221).
O estudo da relação entre a EJA e o ensino para as relações étnico-raciais está, portanto, diretamente relacionado com os seus sujeitos. Contudo, mesmo diante dessa problemática, a discussão sobre esse tema não tem sido privilegiada no ambiente escolar. De acordo com Gomes,
A realização de um trabalho pedagógico que discuta a questão racial nas práticas da EJA carrega em si uma complexidade, ao mesmo tempo em que se faz necessária a luta pela inclusão pedagógica dessa questão nos currículos e práticas EJA, é necessário reconhecer que a questão racial já está presente na Educação de Jovens e Adultos por meio dos sujeitos, que participam das práticas educativas voltadas para jovens em todo o país (2005, p. 93).
São indispensáveis mais estudos e pesquisas sobre como os temas raça e racismo estão sendo trabalhados na EJA para que se possa contribuir com a Educação para as relações raciais no Brasil e com o processo de combate ao racismo.
Localizada na região norte da cidade de Goiânia (Goiás), a escola campo foi inaugurada em novembro de 2004, com o ensino fundamental para crianças, pré-adolescentes, adolescentes, jovens e adultos. Segundo o Projeto Político Pedagógico (PPP) da instituição, em 2017 foram matriculados 107 alunos na modalidade Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos (EAJA). Desse total, 22 alunos foram matriculados no primeiro segmento, destinado a alunos ainda não alfabetizados. Os outros 85 alunos foram matriculados no segundo segmento, destinado a alunos já alfabetizados. Cada segmento tem a duração de dois anos e meio, considerando que pode haver avanço em qualquer momento de acordo com o desempenho do aluno. Também existe a possibilidade de ampliação do tempo de permanência do educando, caso seja necessária para a conclusão significativa de sua escolarização, sem que isso seja caracterizado como repetência.
A primeira etapa da pesquisa, com a aplicação de questionários, envolveu 24 alunos do segundo segmento, maiores de 18 anos, que aceitaram participar de forma voluntária. A maior parte desses alunos é composta de mulheres, somando 15 alunas. Em relação à idade, 41,6% têm entre 18 e 20 anos, 8,3% têm idade entre 21 e 30 anos, 25% têm entre 31 e 40 anos e 25% têm entre 41 e 50 anos. Trata-se, assim, de uma turma heterogênea, com a presença de pessoas de diversas faixas etárias. Quanto à cor ou raça, a maioria se declarou preta (14 participantes) e parda (6 participantes). Apenas 4 alunos se reconhecem como brancos. Nesta pesquisa, na análise dos questionários, os participantes foram identificados por ordem numérica de 1 a 24.
Aceitaram participar da pesquisa 4 professores. Percebemos resistência por parte dos professores em se envolver com a pesquisa, resultando num baixo índice de participação, considerando que foram convidados os 10 professores que trabalham na modalidade EAJA. Os professores foram identificados pelas letras K, X, Y e Z.
Foram elaborados dois questionários, um para professores e outro para estudantes. No questionário aplicado aos alunos, as perguntas tinham o objetivo de identificar se os estudantes conseguiam conceitualizar o que é racismo e se conseguiam identificar o racismo no meio familiar, na escola, no trabalho e neles mesmos. Nos questionários destinados aos professores, as perguntas indagavam sobre sua compreensão acerca do conceito de racismo e também sobre sua prática pedagógica a respeito dessa temática.
1. Coleta e análise das concepções dos participantes referentes ao racismo: o racismo como uma espécie de bullying
Primeiramente, analisamos as respostas dos estudantes. É bastante perceptível a dificuldade de escrita da maioria dos alunos, mas como isso não compromete o entendimento do que eles escreveram, as respostas foram transcritas integralmente da forma como foram dadas, sem correção ortográfica. Optou-se, assim, por respeitar as falas coletadas, reforçando que os alunos pesquisados estão cursando os anos correspondentes ao Ensino Fundamental II (do 6º ao 9º ano).
Ao responderem à questão “O que você entende por racismo?”, a maioria dos estudantes relacionou racismo a xingamentos referentes à cor da pele. Um aluno citou que o racismo era crime, enquanto outros o assemelharam com o bullying e alguns com o desrespeito. Cinco alunos deixaram essa questão em branco.
E quando chama uma pessoa de preta. (Estudante 1, mulher branca, com idade entre 21e 30 anos).
