Todas as manhãs, ao me despertar, permaneço deitado tentando organizar a minha agenda mental. Mas, invariavelmente, acabo misturando as tarefas que preciso resolver no dia com as outras que deixei de fazer, e também com aquelas já realizadas e que não surtiram o efeito esperado. Foi então que a lembrança de um evento me deixou muito angustiado: faltava menos de uma semana para a remoção do pessoal da invasão para a segunda etapa do residencial Nice View. A construtora havia notificado cada uma das famílias alertando-as de que, no último dia daquele mês, os caminhões de mudança encostariam na porta de suas casas. Embora eu já tivesse superado aquele meu sentimento de culpa, o fato de eu ter conhecido um pouco do cotidiano daquela gente causava em mim grande perturbação; eu não parava de pensar no desmantelamento que a remoção causaria ao mundo que aquelas famílias haviam construído durante todos os anos de convívio.
Pela tarde, Ana Cleide me envia uma mensagem inesperada:
Aquela notícia me deixara com muita pena da neta da velha, pois, até onde eu sabia, as duas moravam sozinhas na casa. Fiquei me perguntando também por que razão não tive a coragem de procurá-la durante o adjutório para contar-lhe sobre aquela estranha experiência que vivi quando segui a tal menina por ela prenunciada. Só ela poderia me responder se toda aquela areia que levei para dentro do Uber era, ou não, proveniente do desfiladeiro. Mas agora, já era tarde, aquele segredo seguiria com ela dentro do caixão.
Chegamos ao velório por volta das oito e meia da noite. Havia grande movimentação dentro e fora da casa de Dona Anaildes. Todos os moradores da invasão, como também muita gente do setor, estavam ali para se despedirem da velha benzedeira contadora de causos.
p. 87Ao contrário dos velórios que estamos acostumados a assistir pela televisão, invariavelmente envoltos por uma atmosfera funesta, do tipo “juízo final”, naquele velório, apesar da natural tristeza provocada pela perda da velha amiga, as pessoas relembravam dos seus causos mais engraçados; alguns até tentavam imitá-la, arrancando gargalhadas dos presentes. Sobre a mesa da cozinha, e em outros cantos da casa, havia muita comida, bebidas e quitandas trazidas pelos vizinhos. As cantigas e rezas se misturavam ao linguajar descontraído. De um jeito simples e amoroso, aquelas pessoas davam uma verdadeira lição sobre como deveríamos dizer adeus às pessoas que amamos.
Lá pelas tantas, a neta de Anaildes vai até um dos quartos da casa e volta arrastando uma enorme caixa de papelão contendo dezenas daqueles saquinhos com areia:
— Atenção, pessoal! Vou deixar essa caixa aqui, perto da vovó Anaildes. Era desejo da vó que cada pessoa do coração dela levasse um de seus saquinhos como recordação. — anunciou a neta.
As pessoas passavam ao lado do caixão, apanhavam seu saquinho e se despediam da velha. Aquelas que dispunham de algum recurso deixavam dentro da caixa um pouco de dinheiro com a intenção de ajudar a neta.
Quando eu já estava me preparando para “sair à francesa”, notei que a neta de Anaildes caminha na minha direção:
— Oi Ton. Este saquinho aqui minha vó deixou para você.
Fiquei sem palavras. Aquele gesto me pegou de surpresa. Minha voz ficou embargada, quase não consegui agradecê-la.
Mas por que razão a velha teria me deixado aquele saquinho? Pensei, intrigado. Bobagem... talvez tenha sido só um saquinho que sobrou e a sua neta, por alguma razão, quis me agradar dizendo que a sua vó o havia deixado para mim, concluí.
Porém, ao retirar o saquinho do bolso de minha jaqueta para colocá-lo dentro do porta-luvas, senti que dentro dele havia alguma coisa além de areia. Imediatamente desfiz o laço e encontrei um pedaço de papel. Era uma folha de caderno, cuidadosamente dobrada em duas partes, formando uma janela em forma de um coração dividido ao meio. Os dois lados do coração foram desenhados com cola branca e preenchidos com areia, a mesma areia contida dentro do saquinho. Me fez lembrar daqueles bilhetes inocentes do tempo da escola. Abri as duas faces do coração e vi que guardavam uma mensagem que dizia: “Querido Ton, no próximo domingo, vá até a praça do ginásio de esportes para conhecer o seu propósito. Siga como o coração. Assinado, Anaildes”.
— Puta merda! — soltei um grito, tamanho fora o susto que levei. Imediatamente, todas as noias começaram a pipocar em minha mente: os prodígios de Mica; o desfiladeiro; a menina da calçada e as conversas de Dona Anaildes. Isso não é justo... pensei, atormentado.
Passei toda a madrugada pensando sobre o que fazer. Já era sábado. Eu tinha praticamente 24 horas para me decidir entre atender o pedido da velha ou tentar esquecer tudo aquilo de uma vez por todas. Até passou pela minha cabeça aceitar a sugestão de Pedro em buscar ajuda de um profissional de saúde. Mas o medo de receber um diagnóstico de esquizofrenia, ou coisa do gênero, me dissuadiu.
p. 88Continuei matutando até chegar a uma conclusão: eu precisava pôr um fim a tudo aquilo. E a melhor maneira seria encarar o fato de que não havia nada de paranormal ou mágico por trás de todos aqueles acontecimentos. Tudo não passava de uma obra do acaso. E as coisas que aquela velha me impusera, talvez fossem algo próximo a uma hipnose. Claro! Por que não pensei nisso antes? Ela era benzedeira. Quem sabe por simples prazer, ou até involuntariamente, ela não tenha me deixado hipnotizado? É isso! E aquele bilhetinho dentro do saco de areia não passava de uma traquinagem saída de uma mente adolescente, a neta de Anaildes.
Aliviado, decidi pôr o plano em ação: passar na casa de Ana Cleide, apanhá-la e passarmos todo o domingo o mais longe possível daquele setor. Esse seria o primeiro passo para enterrar toda aquela história.
Liguei o som do carro num volume bem alto na tentativa de espantar qualquer tipo de pensamento ligado a Dona Anaildes e às minhas outras noias.
Entrei no setor pela linha do ônibus e parei na padaria a fim de comprar algumas quitandas para a vó Tê; ela adora mané pelado. Dentro da padaria, na fila do caixa, encontrei Osório, aquele pedreiro que conheci no dia do adjutório. Trocamos algumas palavras, até que ele me cantou numa carona:
— Por acaso, o moço vai prô rumo da invasão? — prontamente me ofereci para levá-lo até lá.
