Formação Antirracista na Escola:

Possibilidades para o Ensino das Relações Étnico-Raciais na Educação Básica

2. Educação Antirracista: encontros com escolas quilombas e a educação após a Lei 10.639

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Ninguém me fará racista haste seca petrificada
Sem veias, sem sangue quente
Sem ritmo, de corpo, dura
Jamais fará que em mim exista
Câncer tão dilacerado.
Anti-Racismo - de Beatriz Nascimento

Este capítulo apresenta discussões e reflexões sobre as possibilidades de uma educação antirracista a partir dos olhares de resistência e luta das comunidades quilombolas, mais especificamente das escolas quilombolas. As reflexões aqui apresentadas são fruto da pesquisa realizada durante o trabalho de conclusão do curso de Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás. Para este estudo e análise buscou-se, por meio de entrevistas com professores e gestores de escolas quilombolas de quilombos urbanos, construir uma aproximação das condutas teóricas e práticas das escolas estudadas, conhecer as propostas pedagógicas das escolas quilombolas e examinar se elas contribuem para a efetivação da Lei 10.639.

Uma professora engajada em se colocar no mundo como fonte de transformações efetivas na sociedade que considera necessitar de conserto. Um lugar ainda cheio de conflitos, dores e problemas que se estruturaram de forma violenta, assim é necessário a luta constante por mudanças.

As vivências e experiências como mulher e professora negra, marcadas pelas violências do racismo, a fizeram tomar consciência de que algo deveria ser reformulado, que outras mulheres, homens e crianças não deveriam passar por processos tão dolorosos. A dor de não se encontrar no mundo, de não se ver como uma beleza admirável, de gritar muito mais alto para ser ouvida, na maioria das vezes silenciada, de ver os seus semelhantes sendo mortos e torturados pelo simples ato de existência e de precisar caminhar com os pés e olhos sangrando para alcançar o mínimo.

Mas há também as lembranças de experiências de um povo que se constitui na alegria, na arte, na cultura, na consciência e que resiste na vontade de viver. Isso é escrevivência, como define muito bem Conceição Evaristo, o que é vivido e experienciado como motor para algo maior, para se expor no mundo com vontade de mudanças. Retomar as nossas histórias a partir de uma memória ainda presente para recontá-las de forma que toque o outro numa ação consciente e transgressora. São histórias como a de Ana Davenga que chora feito criança pela morte de seu amor perdido; a de Duzu-Querença que anda pelas ruas com as lembranças de sonhos que se perderam; é sobre Luamanda que queria descobrir sobre o amor, às vezes, quase sempre, negado; é sobre Maria que chorou as dores da humilhação e se manteve de pé (EVARISTO, 2016). É sobre Lara também, que aqui escreve, e muitas vezes se viu em um não pertencimento…


Esse lugar não é pra mim

Os risos latejavam na minha cabeça
São só trancinhas
Bem tortinhas pra cima
E eu só queria pegar meu caderno e ler meu poema
Bem simples
Mas o professor me gritava
Eu não podia nem brigar
Me defender
Eu estava errada
Ele fala “ei neguinha, fica quieta”
Meu coração doía
Tinha um livro

‘Menina bonita do laço de fita’
(Encontrei na biblioteca suja e bagunçada)
Parecia comigo, o único que conhecia
Quando falava dele ninguém me ouvia
Não dava pra entender
Abaixei as trancinhas
Vai que assim param de rir

Mas agora é diferente....
estão rindo porque eu leio esquisito não consigo acompanhar
Talvez eu estude ou deixe pra lá
Preciso trabalhar
Ajudar minha mãe, ela tosse o dia inteiro (tá cansada de apanhar)
Uma professora me diz “estuda, você consegue. Vai passar!”
Agora têm cotas, tenho que tentar

Eu consegui
Passei no vestibular!
Mas ainda tinha que melhorar
Os outros conseguiam
Eu tinha que me esforçar mais
Quando tinha nota boa
A professora diz “não pensei que alguém como você fosse conseguir, me surpreendeu!”
Alguém como eu? negra, pobre e mulher
É... esse lugar não é pra mim

Lara Fogaça

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Transgredir as barreiras desses lugares negados historicamente, dessas dores que nos foram impostas e criar experiências libertadoras, liberdade de pensamento, de consciência e de criticidade, entender o que é esse “lugar não é pra mim” permitem criar novas oportunidades de aprendizado e sair das velhas formas de ensinar. Antes os sujeitos que sempre foram colocados como objetos de estudo devem se tornar construtores de sua própria história (HOOKS, 2017).

A educação como formação de sujeitos autônomos e como espaço de construção de conhecimentos é onde se afirma a necessidade de estratégias de lutas contra o racismo imposto. Pois racismo também se aprende, por meio de práticas sociais, representações, discursos e imagens. É uma estrutura e por isso se faz presente em todas as instâncias, para além das relações interpessoais, em todas as esferas institucionais, familiares, religiosas, políticas, psicológicas, subjetivas e, principalmente, escolares (ALMEIDA, 2018). De uma sutileza o racismo se concretiza, às vezes, quase imperceptível, por isso um olhar aguçado torna-se crucial.

A ênfase da análise estrutural do racismo não exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado a todo momento. O propósito desse olhar mais complexo é afastar análises superficiais ou reducionistas sobre a questão racial que, além de não contribuírem para o entendimento do problema, dificultam em muito o combate ao racismo (ALMEIDA, 2018, p. 41).

O olhar atento e sensível para as práticas e vivências no processo de ensino e aprendizagem se faz necessário ao compreender que a escola transversaliza com diversos aspectos sociais, históricos, políticos e econômicos que a retiram de um lugar neutro. A fala de um aluno, as brincadeiras normalizadas, a postura dos professores, os cartazes na parede, as relações entre os alunos, são aspectos que podem transparecer implicações que estão para além de uma visão superficial, mas sim de um olhar microscópico sobre o que algumas ações podem significar, construir ou reproduzir.