Racismo para mim é quando chamar outro de Preto (Estudante 2, homem pardo, com idade entre 14 e 20 anos).
E porcausa do chingamento (Estudante 9, homem pardo, com idade entre 41 e 50 anos).
Preconceito com pessoas de cor ou diferentes (Estudante 19, mulher parda com idade entre 14-20 anos).
A partir dessas respostas, podemos perceber que o entendimento dos alunos sobre o racismo está relacionado a atos racistas, principalmente na forma de xingamentos e ofensas. É relevante ressaltar que os alunos reconhecem que as pessoas negras são tratadas de forma diferente na sociedade, identificam o desrespeito e percebem que muitos negros são chacoteados, isolados ou excluídos em ambientes sociais.
Alguns alunos, como já dito, relacionaram o preconceito com o bullying, o que vamos evidenciar nas próximas respostas. Isso demonstra que o tema está sendo discutido dentro da escola, mas é um indício de que o racismo não é historicizado em toda sua complexidade e, para o entendimento desses alunos, se reduz a um preconceito, desrespeito por uma característica física.
E tipo Bulem essas coisas estupidas que nem deveria existir (Estudante 5, mulher branca, com idade entre 31 e 40 anos).
Racismo e as pessoas fazer bule da cor da pele negra (Estudante 6, mulher parda, com idade entre 41 e 50 anos).
Que devemos respeitar uns aos outros, pois somos igual e não devemos maltratar alguém por um mode dela ser (Estudante 15, mulher branca, com idade entre 41 e 50 anos).
A falta de respeito com o ser humano (Estudante 16, homem negro, com idade entre 21 e 30 anos).
Três alunos trouxeram respostas diferentes que demonstraram uma compreensão um pouco mais abrangente: a estudante 13, mulher que se autodeclara negra, com idade entre 21 e 30 anos, respondeu: “eu intendo que é crime e contra a lei dispresar alguém da cor negra, com palavras de ofença contra os negros”. Relacionar o racismo com a legislação já representa um aprofundamento na compreensão dessa estudante, que consegue perceber a seriedade do problema a ponto de se ter uma lei que criminaliza o racismo.
Já a estudante 17 expressou a seguinte percepção: “Eu acho que tratar os negros com diferença principalmente no mercado de trabalho” (estudante 17, mulher negra, com idade entre 41 e 50 anos). Essa participante percebe que o problema segrega e que atinge o mercado de trabalho, podendo ser um componente de classificação e de discriminação. A estudante 24, que se autodeclara parda, tem idade entre 31 e 40 anos, escreveu: “intender que racismo e muito comum no Brasil e muitas pessoas racistas”. Nas respostas, identificamos que os alunos não acreditam viver em uma democracia racial, reconhecem que muitas pessoas são racistas e que, para eles, o racismo é um fato recorrente no Brasil.
As próximas três questões foram elaboradas visando averiguar se os alunos conseguiam identificar o racismo no seu meio de convivência (família, escola e trabalho). Na questão “Você já identificou práticas ou falas racistas na sua família? Se sim, relate algumas.”, apenas um aluno não respondeu a essa pergunta, mas a surpresa foi que 18 alunos responderam “não” e quatro conseguiram identificar racismo em suas famílias.
A questão seguinte indagava a respeito da identificação por parte do estudante de práticas ou falas racistas no seu ambiente de trabalho e qual foi sua reação. Considerando uma relação um pouco mais distante, os estudantes conseguem perceber o racismo: apenas dois não responderam, 11 responderam que não e 10 responderam que sim. Abaixo vamos destacar as respostas mais relevantes:
Sim já ouvi uma colega falando de uma pessoa negra fiquei muito triste (Estudante 10, mulher negra com idade entre 41 e 50 anos).
Sim dentro do ônibus eu já ouvi pessoas comentando dos negros (Estudante 13).
Sim uma pessoa falou que não gosta de pessoas negras e fiquei horrorizada (Estudante 14, mulher parda, com idade entre 14 e 20 anos).
Sim, um vez quando levei minha filha para consultar uma enfermeira me perguntou você é mãe dela eu responde sou, mas ela insistiu dizendo que eu era babá pois só porque minha filha era branca (Estudante 17).