No caminho, Osório mudou de ideia pedindo-me para que eu o deixasse num outro ponto do setor, algumas quadras antes da invasão. Ele me guiou até o ponto pretendido e, quando parei o carro para deixá-lo, não acreditei no que vi: havíamos parado bem em frente ao ginásio de esporte, justamente na tal praça indicada no bilhete. Bobagem... mais outra obra do acaso, pensei.
Osório desceu, nos despedimos, mas não consegui arrancar com o carro de imediato. Permaneci ali, com as duas mãos sobre o volante, observando toda a paisagem. Pensei em descer do carro, ir até o centro da praça e gritar bem alto: Tá vendo só! Tudo não passa de uma bobagem da minha imaginação! Mas tive medo. Naquele momento, me veio à mente uma provocação que meu pai costumava me fazer toda vez quando sentia que eu estava fraquejando: “Erivelton, você é um homem ou um saco de batatas?!” Eu detestava quando ele fazia aquilo comigo.
Instintivamente, desci do carro ganhando o calçamento da praça. Não havia ninguém, faltavam alguns minutos para às sete horas e o ginásio ainda estava fechado. Sentei em um dos bancos e fiquei apreciando as pichações nas paredes externas do ginásio.
Não havia nada suspeito. Ninguém por perto me olhando, nada, nenhum sinal. Por quanto tempo mais eu deveria permanecer ali? Decidi, então, confrontar a minha própria consciência: tá vendo só? Tudo não passa de uma grande bobagem! Esqueça tudo isso e siga a sua vida Erivelton. Do contrário, vai acabar num hospício! É isso que você quer? Pense na Ana Cleide e no seu emprego. Pare com essa noia de uma vez por todas! Pô. É isso mesmo! Vai se foder noia, você perdeu!
p. 89Ufa, finalmente. Aquela batalha me deixou aliviado e decidido a voltar para o carro e seguir para a casa de Ana Cleide.
Levantei-me do banco, retirei as chaves do bolso e comecei a andar em direção ao carro. A poucos metros do veículo, entretanto, um vendedor de picolé interrompe o meu caminho me fazendo parar:
— Olha o picolé! Compra um aí moço.
— Não. Obrigado. Acho que ainda estou mais a fim de um café. — tentei despistá-lo.
— Tem de coco queimado.
Incrível! Ele foi dizer logo do sabor que eu mais gostava. Ainda assim, o agradeci.
— Se você vir o picolé, vai querer comprá-lo. Eu garanto. — provocou o picolezeiro.
— Hoje não, senhor. Muito obrigado. Outro dia tá? — enfatizei para dissuadi-lo de vez.
— Me ajuda aí, tô passando por dificuldades moço. — implorou.
Aquele seu pedido me tirou o chão. Decidi ajudá-lo.
—Tudo bem. Me vê aí, então, um de coco queimado.
— Escolha o senhor mesmo. — disse o picolezeiro retirando a tampa da caixa térmica.
p. 90Geralmente, os picolezeiros não gostam que os fregueses remexam o estoque de seus carrinhos. Este, talvez, estivesse tentando me agradar, já que, praticamente, me forçou a comprar.
De dentro da caixa térmica provinha um frescor delicioso. Contudo, não vi lá dentro picolé algum. Minha reação foi instantânea:
— Não vejo nenhum picolé aqui. O senhor tá querendo me fazer de bobo? É alguma pegadinha?
— Não senhor! Os picolés estão todos aí dentro. Pode procurar direitinho que senhor vai achá-los — respondeu o picolezeiro.
Voltei novamente o olhar para dentro do carrinho. O interior da caixa estava gelado, mas não havia picolé algum. Estiquei, então, o meu braço até tocar o assoalho da caixa térmica. Assim que os meus dedos tocaram o assoalho, um estranho círculo se ascendeu esboçando em seu interior um complicado traçado com formas geométricas. Afastei-me do carrinho, encarei o picolezeiro e tentei me controlar:
— Olha aqui senhor, se me contar por que está fazendo isso comigo, prometo que vou tentar entendê-lo. Só não tente me fazer de bobo. O senhor está me compreendendo?
O picolezeiro não disse uma só palavra. Com toda calma do mundo, pediu-me licença, enfiando o braço dentro do carrinho.
— Toma aqui, é de coco queimado. — disse o homem me entregando o picolé.
Fiquei visivelmente transtornado. Não sabia se pedia desculpas a ele, se abria a embalagem do picolé, se voltava a olhar dentro do carrinho, ou se pegava a minha carteira para pagá-lo.
— Fique tranquilo, Ton. — disse o Picolezeiro. — Aprecie o picolé, depois conversamos.
— Como sabe o meu nome? — perguntei assustado.
— Diz primeiro o que viu dentro do carrinho que o deixou tão confuso, que depois lhe conto como sei o seu nome.
— Posso até contar, mas o senhor não vai acreditar em mim.
— Pois conte mesmo assim.
— Vi um círculo luminoso com vários traçados dentro. Agora é a sua vez, como sabe o meu nome?
— Ton, você possui uma marca.
— Marca?! Como assim?
— Vocês as chamam de pinta.
— Sim, devo ter muitas pintas, acho que quase todas as pessoas têm pintas pelo corpo, e daí?
— Trata-se de uma pinta que você carrega em seu cotovelo direito.
— Não me venha com essa, o senhor deve ter a visto no momento em que me debrucei sobre o seu carrinho.
— Ha, ha, ha, ha.
— Qual é a graça? Por que está rindo? — perguntei, enfezado.
— Desculpe. Não pude resistir. É que cada um de vocês tem uma reação diferente. E você está com uma cara muito engraçada.
— O senhor está tentando me deixar confuso, não é mesmo?
— Nada disso. Vou lhe dizer o que deverá fazer.
— Espere um momento, você ainda não me disse como sabe o meu nome!
— Vou dizer. Eu prometo. Mas, antes, vou pedir-lhe que encontre uma boa lente de aumento para que observe essa pinta que carrega em seu cotovelo direito. Após observá-la, volte aqui que estarei à sua espera para lhe contar tudo. Até breve, Ton. — disse o picolezeiro, se afastando lentamente.
Meu Deus! Será que estou sofrendo algum tipo esquizofrenia? Pensei, desesperado. Seja como for, não vou comentar nada disso com ninguém.
p. 91Apanhei Ana Cleide e passamos a maior parte do domingo dentro de um shopping: fomos ao cinema; tomamos sorvete e visitamos todas as vitrines possíveis. Queria manter a minha mente completamente ocupada, na esperança de não pensar no que ocorrera entre mim e aquele picolezeiro maluco em frente ao ginásio de esporte.