O observar microscópico possibilita enxergar o que está oculto ou invisibilizado, pois faz parte de estruturas enraizadas que não estão no aparente, mas que movimentam as diversas formas da existência do ser, naquilo que está objetivo e no subjetivo, no vestir, no olhar, no falar, no relacionar e no compreender. São fortes raízes fincadas por consequências históricas e sociais que necessitam de um olhar crítico. Assim se faz uma professora negra que ao ouvir de seu aluno de cinco anos que sua pele negra e seus cabelos crespos fazem dela uma mulher feia, buscou entender que esta fala e tantas outras são movimentadas por um sistema racista estrutural.

A professora ainda isenta desse olhar se limita ao fatalismo e ao conflito na perspectiva individual da situação. O que seria construtivo nessa visão? Quais transformações seriam possíveis numa visão que não enxerga a profundidade deste momento? A criança continuaria reproduzindo o discurso e a professora somente no lugar de dor e incompreensão, alimentando uma estrutura que fere e mutila a existência de diversas mulheres, homens e crianças que se encontram nesse mesmo lugar. O olhar atento leva à ação transformadora, a uma verdadeira práxis, como define Paulo Freire (2002), em um movimento constante de relação entre reflexão e ação. Há ainda uma grande dificuldade de compreender esse movimento intrínseco que deve ser estabelecido no processo de ensino/aprendizagem, pois ainda paira no imaginário a ideia de que uma deve confirmar a outra, a prática como confirmação do que acontece na teoria e vice-versa.

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Porém, a discussão está para além e contrária a esse discurso, pois a relação é de interação. A consciência tomada a partir da teoria pode possibilitar que novas práticas sejam estabelecidas, ou a partir das práticas vivenciadas construir novas teorias. E esse movimento está em constante interação, definindo novas formas de construir o pensar e a ação. Conceber que existe uma realidade que invisibiliza a existência de uma população, fazendo-a perder os direitos básicos e necessários para uma vida saudável, é essencial para se incumbir de uma ação transformadora. Não se trata de simplesmente cair no negativismo da situação e tomá-la como pronta e acabada, mas entender que essa realidade deve mudar e ser reconstruída. Assim já dizia Paulo Freire: “a minha posição era a de otimismo crítico, isto é, a da esperança que inexiste fora do embate” (p. 38). Neste embate, a conscientização se configura como instrumento de luta. De volta às palavras freirianas:

A pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo. A pessoa conscientizada sabe que é possível mudar o mundo, mas sabe também que sem a unidade dos dominados não é possível fazê-lo. Sabe muito bem que a vitória sobre a miséria e a fome é uma luta política em favor da profunda transformação das estruturas da sociedade (FREIRE, 2013, p. 284).

Diante do exposto, bell hooks (2013) defende que a educação deve mudar e criar novas formas de trabalhar o diferente, a partir de sua realidade, de suas vivências e desejos. Não há como pensar em diversas formas do pensamento se não olharmos para os diversos sujeitos pensantes existentes. A sala de aula pode ser, e ainda afirmo que deve ser, um local onde todos possam ser ouvidos, confrontados e estabelecer diálogos. Ao criar um ambiente de “caos e confusão”, já que ideias e posicionamentos serão postos e às vezes divergentes, o professor deve ter coragem e consciência política para assumir seu papel sem que perca um momento de “experiência de aprendizagem democrática”.

O aprendizado é lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula, com todas as limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permeia encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade! (HOOKS, 2013, p. 273).

A construção de um debate sobre uma educação que assume o compromisso de desmonte da estrutura racista deve ser feita de encontro, também, ao papel do processo histórico e político que as comunidades quilombolas representam de libertação e resistência negra. As comunidades quilombolas, não só devido ao seu espaço territorial, mas por seu lugar histórico, simbólico e político, tornam-se caras e importantes para a luta dos movimentos negros. Pautada nisso, a discussão de políticas de inclusão das comunidades quilombolas na educação pede que a compreensão do debate do ensino da história da África e dos africanos seja fundamental para compreendermos nossa realidade, pois os conhecimentos diaspóricos tornam-se cruciais para o entendimento da realidade brasileira atual, histórica, cultural e política.

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Entretanto, como ocorre o aprendizado sobre as comunidades quilombolas na escola? Em qual lugar estão pautadas as discussões históricas dessas comunidades? Somente para cumprir o currículo ou para comemorar o Dia da Consciência Negra? Os discursos na escola estão carregados de estereótipos ou realmente têm a compreensão do que essas comunidades representam?

Ainda, a mesma professora preta engajada na luta por educação antirracista, ambientada em escola elitizada, privilegiada e majoritariamente branca, se vê em uma turma de 5º ano em que os alunos estavam estudando sobre comunidades quilombolas. Os alunos foram convidados a realizar uma roda de conversa com uma pesquisadora do SanRural (Saneamento e Saúde Ambiental Rural), projeto da Universidade Federal de Goiás (UFG) em andamento e que pesquisa sobre as condições de saúde e saneamento de comunidades rurais e tradicionais do Estado de Goiás, como assentamentos, quilombolas e ribeirinhas.

Ao pedir que os alunos fizessem perguntas sobre as comunidades quilombolas, a maioria delas pairavam em questões como “o que eles comem?”, “onde vivem?” “são pessoas pobres?” Raras perguntas destoavam dessas questões. Os olhares ainda superficiais dessas crianças colocaram as comunidades como lugares distantes, embotados de pobreza e escassez e as pessoas dessas comunidades como ‘extraterrestres’.

