3. Ensino para as relações étnico-raciais: proposta para uma educação antirracista
Em uma escola pública de Itauçu, além da observação participante das aulas, foi aplicado em duas turmas do 5º ano do ensino fundamental um questionário objetivando identificar a percepção dos(as) estudantes sobre o racismo, situações de racismo vivenciadas na escola e fora dela etc. Nesta etapa da pesquisa constatou-se que a maioria dos(as) estudantes confundiam racismo com bullying, gordofobia e outras formas de discriminação ou segregação social. Desse modo, com a intenção de intervir na realidade pesquisada, foi elaborada uma sequência didática para auxiliar no esclarecimento do conceito de racismo, bem como para aprofundar no ensino para as relações étnicas e raciais, de acordo com a Lei nº 10.639/03, no fortalecimento de uma educação antirracista e na valorização da cultura e da história negra do país.
Toda a sequência didática foi elaborada para um período de aproximadamente quatro semanas ou oito aulas. Ao final de cada atividade, foi feita uma avaliação pelas professoras regentes em relação a como essa sequência didática pode ter contribuído para a aprendizagem e a formação dos(as) estudantes participantes. As professoras participantes são aqui chamadas de professora PA e professora PB.
A princípio, elaborar uma sequência de atividades em uma perspectiva antirracista sem, ao mesmo tempo, correr o risco de serem inócuas ou de ampliar ainda mais as práticas de racismo, foi um grande desafio. Principalmente quando se trabalha com crianças com idade entre 10 e 12 anos que ainda estão em processo de maturação cognitiva.
Nesse sentido, a presente proposta de atividade pauta-se na seguinte perspectiva: promover espaços de análise e reflexões sobre a temática, desenvolver ações e estratégias pedagógicas que contemplem uma educação antirracista e valorizem de forma positiva o corpo e o cabelo do(a) negro(a), sem reforçar um padrão estético de beleza. No questionário, o cabelo foi um item que mais apareceu em situações de baixa autoestima de alunos(as) pardos(as) ou negros(as) e como motivo de zombaria em situações de discriminação racial que apareciam naturalizadas como “brincadeiras”.
A sequência das atividades realizada nas turmas ficou centrada na temática do racismo, no corpo e cabelo do(a) negro(a), organizada em vários momentos: exibição e debate de curta-metragem; leitura e debate de conceitos científicos sobre o racismo; audição, leitura das letras e debate de canções e videoclipes; confecção de cartazes antirracistas; rodas de conversa sobre cabelo, corpo e estética negros na diáspora; oficina de confecção de bonecas abayomi. O produto educacional encontra-se registrado na Plataforma EduCAPES com acesso disponível no link https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/585748.
Aplicação e avaliação do produto educacional
Após realizar a elaboração da sequência das atividades, partiu-se para a aplicação do produto educacional. Definiu-se que, ao fim de cada atividade, haveria uma avaliação sobre os pontos positivos, impressões dos alunos e dificuldades em lidar com o produto.
A ideia era que o material pudesse ser utilizado por qualquer docente. É importante ressaltar que os(as) estudantes que participaram da aplicação do produto educacional foram os(as) mesmos(as) que responderam ao questionário.
A primeira atividade era a exibição e o debate do filme de curta metragem O Xadrez das Cores (Brasil 2004, 21 min.), de Márcio Schiavono. Durante a exibição do curta, percebeu-se a indignação dos(as) estudantes diante da discriminação racial da patroa branca contra sua empregada negra. Após a exibição do filme, foi entregue aos(às) estudantes uma folha impressa para verificar as reações e compreensões que tiveram sobre o vídeo. Participaram dessa atividade 51 alunos(as), uma vez que nesse dia três estudantes não compareceram à aula.
As respostas dos(as) alunos(as) foram recolhidas como atividade pedagógica das turmas, como avaliação docente sobre a eficiência da atividade, e como dados e avaliação discente da respectiva pesquisa. Na avaliação docente a professora PA relatou que “a maioria dos alunos identificou o tema do filme como se tratando de racismo” (RELATÓRIO DA PROFESSORA PA), enquanto que a professora PB observou que “todos os alunos perceberam que o filme retrata uma situação de racismo”. (RELATÓRIO DA PROFESSORA PB), isto é, o vídeo serviu para que os(as) estudantes identificassem o tema estudado.