No entanto, todo aquele meu esforço foi inútil. Na primeira vez que precisei ir à toalete, não resisti: parei em frente ao espelho, girei o meu braço direito o máximo que pude na tentativa de localizar a tal pinta descrita pelo picolezeiro. E lá estava ela, uma pequena pinta, quase imperceptível, bem no centro do meu cotovelo. Minha reação foi instantânea: passei a minha unha, diversas vezes, sobre ela, na esperança de que se tratasse de uma sujeira incrustrada na pele, ou algo do gênero. Não saía, era mesmo uma pinta.
Após aquela infeliz constatação, foi muito difícil esconder de Ana Cleide o meu semblante atormentado.
E na segunda-feira, a primeira coisa que fiz foi ir até uma loja de produtos hospitalares para comprar uma boa lupa. Eu precisava me livrar daquela noia.
— Bom dia. Como posso ajudá-lo?
— Preciso de uma boa lupa. Uma daquelas que aumenta bastante.
— Ok, mas qual o alcance que deseja obter com a lente? — perguntou a atendente.
— Bem, quero, por exemplo, enxergar o interior de uma pequena pinta na pele.
— Ok. O senhor é dermatologista?
— Não. Sou apenas um curioso, entende? Gostaria de uma lente que me mostrasse, com boa resolução, pequeninas coisas, como por exemplo, insetos, grãos de areia, etc.
— Ah, sei. Neste caso, uma lupa não vai lhe atender. Mas eu tenho exatamente o aparelho de que precisa: um microscópio lupa lente celular, digital, USB, com aumento de mil vezes. Com ele, o senhor vai poder ver todos os insetos que quiser, com uma resolução incrível, e ainda poderá capturar as imagens para armazená-las. É um aparelho muito fácil de usar — continuou a vendedora —, qualquer criança consegue, é só instalar o software, conectar o cabo OTG ao celular e pronto. Você conseguirá imagens fantásticas!
— E este microscópio é muito caro?
— De jeito nenhum! E hoje ele está em promoção aqui na nossa loja. Você não vai acreditar, posso fazê-lo por duzentos reais, em até dez pagamentos sem juros!
— Tudo bem. Vou levá-lo.
Voltei para a quitinete e, mais do que depressa, li as instruções para o uso do aparelho, instalei o software e conectei o cabo do microscópio ao meu laptop. Tudo pronto. Agora, só faltava fazer um teste.
Por um momento fiquei receoso em apontar a lente do microscópio na direção da minha pinta. Depois, pensei: que bobagem todas essas coisas, saquinhos de areia; picolezeiro e círculo luminoso. Tudo isso não passa de mais uma peça que a minha mente estressada está me pregando.
Naquele momento, vi caminhando sobre o teclado do laptop uma pequenina formiga. Não pensei duas vezes: comprimi a coitadinha com a ponta do meu dedo indicador colocando-a sobre a mesa. Mirei a lente do microscópio sobre ela e fiquei espantado com as imagens captadas. A formiguinha, ou, pelo menos o que havia dela sobrado, surgiu na tela do laptop com uma resolução impressionante. Sua anteninha, tão imperceptível a olho nu, parecia mais com um caule de uma roseira. Agora era a hora da pinta.
p. 92Posicionei o meu braço encostando o bico do microscópio sobre a pinta. Olhei, então, para a tela do laptop e não havia nada além de um fundo de cor cinza escuro. Ufa! Graças a Deus... eu sabia que tudo não passava de mais um surto imaginativo.
Porém, ao afastar a ponta do microscópio que estava sobre a pinta, tive a sensação de ter visto surgir na tela do laptop, por uma fração de segundo, uma cor esverdeada. Deve ser o fundo de tela padrão do novo software instalado, pensei. Por via das dúvidas, reposicionei o cotovelo sobre a mesa e fui aproximando, lentamente, o bico do microscópio sobre a pinta:
— Puta que o pariu! — soltei um berro. A tela mostrava, com uma nitidez espantosa, o mesmo círculo esverdeado cintilante contendo as mesmas figuras geométricas que vi surgir do assoalho da caixa térmica do carrinho de picolé.
Fiquei completamente embasbacado. Fiz dezenas de testes: aproximei e afastei, por diversas vezes, a lente da pinta; reiniciei o computador e capturei dezenas de fotos do estranho círculo.
Depois, corri até a pia da cozinha, abri a torneira e esfreguei meu cotovelo com bastante detergente. Voltei para o laptop e repeti os mesmos procedimentos. E lá estava o círculo, ainda mais cintilante.
Havia algo de familiar nos traçados daquele círculo, só não conseguia saber o que era. Lembrei-me, então, de uma colega da faculdade, a Kate. Ela era muito ligada em tudo o que era esotérico, paranormal e ufológico. Eu adorava conversar com ela sobre essas coisas. Será que eu ainda tinha o número de seu celular?
p. 93Isso explicava aquela minha vaga lembrança. Um agroglifo... eu sabia muito bem o que era um agroglifo. Mas, ao contrário de Kate, nunca me interessei em estudá-los.
Mas, por que razão alguém faria um agroglifo em meu cotovelo, ainda mais daquele tamaninho?! Só havia uma coisa a fazer: voltar até a praça do ginásio e me encontrar com aquele picolezeiro.
Dirigi tenso até à praça. Desci do carro e me sentei no mesmo banco. O ginásio estava aberto e, dentro dele, algumas crianças jogavam futebol. Decidi entrar, na esperança de encontrar o picolezeiro, mas ele não estava lá. Voltei para o banco.
Que loucura, pensei angustiado: em plena segunda feira, em vez de estar trabalhando, estava ali, em frente a um ginásio de esportes, tentando encontrar um picolezeiro que descobriu uma pinta em meu cotovelo cujo formato é de um agroglifo. Será que todas essas coisas que vêm me acontecendo só estão na minha imaginação?
Claro que não! Por que não pensei nisso antes?! Agora tenho o microscópio, a pinta em meu cotovelo e dezenas de imagens capturadas. Eram as provas de que não estava ficando louco. Tudo o que eu precisava fazer era mostrar para o Pedro e para a Ana Cleide; eles seriam obrigados a acreditar em mim.