Isso faz questionar como se apresenta na escola o debate sobre as comunidades quilombolas, o que elas representam e significam para nossa realidade, e mais ainda, como estão presentes na nossa cultura e construção social. Assim chega a discussão sobre como a educação ainda se debruça no problema da invisibilidade quando se trata de discussões racializadas. O debate sobre a história em educação tem sido marcado pelo desmonte da estrutura racista e pelo problema da invisibilidade. Desse modo, se faz necessário questionar essa invisibilidade que se acentua pela forma como o ensino apresenta a história dos africanos e afrodescendentes no Brasil e o que isso representa para a constituição de um projeto político negro no pensamento educacional. Já que essa invisibilidade, para além do racismo, se configura numa visão colonial que engendra as formas de existência do ser numa perspectiva eurocêntrica, colocando os ensinamentos fora desse padrão colonial, inexistente, desnecessário ou ‘vazio’. Nesse caminhar que Kabengele Munanga (2000) defende, de forma incessante, que precisamos renovar as construções de pensamentos e possibilitar mudanças de paradigmas para nos desvincular de uma dependência intelectual ocidental e produzir outras narrativas.

As visões que as crianças em destaque apresentam sobre as comunidades quilombolas não representam a totalidade do que os quilombos realmente são. Quilombo é potência, é história e resistência, inspira luta e construções de narrativas que destoam do pensamento colonizado. Beatriz Nascimento, mulher preta, quilombola, professora, antropóloga, poetisa e ativista, com suas escritas sempre fortificando os significados de libertação negra que os quilombos constroem, diz:

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Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o tempo. Sua relação com o seu território. É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível (sic) duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando nesse momento. Eu tenho a direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou (NASCIMENTO, 1985 apud RATTS, 2006, p. 59).

Uma pesquisa simples e breve nos espaços virtuais, como em sites de pesquisa escolares, de história ou de curiosidades, facilmente encontrará definições sobre quilombos. As definições centralizam em esconderijos no mato para escravizados fugitivos, lugares construídos por negros escravos ou comunidades formadas por revoltosos durante a escravidão. Concepções sobre os quilombos ainda são marcadas por visões e compreensões coloniais sem um mínimo de interesse em entender a historicidade rica e importante dos quilombos, concepções que ainda são ensinadas nas escolas.

Numerosas foram as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na luta árdua pela manutenção de sua identidade pessoal e histórica no Brasil, poderemos citar uma lista destes movimentos que no âmbito “doméstico” ou social tornam-se mais fascinantes quanto mais se apresenta a variedade de manifestações: de caráter linguístico, religioso, artístico, social, político, e de hábitos, gestos, etc. Não nos cabe aqui, porém, discorrer sobre estes movimentos. [...] Trata-se do Quilombo (Kilombo), que representou na história do nosso povo um marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas essas formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil (NASCIMENTO, 1985, p. 41).

Diferentemente do que vem sendo ensinado na maioria das escolas, os quilombos (palavra aportuguesada) ou Kilombos são de origem de territórios africanos, entre as regiões do Zaire e Angola. Sua história de tradição oral conta que os quilombos vieram dos povos bantu, em que os kilombos eram (são) instituições africanas formadas por guerrilheiros, conhecidos como Imbangala, que se preparavam para as guerras entre os séculos XVI e XVII, período de diversos conflitos políticos e territoriais entre imperadores e reis da época. Como procuravam lugares fortificados e cercados para se organizarem, os acampamentos apresentavam-se de difícil acesso (MUNANGA, 2008).

Os portugueses, com as intenções de colonizar Angola pelos mesmos motivos que o fizeram no Brasil, para encontrar riquezas como minério precioso, frustraram-se e viram vantagem em enriquecer com o mercado de escravos. Ao adentrar em terras africanas eles encontraram diversas sociedades e organizações, e conflitos foram gerados. Os imbangalas tiveram papel extremamente importante de resistência contra as forças colonizadoras portuguesas.

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[...] Característica nômade dos Imbangalas, acrescida da especificidade de sua formação social, pode ser considerada na instituição Kilombo. A sociedade guerreira Imbangala era aberta a todos os estrangeiros desde que iniciados. Tal iniciação substitui o rito de passagem das demais formações de linhagem. Por não conviverem com os filhos e adotarem os daquelas formações com as quais entrava em contato, os Imbangalas tiveram papel relevante neste período da história angolana, a maior parte das vezes na resistência aos portugueses, outras nos domínios de vastas regiões de fornecimento de escravos (NASCIMENTO, 1985, p. 42-43).

Ainda há uma grande dificuldade dos estudos históricos e antropológicos sobre as ligações diretas das formações quilombolas no Brasil e em Angola quanto às descendências e as atuações de combate dos quilombos. Porém, as relações são explícitas e não há como negar que “frente ao tráfico negreiro, não é difícil estabelecer conexão entre a instituição na África (Angola) e aqui” (Brasil) (NASCIMENTO, 1985, p. 43). As primeiras instituições quilombolas são formadas no Brasil colonial e apresentam fortes semelhanças com as formas de organização e luta dos Imbangala. Eles definem estratégias, lutas e locais de combate como assim faziam em Angola. Beatriz Nascimento (1985) coloca que o Quilombo Palmares, que marca de forma singular a História do Brasil, tem em seu histórico de combate uma grande correlação com as formações de quilombos africanos.

No século XVIII, os quilombos tomaram grande proporção no Brasil colonial e foram se multiplicando, criando diferentes formas de organização de acordo com as regiões e etnias diversas (NASCIMENTO, 1985). Esse marco histórico se estende até os dias atuais, ainda lutando pela manutenção de suas terras e direitos básicos conquistados com a Constituição de 1988, a partir das resistências de movimentos negros inconformados com as injustiças sociais e pela luta a favor da reparação histórica.

