SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Até o fim

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Após deixar Arkten, voltei para a quitinete. Nunca havia me sentido tão angustiado, mal consegui estacionar o carro. Em vez de tomar o elevador, preferi ir pelas escadas; não queria ser visto por ninguém. Subi três lances de degraus e me sentei na passagem, junto à porta de incêndio. Naquele canto escuro, chorei compulsivamente. Depois que me refiz, praticamente me arrastei até a quitinete me jogando sobre o sofá. Meu desejo era de que o mundo acabasse naquele momento.

Senti o celular vibrar em meu bolso. Tentei ignorá-lo, mas fui vencido pela curiosidade, era o Pedro: “aí véi, já terminou aquele orçamento? É pra amanhã hein! Volto na sexta”. Por um tempo, permaneci estático, de olhos estatelados, segurando firme o celular. Depois, me bateu uma vontade louca de ligar para a Ana Cleide, mas o que eu iria dizer a ela? “Oi, meu amor já tá preparada para a viagem? Melhor levar roupas de frio, não sabemos como estará o clima lá no outro planeta”. Hilário.... Isso me causou uma crise de risos misturada a choros.

Passada a crise, retirei do outro bolso o bilhete escrito por Dona Anaildes. Por horas permaneci ali, abrindo e fechando os dois lados do coração, lendo a mensagem nele contida, até cair no sono.

Quando acordei, já era dia. O bilhete ainda estava sobre o meu peito. Eu precisava falar com Ana Cleide, contar tudo a ela. Porém, só consegui trocar com ela uma rápida mensagem:

Levantei-me do sofá e vi que ainda estava calçado e vestido com as mesmas roupas do dia anterior. A porta da quitinete ainda estava aberta. Eu não sabia no que pensar, e uma angústia torturante me invadia a alma. Tomei o elevador e apertei o térreo. No andar abaixo, o elevador parou. Entrou uma senhora segurando o seu poodle; era a Dona Ivone, pronta para o seu usual passeio matinal. Permaneci com a cabeça baixa e balbuciei um quase incompreensível bom dia.

Atravessei a área das garagens e vi que havia estacionado a Fiorino completamente enviesada, invadindo partes das vagas vizinhas. Não dei a mínima; tudo o que eu queria era ganhar o lado de fora do prédio. Passei pela portaria e parei ao lado das lixeiras. Olhei à minha volta, pra que lado seguir? Tanto faz. Caminhei alguns quarteirões e cruzei a avenida principal, dando de cara com uma padaria. O cheiro de café me laçava. Meu Deus, tudo o que eu queria nessa vida era poder levar uma vida normal: tomar um café em uma padaria com Ana Cleide, pegar um cinema no shopping aos domingos, uma viagem de férias, só isso! Mas não; agora eu era um “condutor cósmico”!!! Um detrito cósmico, isso sim, prestes a vagar na imensidão do universo, pensei, revoltado.

Andei por mais algumas horas até que me bateu uma baita fome. Levei a mão ao bolso e nada, a carteira havia ficado dentro do porta-luvas da Fiorino. Resolvi voltar. Descendo a rua do meu prédio, passou por mim um rapaz: excessivamente magro, braços tatuados e vestindo uma camiseta com a imagem de Gandhi estampada. Seria ele um Hare Krishna? Talvez, não importa. Voltei para a quitinete, fiz ovos mexidos e bastante café.

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Saciada a fome, tive outro ataque de revolta. Fui até a janela e gritei o mais alto que pude: ‘Arkten? Cadê você? Seu picolezeiro dos infernos!’ Para completar o surto, me despi e fiquei andando em círculos pela diminuta sala da quitinete. Enquanto rodava pela sala, percebi a minha imagem refletida no espelho do banheiro. Parei, fiquei me olhando, e então me lembrei do quão magro eu era no tempo em que morava na casa do estudante, eu deveria ter exatamente o mesmo peso daquele rapaz da camiseta do Gandhi.

Também me dei conta de que nunca havia usado uma camiseta daquela. Aliás, nunca possuí camiseta alguma que tivesse a estampa de algum líder carismático como Gandhi, Luther King, Che ou Mandela.

E para atenuar a minha revolta, tentei me lembrar dos feitos de cada um daqueles caras e de como sacrificaram suas próprias vidas pelas causas humanitárias que defendiam. Por um momento senti vergonha de mim mesmo: pô, foi me concedida a oportunidade de evitar o colapso de uma população inteira de extraterrestres, e eu estava ali esbanjando egoísmo. Mas será que em algum momento da história cósmica alguém irá usar uma camiseta com a minha imagem estampada? Claro que não! Certamente, o meu destino é tornar-me um herói intergaláctico anônimo.

