Após deixar Arkten, voltei para a quitinete. Nunca havia me sentido tão angustiado, mal consegui estacionar o carro. Em vez de tomar o elevador, preferi ir pelas escadas; não queria ser visto por ninguém. Subi três lances de degraus e me sentei na passagem, junto à porta de incêndio. Naquele canto escuro, chorei compulsivamente. Depois que me refiz, praticamente me arrastei até a quitinete me jogando sobre o sofá. Meu desejo era de que o mundo acabasse naquele momento.
Senti o celular vibrar em meu bolso. Tentei ignorá-lo, mas fui vencido pela curiosidade, era o Pedro: “aí véi, já terminou aquele orçamento? É pra amanhã hein! Volto na sexta”. Por um tempo, permaneci estático, de olhos estatelados, segurando firme o celular. Depois, me bateu uma vontade louca de ligar para a Ana Cleide, mas o que eu iria dizer a ela? “Oi, meu amor já tá preparada para a viagem? Melhor levar roupas de frio, não sabemos como estará o clima lá no outro planeta”. Hilário.... Isso me causou uma crise de risos misturada a choros.
Passada a crise, retirei do outro bolso o bilhete escrito por Dona Anaildes. Por horas permaneci ali, abrindo e fechando os dois lados do coração, lendo a mensagem nele contida, até cair no sono.
Quando acordei, já era dia. O bilhete ainda estava sobre o meu peito. Eu precisava falar com Ana Cleide, contar tudo a ela. Porém, só consegui trocar com ela uma rápida mensagem:
Levantei-me do sofá e vi que ainda estava calçado e vestido com as mesmas roupas do dia anterior. A porta da quitinete ainda estava aberta. Eu não sabia no que pensar, e uma angústia torturante me invadia a alma. Tomei o elevador e apertei o térreo. No andar abaixo, o elevador parou. Entrou uma senhora segurando o seu poodle; era a Dona Ivone, pronta para o seu usual passeio matinal. Permaneci com a cabeça baixa e balbuciei um quase incompreensível bom dia.
Atravessei a área das garagens e vi que havia estacionado a Fiorino completamente enviesada, invadindo partes das vagas vizinhas. Não dei a mínima; tudo o que eu queria era ganhar o lado de fora do prédio. Passei pela portaria e parei ao lado das lixeiras. Olhei à minha volta, pra que lado seguir? Tanto faz. Caminhei alguns quarteirões e cruzei a avenida principal, dando de cara com uma padaria. O cheiro de café me laçava. Meu Deus, tudo o que eu queria nessa vida era poder levar uma vida normal: tomar um café em uma padaria com Ana Cleide, pegar um cinema no shopping aos domingos, uma viagem de férias, só isso! Mas não; agora eu era um “condutor cósmico”!!! Um detrito cósmico, isso sim, prestes a vagar na imensidão do universo, pensei, revoltado.
Andei por mais algumas horas até que me bateu uma baita fome. Levei a mão ao bolso e nada, a carteira havia ficado dentro do porta-luvas da Fiorino. Resolvi voltar. Descendo a rua do meu prédio, passou por mim um rapaz: excessivamente magro, braços tatuados e vestindo uma camiseta com a imagem de Gandhi estampada. Seria ele um Hare Krishna? Talvez, não importa. Voltei para a quitinete, fiz ovos mexidos e bastante café.
p. 105Saciada a fome, tive outro ataque de revolta. Fui até a janela e gritei o mais alto que pude: ‘Arkten? Cadê você? Seu picolezeiro dos infernos!’ Para completar o surto, me despi e fiquei andando em círculos pela diminuta sala da quitinete. Enquanto rodava pela sala, percebi a minha imagem refletida no espelho do banheiro. Parei, fiquei me olhando, e então me lembrei do quão magro eu era no tempo em que morava na casa do estudante, eu deveria ter exatamente o mesmo peso daquele rapaz da camiseta do Gandhi.
Também me dei conta de que nunca havia usado uma camiseta daquela. Aliás, nunca possuí camiseta alguma que tivesse a estampa de algum líder carismático como Gandhi, Luther King, Che ou Mandela.
E para atenuar a minha revolta, tentei me lembrar dos feitos de cada um daqueles caras e de como sacrificaram suas próprias vidas pelas causas humanitárias que defendiam. Por um momento senti vergonha de mim mesmo: pô, foi me concedida a oportunidade de evitar o colapso de uma população inteira de extraterrestres, e eu estava ali esbanjando egoísmo. Mas será que em algum momento da história cósmica alguém irá usar uma camiseta com a minha imagem estampada? Claro que não! Certamente, o meu destino é tornar-me um herói intergaláctico anônimo.
Quando eu já estava me sentindo exausto e meio tonto, de tanto circular pelado pela sala, decidi enviar mensagens carinhosas para meus familiares. Comecei pela minha mãe. Então, anoiteceu. Foi a noite mais longa de toda a minha vida. Tentei imaginar milhares de maneiras de driblar o portal na hora da travessia para continuar na Terra com Ana Cleide.