Aonde eu trabalho sim, palavrões racistas como preto fedido, nego, etc... Minha reação foi que eu fiquei indignada achei ruim (Estudante 22, mulher parda, com idade entre 41e 50 anos).
A última questão era referente à identificação de práticas racistas no ambiente escolar. Três alunos não responderam, 19 responderam que não identificaram e apenas dois alunos conseguiram identificar o racismo na escola. Dessas duas respostas uma é do estudante 3 (homem pardo, com idade entre 21 e 30 anos), que disse “Sim, mala”. Nessa afirmação, o estudante alerta para a relação do estudante, pois essa expressão faz referência a bandido, marginal, relação muito frequente em falas racistas e que é reforçada pela mídia, ao exibir constantemente essa imagem do negro. A outra resposta é mais ampla, pois o estudante fala que percebe discriminação no geral ao dizer que “Nossa ela e gorda de mais, ela e feia e outras coisas” (estudante 23, homem pardo, com idade entre 14-20 anos).
A última questão buscava investigar se os participantes se identificavam como racistas: “Você já teve alguma atitude ou julgamento que depois você percebeu como racista? Conte como foi.”. Quatro estudantes não responderam a essa pergunta, 12 responderam que “não” e seis reconheceram que sim, mas apenas dois relataram como foi. O estudante 15 (mulher, branca, com idade entre 41 e 50 anos) respondeu: “acho que sim, já olhei muito uma pessoa negra e a rejeitei, mas não sabia que era um racismo”. A partir disso, podemos perceber que a consciência de tal ato já foi alcançada pelo aluno. Já o estudante 24 disse: “já sim pessoas chamando as outras de preta”.
Analisando as respostas obtidas com essas cinco questões, podemos perceber algumas características importantes. A primeira é a grande percepção do racismo no Brasil, isto é, os alunos reconhecem que existe racismo na sociedade e relatam situações racistas. Porém, a maioria não reconhece em si mesmo o racismo nem em suas famílias e, quando reconhece que existe, prefere não comentar sobre isso. Este dado pode ser relacionado à afirmação de que o preconceito existe, mas está sempre no “outro”. Sobre esse “preconceito do outro”, Schwarcz analisa:
[...] uma pesquisa realizada em 1988, em São Paulo, na qual 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e 98% dos mesmos entrevistados disseram conhecer outras pessoas que tinham sim, preconceito. Ao mesmo tempo, quando inquiridos sobre o grau de relação com aqueles que consideravam racistas, os entrevistados apontavam com frequência parentes próximos, namorados e amigos íntimos. Todo brasileiro parece se sentir, portanto, como uma ilha de democracia racial, cercada de racistas por todos os lados. Em 1995, o jornal Folha de São Paulo divulgou uma pesquisa sobre o mesmo tema cujos resultados são semelhantes. Apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver preconceito de cor contra negros no Brasil, só 10% admitem tê-lo. No entanto, de maneira indireta, 87% revelam algum preconceito ao concordar com frases e ditos de conteúdos racistas, ou mesmo enunciá-los. Tal pesquisa foi repetida em 2011, e os resultados foram basicamente idênticos, mostrando como não se trata de supor que os brasileiros desconheçam a existência do preconceito: jogam-no, porém, para outras esferas, outros contextos ou pessoas afastadas. Trata-se, pois, de um “um preconceito do outro” (SCHWARCZ, 2012, p. 30-31).
A segunda conclusão importante é que, mesmo percebendo a existência do racismo, grande parte das percepções dos estudantes se refere ao que se pode denominar como racismo individual. De acordo com as análises de Almeida (2019, p. 28),
O racismo, segundo esta concepção, é concebido como uma espécie de “patologia” ou anormalidade. Seria um fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados; ou, ainda, seria o racismo uma “irracionalidade” a ser combatida no campo jurídico por meio da aplicação de sanções civis – indenizações, por exemplo – ou penais. Por isso, a concepção individualista pode não admitir a existência de “racismo”, mas somente de “preconceito”, a fim de ressaltar a natureza psicológica do fenômeno em detrimento de sua natureza política.
Sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo. Desse modo, o racismo, ainda que possa ocorrer de maneira indireta, manifesta-se, principalmente, na forma de discriminação direta. Por tratar-se de algo ligado ao comportamento, a educação e a conscientização sobre os males do racismo, bem como o estímulo a mudanças culturais, serão as principais formas de enfrentamento do problema.