Saber que eu poderia provar a minha sanidade mental me deixava mais aliviado. Contudo, se eu mostrasse essas provas para Pedro e Ana Cleide, isso despertaria neles o mesmo desejo, incontrolável, que eu estava sentindo: de entender o porquê daquela pinta em meu cotovelo. Eu temia também que tal revelação pudesse afastar Ana Cleide de mim.
Naquele mesmo instante, Biscoito, o cãozinho de Mica, se aproxima veloz e salta sobre o meu colo:
— Biscoito?! O que está fazendo aqui? Quem está com você, o Mica? Você fugiu, é?
Até que surge o picolezeiro:
— Bom dia, Ton. Vai um de coco queimado?
— Precisamos conversar agora! — interpelei-o, exaltado.
— Eu sei. — disse o picolezeiro calmamente.
Assim que vê o picolezeiro, Biscoito desce do meu colo e salta sobre os seus braços, me deixando ainda mais confuso.
— Calma Zig, vá dar uma volta pela praça. Agora o tio Arkten precisa conversar com o jovem Ton. — ordenou o picolezeiro.
— Zig?! Esse é o Biscoito! O cachorro do Mica, meu sobrinho. E como é mesmo o seu nome?
— Arkten. — respondeu o picolezeiro. —. Meu nome é Arkten. Ao seu dispor.
— Então, Sr. Arkten, comece falando sobre a pinta em meu cotovelo, por favor.
— Ah sim, a marca. Bem, você não é o único a possuir essa marca. Muitos as carregam durante toda a vida, mas acabam morrendo com elas sem sequer serem notados. Outros, como é o seu caso, as fazem despertar. E é aí que entra em cena o Zig, que você e o Mica, carinhosamente, chamam de Biscoito.
— Espere aí, não tô entendendo nada do que está me dizendo. O que tem a ver o Biscoito com a minha pinta?
— Jovem Ton. Sei que está confuso, mas se continuar a me interromper tornará as coisas ainda mais difíceis para nós. Neste caso, sugiro que me escute, calmamente, sem me interromper. Consegue fazer isso?
p. 94— Sim. Desculpe.
— Bem, onde foi mesmo que paramos? Ah, sim, no Zig. Essa minha memória, como vocês costumam dizer aqui na Terra, tem me “deixado na mão”. Também, não é pra menos, quando a gente passa dos seiscentos... Mas, continuemos;. O Zig é aquilo que vocês costumam chamar de “cão farejador”. Nós o treinamos para farejar as marcas que despertam. A marca que carrega em seu cotovelo, jovem Ton, não é uma simples pinta, como já pôde perceber; ela é uma passagem.
— Passagem?!
— Ton, você prometeu não me interromper, lembra?
— Desculpe-me.
— Sim. Uma passagem. Sob determinadas condições, que explicarei mais adiante, essas marcas se tornam ativas. Então, nossos caçadores de passagens, no caso aqui, o Zig, recebe a importante missão de localizá-las e monitorá-las. Você recebeu a marca da passagem logo que nasceu. Milhares de recém-nascidos as recebem também. Contudo, elas só se tornam ativas sob condições muito especiais. Em linhas gerais, uma marca só é ativada quando o seu portador, ao se relacionar com um tipo muito específico de comunidade, consegue alcançar certas percepções e despertar determinados sentimentos. Devo, inclusive, parabenizá-lo, pois, entre um portador e um condutor há uma grande distância a percorrer. Você é o que chamamos de condutor: pessoas que, durante a experiência de vida na Terra, tornam-se capazes de desenvolver um tipo de sensibilidade compreensiva. E foi exatamente isso que nos mostrou ao se relacionar com a comunidade da invasão. Agora, calma! Sei que está atormentado e que tem um monte de perguntas para me fazer. Vou responder a cada uma delas. Portanto, respire fundo, e comece.
— Quem são vocês? O que especificamente querem de mim? O que o pessoal da invasão tem a ver com essa história? Desde quando vocês me monitoram? Mica, Ana Cleide e Dona Anaildes também estão envolvidos?
— Pensei que fosse me fazer uma pergunta de cada vez, mas tudo bem, começarei pelas mais fáceis: você começou a ser monitorado desde o momento em que a sua marca deu o primeiro sinal de ativação. Isso aconteceu quando algumas centelhas cósmicas acenderam em você durante suas andanças pela periferia. Ainda era um sinal fraco, mas, achamos que tinha potencial. Então, implantamos o Zig no corpo do Biscoito, a fim monitorar o seu sinal. Quanto a sua namorada, a Ana Cleide, não a envolvemos. O que aconteceu entre vocês dois foi pura casualidade seguida da natural troca química entre jovens humanos. Já a criança, o “Mica”, o submetemos a um processo hipnótico, a fim de provocar, antecipadamente, o despertar de algumas de suas capacidades extrassensoriais inatas. Precisávamos criar uma trama paranormal que te envolvesse completamente. Só assim nos seria possível acompanhar, medir e avaliar suas reações e percepções em relação aos fatos protagonizados pelo menino. Tal exercício nos permitiu saber se você possuía níveis satisfatórios de certas capacidades e sensibilidades. Quanto a Dona Anaildes, bem, ela era eu o tempo todo, quer dizer, até dois dias antes de seu velório quando abandonei o seu corpo. Eu a abduzi a fim de acompanhá-lo durante as projeções que fizemos em sua mente dos enigmas que experimentou: o desfiladeiro, a menina da calçada, a areia no tênis do Mica, o mapa mental que ele fez a partir das plantas, a contração do tempo no dia em que conheceu a Dona Anaildes e tantos outros. E olha, devo dizer que você se saiu muito bem! Agora, quem somos, o que queremos de você, e o que o pessoal da invasão tem a ver com tudo isso, exigirá respostas mais complexas.
p. 95— Então, foi por isso que o Mica ficou desaparecido por vários dias e retornou intacto. Foi você quem o raptou para submetê-lo à hipnose, não é mesmo?
— Na mosca! Sim, fomos nós. E olha, descobrimos potências espirituais incríveis naquele menino. Ele pertence a uma novíssima geração de encarnados cujas missões que carregam são de extrema importância para o processo de regeneração do seu planeta. Nós os chamamos de avatares iluminados.
— E a Dona Anaildes, foi você quem a matou?
— Assim você me deixa ofendido, Ton. Claro que não! Eu apenas abandonei o corpo da velha no momento em que pressenti que a hora dela estava chegando. A Causa Mortis, como vocês gostam de dizer, foi só um evento cardiovascular ocorrido durante o sono, algo muito comum entre os idosos de sua espécie. Por isso precisei migrar para o corpo deste simpático picolezeiro; achei que seria um bom e refrescante disfarce. Mas, não se preocupe com ele, o deixarei em breve, e logo ele voltará a berrar pelas ruas: “olha o picolé! ”. Tudo bem até agora? Podemos continuar? Aceita um picolé de coco queimado para se refrescar?