Quando eu já estava me sentindo exausto e meio tonto, de tanto circular pelado pela sala, decidi enviar mensagens carinhosas para meus familiares. Comecei pela minha mãe. Então, anoiteceu. Foi a noite mais longa de toda a minha vida. Tentei imaginar milhares de maneiras de driblar o portal na hora da travessia para continuar na Terra com Ana Cleide.

E lá pelas cinco e meia da manhã não me aguentei: passei a mão nas chaves da Fiorino e segui para a casa de Ana Cleide. Ela não me esperava tão cedo. Abri o portão e caminhei até a varanda, a porta da sala estava aberta. Entrei devagar e fui até o seu quarto. Lá estava ela, ainda dormindo. Tão bela, tão doce. Não quis assustá-la. A vó Tê não estava em casa, presumi que deveria ter ido à padaria. Fui, então, até a cozinha e, propositalmente, derrubei uma tampa de panela a fim de acordá-la. Passados alguns minutos:

Corri ao seu encontro e a abracei com força. Não contive as lágrimas.

Fomos para a sala e nos sentamos no sofá. Não tive coragem de contar a ela nada sobre o que estava prestes a nos acontecer. Preferi deixar que as coisas seguirem o seu curso natural, como me aconselhara Arkten. A vó Tê chegou da padaria com várias sacolas de quitandas, ela não queria que Mica, Glacylene e seus novos irmãos passassem fome durante a mudança. E antes de deixarmos a sua casa, ela foi até a cozinha e apanhou uma panela com galinhada que deixara pronta para o evento. Seguimos rumo à invasão.

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Já eram sete da manhã. Nenhum caminhão ainda havia chegado, mas era grande a movimentação na comunidade. Pessoas passavam de um lado para o outro carregando de um tudo: camas; vasos de plantas; ferramentas; trouxas de roupas; galinhas e cães. Parecia um formigueiro.

Entramos na casa de Glacylene e vimos que ela já se adiantara. Todos os seus pertences já estavam devidamente encaixotados, bastando apenas levá-los para dentro do caminhão. Mica e Denílson corriam entre as caixas causando grande alvoroço. Já Robson, acocorado no canto da sala, assistia a tudo no mais completo silêncio. Lindomar estava com cara de poucos amigos. Não era para menos, aquele setor significava muito para ele.

Oito horas em ponto encostou o primeiro caminhão, causando em mim um profundo frio na barriga. Logo, vieram o segundo e o terceiro caminhão.

Imediatamente, contorci o meu braço direito localizando a marca no cotovelo. Fixei meu olhar sobre ela. A qualquer momento a passagem começaria a se expandir, calculei.

Naquele exato momento, Biscoito se aproximou balançando o seu rabinho e farejando os meus pés. Não me contive. O levantei do chão, torci uma de suas orelhas e disparei: Zig?! Seu cão da peste; por que me colocou nessa roubada? Seu vira-latas intergaláctico, diga pra eles quem você realmente é!

Ao ouvirem os ganidos do cãozinho, mais do que depressa, Ana Cleide e Mica vieram ao socorro do amiguinho. Era a minha chance! Agarrarei os dois e, quando a passagem se abrir, uma parte de mim continuará aqui, como os outros. E assim o fiz. E de tão forte que os agarrei caímos ao chão. Ana Cleide começou a chorar. Mica, assustado, gritou pela mãe. Quanto mais gritavam, mais forte eu os agarrava.

De repente, os gritos de Ana Cleide e de Mica ganharam um tom metálico, distante. Estava começando! Não tive coragem para abrir os olhos. Logo, não senti mais a presença de seus corpos entre os meus braços e tudo ficou escuro.

Que vozes eram aquelas? Queria abrir os olhos, mas não conseguia. Até que uma tromba d’água despencou sobre o meu rosto. Despertei assustado e enxerguei um sujeito com um balde nas mãos:

Atendendo ao pedido do homem, logo se aproximou uma moça trazendo-me um copo com água:

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Ajudaram a me sentar no meio-fio e bebi toda a água.

Mesmo ainda um pouco atordoado, não pude deixar de notar a beleza daquela moça: cabelos negros e longos, pele marrom, olhar astuto e um sorriso estonteante. Devolvi o copo a ela agradecendo-lhe a gentileza.

Aceitei o convite.