Há no Brasil, hoje, cerca de 3.475 comunidades quilombolas certificadas, entre comunidades de área rural e urbana, de acordo com os dados da Fundação Cultural Palmares (FCP) que é responsável pela emissão das certidões para certificação e inscrição geral. São comunidades espalhadas por todo território nacional. Somente em Goiás são quase 60 comunidades certificadas. A dimensão territorial e histórica que as comunidades quilombolas apresentam é de tamanha relevância para que se assegure como “instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior autoafirmação étnica e nacional” (NASCIMENTO, 1985, p. 46).

Entretanto, o racismo, com suas diversas contradições e imposições calcadas numa estrutura dolorosa, como já mencionado, faz com que as comunidades quilombolas ainda precisem resistir como espaço, quanto a sua afirmação, para garantir direitos plenos e básicos como saúde, saneamento, regularização de suas terras e educação. Esses direitos, aos poucos, vêm sendo conquistados pelas lutas e ações de movimentos sociais e políticas públicas.

A escola quilombola não é só mais uma escola e sim um espaço específico para o resgate histórico e identitário do povo negro, onde a leitura da história se faz por outros olhares. Ainda há uma visão do mundo ocidental que tem sido dominante em toda sociedade escolar, mas a luta contra essa visão está em fazer sentido aos olhos dos alunos essa outra história, em fazê-los refletir a respeito de tudo que até então lhes foi colocado como negativo. O resgate deve acontecer mediante a diversidade dos encontros, da promoção de condições capazes de transformar a educação escolar em construção e aprendizado do mundo a partir das práticas sociais, do corpo e da subjetividade.

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A inferência das novas atuações na educação a partir da Lei 10.639/03, que decreta a obrigatoriedade do Ensino da História da África e da Cultura Afrodescendente no Brasil, modificou as perspectivas sobre o ensino da cultura negra e africana. Porém, a dificuldade de sua efetividade ainda se faz presente, como poderá ser percebido mais à frente com os encontros nas escolas quilombolas da pesquisa citada neste trabalho.

O processo de direito à acesso e à propriedade das terras quilombolas ocasionou em outras conquistas, como o direito à Educação. Consolidou-se assim uma pedagogia própria, afirmando os conhecimentos advindos da cultura afrodescendente e quilombola (CRISTIANE; MARIANA, 2016). Anteriormente, não havia programa de expansão de escolas quilombolas. A partir da luta dos movimentos negros e das comunidades quilombolas postulou-se a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, que rege:

A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural (BRASIL, 2003).

São importantes conquistas para as comunidades quilombolas, já que elas ainda se caracterizam como áreas de maior vulnerabilidade, porque o acesso à escola ainda é difícil, causando defasagens no desenvolvimento de aprendizagem, principalmente de crianças, que sofrem com as consequências estruturais do racismo. Essas consequências estruturais, como já mencionado, são encontradas nas desigualdades de acesso às terras e a serviços, nos sistemas judiciários desiguais, bem como nas políticas de saúde e educação. Todas essas desigualdades fazem com que as crianças e os jovens possam ter dificuldade de se perceberem no mundo em que vivem e de agir nele de forma consciente. Essas condições tornam necessárias lutas por mais políticas públicas como essas que desenvolvam a possibilidade de resistência das comunidades quilombolas.

A educação como motor de transformação dessa realidade, que não se restrinja a uma educação para o consumo, como mercadoria ou bancária, como define Paulo Freire, e que, pela forma como é pensada e adotada pelos educadores, tenha impactos no mundo real, se faz necessária. É um alinhamento de forças necessárias e precisas para mudar a história de exclusão e de discriminação vivenciadas nas comunidades.

Atualmente, as comunidades quilombolas lutam ativamente por políticas que possibilitem consolidar a educação antirracista. A luta das comunidades quilombolas para transformar o ensino em um instrumento de liberdade e igualdade. Na vanguarda dessa luta estão suas lideranças que buscam uma educação que possua o objetivo de formar jovens e crianças conscientes e construam estratégias de luta contra o racismo. Uma educação antirracista nos coloca à frente e nos determina a transformação da realidade. Só assim nossas alunas e alunos poderão criar condições e ações para uma libertação negra.

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LUGARES DE ENCONTRO E REFLEXÕES

O primeiro local de encontro, da pesquisa mencionada, foi realizado na Escola Municipal Serra das Areias, localizada em Aparecida de Goiânia - GO, na rua Arquimedes, esquina com a rua Péricles, no bairro Vila Del Fiore. Essa escola, depois de muito confronto e apoio, foi considerada oficialmente pelo Censo da Educação Básica como uma escola quilombola, já que está localizada em um quilombo urbano, a Vila Quilombola Del Fiori. A escola foi fundada no mês de fevereiro de 2000. A escolha do nome da escola acontece pela proximidade com a principal reserva ambiental de Aparecida de Goiânia, que é a Serra das Areias. A escola atende, atualmente, 414 alunos nas turmas de Educação Infantil, com o agrupamento V, uma no turno matutino e outra no turno vespertino; e turmas da primeira fase do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano; além de uma sala de AEE - Atendimento Educacional Especializado . A escola possui 15 professores, a maioria é formada em pedagogia e com pós-graduação (PPP, 2019).

A maioria dos alunos que frequentam a instituição são da comunidade e constam ser provenientes de famílias de baixa renda, conforme relata a coordenadora pedagógica da escola e a análise do PPP - Projeto Político Pedagógico (2018). Por conseguinte, após a escola ser oficialmente considerada uma escola quilombola, a instituição tem recebido uma verba maior para a alimentação, em comparação com as escolas convencionais, com objetivo de sanar com a carência alimentar das crianças e, assim, possibilitar uma melhora na aprendizagem. A secretária geral também mencionou que a alimentação da escola advém da agricultura familiar.