— Sim. Vou aceitar, obrigado.
— Agora, sobre quem somos — continuou Arkten —, há muitas coisas que ainda não temos permissão de contar a vocês. Contudo, posso adiantar que o mais próximo que vocês chegaram de nos conhecer deu origem a uma rica literatura, um pouco romântica eu diria, sobre uma raça alienígena a qual vocês denominam Arcturianos. Sim, somos muito antigos e pertencemos a uma outra dimensão; isso é fato. Quanto ao que queremos de você, é muito simples: você agora é um condutor cósmico, portanto, deverá conduzir pessoas para outras dimensões que delas necessitam, como um motorista de ônibus, entende? Só que, no lugar de um ônibus, você usará a sua marca. Ela, no momento certo, se encherá de energia cósmica e se expandirá até ficar com vários metros de diâmetro formando uma passagem.
— Vocês sequestram seres humanos e os levam para outros planetas? Tipo abdução? É isso que querem de mim, que eu seja cúmplice em um rapto coletivo?!
— Abduzir para raptar, fazer experiências com os corpos, espalhar o mau entre os terráqueos, enfim, tais práticas não combinam nenhum pouco com o que a nossa espécie faz, jovem Ton. Deixemos tais ideias fantasiosas para os filmes hollywoodianos de ficção e para a mídia ufológica sensacionalista. É impressionante como esses caras ainda não aprenderam nada sobre os seres de outras dimensões...
— Mas não foi o senhor mesmo quem acabou de dizer que conduzirei pessoas para outras dimensões?
— Sim.
— Então?! O senhor deve saber muito bem que tirar pessoas de seus mundos e levá-las para mundos desconhecidos causam nelas profundos, e irreversíveis, processos de desestruturação, não é mesmo?
— Sim. Sabemos. É foi justamente por ter se sensibilizado com o eminente processo de transposição daquelas famílias que as suas vibrações nos alcançaram.
— Neste caso, o que estão propondo é um tremendo contrassenso: vocês estão querendo fazer com elas o mesmo que a construtora já está fazendo! É isso mesmo, ou estou engando?
— Está enganado.
— Como?!
p. 96— Isso é uma longa história. Vou contar a você. Mas, antes, aceita mais um picolé de coco queimado?
— Sim. Obrigado.
— Já que é um geógrafo, vou começar pela seguinte pergunta: qual é a idade aproximada do planeta onde nos encontramos agora?
— Bem, até onde sabemos, os estudiosos estimam que a idade da Terra é de aproximadamente 4,5 bilhões de anos.
— Muito bem. E a sua espécie, a do Homo sapiens, qual é a idade estimada?
— Os estudos mais atualizados têm evidenciado que os Sapiens apareceram entre 200 e 300 mil anos atrás, bem na época do Pleistoceno superior do período Quaternário, da época Cenozoica.
— Parabéns! Vejo que não se esqueceu das lições sobre tempo geológico. Então me responda: se pegarmos a idade geológica da Terra e a reduzirmos a um período relativo a um dia, ou seja, 24 horas, proporcionalmente, em que momento do correr desse dia teria surgido a sua espécie Sapiens?
— Sei a resposta: nesta comparação os Homo sapiens teriam aparecido somente nos últimos 3 segundos deste dia.
— Muito bem! Imagine, agora, se fizéssemos o mesmo exercício só que substituindo os 300 mil anos de idade dos Homo sapiens pela expectativa de vida de um ser humano atual, que é de 75 anos. Imaginou? Então responda-me: dentro desse longo dia de 24 horas, qual seria o tempo de existência de um humano sobre a Terra?
— Não faço a menor ideia.
— Neste caso, eu respondo: Em comparação à temporalidade do seu planeta, um humano tem um tempo de vida equivalente a um milionésimo de bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo.
— Incrível! Mas o que essas comparações entre escalas de tempo têm a ver com a ideia de conduzir o pessoal da invasão para outra dimensão?
— Tenha paciência, jovem Ton, já vamos chegar lá. Outra pergunta: na sua opinião, quais seriam os acontecimentos extremos capazes de levar a sua civilização ao colapso e, por conseguinte, à extinção?
— Deixe-me ver, são muitos: a queda de um grande asteroide sobre a Terra; a invasão de uma raça alienígena superior e hostil; alterações climáticas severas; pandemias; guerras intercontinentais e a degradação de nossos ecossistemas terrestres e aquáticos.
— E quais desses seis acontecimentos já estão em curso?