Esta concepção aproxima o racismo a uma espécie de bullying (termo que chegou a ser empregados em respostas dos alunos), o que acaba equiparando racismo a outras formas de preconceito. Nessas respostas, o racismo é destacado como uma ação individual, de ofensa direta de alguém contra outra pessoa. Esta concepção encontrada nas respostas é legítima e está diretamente ligada à experiência dos sujeitos, como pode ser observado nos relatos em que os estudantes reportam casos de ofensas e xingamentos que eles presenciaram, cometeram ou que sofreram. Contudo, essa concepção revela limites no entendimento do racismo como um fenômeno histórico e social, como explica Almeida (2019, p. 28):
O racismo é uma imoralidade e também um crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente responsabilizados, disso estamos convictos. Porém, não podemos deixar de apontar o fato de que a concepção individualista, por ser frágil e limitada, tem sido a base de análises sobre o racismo absolutamente carentes de história e de reflexão sobre seus efeitos concretos. É uma concepção que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista inconsequente – “racismo é errado”, “somos todos humanos”, “como se pode ser racista em pleno século XXI?”, “tenho amigos negros” etc. – e uma obsessão pela legalidade. No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”.
Analisamos agora as respostas dos professores às questões referentes ao racismo. A primeira pergunta se assemelhou bastante à feita aos alunos: “O que você compreende por racismo?” Podemos perceber semelhanças em principalmente duas respostas:
Absurdo, herança maldita e inacreditável que tenhamos que falar sobre isso ainda hoje. Mas, não podemos esquecer nem por “panos quentes” (Professora K).
Racismo – cultura fortemente enraizada na sociedade brasileira e goiana. Muitos praticam o racismo “velado”, sem expressão verbal de preconceito ao negro ou práticas culturais vindas dos afrodescendentes (Professora Y).
As professoras enfatizaram a discriminação referente à cultura e a uma “herança maldita”. A professora Y ainda acrescenta falando sobre o racismo “velado”, que muitas vezes passa despercebido pela maioria da população, por não ser uma expressão clara através de uma expressão verbal ou uma atitude, mas muitas vezes está presente nas instituições, nas escolhas em relacionamentos, nos padrões de beleza, dentre tantos outros. Nessa perspectiva, o racismo está relacionado à hierarquia presente em relações sociais supostamente igualitárias (SCHWARCZ, 2001).
Já a professora X compreende racismo como “qualquer forma de preconceito racial, ou desigualdade de tratamento por causa da cor da pele”. Assim como parcela dos alunos, essa professora relaciona o racismo apenas a um preconceito contra a cor. O professor Z trouxe uma resposta bem distinta ao escrever: “Bom!!! Muitas vezes o racismo é empregado ideologicamente voltado para o sensacionalismo”. Esse professor não tem uma visão crítica sobre o espaço que tem surgido para o debate sobre as relações raciais, um dos motivos para isso talvez seja por não perceber a seriedade desse problema e acreditar que vivemos em um país onde haja democracia racial.
Outra questão referente a esse tema foi: “Há alguma ação didático-pedagógica que trate especificamente sobre o racismo? Se sim, quais?” Todos os professores disseram sim a essa pergunta e especificaram as ações, como podemos observar a seguir:
Sim, pois no PPP da escola, adequamos com a legislação vigente, e trabalhamos com a temática do “racismo” (Professora X).
Todas as escolas da SME, em todos os ensinos, realizam atividades sobre a Conscientização Negra no mês de novembro, especificamente. O professor tem autonomia de trabalhar o tema racismo em qualquer outra data também. Leitura de texto, análise de filmes são exemplos de ações realizadas nas escolas (Professora Y).
Sempre trabalho preconceitos de forma geral. Trabalho história, literatura, textos antigos imagens sobre negritude e respeito aos direitos humanos e anti raciais o 2 º semestre inteiro (Professora K).
Sim. Palestras, seminários e teatros abordando e contextualizando diversos assuntos empiricamente/cientificamente e interdisciplinarmente (Professor Z).