A chegada à escola foi acolhida pela secretária geral que, com paciência e humildade nos olhares e gestos, apresentou a escola, enquanto era aguardada a coordenadora, que no dia estava em sala de aula substituindo um professor que se ausentou.

No que se refere à estrutura da escola, esta é um local extenso e arborizado, apresentando uma área livre com horta e outra de recreação. Assim que a coordenadora pedagógica chegou, foi feita uma entrevista com ela a partir de questões sobre o referido tema; foi também colhido um depoimento de uma das professoras da instituição e foi feita, ainda, a análise documental e dos materiais utilizados na escola.

Em primeiro lugar, coloco a necessidade de destacar o depoimento de uma professora que, com os olhos marejados e vontade de apresentar sua experiência e vivências, expôs uma linda fala:

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Já estou na escola faz 5 anos e assim que cheguei, eu recordo que no mesmo ano estava acontecendo o Projeto da Consciência Negra e pra mim foi novidade participar de uma escola quilombola e na época ainda estava introduzindo a identidade quilombola na escola, pois foi quando ela tornou-se oficialmente. E a gente enquanto professor que vai trabalhar identidade das crianças em relação. a se assumirem quanto sua cultura, origem, negritude, cabelo, pele; eu enquanto referência identitária estava vivendo um pouco incoerente porque eu já pensava em assumir os meus cabelos afro, mas ainda não tinha tido atitude. Então quando começamos a trabalhar esse projeto da consciência negra, isso me estimulou e me encorajou. Pois eu me perguntava “Como eu posso ser referência para os meus alunos em assumir a identidade negra, se eu mesma estou vivendo de modo incoerente?!” O professor é referência para o aluno, e se eu enquanto negra digo para os meus alunos, para um público, que eles devem se assumir quanto identidade e cultura negra e eles olham pra mim com o cabelo alisado, não tem força, não tem validade. Então eu senti essa necessidade de me posicionar. Então no dia da culminância do projeto, acredito que foi em 2015, não me recordo muito bem da data, tomei uma atitude radical e cortei o cabelo no zero. Foi um susto para a maioria, mas teve um impacto bom, foi como se eu tivesse resgatado algo de muito tempo. Retomar essa questão do cabelo, de me assumir e me sentir feliz comigo mesma, como se tivesse tirado uma máscara de uma exigência social para ter os cabelos padronizados. Eu me senti verdadeiramente livre e com o sentimento de coerência quanto aos meus alunos. Eu era uma pessoa negra vivendo outra identidade, agora eu me sinto real. Inclusive agora nesse projeto que a gente vai fazer do Sarau, a professora do vespertino me convidou para fazer a declamação do poema da Victória Santa Cruz “Gritaram-me Negra”. Achei lindo! Estamos ensaiando e discutindo muito esse impacto que a pessoa tem quando ela é confrontada diante da sua identidade. Ela, às vezes, retrocede e deixa de seguir, mas temos que enfrentar, sou negra sim, essa é minha origem. Eu tenho história, tenho minhas origens africanas. Então esse trabalho que a escola faz em relação a isso é muito importante. Na coordenação temos uma pessoa que corre atrás, que procura e nos afirma como escola quilombola. Não é uma escola quilombola entre aspas, mas a gente procura estar trabalhando isso sempre aqui, buscando parcerias, conhecimento, relação com a comunidade, pois a comunidade também está inserida nos projetos da escola. E trabalhamos a arte, cultura, história da cultura negra. E enquanto professora acho muito importante não só falar mas também viver na prática! (Professora da E.M Serra das Areias, 2019).

O depoimento da professora possibilita um olhar esperançoso quanto aos rumos de uma educação antirracista. Orientados por este afetuoso exemplo, podemos afirmar que a educação antirracista é possível. É um processo político que pode ser estendido a todos os espaços educativos, no cotidiano da escola. Esse processo pode ser construído por meio de uma cultura política e pedagógica.

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A educação para as relações étnico-raciais possibilita que os indivíduos construam conscientização sobre o eu e o mundo, além das interações advindas do eu inserido no mundo. O entendimento desse processo possibilita a vontade de destruição de estruturas antidemocráticas e a reconstrução de estruturas que democratizam a experiência do ser. Nos quesitos institucionais, a educação antirracista busca, por exemplo, a inclusão social especialmente daqueles que foram excluídos e invisibilizados. Este caminho pretende pensar em construir uma sociedade mais justa e participativa. A educação antirracista não é uma modalidade curricular como outra qualquer, estende-se quanto ao compromisso de todos os envolvidos com a educação, pois está na hora de “revolucionar os valores” e democratizar o conhecimento para superar e erradicar o racismo.

Ainda sobre o cotidiano da escola ser permeado por uma atitude antirracista, coloca-se a necessidade de trazer aspectos sobre os muros desta escola, permeados de trabalhos e imagens construídas pela comunidade escolar durante o ano letivo. Como professora que já foi aluna, que não se reconhecia nos espaços escolares, foi gratificante chegar a esta escola com muros recheados de imagens de mulheres negras, algumas construídas por alunos com necessidades especiais, com trabalhos sobre a cultura negra, com mapas de territórios africanos e suas relações com o Brasil. As ações desenvolvidas pelos alunos e professores não são apenas um “mero” ato artístico. Mas como o ato artístico se estende para algo maior, as falas e representações se subvertem a partir delas próprias para alunas e alunos negras/os. A escola também é um espaço de encontro e reencontros e o sentimento de conforto e acolhida deve se fazer presente.