A avaliação docente de todas as atividades do produto educacional foi realizada ao final de cada encontro, por meio de um relatório individual contendo aspectos positivos e negativos das atividades propostas. Sobre a primeira atividade desenvolvida, a professora PA fez a seguinte avaliação: “Não percebi nenhuma dificuldade durante a aplicação dessa atividade [...] Em relação aos aspectos negativos nenhum” (PROFESSORA PA, 4/11/2019). Na avaliação da professora PA sobre a primeira atividade, pode-se perceber uma dificuldade em trabalhar com temáticas relacionadas ao racismo, justificada por ela como falta de maturidade dos(as) alunos(as).
A instituição escolar desempenha papel fundamental na construção de uma educação antirracista. Portanto, é necessário que os docentes realizem estratégias pedagógicas que valorizem as diferenças de cada povo. Para Roos (2010), o espaço escolar está repleto de alunos(as) de diversas etnias e, nesse sentido, é essencial que o(a) professor(a) estabeleça estratégias pedagógicas antirracistas que favoreçam a conscientização da valorização da ancestralidade, da resistência etc. E, ainda, que enfatize a importância dos sujeitos negros para o desenvolvimento político, social e cultural do Brasil construindo, assim, a autoestima e o respeito dos(as) alunos(as) em relação às diferentes etnias presentes na sociedade.
Sobre o primeiro encontro, a professora PB o avaliou da seguinte forma: “O curta traz uma temática séria e profunda da discriminação racial, a história envolve o aluno a dar sua opinião e entender como o racismo é praticado nos dias atuais. Não foram apresentadas dificuldades durante a realização dessa atividade” (PROFESSORA PB, 5/11/2019).
Em uma conversa informal, a professora PB afirmou que já utilizou o curta-metragem - O Xadrez das Cores - para trabalhar o racismo. Em sua avaliação, ela sugeriu que a atividade seria ainda mais bem aproveitada se, após a discussão sobre a temática do filme, fosse montado um teatro em que os(as) próprios(as) alunos(as) apresentassem experiências racistas que eles(as) tenham vivenciado ou presenciado, e que houvesse participação de toda a comunidade escolar. A professora acredita que é preciso levar em consideração a necessidade de falar e refletir sobre a temática do racismo por meio das experiências dos(as) próprios(as) alunos(as).
Souza e Costa (2013) recomendam utilizar o teatro como estratégia pedagógica para estimular a reflexão e o debate sobre o racismo pelo caráter provocativo e criativo no seu processo de elaboração e apresentação. Essa é a perspectiva do Teatro do Oprimido (BOAL, 2005) na qual todos são atores e espectadores e juntos no teatro podem representar e modificar a realidade (CARTAXO, 2001).
As professoras PA e PB foram bem sucintas e objetivas na avaliação dessa atividade, considerando bom o rendimento dos(as) alunos(as). No entanto, era imprescindível também saber que compreensões os(as) alunos(as) tiveram sobre o assunto da atividade, isto é, se eles(as) conseguiram identificar as representações racistas exibidas pelo curta-metragem.
A primeira questão faz uma referência à temática e àquilo que mais impactou durante a exibição do curta-metragem. Por conseguinte, um total de 43 (85%) informantes afirmou que a temática se tratava de racismo; 3 (5,9%) disseram tratar sobre brancos e negros; 2 (4%) sobre jogo de xadrez; 2 (4%) não responderam e 1 (2%) relatou que o assunto era consciência negra. Diante dos dados obtidos, percebe-se que a maioria dos(as) alunos(as) conseguiu fazer uma análise e identificar a existência do racismo na relação entre patroa (branca) e empregada (negra).
Essa questão teve como premissa verificar e compreender que as situações de racismo interferem na condição econômica e na forma como os(as) negros(as) são tratados(as) na sociedade, pois, após alcançar essa compreensão, é possível lutar por mudanças sociais (LOPES, 2005).