p. 97— Bem, deixando de fora a queda de um grande asteroide, já que não podemos prever com precisão tal evento, e a invasão de uma raça alienígena hostil, que imagino não ser o caso da sua, posso afirmar que os outros quatro acontecimentos já estão em curso há muito tempo. Veja: atualmente, mudanças climáticas já afetam todo o nosso planeta. Tais mudanças estão relacionadas a enormes quantidades de gases causadores do chamado efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2), que nós, os humanos, lançamos, diariamente, na atmosfera. Como resultado, conseguimos provocar um aquecimento global com sensíveis alterações nas temperaturas médias da superfície da Terra, dos oceanos e das camadas de ar próximas à superfície do planeta. Quanto às pandemias, elas sempre estiveram entre nós, como foi o caso da peste bubônica que matou milhares de pessoas na Europa, durante o século XIV. E hoje, todo o planeta se encontra mobilizado tentando se livrar de uma pandemia provocada por uma doença infecciosa denominada covid-19. Embora a nossa medicina tenha avançado consideravelmente nas últimas décadas, o fato de todas as localidades do planeta estarem ligadas umas às outras por uma rede global de economia torna os efeitos de uma pandemia algo ainda mais impactante. Sobre as guerras intercontinentais, bem, o que eu poderia dizer? Na verdade, a humanidade nunca conheceu a paz. Desde a antiguidade, passando pelo período medieval, até os dias de hoje, os povos da Terra sempre lutaram entre si. Guerras maiores, como a primeira e a segunda guerras mundiais, no século XX, ceifaram centenas de milhares de vidas. Guerras menores acontecem a todo o momento. Agora mesmo, enquanto falamos, há aproximadamente trinta conflitos pelo mundo, com destaque para a guerra entre Rússia e Ucrânia, cujos interesses envolvidos podem afetar toda a ordem mundial. O maior risco de uma guerra intercontinental atualmente é o enorme arsenal de armas nucleares que possuem as grandes potências, como Rússia, EUA, China, entre outras. O potencial destrutivo dessas armas é capaz de exterminar, por completo, toda a vida existente em nosso planeta. Quanto à degradação dos ecossistemas, nossa biosfera vem sofrendo, e de forma acelerada, uma elevadíssima e irreparável perda de sua biodiversidade. São muitos e complexos os fenômenos socioeconômicos responsáveis pelos processos de degradação ambiental. Mas o século XX, em particular, desponta como sendo o campeão da destruição. Durante este século, as populações de humanos experimentaram uma verdadeira inversão em suas maneiras de habitarem o planeta. Trata-se do conhecido processo de migração do campo para a cidade. Tal fenômeno fez surgir pelo mundo centenas de cidades com mais de um milhão de habitantes e dezenas de outras com mais de vinte milhões de habitantes; todas elas apresentando elevados índices de degradação ambiental e vulnerabilidade da população. Assim, chegamos no século XXI com mais da metade da população mundial vivendo em espaços urbanos. E no caso de alguns países da América Latina, como o Brasil, aproximadamente 81% de sua população já é urbana . Tal inversão na maneira de ocupar o planeta, entretanto, foi motivada por um outro fenômeno de inversão ainda mais violento em termos da degradação ambiental e vulnerabilidade social que causou. Trata-se da substituição de um modelo de agricultura local, familiar e camponesa, por um outro do tipo industrial, denominado agronegócio. Tal substituição de um modelo pelo outro foi chamado de “revolução verde”. Iniciou-se na década de 1940, se consolidando nos anos 1970. Suas principais características foram a mecanização das práticas agrícolas e o uso indiscriminado de fertilizantes químicos e pesticidas. Para se ter uma ideia, entre os anos de 1970 e 2008 o planeta sofreu uma redução na ordem de 30% de sua biodiversidade. Segundo seus precursores, a “revolução verde” iria acabar com a fome no mundo. Autoridades da ONU assinalaram que só no ano de 2007, quando a população mundial chegava a 7,2 bilhões de pessoas, o agronegócio havia produzido uma quantidade de alimentos capaz de alimentar 12 bilhões, ou seja, o novo modelo de produção agrícola provou ser capaz de alimentar quase o dobro de toda a população de humanos. Apesar disso, curiosamente, essas mesmas autoridades se perguntavam por que, então, com tanta abundancia de alimentos, um em cada oito habitantes do planeta passava fome? O fato é que tal sistema agroalimentar capitalista transformou alimentos em mercadorias, expulsou do campo as comunidades camponesas tradicionais, impôs um sistema de monocultura agroexportador, altamente destrutivo do meio ambiente, privatizou a agricultura e a terra concentrando, assim, a riqueza nas mãos de algumas poucas pessoas, entre elas os donos de megacorporações fabricantes de maquinários, fertilizantes, pesticidas, sementes e de grandes redes de supermercados. São essas pessoas que passaram a decidir, por exemplo, o que produzir, como e onde produzir, como e quem pode distribuir a produção, quem deve vender e a que preço. Assim, a existência de tal império agroalimentar explica não somente a grande migração do campo para a cidade, mas, também, o desemprego, a fome, a violência nos grandes centros urbanos, a devastação de florestas e a poluição e diminuição dos mananciais.
p. 98— Muito bom! Jovem Ton. Essa sua resposta, tão esclarecedora, o qualifica ainda mais para a missão que está prestes a cumprir. Agora, me responda: você sabia que há em todo o universo centenas de milhares de planetas habitados, cada qual contendo diferentes tipos de seres inteligentes, e cada um desses diferentes tipos de seres inteligentes criando suas próprias maneiras de relacionarem entre si e com os seus respectivos ambientes, exatamente como vocês fazem aqui na Terra?
— Bem, embora eu nunca tivesse tido a chance de comprovar tal possibilidade, eu numa deixei de acreditar.
— Isso é ótimo! E se eu te disser que todos esses planetas também são nossas moradas, e que, ao longo de nossa infinita existência cósmica, poderemos conhecer e habitar muitíssimos desses planetas. O que me diz?
— Ora, se eu acredito na existência de todos esses mundos habitados, não poderia duvidar da possibilidade de também poder acessá-los. E caso eu não esteja completamente alucinado, você é a prova cabal disso, não é mesmo?
— Bem, quanto ao fato de estar, ou não, alucinado, pode perguntar isso ao seu cotovelo. Ha ha ha! Desculpe-me, foi só uma brincadeira. Aliás, a sátira é uma das práticas que mais aprendi a admirar entre vocês terráqueos.
— E parece que aprendeu rápido...
— Obrigado. Bondade sua. Mas voltemos ao que nos interessa. Uma coisa essencial que precisa saber: entre esses milhões e milhões de planetas habitados, em um número significativo deles, suas populações passam por um grave risco de extinção, devido, exatamente, ao mesmo infortúnio pelo qual passa seu planeta, ou seja, o uso inadequado de seus ecossistemas. E é justamente neste ponto que entram em cena você e as famílias da invasão.
— Como assim, eu e as famílias da invasão?! Explique melhor isso, por favor!
— Tente se controlar, Ton. Tudo fará sentido a partir daqui. — prosseguiu Arkten.— Pois bem, considerando a existência de milhões e milhões de planetas habitados, que são também nossas moradas cósmicas e que muitos deles passam por um drama socioambiental semelhante ao que atualmente passa a Terra, e, considerando também que o tempo médio de vida de cada terráqueo, em comparação ao tempo geológico de seu planeta, não passa de um milionésimo de bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo, pergunto-lhe: quais as chances que um terráqueo possui de poder participar de uma missão tão gloriosa como a de ajudar outros irmãos cósmicos a modificarem suas escolhas adaptativas evitando assim, o colapso fatal de suas civilizações?
— Bem, eu diria zero chance. A menos que, após cumprir com a sua tão ínfima passagem pela Terra, pudesse renascer em um desses planetas e, assim, participar de tal missão.
— É aí que está o nó da questão, jovem Ton. Quando é permitido a um irmão cósmico dar início a uma renovada existência, suas experiências acumuladas durante a sua existência anterior não o seguem. É como uma bagagem propositalmente deixada por um viajante em alguma das estações por que passou. É imprescindível que esse viajante cósmico, ao chegar na nova estação de destino, recomece a construir uma nova bagagem. Pois, somente durante os processos de construção de novas experiências é que se define qual deverá ser a próxima estação a seguir, entende?
p. 99— Deixe-me ver se entendi: as pessoas que serão conduzidas para esses tais planetas em crise precisarão desembarcar com todas as suas bagagens de experiências, certo? E para que isso aconteça deverão ser conduzidas com vida até esses planetas. É isso?
