Passei três noites sem pregar os olhos, tentando entender o que teria me ocorrido antes de tomar aquele Uber. Tudo parecia tão real: a menina andando pela calçada, eu poderia jurar que a segui por horas; as imagens das células, era como se eu estivesse entre elas; e todos aqueles conhecimentos que ela me transmitiu, aquilo foi incrível!
Queria muito repartir aquela experiência com Pedro e Ana Cleide. Mas tive medo de que começassem a duvidar da minha saúde mental, pois ambos já haviam escutado minhas histórias sobre os prodígios de Mica e não deram a mínima. Pedro, então, até insinuou que eu estivesse passando por algum tipo de estresse psicológico.
E de toda aquela areia que ficara entranhada em minhas roupas e sapatos, consegui juntar uma pequena porção e, por precaução, a guardei dentro daquele saquinho de pano que a velha me dera.
Então, na semana seguinte, decidi fazer uma visita à velha, tanto para entregar-lhe o saquinho com a areia que juntei como para contar a ela sobre o que ocorrera entre mim e a tal criança. Quem sabe assim ela revelaria, de uma vez por todas, o verdadeiro propósito de minha vida. Assim, deixei Pedro em uma das obras e segui rumo à invasão.
Aproximei-me da casa, a porta estava aberta. Bati palmas, nada da velha aparecer. Passado um tempo, uma moça aparece na janela:
— Tá procurando alguém?
— Sim. Estou procurando a dona Anaildes, ela está?
— Ela é minha avó. O que você quer com ela?
— Ela está no setor?
— Não. Ela foi visitá a irmã dela que mora lá em Aparecida. Qué dêxá algum recado?
Aproximei-me mais alguns metros e, quando olhei pelo vão da porta da sala, vi sobre a mesa vários daqueles saquinhos de areia pintados com representações de coelhinhos, gatinhos e outros animais.
— O que são aqueles saquinhos? — perguntei sem hesitar.
— Esses saquinhos? Espere aí que vô levá um pra você vê.
A moça veio rápido e me entregou um exemplar. Era um daqueles saquinhos, cheio de areia, estampado com uma carinha de coelho.
— Compra alguns pra ajudá a gente? — pediu a menina.
— Para que eles servem?
— Para um monte de coisas: escorar porta, peso de mesa, pra enfeitá a casa, essas coisas...
— Onde vocês vendem esses saquinhos?
— Eu e a vó vendemo num monte de lugar: na feira do setor; nos ponto de ônibus; na porta da igreja; a gente vai rodando, quando um ponto fica rúin a gente vai pra ôtro. É assim. Compra um moço, só unzin! — implorou a moça.
Aquela cena me deixou nocauteado. Naquele momento, eu só conseguia pensar nas coisas que a velha me dissera sobre encontrar a tal criança, acessar o desfiladeiro e compreender o meu verdadeiro propósito. E agora eu estava ali, em frente à sua neta, prestes a comprar um coelhinho escora-portas.
Com as duas mãos estendidas, uma suportando o saquinho e a outra me oferecendo a palma, a moça parecia já conhecer o desfecho. Não tive outra escolha senão retirar uma nota da carteira e encerrar aquele ato.
p. 81Antes de ir, porém, lembrei-me do saquinho que trazia em meu bolso:
— Mocinha? — chamei a neta da velha.
— Vai querer levar mais um? Pode escolher. Tem de gatinho, oncinha...
— Não, obrigado. É que a sua vó me deu esse saquinho aqui e quero que entregue a ela. Pode fazer isso?
— Posso sim.
— Ah, mais uma coisa, diga a ela, por favor, que foi o Ton, o rapaz do desfiladeiro.
— Des o quê?! — perguntou, confusa.
— Desfiladeiro. Mas, deixe isso pra lá. Diga apenas que foi o Ton, o idiota que esteve aqui num domingo de manhã. — respondi, decepcionado, deixando a moça ainda mais confusa.
Voltei para o carro, mas não consegui deixar o local. Permaneci ali, olhando a invasão através do para-brisas, como quem assiste a um programa de TV.