A partir das respostas dos professores, identificamos que, na escola campo, o tema é explorado, mas observamos uma contradição quando relacionamos essas respostas dos professores com as respostas dos alunos a respeito das aulas sobre o tema. Ao perguntar se “Algum professor trabalha ou já trabalhou com a questão do racismo em sala de aula? Se sim, comente” e se “Alguma aula na EJA já fez você refletir sobre a questão racial no Brasil ou sobre sua experiência pessoal nessa questão? Se sim, como foi?”, a maioria dos alunos respondeu “não” ou deixou as questões em branco. Quatro alunos responderam sim para as duas questões, mas não comentaram nada a respeito, e outros quatro alunos responderam sim para a primeira, mas não para a segunda pergunta. Dessa forma, a maioria dos alunos não se recorda de aulas ou eventos escolares que abordassem tal temática nem consegue expressar o resultado das ações pedagógicas realizadas na escola. Assim, se faz necessário e importante diversificar e intensificar as ações a esse respeito. Para tentar modificar essa realidade e promover uma educação antirracista, a escola e os professores desempenham um papel fundamental.
Dessa forma, os profissionais da educação têm um papel importante na eliminação das discriminações e na emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, indispensáveis para consolidação de espaços democráticos e igualitários. Para que isso ocorra, as instituições de ensino no seu papel de educar devem-se constituir em um espaço democrático de produção e de divulgação de conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade justa, e que reconheça que todos são portadores de singularidades no desenvolvimento das personalidades (GOMES; MUNANGA, 2004, p. 20-21).
Partindo disso, foi elaborada uma intervenção didática buscando contribuir com a construção do conceito de racismo, visto que foi identificada uma limitação conceitual na compreensão dos alunos, que percebem o racismo principalmente como uma atitude individual. Buscou-se construir uma sequência didática que enfatizasse o racismo como um processo histórico, que forma uma estrutura social racista: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.” (ALMEIDA, 2019, p. 38) Isso significa que “o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática” (ALMEIDA, 2019, p. 39).
2. Ressignificando as percepções dos participantes: aplicação de atividade sobre racismo estrutural
Diante dos dados e percepções coletadas, foi elaborada uma intervenção didática que buscava trabalhar o conceito de racismo como um processo histórico e estrutural, buscando ampliar a concepção que compreendia o racismo apenas como uma ação individual. A sequência didática não pôde ser aplicada na mesma turma que respondeu os questionários devido ao andamento do ano letivo, com o início e o término das turmas e a entrada e saída de alunos ao longo dos semestres.
A primeira aula foi dedicada a trabalhar o conceito de racismo com os alunos partindo do senso comum. Foi dada a oportunidade dos alunos se expressarem oralmente sobre o que era racismo para eles (repetindo, assim, a primeira pergunta dos questionários, só que agora trabalhada de forma oral no contexto de aula). As respostas se assemelharam às percepções coletadas nos questionários, pois reforçavam a falta de respeito com os negros expressa, principalmente, em forma de xingamentos. Após esse momento inicial, os alunos receberam uma folha com três trechos que apresentam o conceito de racismo para diferentes autores.
O primeiro foi o conceito partindo de Hall (2003), com o objetivo de demonstrar que raça é uma construção política e social, organizada em torno do sistema de poder que exclui e explora. Foi debatido com os alunos a herança eurocêntrica do racismo no Brasil e os discursos de superioridade e eugenia. O segundo trecho era de Gomes e Munanga (2004), que reforça também que o racismo surgiu com as relações capitalistas e mercantis e alerta que na escola esse racismo tem sido, em muitos casos, naturalizado e até institucionalizado. Reforça ainda o papel da escola no combate ao racismo. Essa citação gerou vários debates. Foi falado sobre o silenciamento do tema nas escolas e nas aulas. Os alunos afirmaram que, por a escola ser um ambiente de muita socialização, atitudes racistas acontecem constantemente. Foi debatido também sobre a importância de se falar sobre racismo no ambiente escolar e combatê-lo. O terceiro trecho trabalhado foi a música “A cor do homem”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, que traz reflexões sobre a humanização e igualdade entre os seres humanos, reforçando que não podemos categorizar em melhor ou pior, superior ou inferior.