Por meio das respostas obtidas nessa questão percebe-se que as situações exibidas no curta-metragem provocaram diversas reações nos(as) estudantes. A “estudante O” observou que a patroa associa o negro à criminalidade. Essa associação tem consonância com as concepções incorporadas pelo pensamento social do Brasil. O positivismo, o social evolucionismo e o social-darwinismo, associados à criminologia, consolidaram modelos explicativos da sociedade e do Estado brasileiros com base no discurso racialista. Desta forma, construíram-se teoricamente as chamadas “classes perigosas” ou a naturalização da periculosidade e da criminalidade, resultando na discriminação do negro e do mestiço (TERRA, 2010).
A “estudante B” achou interessante quando houve a inversão no jogo do xadrez, pois com isso a personagem Cida mostrou que o(a) negro(a) pode ocupar outros espaços que até então apenas as pessoas brancas ocupavam. Já a “estudante E” estranhou que a personagem Cida voltasse a trabalhar para a patroa racista, apesar de todas as situações humilhantes a que ela foi exposta. Essa situação é decorrente do mercado de trabalho ser excludente, principalmente para as mulheres negras, que possuem baixos níveis de escolaridade e, ainda, são as mais vulneráveis ao assédio moral no ambiente de trabalho.
A segunda questão propõe uma análise a respeito do modo como a patroa tratava a empregada. O intuito dessa questão era que os(as) alunos(as) identificassem a existência do racismo da patroa em relação à empregada por ela ser negra. Desse modo, 44 (86%) dos(as) estudantes concluíram que a patroa maltratava a empregada por ela ser negra e 7 (14%) por preconceito. Diante das respostas obtidas percebe-se que os(as) informantes da pesquisa compreenderam que o racismo é caracterizado pelas marcas de negritude que o sujeito traz no corpo. “Quanto mais próximas forem as características pessoais de um indivíduo em relação a um tipo negroide, maior será a probabilidade de que essa pessoa venha a ser discriminada ao longo de seu ciclo de vida” (PAIXÃO, 2006, p. 24).
A terceira questão apresenta a frase racista de uma personagem do vídeo, “Negro só serve para jogar futebol”, com o intuito de que os(as) estudantes compreendessem de forma crítica a relação do racismo com essa citação. Assim, 36 alunos (70,5%) compreenderam que a personagem da patroa branca acredita que negro só tem sucesso profissional com o futebol; 7 (13,7%) afirmaram que devido à personagem da empregada ser negra não sabe jogar xadrez; 4 (8%) acreditam que a personagem branca imagina que para jogar futebol não precisa de inteligência e raciocínio; 4 (8%) entenderam que a personagem da patroa branca é racista.
As respostas demonstram que os(as) alunos(as) conseguiram perceber que a fala racista da personagem da patroa está relacionada com a questão da ascensão social dos(as) afrodescendentes ocorrer apenas por meio do esporte e da música. Para Flávio de Campos (2018), o olhar social sobre o negro o influencia a ver o esporte como um caminho para superar as adversidades sociais. O corpo do(a) negro(a) está associado à inferiorização do ponto de vista social e é criminalizado. O outro olhar, que parte do princípio do estereótipo, relaciona-se à possibilidade de atuação no esporte, pois esse corpo é visto como forte e consequentemente está apto para a prática esportiva, assim como por um determinado período estava apto ao trabalho braçal.
Christofoletti e Watzko (2009) mostram que esse discurso dos estereótipos de que negros(as) “se dão melhor” com música e futebol do que com assuntos considerados sérios, como política e economia, são muito comuns na sociedade brasileira. Conforme os autores, o discurso propagado é de que eles(as) são melhores em atividades que não exijam esforço intelectual ou instrução formal e que dependam apenas de talento e outros atributos. Essa identificação ocorre devido ao processo de desigualdade social. Para uma pessoa negra com baixa escolaridade e poucas oportunidades de trabalho, o esporte apresenta-se como uma possibilidade de profissionalização e ascensão social.
Na quarta questão foi proposto aos(as) estudantes que interpretassem a fala da personagem da empregada que, apesar de ter nascido negra, pobre e com pouca escolaridade, percebe que o conhecimento pode ser um mecanismo para as mudanças sociais. Os dados obtidos foram os seguintes: 36 (70,5%) compreenderam que a fala da personagem empregada negra está relacionada a uma mudança de emprego; 7 (13,7%) perceberam que a fala está relacionada à questão de respeito para com as pessoas negras; 5 (9,8%) entenderam que se tratava de racismo e 3 (5,8%) não responderam a essa questão. Essa pergunta tinha como objetivo refletir sobre a negação do conformismo e a busca pelo conhecimento para a transformação dos fatos.
