SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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O Picolé das galáxias

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Todas as manhãs, ao me despertar, permaneço deitado tentando organizar a minha agenda mental. Mas, invariavelmente, acabo misturando as tarefas que preciso resolver no dia com as outras que deixei de fazer, e também com aquelas já realizadas e que não surtiram o efeito esperado. Foi então que a lembrança de um evento me deixou muito angustiado: faltava menos de uma semana para a remoção do pessoal da invasão para a segunda etapa do residencial Nice View. A construtora havia notificado cada uma das famílias alertando-as de que, no último dia daquele mês, os caminhões de mudança encostariam na porta de suas casas. Embora eu já tivesse superado aquele meu sentimento de culpa, o fato de eu ter conhecido um pouco do cotidiano daquela gente causava em mim grande perturbação; eu não parava de pensar no desmantelamento que a remoção causaria ao mundo que aquelas famílias haviam construído durante todos os anos de convívio.

Pela tarde, Ana Cleide me envia uma mensagem inesperada:

Aquela notícia me deixara com muita pena da neta da velha, pois, até onde eu sabia, as duas moravam sozinhas na casa. Fiquei me perguntando também por que razão não tive a coragem de procurá-la durante o adjutório para contar-lhe sobre aquela estranha experiência que vivi quando segui a tal menina por ela prenunciada. Só ela poderia me responder se toda aquela areia que levei para dentro do Uber era, ou não, proveniente do desfiladeiro. Mas agora, já era tarde, aquele segredo seguiria com ela dentro do caixão.

Chegamos ao velório por volta das oito e meia da noite. Havia grande movimentação dentro e fora da casa de Dona Anaildes. Todos os moradores da invasão, como também muita gente do setor, estavam ali para se despedirem da velha benzedeira contadora de causos.

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Ao contrário dos velórios que estamos acostumados a assistir pela televisão, invariavelmente envoltos por uma atmosfera funesta, do tipo “juízo final”, naquele velório, apesar da natural tristeza provocada pela perda da velha amiga, as pessoas relembravam dos seus causos mais engraçados; alguns até tentavam imitá-la, arrancando gargalhadas dos presentes. Sobre a mesa da cozinha, e em outros cantos da casa, havia muita comida, bebidas e quitandas trazidas pelos vizinhos. As cantigas e rezas se misturavam ao linguajar descontraído. De um jeito simples e amoroso, aquelas pessoas davam uma verdadeira lição sobre como deveríamos dizer adeus às pessoas que amamos.

Lá pelas tantas, a neta de Anaildes vai até um dos quartos da casa e volta arrastando uma enorme caixa de papelão contendo dezenas daqueles saquinhos com areia:

As pessoas passavam ao lado do caixão, apanhavam seu saquinho e se despediam da velha. Aquelas que dispunham de algum recurso deixavam dentro da caixa um pouco de dinheiro com a intenção de ajudar a neta.

Quando eu já estava me preparando para “sair à francesa”, notei que a neta de Anaildes caminha na minha direção:

Fiquei sem palavras. Aquele gesto me pegou de surpresa. Minha voz ficou embargada, quase não consegui agradecê-la.

Mas por que razão a velha teria me deixado aquele saquinho? Pensei, intrigado. Bobagem... talvez tenha sido só um saquinho que sobrou e a sua neta, por alguma razão, quis me agradar dizendo que a sua vó o havia deixado para mim, concluí.

Porém, ao retirar o saquinho do bolso de minha jaqueta para colocá-lo dentro do porta-luvas, senti que dentro dele havia alguma coisa além de areia. Imediatamente desfiz o laço e encontrei um pedaço de papel. Era uma folha de caderno, cuidadosamente dobrada em duas partes, formando uma janela em forma de um coração dividido ao meio. Os dois lados do coração foram desenhados com cola branca e preenchidos com areia, a mesma areia contida dentro do saquinho. Me fez lembrar daqueles bilhetes inocentes do tempo da escola. Abri as duas faces do coração e vi que guardavam uma mensagem que dizia: “Querido Ton, no próximo domingo, vá até a praça do ginásio de esportes para conhecer o seu propósito. Siga como o coração. Assinado, Anaildes”.

Passei toda a madrugada pensando sobre o que fazer. Já era sábado. Eu tinha praticamente 24 horas para me decidir entre atender o pedido da velha ou tentar esquecer tudo aquilo de uma vez por todas. Até passou pela minha cabeça aceitar a sugestão de Pedro em buscar ajuda de um profissional de saúde. Mas o medo de receber um diagnóstico de esquizofrenia, ou coisa do gênero, me dissuadiu.

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Continuei matutando até chegar a uma conclusão: eu precisava pôr um fim a tudo aquilo. E a melhor maneira seria encarar o fato de que não havia nada de paranormal ou mágico por trás de todos aqueles acontecimentos. Tudo não passava de uma obra do acaso. E as coisas que aquela velha me impusera, talvez fossem algo próximo a uma hipnose. Claro! Por que não pensei nisso antes? Ela era benzedeira. Quem sabe por simples prazer, ou até involuntariamente, ela não tenha me deixado hipnotizado? É isso! E aquele bilhetinho dentro do saco de areia não passava de uma traquinagem saída de uma mente adolescente, a neta de Anaildes.