De repente, avistei Glacylene. Ela caminhava apressada, sustentando sobre a cabeça uma bacia contendo algumas panelas e pratos. Junto a ela seguiam Mica, Robson e Denílson: Robson empurrando um carrinho de mão com o Mica dentro, e Denílson agarrado à barra da saia de sua madrasta. À medida que o carrinho passava sobre alguma depressão, projetando Mica para cima e para baixo, ele gritava pedindo a Robson que impusesse mais velocidade.
Passados alguns minutos, Robson retorna com o carrinho de mão, desta vez sem a companhia de Mica. Entra rápido em casa e volta carregando dois tamboretes. Entra novamente e retorna com mais um tamborete e algumas vasilhas plásticas. Acomoda tudo sobre o carrinho e parte acelerado.
Aquilo me deixou muito intrigado. Estariam se mudando? Concluí que não, pois caso fosse uma mudança, haveria de ter, em frente à casa, algum veículo de carga. Por que, então, estariam transportando todos aqueles utensílios pela invasão? Resolvi bisbilhotar.
Cruzei o quintal da casa de Glacylene e fui seguindo os rastros deixado pelo carrinho de Robson. Mais adiante, de tão focado que estava nos rastros do carrinho, não percebi a presença de um cão nada hospitaleiro. Por sorte, eu estava muito próximo a uma cerca de arame que separava dois quintais. O resultado não foi dos piores: tive as calças e a blusa rasgadas, mas não pelos dentes da fera. O mais constrangedor, porém, foi esperar o morador convencer o cachorro a soltar um de meus tênis que saíra de meu pé no momento em que atravessei a cerca.
Cauteloso, cruzei mais dois quintais disparando alguns “ô de casa, tô passando, prende o cachorro”. Até que avistei um amontoado de gente. Aproximei-me e percebi um clima festivo: muitas gargalhadas; gritaria de crianças e cantigas de forró. De imediato pensei em três hipóteses: aniversário, batizado ou casamento. Mas depois percebi que havia muita gente trabalhando. Alguns passavam carregando tijolos, outros, telhas, madeiramentos e ferramentas.
p. 82Contornei a casa ganhando o quintal dos fundos. Havia uma grande tenda de lona preta e, sob ela, um longo balcão, feito de tábuas de construção, sustentadas por cavaletes de madeira. Lá estava Glacylene; colada ao balcão, junto às outras vizinhas preparando uma variedade de alimentos. Ao lado da tenda, outras pessoas descascavam mandiocas e as colocavam para cozinhar dentro de latas areadas sobre fogões improvisados. Sob a sombra de uma frondosa mangueira, se achavam dispostas algumas mesas sobre as quais havia dezenas de garrafas pet contendo refrigerantes, copos e pratos descartáveis.
Ao perceber a minha presença, Glacylene se antecipou:
— Bom dia, Ton. Ana Cleide está com você?
— Não. Eu só estava passando e resolvi parar. — respondi, meio sem jeito.
— E por que está aqui?
— É que vi você e as crianças se dirigindo para cá, carregando um monte de coisas, e fiquei curioso. Só isso. Mas, o que é esta festa em plena manhã de quinta-feira, um casamento?
— Não! É um adjutório. Nunca ouviu falá?
— Já. Mas, achava que isso só acontecia na zona rural.
— Aqui na invasão é comum. Sempre que dá o pessoal se ajunta pra fazê um adjutório . Esse aqui é pra Dona Ritinha. Ela ficô viúva ano passado. Esses dias patráis, uma parede do quarto dela desabô e o telhado foi todo pro chão. Por sorte ela não morreu, coitadinha, uma madêra caiu, assim, bem do ladinho dela enquanto ela dormia. Hoje, o pessoal vai levantá ôtra parede, arrumá o telhado e ainda rebocá o quarto da filha dela. Vamo ali que eu vô te apresentá pro pessoal.
p. 83Glacylene me puxou pelo braço, me conduzindo até a parte da casa onde acontecia a reforma:
— Pessoal? Esse aqui é o Ton. Ele é namorado da minha irmã, a Ana Cleide. Vô dêxá ele aqui com vocês e vô voltá pra ajudá a turma lá no fundo.
Eu não sabia o que dizer a eles. Então, ofereci ajuda:
— Aí pessoal? Posso ajudar em alguma coisa?
Ninguém disse nada. Só ficaram me olhando. Até que um dos homens que estava misturando uma massa de cimento se pronunciou:
— Por acaso é o sinhô que tá com aquela Fiorino parada lá na rua de cima?