Grande parte dos(as) estudantes conseguiu perceber que é necessário buscar mecanismos para lutar contra o racismo, compreendendo que as condições excludentes em que estão os(as) negros(as) são uma herança histórica que os(as) discrimina e os(a) exclui da sociedade.
Para a mulher negra essa realidade é ainda mais perversa. Conforme Christofoletti e Watzko (2009), as mulheres negras são a fatia mais marginalizada da sociedade brasileira. Elas recebem os salários mais baixos, possuem maior taxa de desemprego, maior morte materna, além de baixos níveis de escolaridade em comparação com mulheres brancas. Diante dessa realidade, o “estudante K” tomou consciência de que todos(as) merecem respeito e igualdade de condições, independentemente das diferenças e especificidades de cada pessoa.
A última questão propunha que os(as) estudantes demonstrassem a sua opinião sobre qual era o objetivo do autor do filme ao expor uma relação conflituosa entre a personagem da patroa (branca) e da empregada (negra). Os resultados são os seguintes: 33 (64,7%) opinaram que o autor do vídeo quis demonstrar que todos(as) têm direitos iguais, independentemente da cor da pele; 15 (29,5%) relataram que ele queria tratar da questão do racismo e 3 (5,8%) declararam que é para que haja uma convivência harmoniosa entre negros(as) e brancos(as).
Conforme as respostas obtidas, percebem-se algumas características importantes. Esses(as) alunos(as) tiveram a percepção de que a proposta do curta-metragem era abordar a questão do racismo. Os alunos enfatizaram ainda a busca pelo respeito e igualdade, independentemente da cor da pele.
Para a segunda atividade, entregamos aos(as) estudantes duas folhas fotocopiadas, uma com três trechos que trazem o conceito de racismo e outra com a letra da canção - Racismo é burrice -, composta e interpretada por Gabriel, o pensador. Para essa proposta de atividade foram necessárias três aulas consecutivas.
O primeiro trecho apresenta os conceitos de racismo de Sant’ana (2005), de Munanga (2005), e Gomes (2012). Para apresentar essas concepções foi realizada uma leitura compartilhada do texto e a explicação do que cada autor conceituava sobre o racismo. Durante o processo de leitura compartilhada e dialogada, foram feitas diversas conexões com o curta-metragem assistido na atividade anterior. Essa relação foi importante, pois tanto o filme quanto os conceitos apresentados pelos autores abordavam a questão do racismo por meio das relações conflituosas entre brancos e negros. Esse exercício proporcionou uma reflexão ampla para a desconstrução do racismo.
Após o esclarecimento e o diálogo sobre as questões teóricas, exibimos a canção Racismo é burrice. Os(as) estudantes ficaram animados ao ouvir a canção, pois a letra utiliza uma linguagem mais compreensível, além de ser um gênero musical (rap) com o qual a maioria dos(as) estudantes têm afinidade. Depois da execução, as professoras leram a letra da canção e, em seguida, houve uma breve reflexão sobre a origem do racismo e a sua perpetuação na sociedade brasileira. Durante a análise, os(as) estudantes utilizaram trechos da canção para demonstrar a importância de superar o racismo. E, alguns trechos foram utilizados na confecção de cartazes.
Em seguida ao debate sobre a letra da canção, as professoras PA e PB instruíram suas respectivas turmas a se organizarem em grupos de cinco pessoas para que confeccionassem cartazes com mensagens de combate ao racismo. Durante essa atividade foi perceptível o entusiasmo dos(as) estudantes ao criarem os cartazes. O intuito dessa atividade era que, além das frases, eles(as) criassem desenhos que reforçassem ações para combater o racismo, colocando frases conscientizadoras nas folhas de cartolina. Após os cartazes serem confeccionados, eles foram colados no mural da escola para que pudessem ser vistos por toda a comunidade escolar.