Um outro ponto importante a destacar na escola diz respeito aos livros didáticos utilizados neste espaço escolar, tendo em vista que os livros didáticos, muito utilizados na atuação do professor, se configuram como cartilhas para o cumprimento regulador e de controle que o currículo exerce nas salas de aulas, como criticam Sacristán (2013) e Saviani (2016). Esta forma de utilização dos livros conota uma dimensão dependente em que os professores se submetem a eles e por eles mesmos reproduzem uma ideologia e que, unidos ao material didático, reproduzem uma visão deturpada e depreciativa do ser negro, contribuindo para a manutenção de um sistema racista.

Assim, os livros didáticos e a literatura em geral ainda estão marcados por concepções racistas que fazem surgir uma visão negativa da presença dos negros e negras no processo histórico, social e político da nação brasileira. Narrativas racistas dos livros didáticos utilizados nas escolas do Brasil também contribuem para o molde do pensamento das crianças, pois estes livros notadamente são utilizados por vários professores para ensinar os alunos. O que faz com que as crianças e adolescentes venham a adquirir um sentimento de desvalorização e negação de sua representação no mundo. Logo, não se deve negar que há mudanças nessa questão, o que possibilitou construções diferentes nas produções e usos das literaturas na escola, principalmente depois da Lei 10.639. Essas tentativas de olhares diferentes para os livros didáticos e literários se mostrou presente na escola, como observa a coordenadora pedagógica:

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Assim continuamos tendo acesso a vários materiais. As pessoas que vêm oferecer livros ou sempre pedimos materiais nessa área. No ano passado teve o PNLD Literário em que as escolhas dos nossos livros foram todas ligadas à cultura africana. Os livros didáticos também tentamos ao máximo que tenha representação da cultura quilombola como prioridade. A gente pesquisa cursos fora, mas não encontramos e quase não tem acesso. O acesso que temos é com a coordenadoria. Quando eles oferecem cursos, nós participamos; ficaram de realizar projeto nas escolas e estamos aguardando. Tem também o SINTEGO, sindicato dos professores, que promove o Abraço Negro e somos uma escola parceira (Coordenadora - E. M. SERRA DAS AREIAS, 2019).

A escola explicita que a escolha dos livros didáticos e literários deve ser prioridade para desmitificar visões depreciativas do negro, sobretudo por conta do alcance que os textos e imagens escolares têm para com os alunos. Nas escolas, a diversidade étnica e cultural nas literaturas pode ser uma ferramenta que compõe estratégias para alavancar discussões que vão ao encontro da produção de conhecimento numa perspectiva decolonial na educação.

Nesse caminhar, torna-se importante lembrar, também, que uma característica fundamental do quilombo como um espaço de resistência passa por desmistificar os valores de uma sociedade colonial e pelo conhecimento produzido neste contexto, capaz de colocar em cena outras possibilidades. Assim como as representações das letras das palavras são uma parte importante do processo de alfabetização, quando construídas com os alunos numa perspectiva social possibilitam uma dimensão de sentido e relação com a realidade desses alunos. O acesso à literatura negra é um recurso que pode contribuir para a construção das novas representações. A escola, ao fazer o reconhecimento das letras do alfabeto com os alunos, diverge de relações convencionais como “A de amor” ou “B de bola” utilizando referências que estão no cotidiano e na cultura dos estudantes quilombolas com A de África, B de Berimbau, Z de Zumbi.

A despedida deste primeiro encontro me deixou extremamente esperançosa e com vontade de fazer mais, de construir novas possibilidades e praticá-las na escola. Uma educação antirracista efetiva e concreta em sua totalidade ainda tem caminhos longos a percorrer, mas é possível, necessitando de professores corajosos e engajados para que isso aconteça. Precisa de professores que possam enfrentar e desconstruir medos, suposições e ideias impostas. Precisa de professores que estejam abertos a mudar de posição e que queiram “revolucionar seus valores”, que consigam ouvir seus alunos, suas realidades e possam explicitar o seu lugar no contexto da escola. Precisa de professores que estejam contrários a uma disposição de se tornar meros executores de ações isoladas e que sejam capazes de compreender os processos que nos formam e como tudo está presente no cotidiano da escola. Precisa de professores que já assumam a sua responsabilidade, com sabedoria, e que reconheçam a necessidade de seriedade com o compromisso antirracista na escola.

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O segundo encontro aconteceu no Colégio Estadual Jardim Cascata, localizado também em Aparecida de Goiânia - GO, na Av. C esquina com a Av. C 10, bairro Jardim Cascata. A escola foi construída em uma comunidade quilombola e também em um quilombo urbano - “Quilombo Urbano Jardim Cascata”. A origem do colégio se deu no âmbito de Lei municipal do ano de 1992, mas ele foi doado à Secretaria do Estado em 1995. O colégio atende alunos da comunidade quilombola Jardim Cascata com as modalidades da segunda fase do ensino fundamental, turmas do 5º ao 9º ano, ensino médio e EJA - Educação para Jovens e Adultos Ensino Fundamental, nos turnos matutino, vespertino e noturno. A visita ao colégio ocorreu com a recepção da coordenadora pedagógica do matutino, que apresentou a escola e possibilitou um momento para a entrevista.