— Na mosca!
— Mas de que maneira as pessoas da invasão poderão ajudar essas populações a modificarem seus sistemas adaptativos?
— Essa sua pergunta nos leva à última e mais importante questão: como sabe, a característica mais importante da ecologia de seu planeta é a grande diversidade de vida. Ela é responsável não apenas pela autorregulação da temperatura da biosfera , mas também, e principalmente, pelo desenvolvimento integrado de sistemas complexos adaptativos e auto-organizados entre seres humanos, plantas e animais, respectivamente. E como deve também saber, jovem Ton — prosseguiu Arkten —, sob condições extremas plantas, animais e seres humanos colocam em funcionamento todo o potencial de suas estruturas para se manterem não apenas vivos, mas, acima de tudo, capazes de continuarem reproduzindo a si próprios . O que quero dizer com isso é que, desde o tempo em que os primeiros grupos de Homo sapiens começaram sua jornada adaptativa sobre a Terra, grupos específicos deles têm sido muito criativos, habilidosos e competentes no que diz respeito a suas incríveis façanhas de terem se mantido vivos e reprodutivos sob condições tão adversas do clima, independente do lugar e do período em que viviam. Quanto a isso — continuou Arkten —, basta olharmos para dentro da “pré-história” de vocês para constatar que os grupos responsáveis pelas maiores proezas adaptativas não estão entre aqueles da chamada “revolução neolítica da agricultura” e de sua consequente sedentarizarão, ocorrida por volta de 10 mil anos antes do presente. Ao contrário, os grupos que atingiram os mais altos níveis de adaptação e complexificação sociocultural são bem mais antigos; eles remontam o Pleistoceno superior, dos 40 mil anos atrás, exatamente durante episódios de extremos climáticos, com severas transições glaciais e interglaciais. Não fosse pelas proezas adaptativas desses grupos, provavelmente, sua espécie sequer teria alcançado o Holoceno . A esta altura, creio eu que o jovem Ton já compreendeu o sentido do que estamos prestes a realizar, não é mesmo? — provocou Arkten.
— Não tenho certeza, mas vou arriscar: seguindo o seu raciocínio comparativo. As famílias da invasão seriam como aqueles grupos humanos do Pleistoceno superior que perambulavam em busca de sobrevivência, altamente resilientes às condições ambientais adversas. Já as populações do neolítico, que não conviveram com variações climáticas extremas, seriam como as nossas populações urbanas de classe média, altamente dependentes das estabilidades climáticas, políticas e econômicas para se manterem no interior dos sistemas que elas mesmas criaram para si. Em resumo, as famílias da invasão, que também perambulam de um lugar para o outro, mesmo vivendo sob condições adversas de ampla vulnerabilidade social, ainda conseguem a proeza de se manterem vivas, reprodutivas e recriadoras de seus padrões socioculturais tradicionais com elevados níveis de inovação. Portanto, possuem as chaves para se alcançar uma “sustentabilidade adaptativa”, independente do lugar onde possam estar.
— Não faz ideia do quanto me fez feliz, jovem Ton. Mas me diga: como concluiu de maneira tão luminosa?
p. 101— Não foi tão difícil assim. À medida que descrevia as façanhas dos grupos humanos do Pleistoceno superior, em comparação aos do Holoceno, fui logo entendendo onde queria chegar, ou seja, mostrar a alta capacidade adaptativa desenvolvida pela população da invasão em comparação às condições de dependência e fragilidade adaptativa dentro das quais se acham submetidas as populações urbanas consideradas não vulneráveis.
— Entendi. Mas não subestime a sua capacidade, jovem Ton. Para nós, você conseguiu desenvolver uma habilidade especial que chamamos de sensibilidade compreensiva. Agora, me responda: ainda pensa que estamos cometendo um sequestro intergaláctico?
— Acho que não. Mas me responda você: desde quando vocês fazem esse tipo de intervenção?
— No seu planeta, desde o Pleistoceno.
— Por que, desde o Pleistoceno?
— É como eu havia lhe dito antes, há milhares de planetas habitados, cada qual comportando grupos humanos em estágios diferentes de desenvolvimento. Assim, grupos de humanos terráqueos do Pleistoceno superior, como esses que nos referimos há pouco, já foram muito necessários em planetas cujos ocupantes se achavam em um nível de desenvolvimento semelhante, porém, enfrentando um alto risco de desaparecimento, devido não terem desenvolvido sistemas adaptativos capazes de mantê-los vivos nas condições ambientais adversas em que se achavam. No caso das famílias da invasão — prosseguiu Arkten —, elas serão levadas para um planeta onde seus habitantes não apenas se encontram em um estágio de desenvolvimento semelhante ao de vocês, como também têm provocado níveis de degradação socioambiental análogos àqueles produzidos em seu planeta até o momento.
— Desculpe-me a digressão, mas não posso deixar de perguntá-lo: é por isso que há centenas de pinturas rupestres e outros tipos de registros arqueológicos, como petróglifos e estatuetas contendo representações de discos voadores e seres intergalácticos? Eram vocês o tempo todo?
— Ah, o tempo de meus avós, bons tempos eram aqueles... coitadinhos, ainda se deslocavam dentro daquelas “latas velhas”, e tinham que usar aqueles trajes pesados e sufocantes. Isso é nostálgico, sabia?
— Mais uma coisa: caso eu não aceite participar dessa transposição, tudo se acabará aqui nesta nossa conversa?
— O que está feito, está feito. Não depende mais da nossa vontade.
— Como assim?!
— Cada um de nós recebeu uma missão: Zig monitorou o seu sinal; Mica o envolveu numa trama paranormal para que fosse testado; você se tornou um condutor cósmico ao nos aproximar de uma comunidade de humanos que reúne as condições ideais; e eu, Arkten, cumprirei a minha missão de mensageiro intergaláctico enviando você e o grupo escolhido.
— Mas e se eu me recusar a comparecer ao momento da condução?
— Sinto muito. Se isso acontecer, o que é muito pouco provável devido ao seu nível de vibração, você comparecerá por meio de hipnose. Não se esqueça de que sou muito bom nisso!
— E se eu arrancar de meu cotovelo a marca da passagem?