Depois da aplicação dessa atividade notou-se a influência dos conceitos de racismo apresentados e discutidos em sala aula. Os(as) alunos(as) recorreram ao material textual da sequência didática para a confecção dos cartazes. Desta forma, houve uma mudança significativa nas concepções obtidas antes e depois da aplicação dessa atividade.
Sobre a segunda atividade, a professora PA avalia que “a atividade contribuiu na prática do combate ao racismo, pois além de teoria, puderam expressar o que aprenderam na confecção dos cartazes, na pesquisa e representação dos desenhos [...]. Não tenho nenhuma sugestão para melhorar essa atividade” (PROFESSORA PA, 11/11/2019).
É importante ressaltar que a sequência didática não foi pensada para ser aplicada somente em novembro, pois ela pode ser trabalhada em qualquer época do ano. Embora seja possível que a maioria dos profissionais vá aplicá-la somente neste mês em função do Dia da Consciência Negra.
No que se refere ao segundo encontro, a professora PB avalia a atividade da seguinte forma “Os alunos se expressaram de forma empolgante através dos desenhos durante a realização da atividade. Não foram encontradas dificuldades. [...]. Não foram encontrados aspectos negativos nessa atividade” (PROFESSORA PB, 12/11/2019).
Em ambas as análises das professoras foi enfatizada a empolgação por parte dos(as) alunos(as) ao confeccionar os cartazes. Nesse sentido, é importante propor uma abordagem mais lúdica sobre o racismo, que estimule atitudes de respeito às diferenças e o reconhecimento de situações discriminatórias. A ação de educadores e educadoras é fundamental para a construção cotidiana de uma sociedade mais justa e democrática, que repudie qualquer tipo de discriminação (GOMES, 2005).
Ao relacionar os conceitos acadêmicos de racismo e a canção trabalhada na sequência didática o objetivo era que os(as) estudantes ampliassem a compreensão do racismo e percebessem como ele ainda está engendrado na sociedade brasileira.
Na escola, e principalmente na sala de aula, o uso do cartaz tem como objetivo motivar e trazer informações para os(as) alunos(as). Um cartaz confeccionado pelos(as) próprios(as) estudantes para apresentar essa temática do racismo foi uma forma de envolvê-los(as), de estimular a criatividade e, ao mesmo tempo, identificar quais as percepções que já tinham diante dos materiais apresentados.
Para o terceiro momento da sequência didática, entregamos a letra da canção Cabelo (de Arnaldo Antunes e Jorge Ben Jor) para cada aluno(a) acompanhar o videoclipe da canção. A princípio, o videoclipe causou certa estranheza, pois vários(as) estudantes desconheciam a intérprete da canção, Gal Costa. Somente após a leitura em separado da letra da canção que as turmas começaram a compreender que se estabelecia uma relação das imagens com a manipulação do cabelo. Posteriormente, fez-se a leitura do poema – Crespo, de Cleyton Vidal, que reafirma a importância do cabelo na construção da identidade da raça negra. Há que se ressaltar que no questionário aplicado os(as) estudantes (33,3%) relataram que o cabelo era a parte do corpo de que menos gostavam e que era motivo de zombaria por parte dos(as) colegas (MENDONÇA, 2021).
Para essa atividade, as professoras PA e PB realizaram uma roda de conversa com o objetivo principal de debater a questão do cabelo do(a) negro(a) como signo da representatividade da identidade negra. Além da identidade, as reflexões levaram em consideração os padrões de beleza midiáticos e os diferentes tipos de beleza.
A roda de conversa organizada não foi gravada a pedido dos(as) participantes que se sentiram constrangidos(as), por isso a transcrição dos dados da roda de conversa foi realizada por meio das anotações do diário de campo e foi realizada da maneira mais fiel possível, isto é, mais próxima da linguagem espontânea na oralidade dos(as) estudantes.
A roda de conversa é um recurso pedagógico essencial para o ensino da oralidade devido às suas características próprias e estratégias didáticas, pois possibilita aos(às) estudantes trocarem experiências, produzirem conhecimentos sobre diferentes temáticas, compartilhar experiências de vida, aprender regras, valores, demonstrar respeito mútuo, atitudes de solidariedade, como também aprender a lidar com alguns conflitos e situações-problema (CRUZ, 2018).