Aliviado, decidi pôr o plano em ação: passar na casa de Ana Cleide, apanhá-la e passarmos todo o domingo o mais longe possível daquele setor. Esse seria o primeiro passo para enterrar toda aquela história.

Liguei o som do carro num volume bem alto na tentativa de espantar qualquer tipo de pensamento ligado a Dona Anaildes e às minhas outras noias.

Entrei no setor pela linha do ônibus e parei na padaria a fim de comprar algumas quitandas para a vó Tê; ela adora mané pelado. Dentro da padaria, na fila do caixa, encontrei Osório, aquele pedreiro que conheci no dia do adjutório. Trocamos algumas palavras, até que ele me cantou numa carona:

No caminho, Osório mudou de ideia pedindo-me para que eu o deixasse num outro ponto do setor, algumas quadras antes da invasão. Ele me guiou até o ponto pretendido e, quando parei o carro para deixá-lo, não acreditei no que vi: havíamos parado bem em frente ao ginásio de esporte, justamente na tal praça indicada no bilhete. Bobagem... mais outra obra do acaso, pensei.

Osório desceu, nos despedimos, mas não consegui arrancar com o carro de imediato. Permaneci ali, com as duas mãos sobre o volante, observando toda a paisagem. Pensei em descer do carro, ir até o centro da praça e gritar bem alto: Tá vendo só! Tudo não passa de uma bobagem da minha imaginação! Mas tive medo. Naquele momento, me veio à mente uma provocação que meu pai costumava me fazer toda vez quando sentia que eu estava fraquejando: “Erivelton, você é um homem ou um saco de batatas?!” Eu detestava quando ele fazia aquilo comigo.

Instintivamente, desci do carro ganhando o calçamento da praça. Não havia ninguém, faltavam alguns minutos para às sete horas e o ginásio ainda estava fechado. Sentei em um dos bancos e fiquei apreciando as pichações nas paredes externas do ginásio.

Não havia nada suspeito. Ninguém por perto me olhando, nada, nenhum sinal. Por quanto tempo mais eu deveria permanecer ali? Decidi, então, confrontar a minha própria consciência: tá vendo só? Tudo não passa de uma grande bobagem! Esqueça tudo isso e siga a sua vida Erivelton. Do contrário, vai acabar num hospício! É isso que você quer? Pense na Ana Cleide e no seu emprego. Pare com essa noia de uma vez por todas! Pô. É isso mesmo! Vai se foder noia, você perdeu!

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Ufa, finalmente. Aquela batalha me deixou aliviado e decidido a voltar para o carro e seguir para a casa de Ana Cleide.

Levantei-me do banco, retirei as chaves do bolso e comecei a andar em direção ao carro. A poucos metros do veículo, entretanto, um vendedor de picolé interrompe o meu caminho me fazendo parar:

Incrível! Ele foi dizer logo do sabor que eu mais gostava. Ainda assim, o agradeci.

Aquele seu pedido me tirou o chão. Decidi ajudá-lo.

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Geralmente, os picolezeiros não gostam que os fregueses remexam o estoque de seus carrinhos. Este, talvez, estivesse tentando me agradar, já que, praticamente, me forçou a comprar.

De dentro da caixa térmica provinha um frescor delicioso. Contudo, não vi lá dentro picolé algum. Minha reação foi instantânea:

Voltei novamente o olhar para dentro do carrinho. O interior da caixa estava gelado, mas não havia picolé algum. Estiquei, então, o meu braço até tocar o assoalho da caixa térmica. Assim que os meus dedos tocaram o assoalho, um estranho círculo se ascendeu esboçando em seu interior um complicado traçado com formas geométricas. Afastei-me do carrinho, encarei o picolezeiro e tentei me controlar:

O picolezeiro não disse uma só palavra. Com toda calma do mundo, pediu-me licença, enfiando o braço dentro do carrinho.

Fiquei visivelmente transtornado. Não sabia se pedia desculpas a ele, se abria a embalagem do picolé, se voltava a olhar dentro do carrinho, ou se pegava a minha carteira para pagá-lo.

Meu Deus! Será que estou sofrendo algum tipo esquizofrenia? Pensei, desesperado. Seja como for, não vou comentar nada disso com ninguém.

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Apanhei Ana Cleide e passamos a maior parte do domingo dentro de um shopping: fomos ao cinema; tomamos sorvete e visitamos todas as vitrines possíveis. Queria manter a minha mente completamente ocupada, na esperança de não pensar no que ocorrera entre mim e aquele picolezeiro maluco em frente ao ginásio de esporte.