— Não seja infantil. Ela é pura energia, está por todo o seu corpo. Se arrancá-la do cotovelo, imediatamente, ela ressurgirá em outro lugar de seu corpo. Se quiser arrancá-la agora, fique à vontade. Mas vou logo avisando: o novo lugar onde a marca deverá ressurgir em seu corpo será escolhido por mim. Ha, ha, ha. Desculpe-me, a sátira de vocês tem me contaminado.
p. 102— Realmente, você é muito engraçado para um ET. Mas me responda: o que acontecerá comigo quando a minha pinta se expandir?
— Você é um condutor, se lembra? Ônibus não circulam por aí sem um motorista, não é mesmo?
— Está tentando me dizer que eu também irei para o tal planeta em crise, é isso?
— Sim.
— Poderei levar Ana Cleide e a sua vó comigo, já que Mica e Glacylene também farão parte da travessia?
— Quanto a isso não se preocupe. Ana Cleide e a sua vó estarão entre os passageiros. Afinal, ambas estão ligadas àquela comunidade por meio de uma intrincada rede de memórias bioculturais comuns.
— E o que acontecerá àquelas pessoas da comunidade que, porventura, não estiverem próximas a mim no momento em que a minha marca se expandir criando a tal passagem, elas, simplesmente, “perderão o bonde”?
— Todas irão, independentemente de estarem próximas a você ou não.
— Como?!
— Todas essas pessoas já receberam suas permissões cósmicas, ou seja, já carimbaram seus bilhetes espirituais de viagem. No momento em que a passagem se abrir, suas energias vitais se conectarão à grande força de atração gerada pela passagem. Todos serão como ondas eletromagnéticas viajando pelo universo.
— Agora você me deixou confuso. Imaginava que a condução se daria por meio de um daqueles processos que a gente vê em filmes de ficção, sabe? A pessoa se desmaterializa num lugar e se rematerializa em outro muito distante. E os nossos corpos, para onde irão?
— Seus corpos? Ora, ficarão aqui, alojando seus espíritos e participando da missão existencial a qual se acham ligados.
— Agora você me deixou mais confuso ainda. Como poderemos estar lá, no Cosmo, e aqui ao mesmo tempo?
— Essa é uma questão um pouco mais complexa, mas sei que irá compreender. Então, preste bastante atenção: não podemos simplesmente retirar uma comunidade de um planeta e levá-la para outro. As experiências existenciais de cada ser humano se acham ligadas às de outros formando uma grande teia de experiências interligadas. São como turbilhões de acontecimentos interdependentes dando origem a uma verdadeira ecologia de relações interpessoais. Impedir ou interferir nessa dinâmica de experiências interpessoais pode significar o descarrilamento de milhares de trajetórias existenciais. Quando as pessoas se relacionam entre si durante suas trajetórias de vida, independentemente de ser um simples esbarrão dentro de um ônibus, um bate-papo casual, ou até o estabelecimento de laços afetivos, elas estão tanto exercendo seus livres-arbítrios como se afetando mutualmente na construção de seus próprios destinos. Veja, por exemplo, o seu caso: se você não tivesse conhecido a Ana Cleide, naquele dia, na casa da “vó Tê”, e se não tivesse exercido o seu livre-arbítrio ao tentar conquistá-la, certamente toda uma cadeia de acontecimentos e relações interpessoais derivadas do encontro entre vocês dois simplesmente deixaria de acontecer, ou aconteceria de maneira completamente diferente. Em outras palavras, eu não estaria aqui e agora, no corpo deste picolezeiro, assim como você não teria ascendido à condição de condutor cósmico. Por essa razão é que tomamos o cuidado de transferir somente parte da consciência dessas pessoas para outra dimensão, deixando, assim, que continuem cumprindo suas trajetórias existenciais no orbe terrestre.
p. 103— Mas essas consciências, quando chegarem lá, nessa outra dimensão, serão implantadas em habitantes de lá? Elas se lembrarão da vida que viviam aqui na Terra? Como pode ser isso?!
— Calma. Já irá entender. É como no ciclo natural de encarnação, desencarnação e reencarnação. Cada uma das consciências migradas reencarnará em uma criança recém-nascida de lá. Só que com uma diferença fundamental: tratar-se-á de uma reencarnação não prescindida de morte física, uma vez que seus corpos continuarão vivendo no planeta Terra. Por isso que apenas uma parcela de suas consciências habitará esses novos corpos.
— E como fica a parte das lembranças?
— Essa é a parte mais importante: a fração da consciência que migrará e reencarnará em um recém-nascido de lá, embora não seja capaz de fazer reacender na mente desse novo hospedeiro as lembranças das experiências vividas na Terra (ainda bem, pois tal proeza deixaria essa criança completamente alucinada), por outro lado, a dotará com as mesmas capacidades adaptativas desenvolvidas pelo seu avatar terráqueo. Assim, teremos conseguido produzir uma criança hibrida, ou seja, socializada no âmbito de sua cultura local e, ao mesmo tempo, capaz de dar respostas adaptativas positivas às condições ambientais adversas em seu planeta devido aquela fração da consciência terráquea que carrega.
— Neste caso, imagino que o Mica seria um bom exemplo dessas crianças hibridas, por isso você o chamou de avatar iluminado, não é mesmo?
— Parabéns, Ton! Você está pronto.
— Confesso que tudo isso me deixou muito atordoado. Pelo menos saber que continuarei junto de Ana Cleide aqui na Terra já me traz um grande conforto.
— Não é bem assim que funciona, Ton. Quando alguém se torna um condutor cósmico é porque a sua missão na sociedade onde vive já chegou ao fim.
— Como assim?!
— É simples: os condutores cósmicos são um tipo especial de avatar. Ao se transmutarem para outras dimensões, precisam abandonar, por completo, seus corpos terrestres.
— Tá tentando me dizer que eu partirei, conduzindo todas aquelas consciências e o meu corpo ficará aqui abandonado, sem vida, jogado ao chão? Será como morrer? Mas você não liga a mínima para o sentimento das pessoas, não é mesmo? Imagino que, para você, ver a Ana Cleide e o pequeno Mica chorando sobre o meu corpo seja apenas uma insignificante parte de sua missão gloriosa.
— Já terminou? — interrompeu Arkten, enfezado.
— Sim.
— Lembre-se de que não podemos interferir na sua trajetória existencial. Seu futuro é você quem constrói, apenas você. Ah, já ia me esquecendo, procure não se atrasar, a travessia deve se iniciar às 8 h, do dia 30, ou seja, depois de amanhã.