E lá pelas cinco e meia da manhã não me aguentei: passei a mão nas chaves da Fiorino e segui para a casa de Ana Cleide. Ela não me esperava tão cedo. Abri o portão e caminhei até a varanda, a porta da sala estava aberta. Entrei devagar e fui até o seu quarto. Lá estava ela, ainda dormindo. Tão bela, tão doce. Não quis assustá-la. A vó Tê não estava em casa, presumi que deveria ter ido à padaria. Fui, então, até a cozinha e, propositalmente, derrubei uma tampa de panela a fim de acordá-la. Passados alguns minutos:
— Vó? Já chegou? Fez café? — perguntou Ana Cleide entrando na cozinha. —. Ton?! O que está fazendo aqui, a essa hora da manhã?
Corri ao seu encontro e a abracei com força. Não contive as lágrimas.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou-me preocupada.
— Nada! Está tudo bem. — tentei disfarçar.
Fomos para a sala e nos sentamos no sofá. Não tive coragem de contar a ela nada sobre o que estava prestes a nos acontecer. Preferi deixar que as coisas seguirem o seu curso natural, como me aconselhara Arkten. A vó Tê chegou da padaria com várias sacolas de quitandas, ela não queria que Mica, Glacylene e seus novos irmãos passassem fome durante a mudança. E antes de deixarmos a sua casa, ela foi até a cozinha e apanhou uma panela com galinhada que deixara pronta para o evento. Seguimos rumo à invasão.
p. 106Já eram sete da manhã. Nenhum caminhão ainda havia chegado, mas era grande a movimentação na comunidade. Pessoas passavam de um lado para o outro carregando de um tudo: camas; vasos de plantas; ferramentas; trouxas de roupas; galinhas e cães. Parecia um formigueiro.
Entramos na casa de Glacylene e vimos que ela já se adiantara. Todos os seus pertences já estavam devidamente encaixotados, bastando apenas levá-los para dentro do caminhão. Mica e Denílson corriam entre as caixas causando grande alvoroço. Já Robson, acocorado no canto da sala, assistia a tudo no mais completo silêncio. Lindomar estava com cara de poucos amigos. Não era para menos, aquele setor significava muito para ele.
Oito horas em ponto encostou o primeiro caminhão, causando em mim um profundo frio na barriga. Logo, vieram o segundo e o terceiro caminhão.
Imediatamente, contorci o meu braço direito localizando a marca no cotovelo. Fixei meu olhar sobre ela. A qualquer momento a passagem começaria a se expandir, calculei.
Naquele exato momento, Biscoito se aproximou balançando o seu rabinho e farejando os meus pés. Não me contive. O levantei do chão, torci uma de suas orelhas e disparei: Zig?! Seu cão da peste; por que me colocou nessa roubada? Seu vira-latas intergaláctico, diga pra eles quem você realmente é!
Ao ouvirem os ganidos do cãozinho, mais do que depressa, Ana Cleide e Mica vieram ao socorro do amiguinho. Era a minha chance! Agarrarei os dois e, quando a passagem se abrir, uma parte de mim continuará aqui, como os outros. E assim o fiz. E de tão forte que os agarrei caímos ao chão. Ana Cleide começou a chorar. Mica, assustado, gritou pela mãe. Quanto mais gritavam, mais forte eu os agarrava.
De repente, os gritos de Ana Cleide e de Mica ganharam um tom metálico, distante. Estava começando! Não tive coragem para abrir os olhos. Logo, não senti mais a presença de seus corpos entre os meus braços e tudo ficou escuro.
— Olha! Tem um rapaz caído no meio da rua! Será que foi atropelado?
— Acho que não. Vai vê, ficô chapado e aterrissou aí no asfalto.
— Bora tirá ele de lá antes que um carro passe por cima dele.
Que vozes eram aquelas? Queria abrir os olhos, mas não conseguia. Até que uma tromba d’água despencou sobre o meu rosto. Despertei assustado e enxerguei um sujeito com um balde nas mãos:
— O que aconteceu rapaz? — perguntou-me o homem do balde.
— Não sei. Estava indo pegar o meu carro quando alguma coisa me atingiu na cabeça. Depois, não vi mais nada, acho que desmaiei. — respondi atordoado.
— Alguém pode trazer um pouco de água para o rapaz? — gritou outro sujeito que assistia à cena.
Atendendo ao pedido do homem, logo se aproximou uma moça trazendo-me um copo com água:
— Beba toda a água, moço. Vai lhe fazer bem. — disse a moça, entregando-me o copo.
p. 107Ajudaram a me sentar no meio-fio e bebi toda a água.
— Se quiser mais, eu busco. — disse moça.
Mesmo ainda um pouco atordoado, não pude deixar de notar a beleza daquela moça: cabelos negros e longos, pele marrom, olhar astuto e um sorriso estonteante. Devolvi o copo a ela agradecendo-lhe a gentileza.
— Como se chama? — perguntou-me.
— Erivelton. Mas pode me chamar de Ton. E você, como devo chamá-la?
— Sou Ana Cleide. O que fazia aqui antes de bater com a sua cabeça?
— Pra dizer a verdade, não me lembro. Estava seguindo o GPS e ele me guiou até aqui.
— Vamos até ali, para dentro da casa de minha irmã, que vou examinar esse corte em sua cabeça. Não se preocupe, estou no último período do curso de enfermagem. — convidou-me Ana Cleide, puxando-me pelo braço.
Aceitei o convite.