Na segunda aula, foi trabalhado o mito da democracia racial no Brasil com o apoio de slides. Primeiro, foi discutido com os alunos a situação dos ex-escravos pós-abolição, ressaltando que a abolição não significou liberdade, pois a população negra ficou desvalida na nova configuração da sociedade. Isso foi trabalhado com o apoio de citações de Fernandes (2007) e Schwarcz (2012). Discutimos sobre a imigração e o mito do branqueamento analisando a pintura “A Marca de Cam” de Modesto Broccos (1911). Esse quadro exemplifica o mito de que o cruzamento das raças poderia clarear o país. Foi demonstrado para os alunos que ainda na atualidade há existência de racismo, isso foi feito com dados que explicitam que os negros ainda são a maioria dos desempregados, os que têm menos curso superior, o maior índice de homicídio, principalmente entre os jovens. Analisamos a relação desses dados com o racismo estrutural. Os alunos foram levados a perceber que não se trata de casualidade ou coincidência, mas que esses fatos são intencionais e fazem parte de uma estrutura racista.
Na terceira aula, foram exibidos slides trazendo a imagem de personalidades negras, formam elas: Zumbi dos Palmares, Dandara, André Rebouças, Antonieta Barros, Martin Luther King, Nelson Mandela, Joaquim Barbosa, Nilma Lino Gomes e Marielle Franco. Essas personalidades foram trazidas a fim de superar a representação negativa que os alunos negros podem ter de si, reforçada muitas vezes pela mídia hegemônica, pelos meios de comunicação de massa, mas também pela historiografia tradicional, na história pública, no imaginário coletivo e até pela escola ao projetarem o negro como escravo, sujeito passivo da história. Essas imagens trazem histórias de pessoas que contribuíram para uma mudança na sociedade, seja brasileira ou não.
Longe de enfatizar que a solução para o racismo estrutural é a ação individual, a aula enfatiza a luta dessas pessoas contra a estrutura desigual e sua inserção em movimentos sociais e coletivos. O projeto político liberal defende apenas a ação individual baseada na valorização da meritocracia, por isso esse projeto é contra cotas e qualquer outra política pública de promoção de minorias. O objetivo pedagógico aqui, ao valorizar essas personalidades, é dar visibilidade às lutas negras e sua importância para as conquistas e denúncias na sociedade brasileira e estimular a ação transformadora por parte dos alunos. Não se trata apenas de negros que venceram em sua trajetória individual de vida, mas de indivíduos que lutaram coletivamente em prol dos outros.
Depois de aplicada a sequência didática, ou seja, no final da terceira aula, após o conteúdo trabalhado, os alunos responderam questões individualmente em uma atividade escrita. A primeira pergunta da atividade era: “A partir das leituras e discussões em sala de aula, o que é racismo?” Essa questão já havia sido feita ao primeiro grupo de alunos pesquisados, mas a intenção de repeti-la nesse estágio da pesquisa era perceber em que medida as aulas e os debates contribuíram para a compreensão do significado de racismo, lembrando que, no primeiro grupo, a maioria das respostas relacionou racismo a uma atitude individual de discriminação contra a cor de pele negra ou a uma forma de bullying.
Essa questão procura ampliar o conceito dos alunos e não classificá-lo como certo ou errado, em consonância com as considerações de Barca:
[...] se o professor estiver empenhado em participar numa educação para o desenvolvimento, terá de assumir-se como investigador social: aprender a interpretar o mundo conceitual dos seus alunos, não para de imediato o classificar em certo/errado, completo/incompleto, mas para que esta sua compreensão o ajude a modificar positivamente a conceitualização dos alunos, tal como o construtivismo social propõe (BARCA, 2001, p. 132).
Foi nesse sentido que foi proposta a atividade trazendo o conceito de racismo e a repetição da pergunta, para construir junto com os alunos uma maior compreensão sobre o que é racismo e de que forma ele pode atuar em nossa sociedade, pois os conceitos históricos são compreendidos de forma gradual, e para isso é necessário que o aluno também traga seu entendimento com base no senso comum e em suas experiências sociais enquanto sujeito (BARCA, 2001).
Ou seja, a pergunta “O que é racismo?” foi feita a dois grupos de estudantes em três momentos ao longo da pesquisa: inicialmente, para a primeira turma de participantes que preencheu o formulário destinado aos alunos. Essas respostas foram importantes para identificarmos os limites do senso comum e nos orientar na elaboração da sequência didática. Posteriormente, foi feita numa segunda turma de alunos em que iríamos aplicar a sequência didática. Respondida apenas oralmente no início da primeira aula, as falas desses alunos se aproximaram em vários aspectos das respostas obtidas por escrito, nos questionários aplicados na primeira turma. E, na terceira e última vez, essa pergunta foi feita na atividade, respondida por escrito pelos alunos da segunda turma de participantes após a aplicação da sequência didática.