Essa roda de conversa ocorreu na quadra de esportes da escola campo nos dias e horários agendados previamente com as professoras. Visando proporcionar um clima acolhedor e de descontração, os(as) estudantes sentaram-se no piso da quadra, organizados(as) em um pequeno círculo.
Na aplicação dessa atividade houve uma maior participação das meninas na discussão sobre o cabelo, pois o cabelo da mulher pode representar vários significados. De acordo com o estilo do cabelo de uma mulher, há grandes possibilidades de saber as características que a definem como, por exemplo, se ela é moderna ou tradicional, se é modesta, vaidosa, ou ainda se defende alguma ideologia (PIRES, 2015). Por outro lado, houve o desinteresse dos meninos em participar da roda de conversa. Alguns meninos citaram o corte de cabelo de jogadores de futebol como padrão de beleza, porém de forma muito superficial, sem questionamentos e posicionamentos em relação à temática discutida.
A manipulação do próprio cabelo e a percepção do outro sobre o cabelo do(a) negro(a) assumem contornos diferentes de acordo com o gênero. Isso ocorre porque as mulheres negras, assim como outras mulheres, têm sua identidade marcadamente ligada ao cabelo, pois ele é entendido como a representação da feminilidade. Para a negra, viver na ditadura da estética branca significa viver sem a liberdade de poder ser negra em sua plenitude física, cultural e identitária (GOMES, 2002).
Durante a roda de conversa, algumas estudantes relataram que já sofreram com apelidos discriminatórios por causa do cabelo volumoso e que a relação do cabelo crespo pode estar associada ao “ruim”, pois é muito “difícil” para pentear. Outras afirmaram que o cabelo de negro é considerado feio por causa da escravidão. Sobre essa questão de pentear o cabelo, Chevannes (1998) relata que os pentes eram fabricados ou importados para pentear os cabelos lisos. Os pentes femininos eram maiores e possuíam espaços maiores entre seus dentes e serviam para o processo doloroso de desembaraçar os fios, entretanto os(as) afrodescendentes tinham dificuldades com o costume de pentear o cabelo.
Os estigmas negativos que recaem sobre o cabelo crespo são fruto do processo de europeização no período colonial brasileiro, que justificava o modelo ideal de beleza como sendo o da mulher branca. Isso acabava por colocar a mulher negra e seu corpo à margem de um sistema de dominação que oprimia este modelo estético tido como feio, fora dos moldes (SANTOS, 2009).
Sobre as transformações capilares, as estudantes afirmaram que isso faz parte da autoestima das mulheres, em mudar constantemente, e não tem relação com racismo. Nesse momento, uma aluna disse “que tem dias que gosta do cabelo cacheado, mas tem outras vezes, utiliza a chapinha, para alisar”. Carvalho (2015) afirma que independentemente de o cabelo ser natural ou alisado, o importante são as representações políticas e as conquistas sociais que a população negra possa alcançar.
Ao iniciar a discussão sobre os padrões estéticos veiculados pelos meios de comunicação, as estudantes identificaram como características de beleza ser magra, alta, branca e cabelos lisos. Isso porque a mídia ainda apresenta como referência de beleza penteados e cortes de cabelos que remetem a uma estética branca. Apesar de todo o referencial positivo que vem se construindo ao longo das últimas décadas em relação à estética do cabelo do negro(a), essa representatividade ainda é pequena se comparada aos padrões de cabelos lisos. “Mesmo com todo o arsenal de luta do Movimento Social Negro e as políticas públicas de promoção da igualdade racial, o mercado midiático apresenta os(as) negros(as), em número bem inferior à realidade populacional do Brasil” (CARVALHO, 2015, p. 23).
Em relação à construção de identidade por meio do cabelo, os(as) estudantes pesquisados(as) acreditam que este realmente faz parte da construção da identidade, pois reflete o estilo de cada pessoa. Desse modo, constata-se que o cabelo é um dos elementos mais perceptíveis do corpo. Em qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, entretanto, a sua simbologia diferencia de cultura para cultura. Essa caraterística peculiar do cabelo confirma a sua importância como símbolo identitário (GOMES, 2003).