No entanto, todo aquele meu esforço foi inútil. Na primeira vez que precisei ir à toalete, não resisti: parei em frente ao espelho, girei o meu braço direito o máximo que pude na tentativa de localizar a tal pinta descrita pelo picolezeiro. E lá estava ela, uma pequena pinta, quase imperceptível, bem no centro do meu cotovelo. Minha reação foi instantânea: passei a minha unha, diversas vezes, sobre ela, na esperança de que se tratasse de uma sujeira incrustrada na pele, ou algo do gênero. Não saía, era mesmo uma pinta.

Após aquela infeliz constatação, foi muito difícil esconder de Ana Cleide o meu semblante atormentado.

E na segunda-feira, a primeira coisa que fiz foi ir até uma loja de produtos hospitalares para comprar uma boa lupa. Eu precisava me livrar daquela noia.

Voltei para a quitinete e, mais do que depressa, li as instruções para o uso do aparelho, instalei o software e conectei o cabo do microscópio ao meu laptop. Tudo pronto. Agora, só faltava fazer um teste.

Por um momento fiquei receoso em apontar a lente do microscópio na direção da minha pinta. Depois, pensei: que bobagem todas essas coisas, saquinhos de areia; picolezeiro e círculo luminoso. Tudo isso não passa de mais uma peça que a minha mente estressada está me pregando.

Naquele momento, vi caminhando sobre o teclado do laptop uma pequenina formiga. Não pensei duas vezes: comprimi a coitadinha com a ponta do meu dedo indicador colocando-a sobre a mesa. Mirei a lente do microscópio sobre ela e fiquei espantado com as imagens captadas. A formiguinha, ou, pelo menos o que havia dela sobrado, surgiu na tela do laptop com uma resolução impressionante. Sua anteninha, tão imperceptível a olho nu, parecia mais com um caule de uma roseira. Agora era a hora da pinta.

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Posicionei o meu braço encostando o bico do microscópio sobre a pinta. Olhei, então, para a tela do laptop e não havia nada além de um fundo de cor cinza escuro. Ufa! Graças a Deus... eu sabia que tudo não passava de mais um surto imaginativo.

Porém, ao afastar a ponta do microscópio que estava sobre a pinta, tive a sensação de ter visto surgir na tela do laptop, por uma fração de segundo, uma cor esverdeada. Deve ser o fundo de tela padrão do novo software instalado, pensei. Por via das dúvidas, reposicionei o cotovelo sobre a mesa e fui aproximando, lentamente, o bico do microscópio sobre a pinta:

Fiquei completamente embasbacado. Fiz dezenas de testes: aproximei e afastei, por diversas vezes, a lente da pinta; reiniciei o computador e capturei dezenas de fotos do estranho círculo.

Depois, corri até a pia da cozinha, abri a torneira e esfreguei meu cotovelo com bastante detergente. Voltei para o laptop e repeti os mesmos procedimentos. E lá estava o círculo, ainda mais cintilante.

Havia algo de familiar nos traçados daquele círculo, só não conseguia saber o que era. Lembrei-me, então, de uma colega da faculdade, a Kate. Ela era muito ligada em tudo o que era esotérico, paranormal e ufológico. Eu adorava conversar com ela sobre essas coisas. Será que eu ainda tinha o número de seu celular?

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Isso explicava aquela minha vaga lembrança. Um agroglifo... eu sabia muito bem o que era um agroglifo. Mas, ao contrário de Kate, nunca me interessei em estudá-los.

Mas, por que razão alguém faria um agroglifo em meu cotovelo, ainda mais daquele tamaninho?! Só havia uma coisa a fazer: voltar até a praça do ginásio e me encontrar com aquele picolezeiro.

Dirigi tenso até à praça. Desci do carro e me sentei no mesmo banco. O ginásio estava aberto e, dentro dele, algumas crianças jogavam futebol. Decidi entrar, na esperança de encontrar o picolezeiro, mas ele não estava lá. Voltei para o banco.

Que loucura, pensei angustiado: em plena segunda feira, em vez de estar trabalhando, estava ali, em frente a um ginásio de esportes, tentando encontrar um picolezeiro que descobriu uma pinta em meu cotovelo cujo formato é de um agroglifo. Será que todas essas coisas que vêm me acontecendo só estão na minha imaginação?

Claro que não! Por que não pensei nisso antes?! Agora tenho o microscópio, a pinta em meu cotovelo e dezenas de imagens capturadas. Eram as provas de que não estava ficando louco. Tudo o que eu precisava fazer era mostrar para o Pedro e para a Ana Cleide; eles seriam obrigados a acreditar em mim.

Saber que eu poderia provar a minha sanidade mental me deixava mais aliviado. Contudo, se eu mostrasse essas provas para Pedro e Ana Cleide, isso despertaria neles o mesmo desejo, incontrolável, que eu estava sentindo: de entender o porquê daquela pinta em meu cotovelo. Eu temia também que tal revelação pudesse afastar Ana Cleide de mim.

Naquele mesmo instante, Biscoito, o cãozinho de Mica, se aproxima veloz e salta sobre o meu colo:

Até que surge o picolezeiro:

Assim que vê o picolezeiro, Biscoito desce do meu colo e salta sobre os seus braços, me deixando ainda mais confuso.

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