Para diferenciar esse grupo do primeiro pesquisado, os alunos serão identificados por letras do alfabeto de A a V. Depois dos debates em sala, é perceptível a influência dessa atividade na reformulação do conceito de racismo na percepção dos alunos, visto que os próprios alunos recorreram ao material da sequência em suas respostas e houve uma mudança significativa nas respostas obtidas antes e depois da aplicação da sequência. Algumas respostas da atividade avaliativa ajudam a identificar isso:
Racismo é diferença de cor, classe social. Racismo é achar que alguém é superior ao outro porque é branco e outro negro, ou porque um é rico e outro pobre (Estudante B).
Racismo é a falta de igualdade, da raça humana, muitas pessoas a maioria das vezes de cor de pele mais clara, acham que é melhor que um negro, pardo e outros, a desigualdade social é uma triste realidade, onde a maioria das pessoas sofridas do nosso país são negros (Estudante J).
Racismo é quando você chama uma pessoa negra quando você branco ser acha melho do que aquela pessoa de pele escura muitos negros andam na rua e a polícia bate por a pessoa é negra (Estudante S).
Esses alunos conseguiram perceber que o racismo está ligado a um discurso de superioridade e que o racismo interfere na condição econômica e na forma como os negros são tratados na sociedade. O estudante J consegue identificar que há uma diferença entre brancos e negros e que, em nosso país, os negros sofrem vulnerabilidade social. O estudante S denuncia a ação policial que julga as pessoas pela cor da pele. Essas respostas vão além da percepção do racismo como uma atitude apenas individual ou como uma forma de bullying.
Outros alunos reconhecem que existe racismo no Brasil e em diversos lugares da sociedade. Vejamos:
É quando queremos ser melhor de que outro só porque é de outra cor e ainda hoje existe o racismo em casa na escola no trabalho em todos lugares não mudou quase nada (Estudante D).
O racismo até hoje são encontrado sem diversas partes do país, por que os negros são descrinina mais ainda. EU SOU NEGRO COM ORGULHO (Estudante H).
Racismo e discriminação é desigualdade entre pessoas, preconceito contra sexo e religiões, em nosso mundo o preconceito não para. Só com uma boa Educação (Estudante O).
Racismo começou na época da escravatura principalmente no Brasil, o ser humano trata negros com indiferença, descriminação, excluem, exploram, etc. Em todos os lugares tem racismo (Estudante R).
O estudante H ressalta até seu orgulho de ser negro, o que é um ponto extremamente positivo: pensar que as aulas podem contribuir positivamente para autoimagem dos alunos negros. O estudante O reconhece que a educação é uma forma de acabar com o racismo, o que fortalece a importância de tratar e trabalhar esse tema em sala de aula. O estudante R identifica que no Brasil o racismo começou com a escravatura e até a atualidade existe em todos os lugares do nosso país. Esses alunos conseguiram perceber que a democracia racial no Brasil é uma falácia.
Outros alunos fizeram a relação com a discriminação por cor:
O Racismo no Brasil é considerado um problema por causa de cor que eu acho um absurdo porque todos nós somos iguais. Ninguém é melhor do que ninguém (Estudante M).
Racismo são pessoas que descriminão a raça negra (Estudante N).
Racismo pra mim é quando outra pessoa não aceita a cor que a outra pessoa tem e sente melhor que essa pessoa, então pra mim é um preconceito (Estudante P).
Alguns alunos, no entanto, apenas copiaram partes da atividade que traziam os conceitos de racismo. A segunda questão da tarefa, transcrita abaixo, era referente ao racismo estrutural e exigia dos alunos uma análise dos dados da questão.
Qual a relação entre os dados abaixo e o Racismo Estrutural?
- Com uma taxa de 38% de desemprego no Brasil, 28,5% dos desempregados são negros ou pardos (PNAD, IBGE 2016).
- 71% dos homicídios sofridos no Brasil são contra negros e pardos (Atlas Violência, dado: 2015).