— Sim _ respondi.
— Dava pro sinhô í ali no depósito buscá mais mêi metro de areia prá nóis?
— Areia?!
— Isso mêmo. Mêi metro de areia grossa pra reboco. Tem um depósito lá na linha do ônibus. A areia de lá é boa e o preço é bão. — completou o homem que mexia a massa.
Procurei Glacylene e pedi a ela permissão para levar Mica e Robson comigo ao depósito.
Após deixarmos o depósito parei no mercado a fim de comprar bolachas, refrigerantes e doces para toda a criançada do adjutório. Depois, liguei para Pedro informando-o de que o restante do meu dia seria dedicado a tal evento. No caminho de volta passei na casa de Dona Tê para Mica dar um cheiro na vó, e, quem sabe, arrastar Ana Cleide com a gente.
Estacionei a Fiorino próximo ao local onde estavam mexendo a massa de cimento. Enquanto Ana Cleide e as crianças desciam as compras, passei a mão numa enxada e comecei a descarregar a areia. Logo, se aproximou o homem que me pedira a areia. Sobre a cabeça suportava um pesado saco de cimento. Numa das mãos uma colher de pedreiro e, na outra, entre os dedos, um palheiro fumacento. Parou ao meu lado, ainda equilibrando o saco sobre o cocuruto, levou o palheiro à boca, deu uma longa tragada soltando a fumaça pelas narinas, abriu um sorrisão e disse:
— Já que o moço tá com a enxada, pode começá a virá a massa.
Ouvindo aquela ordem, os demais companheiros que estavam ao nosso redor caíram na gargalhada. Imediatamente, compreendi o porquê daquela cena ter-lhes parecido tão anedótica: um “rapazinho da cidade”, que nunca sentiu o peso do cabo de uma enxada, sendo desafiado a mexer uma pesada massa de cimento. Então, fiz questão de mostrar a todos que, mesmo tendo passado os últimos anos na cidade, ainda não havia me esquecido dos incontáveis momentos em que precisei ajudar meus pais e irmãos na roça.
O homem do palheiro fumacento se chamava Osório. Era um pedreiro experiente. Enquanto nos revezávamos com a enxada, dois companheiros foram ao seu encontro a fim de tomarem informações sobre onde poderiam arranjar vagas para ajudante de pedreiro. Prontamente, Osório pegou o celular e ligou para alguns de seus contatos conseguindo trabalho para os dois rapazes.
p. 84O adjutório seguia o seu curso ao som de forró, causos e brincadeiras. O telhado já estava completamente reparado e as paredes dos quartos já praticamente rebocadas. Então, uma das vizinhas surge na porta da sala batendo a colher contra o fundo de uma panela e esgoelando:
— Olha a bóia!!!
As comidas foram dispostas sobre o balcão improvisado. As pessoas formaram uma fila e foram se servindo.
Puxei Ana Cleide pela mão e tomamos o nosso lugar na fila. De repente, percebi a presença de Dona Anaildes e sua neta poucos metros à nossa frente. Fiquei meio sem jeito. Fiz de conta que não as conhecia. Nós nos servimos e procuramos um espaço sombreado, debaixo da mangueira, para sentar. Coincidentemente, Dona Anaildes e sua neta também tiveram a mesma ideia. Enquanto comíamos, notei que a velha me olhava com ternura exibindo um semblante de felicidade.
Passado o almoço, a dona da casa chamou as vizinhas para dividirem entre si os alimentos que não haviam sido consumidos.
Eu e Ana Cleide permanecemos ali, curtindo a sombra da mangueira e observando o vai e vem das pessoas. Logo, um rapaz que conduzia uma cadeira se aproxima e convida Dona Anaildes a se sentar. A velha que estava agachada junto ao tronco da mangueira se levanta e agradece o carinho recebido. Outras pessoas foram chegando e se acomodando em torno dela formando um círculo. Em seguida, ela começou a contar um causo, ocorrido no sertão da Bahia, quando ainda era mocinha. Todos estavam atentos. O causo girava em torno de um homem rico que residia na capital, e que sofria de uma doença crônica. Não tendo alcançado a cura, após várias consultas médicas, o tal sujeito foi aconselhado pelo seu compadre a procurar uma conhecida benzedeira que residia numa pequena comunidade nos confins do sertão da Bahia. Na trama, as personagens do causo falavam de plantas curativas, remédios, benzeções e também se envolviam em situações embaraçosas e engraçadas, o que arrancava gargalhadas da plateia.