Sobre a avaliação dessa terceira atividade, a professora PA, de forma bastante sucinta, acredita que “Ser interessante ressaltar a questão da aceitação, autoestima do cabelo [...] Todos os aspectos foram positivos” (PROFESSORA PA, 18/11/2019). Enquanto isso, a professora PB ressalta que “a questão dos padrões de beleza que a mídia traz mostra o lado do racismo e preconceito imposto de forma natural. Portanto, trabalhar o tema com os alunos é uma forma de mostrar como tais atitudes se mostram racistas e devem ser combatidas” (PROFESSORA PB, 19/11/2019). No final da roda de conversa, a professora PB enfatizou a ideia de que cada um(a) tem seu estilo, o qual deve ser respeitado e que a decisão de assumir a estrutura original do seu cabelo crespo deve atender a uma vontade sua, nunca a pressões alheias. Essa narrativa contribui para reforçar o respeito mútuo à diversidade.
Para a última atividade foi planejada uma oficina de bonecas abayomi com o intuito valorizar aspectos da cultura afro-brasileira. A proposta metodológica é trabalhar com a temática de uma maneira lúdica por meio da construção de objetos pedagógicos. A atividade com as bonecas possibilitou intercalar o ensino de História da África e a educação antirracista de modo a estimular nos(as) alunos(as) afetividades e sensibilidades para um novo olhar acerca das relações étnico-raciais (RODRIGUES e SABINO, 2016).
Para esta atividade foi entregue aos(às) alunos(as) o material impresso para explicar a história das bonecas bayomi. Em seguida, foram entregues aos(às) estudantes os materiais para a confecção das bonecas e esclareceu-se como essas bonecas seriam confeccionadas.
Os receios para essa oficina, a princípio, eram que houvesse uma rejeição dos pais ou responsáveis pela possibilidade de eles(as) pensarem que as bonecas estariam relacionadas ao “vodu” , e também uma resistência dos meninos por se tratar da construção de uma boneca. Esse último receio se deve a preconceitos incutidos na sociedade pela cultura sexista, a boneca é considerada “coisa de menina” (OLIVEIRA, 2016).
As reações dos(as) estudantes com a história das bonecas e a confecção desse material foi de entusiasmo para com a atividade e muitos deles(as) acabaram criando um vínculo de afetividade com suas bonecas. No final da oficina já estava previsto que os(as) alunos(as) dariam de presente as bonecas para alguém que considerassem precioso.
Sobre essa atividade a professora PA avalia que “é muito importante, pois esse trabalho sobre história do nosso país, conhecer um pouco sobre a vida dos escravos foi bem interessante” (PROFESSORA PA, 25/11/2019). A professora PB avaliou a atividade da seguinte forma: “esta oficina trouxe inovação para os alunos, que se dedicaram para realizar a atividade. Algumas crianças tiveram algumas dificuldades para montar a boneca, mas com as instruções logo sanaram suas dúvidas. Não houve aspectos negativos” (PROFESSORA PB, 26/11/2019).
A inclusão de atividades pedagógicas criativas e lúdicas na escola é importante porque “o lúdico está relacionado a tudo o que possa nos dar alegria e prazer, desenvolvendo a criatividade, a imaginação e a curiosidade, desafiando a criança a buscar solução para problemas com renovada motivação” (OLIVEIRA, 2008, p. 29).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais uma vez, ressalta-se aqui que a sequência didática foi aplicada no mês de novembro. Nesse período a escola campo já vinha desenvolvendo atividades para o Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Desta forma, os(as) estudantes já estavam familiarizados com a temática, o que contribuiu para o bom resultado da aplicação do produto educacional e maior motivação dos(as) alunos(as) e das professoras em participar.
A avaliação das professoras aplicadoras do produto educacional foi de extrema relevância, visto que, por mais que haja uma preocupação na elaboração das atividades propostas, só se pode ter uma percepção real do produto após a sua aplicação.
Encontrar uma estabilidade em relação ao campo da pesquisa e a sua concretização no que tange ao produto educacional é desafiador e complexo ao mesmo tempo. Porém, notou-se, durante a realização das atividades e por meio das narrativas das professoras, que esse material pode contribuir para a prática de uma educação antirracista.