- Entre os jovens de 25 a 29 anos que tem nível superior, apenas 7,2% são negros (IPEA,2012).
A maioria dos alunos conseguiu fazer uma boa análise dos dados e identificar a existência do racismo estrutural no Brasil. Abaixo, foram elencadas algumas respostas que possibilitam essa identificação:
Esses dados nos diz que mesmo a política sócio-econômica dizendo que os negros tem aprovação na sociedade não é verdade. Pois o negro enfrenta dificuldades (Estudante A).
Eles revelam que ainda no Brasil existe muito racismo em muitas coisas. Como no desemprego, estudos, homicídios, religiões (Estudante B).
71% dos homicídios causados no Brasil são contra negros? por que os Governantes ainda tem racismo entre eles, pois a população negra é mais atingida de uma forma desproporcional (Estudante H).
O racismo estrutural é o negro sem empregos, sem universidades e salários mínimos (Estudante K).
No brasil, os negros são os mais mortos, são mais dezipregados e ganha menos (Estudante P).
De acordo como os dados a cima, podemos afirmar que os negros ainda são discriminados no Brasil, mesmo tento tendo o mesmo direito que os brancos, eles ainda são tratados com indiferença e na maioria das vezes não aceitos e rejeitados (Estudante R).
Conseguiram perceber, portanto, que o “fracasso” e as condições desfavoráveis em que a maioria dos negros brasileiros vive não são fruto do seu pouco esforço ou merecimento, mas fazem parte de um sistema social que os discrimina e os exclui.
Considerações finais
Nas últimas décadas, coexistem duas formas de se pensar a Educação de Jovens e Adultos: uma que pensa a educação como formadora de consciência crítica, defendida por Paulo Freire, que em seu método de alfabetização privilegiava a formação de um cidadão emancipado, capaz de ler não somente as letras, mas o mundo, a sociedade e o sistema em que está inserido. Outra forma é a que concebe a EJA como preparadora de recursos humanos para o mercado e para as tarefas da industrialização. Resquícios dessa concepção podem ser identificados ainda hoje na visão de parte dos professores da EJA e de instituições nas quais a maior preocupação é em fornecer uma educação instrumental, em que os alunos, em muitos casos, são vistos com poucas potencialidades ou com muita dificuldade a ponto de não conseguirem desenvolver um aprendizado integral, com desenvolvimento crítico-emancipatório.
Neste artigo, queremos reforçar a necessidade de se desenvolver uma educação crítica e emancipatória aos alunos da EJA, especialmente para a construção de uma educação antirracista. O papel do professor nesse processo é fundamental, pois, além de ensinar, precisa acreditar em seus alunos e auxiliar no fortalecimento da autoestima, pois estes alunos já sofrem com os julgamentos da sociedade e precisam encontrar na escola um espaço de apoio, que seja encorajador e desafiador.
Com base nos questionários respondidos pelo primeiro grupo de alunos participantes, foi possível traçar o perfil dos discentes da escola pesquisada. A maioria dos alunos se reconhece como pretos ou pardos (somando 38 alunos), reforçando e nos fazendo concordar com Gomes (2005) quando afirma que a questão racial já está presente na EJA por meio de seus sujeitos. Portanto, desenvolver um trabalho na EJA sobre educação das relações étnico-raciais se cruza com as histórias dos alunos que ali estão e isso foi constatado nesta pesquisa por meio de relatos dos próprios alunos. A partir disso, foi acentuada ainda mais a necessidade e importância de relacionar o racismo com a Educação de Jovens e Adultos e de se tratar esse tema em sala de aula.
Acreditamos que a atividade aplicada teve impacto positivo no aprendizado dos alunos, no sentido de ampliar suas percepções sobre racismo, compreendendo não apenas o racismo individual, mas também o racismo estrutural, como um processo histórico e social que resulta numa sociedade em que negros são sistematicamente discriminados. Não queremos supervalorizar a dimensão da intervenção didática, pois reconhecemos que uma atividade pontual possui grande limitação na formação dos alunos. Contudo, apresentamos aqui uma contribuição, mesmo que pequena, para o ensino para as relações étnico-raciais. Fortalecendo a percepção do racismo como fenômeno histórico e social, buscamos um ensino antirracista que promova o entendimento da necessidade não só de mudança de comportamento de indivíduos, mas de mudança na estrutura social.
Referências
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