Ao retomar as discussões sobre a importância de que o espaço represente a visão da escola sobre o mundo, é importante salientar que o Jardim Cascata apresenta algumas limitações em relação a este aspecto, mais especificamente quanto à estrutura, recursos e materiais. Como menciona a coordenadora, há um certo descaso das instituições governamentais em relação a possibilitar auxílios para manutenção do colégio. Além disso, pelos muros das escolas estavam dispostos alguns cartazes produzidos por alunos com frases afirmando a identidade quilombola e outros com frases como “Não ao Bullying". Falas necessárias e importantes para a construção social dos alunos, representando a percepção de que há um entendimento quanto ao fato de que há mudanças necessárias a serem feitas na realidade presente. Por outro lado, faz-se necessário apontar aqui que o discurso de “todos somos iguais” e “não ao bullying" são falas que ainda se apresentam como forma de mascarar construções racistas que perpassam na formação social. Como já discutido, o racismo se constitui como estrutura e com grupos específicos que sofrem com consequências dolorosas e em diversas instâncias. Sendo assim, as ações e discursos que lutam contra o bullying na escola não sustentam o que o racismo representa e por isso não possibilitam amenizar as barreiras raciais.

No nosso caso não temos essa questão com o preconceito na escola, nem esse ano e nem anos anteriores, em relação a cor e essas coisas. A maioria dos alunos são descendentes de quilombolas, nem todos têm a pele negra; muitos deles não gostam de ser chamados de quilombolas por não conhecerem o significado, mas trabalhamos com eles essa questão. E nosso compromisso com a educação quilombola é passar para os alunos sobre reconhecer como comunidade quilombola. Mas não tivemos muitos problemas, eles se aceitam muito bem (Coord. Pedagógica - C.E JARDIM CASCATA, 2019).

Ainda é muito comum que profissionais da educação que estão na tentativa de fazer o debate racial nas escolas caiam nos discursos sobre igualdade. Mas deve-se compreender que não é sobre o olhar da igualdade que construímos um debate efetivo no que diz respeito às complexas relações raciais, mas sim sobre as diversidades e como essas diferenças estão postas na sociedade. Não basta não ser racista, a partir de um discurso de que “todos somos iguais”, pois não há essa igualdade e muito menos há igualdades nas relações construídas socialmente. Há diferenças com necessidades diversas que se tornam complexas pelas estruturas postas. Por isso Angela Davis, Silvio Almeida e outros autores da luta racial colocam como extremamente necessária, e urgente, que tenhamos uma atitude antirracista, “numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista” (DAVIS, 2019). Concorda-se que o racismo está permeado na sociedade, mas não ser racista, simplesmente, não permite que as complexas relações raciais sejam revistas, é necessária, portanto, uma atitude que se oponha ao racismo sistêmico e às diversas formas pelas quais ele se apresenta, como ideologia, nas instituições e tradições culturais.

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Isso significa dizer que a formação de professores torna-se crucial para esse processo. Apesar da enorme quantidade de livros e outros materiais produzidos sobre a discussão, muito do que fica impresso ainda não chega a esses professores. Inclusive há necessidade de se pontuar que esta foi uma das questões também apresentadas pela escola Serra das Areias, a falta de acesso a essas discussões. Na ingenuidade, ao mesmo tempo com ânsia academicista, coloquei para as professoras que na universidade existem vários grupos de estudos, de discussões, vários trabalhos realizados por especialistas no debate racial. Mas uma delas me respondeu em um suspiro doloroso que “é verdade, mas é muito longe para nós e temos muito trabalho aqui”. Neste momento fiquei refletindo sobre como a universidade deve se mobilizar cada vez mais para ocupar as escolas de forma a construir junto novas práticas com as realidades do chão da escola. Elas assim se manifestaram:

“Não, nunca tive contato antes de trabalhar aqui” (Coord. - E. M. SERRA DAS AREIAS, 2019).

“A gente ainda está engatinhando porque falta formação continuada em relação a isso. Enquanto escola a gente tem tentado trazer a temática, tem as formações quase que mensalmente. O grupo gestor, coordenação e professores buscam trazer as temáticas.” (Coord. - E. M. SERRA DAS AREIAS, 2019).

“Falta formação pra gente enquanto professor, nunca estudei sobre na formação inicial” (Professora - E. M. Serra das Areias, 2019).

“Na faculdade não vi, mas fiz só um curso, não me lembro o nome, sobre comunidade quilombolas e indígenas no CETEB .” (Professora - C. E. JARDIM CASCATA, 2019).

“Difícil encontrar formação sobre relações raciais na educação.” (Coord. - C.E JARDIM CASCATA, 2019).

“Na formação inicial tive conhecimento e antes era conhecido mais como temas transversais; agora tem mais engajamento.” (Coord. - C.E JARDIM CASCATA, 2019).

Ainda há essa falha para a efetividade da Lei 10.639; a formação de professores nesta temática acontece a passos lentos. É fundamental um movimento de formação de professores ativos e agentes de transformações sociais. Para isso, é necessário que os professores, professoras e gestores de ensino sejam formados para enfrentar esta situação e se conscientizem das implicações nocivas da educação. É urgente que os professores estejam conscientes de uma voz e ação ativa no educar antirracista, pois isso permite uma abordagem mais profunda e menos linear em relação ao conceito de racismo. É necessário que todos sejam formados no conhecimento, compreensão e aplicação de princípios de formação antirracista nos campos educativos, sociais, políticos e culturais.

Assim, no C. E. Jardim Cascata, houve uma dificuldade em conversar com os professores, pelo tempo que precisaria ser disponibilizado, mas uma professora se colocou disponível, mas teve receio de responder algumas perguntas e solicitou que a entrevista não fosse gravada. Ao ser entrevistada, ela afirmou que era sempre trabalhado o “respeito, o aceitar o outro” e que “não acontecem questões discriminatórias na escola”. Por fim, ele argumentou que preocupa-se em discutir sobre questões quilombolas com os alunos, mas que dificilmente eles não se aceitam. Além disso, as falas sempre muito enfáticas na preocupação com o cumprimento da Lei 10.639 que fornece a possibilidade de trabalho mais efetivo com as discussões raciais.