Apesar das limitações deste produto educacional, espera-se que ele ainda continue a desenvolver nos(as) estudantes um pensamento crítico-reflexivo quanto à existência do racismo, contribuindo assim para a educação das relações étnicas e raciais. Sem dúvida, o produto educacional aqui discutido, embora tenha sido pensado para a realidade específica de uma escola pública interiorana, possui alcance nacional, podendo ser aplicado em qualquer escola pela forma geral com que trata as relações étnicas e raciais no Brasil.
Referências
Boal, Augusto. Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Campos, Flávio. O futebol é um meio de ascensão social para jovens negros? 2018. Disponível em: https://almapreta.com/sessao/cotidiano/o-futebol-e-um-meio-de-ascensao-social-para-jovens-negros. Acesso em: 21 de out. 2020.
Cartaxo, Carlos. O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média. João Pessoa: Carlos Cartaxo, 2001.
Carvalho, Eliane Paula de. A identidade da mulher negra através do cabelo. Monografia (Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais). Universidade Federal do Paraná. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Curitiba. 2015.
Chevannes, BARRY (ed). Rastafari and other African-Caribbean worldviews. London: MacMillan Press Ltd, 1998.
Chirstofoletti, Rogério. WATZKO, Roberta Cunha. Mulheres negras nos jornais: exclusão, gênero e etnia. Revista Famecos. Porto Alegre. nº 39. Agosto de 2009. Quadrimestral.
Cruz, Leocardia Cristina Reginaldo. Análise de experiência de rodas de conversa sobre educação das relações étnico-raciais por meio da percepção de alunos do ensino fundamental I. Araraquara-Sp: Programa de Pós-graduação em Processos de Ensino, Gestão e Inovação da Universidade de Araraquara, (Dissertação de mestrado) – UNIARA, 2018.
Gomes, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação Revista Brasileira de Educação.[online]. 2002, n. 21, p. 40-51.
________. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. UFMG. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 167-182, jan./jun. 2003.
________. A Lei no 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In: BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: MEC/SECADI, 2005, p. 39-62. (Coleção Educação para todos).
________. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf. Acesso em: 16/01/2020.
Lopes, Véra Neusa. Racismo, preconceito e discriminação. In: MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o Racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 185-204.
Munanga, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, 2005.
Oliveira, Fernanda Soares de. Amarrando tecidos e desatando preconceitos: bonecas Abayomi como estratégia de ensino-aprendizagem da história e cultura africana. In: VIII Encontro Estadual de História. Feira de Santana: ANPUH, 2016. Disponível em: http://www.encontro2016.bahia.anpuh.org/resources/anais/49/1475263944_ARQUIVO_Artigobonecas.pdf. Acesso em: 23 de set. 2020.
Oliveira, Gleize Ramos de. A importância do lúdico no processo de ensino-aprendizagem. Goiânia: (Monografia – Lato Sensu) – CEPAE-UFG, 2008. PAIXÃO, Marcelo. Desigualdade nas questões raciais e sociais. Projeto A cor da Cultura, 2006.
Pires, Karen Tolentino de. Crespa ou alisada: os diferentes significados da manipulação do cabelo afro entre mulheres negras da cidade de Santa Maria - RS. Santa Maria - RS: (Dissertação - Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Santa Maria, 2015.
Rodrigues, Ruber P. A.; SABINO Romes. História e sensibilidade nas bonecas abayomi: possibilidades para uma educação antirracista. Aparecida de Goiânia: Faculdade Alfredo Nasser, 2016. Monografia - Licenciatura em História).
Roos, Roseli R. O preconceito racial no contexto escolar. (Monografia – Graduação em Pedagogia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle10183/71890. Acesso em: 10/11/2017.
Sant’Anna, Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre o racismo e seus derivados. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005.
Santos, Maricélia dos. A contemporaneidade da mulher na Serra do Cajueiro. Florânia RN: Cotidiano e história. (Monografia) – Caicó, RN: Centro de ensino Superior do Seridó, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009.
Souza, Roberlei Batista de; COSTA, Armando João Dalla. O teatro como estratégia de ensino da história e cultura afro-brasileira no ensino médio. In: Cadernos PDE: os desafios da escola pública paranaense na perspectiva do professor PDE. 2013. Volume 1.
Terra, Maria Lívia. Negro suspeito, negro bandido: um estudo sobre o discurso policial. (Dissertação de mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Araraquara-SP, 2010.