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Conhecemos a Lei e fazemos estudos sobre a lei nas formações e quais ações devemos tomar a partir da Lei, mas não é fácil. Nós temos tentado cumprir com a lei, mas pelo conhecimento que temos de outras realidades e de outras escolas, temos muito caminho para percorrer (Coord. pedagógica - E. M. SERRA DAS AREIAS, 2019).

A lei é conhecida por nós e estudamos pois tem a ver com a educação quilombola, mas cumprir é trabalhoso. E concordo que precisa da lei, pois só com luta conquistamos e é preciso que essas discussões sejam protegidas por lei, que regimentam, que deixam claro essa questão (Coord. pedagógica - C.E JARDIM CASCATA, 2019).

Há a necessidade de uma preocupação maior quanto ao suporte às instituições de ensino, já que elas encontram dificuldades de implementação da Lei 10.639 em suas atuações. Esse conjunto de suportes inclui aspectos ligados a materiais, formação, cursos, vivências e políticas públicas que permitam um trabalho efetivo na escola, e não somente a lembrança de um dia comemorativo sem uma construção significativa para as alunas e alunos como acontece no dia 20 de novembro. Um dos focos principais deve estar na formação docente. Os professores precisam se engajar no projeto de uma educação antirracista, pois ter uma sociedade livre de desigualdades e discriminações raciais demanda mudanças estruturais importantes. É preciso lembrar que cada escola é um ponto central para se discutir e traçar uma nova estratégia para a educação no país.

O incômodo é o que fica na finalização desta escrita. Mas o incômodo que adverte para o movimentar-se. Ainda que seja um processo doloroso compreender como a estrutura racista está engendrada nas vidas cotidianas, é necessário o olhar esperançoso em relação a novas possibilidades. Tanto se falou aqui de uma educação que liberta, e essa educação como prática de liberdade necessita ser congruente com o processo decolonial do pensar, do agir e principalmente do ensinar. Ela é importante para avançar em uma maior conscientização da questão racial e, assim, possibilitar a concretização das políticas públicas voltadas às populações negras. Essa concretização também passa pela construção de uma nova sociedade, uma sociedade que renuncie ao racismo. Esse é o nosso desafio. É igualmente necessário ter um olhar crítico para as atuações e práticas que institucionalizam essa estrutura.

Como já delineado que aqui as discussões não se encerram, mas possibilitam o incômodo para que novas ações estejam motivadas e vivas para diferentes olhares, coloco aqui algumas perguntas feitas por Nilma Lino Gomes (2000). Questões que sempre ajudam a refletir sobre nossa atuação como professores, como sujeitos compromissados com uma educação que transforma. Ela questiona:

Como será que nós, professores e professoras, temos trabalhado com a questão racial na escola? Que atitudes tomamos frente às situações de discriminação racial no interior da escola e da sala de aula? Até quando esperaremos uma situação drástica de conflito racial ou enfrentamento para respondermos a essas perguntas? Por que será que a questão racial ainda encontra tanta dificuldade para entrar na escola e na formação do professorado brasileiro?” (GOMES, 2000, p. 148).
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Não há como negar que diversos fatores influenciam na atuação dos professores na efetividade de uma educação comprometida com o antirracismo, pois depara-se com o racismo institucional, com os desafios nas relações escolares, as imensas demandas e obrigações dos professores, as estruturas ainda precárias das escolas. Eu poderia citar ainda diversos outros fatores que influenciam e dificultam o processo para o trabalho da escola. Mas, como diz Paulo Freire, não haverá mudanças nas realidades que tanto nos incomodam se não houver mobilização, ação e consciência coletiva. As possibilidades de estratégias para fugir do que é imposto todos os dias são enormes, e os encontros apresentados neste trabalho nos oportunizam enxergar que uma educação antirracista é possível.

Assim como nos incomoda a realidade colocada, devemos agir para que o incômodo se estenda àqueles que, com seus privilégios e poder, se articulam para a manutenção de estruturas que evocam as desigualdades e discriminação de formas tão dolorosas. É passada a hora de incomodar com a nossa voz, com a nossa escrita, com o nosso trabalho e com a nossa indignação. Conceição Evaristo (2007) e sua brilhante escrita nos alerta que “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar aos da casa grande, e sim para incomodá-los de seus sonhos injustos”.

Referências

Almeida, Silvio Luiz de. O que é racimo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

Evaristo, Conceição. Da grafia desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento da minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

Evaristo, Conceição. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Editora Pallas: Fundação Biblioteca Nacional. 1 ed. 2016.

Freire, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, [1996] 2002.

Gomes, Nilma Lino.. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas Estratégias de Atuação. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. 2000, p.143-154. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf. Acesso em: nov. de 2019.

Hooks, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

Kilomba, Grada. Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. 1ª edição, Rio de Janeiro: Cabogó, 2019.

Nascimento, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: NASCIMENTO, Abdias (org.). Curso "Conscientização da cultura afro-brasileira". Afrodáspora 5 e 6 - Revista do mundo negro. Ipeafro, PUC - SP, Ano 3, n. 6 e 7, 1985.

Ratts, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

Sacristán, José Gimeno. O que significa currículo?. In: SACRISTÁN, José Gimeno. Saberes e Incertezas sobre o currículo. Penso Editora. 2013, p. 16-35.

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Sant'Ana. Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre o racismo e seus derivados. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação.Secretaria de Ensino Fundamental. 2000, p. 39-65. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf. Acesso em: nov. de 2019.

Saviani, Dermeval. Educação escolar, currículo e sociedade: o problema da base nacional comum curricular. Movimento - Revista de Educação, n. 4, 9 ago. 2016.