Depois daquele, Dona Anaildes contou mais dois causos, igualmente engraçados. Na sequência, uma mãe que segurava seu recém-nascido se apresentou a ela. Dona Anaildes tomou a criança nos braços, balançou sobre ela um pequeno ramo de planta, pronunciou algumas palavras em voz baixa, rezou uma Ave-Maria e a devolveu à mãe. Depois foi a vez de uma senhora que trazia um dos braços presos a uma tipoia. Outros se aproximavam dela a fim de pedirem a sua benção, ou, simplesmente, um aconselhamento.
Lá pelas cinco da tarde, Osório anunciou o término da obra. Então foi servida uma farta merenda com biscoitos de polvilho, bolos de fubá, cuscuz e outras quitandas. Antes de se servirem, porém, a dona da casa colocou sobre o balcão uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida e puxou uma reza em agradecimento às graças alcançadas naquele adjutório.
Mas aquele evento estava longe de conhecer o seu fim. Terminada a merenda, alguns rapazes e moças pediram a atenção dos presentes anunciando que logo mais à noite haveria um arrasta-pé puxado por alguns tocadores e cantadores residentes na invasão.
p. 85Ana Cleide não quis ficar de fora. Então, a deixei em sua casa e segui para a quitinete a fim de me arrumar para o forrobodó.
A festa estava muito animada. Um dos cantadores imitava os trejeitos de Genival Lacerda, um conhecido e anedótico compositor de forró, deixando o arrasta-pé ainda mais divertido.
Mas quando deu meia noite em ponto, a dona da casa agradeceu a festa anunciando o seu término. Glacylene me aconselhou a não pegar o carro. Ela e Lindomar praticamente, nos obrigaram a passar a noite na casa deles. A princípio relutei, mas acabei concordando. Assim, eu e Ana Cleide nos acomodamos em um dos quartos, juntamente com Mica e Robson, enquanto Denílson foi para o quarto do casal.
Naquela madrugada, Biscoito latia obstinadamente. Todos dormiam profundamente menos eu. Além dos reclames do cãozinho, o calor estava insuportável, estávamos em pleno agosto.
Saí, então, para fora da casa e me sentei em um banco que ficava ao lado da porta da cozinha. A noite estava silenciosa e o céu estrelado. De vez em quando, um ladrido, ou um piado de coruja.
De repente, olho para o lado e vejo Mica saindo pela porta da sala. Biscoito fez a maior festa ao vê-lo.
— Mica?! Volte para a sua cama! Se a sua mãe vir você aqui fora vai dar a maior bronca na gente. — adverti.
Mica não disse nada. Apenas se aproximou, sentando-se ao meu lado. Recostou sua cabeça em mim, adormecendo instantaneamente. Aproveitei a deixa para carregá-lo de volta a cama. Porém, antes mesmo que cruzássemos a porta da sala, Mica, ainda de olhos fechados, balbuciou:
— Tio Ton? Dá tchau para a estrelinha!
Eu não podia decepcioná-lo. Olhei para cima e disse:
— Tchau estrelinha, agora o Mica vai dormir.
— O tio Ton não deu tchau para a estrelinha certa! — repreendeu-me.
— Então, mostre para o tio Ton qual é a estrelinha certa. — pedi, em sussurro temendo acordar Glacylene.
Sonolento, Mica apontou o dedinho para uma diminuta estrela, situada bem acima de nossas cabeças, entre duas outras maiores:
— É aquela lá. Ela quer dar tchau para o tio Ton.
Sem titubear, acenei na direção da estrelinha dando um tchauzinho.
Acomodei Mica em sua cama e voltei para a sala a fim de trancar a porta. No momento em que já ia virando a chave resolvi passar mais um tempinho curtindo o frescor da noite. Ainda estava sem sono. Sentei-me novamente no banco e fiquei ali pensando no quanto eu gostava de Mica e também o quanto o achava criativo. Vejam só, com tantas estrelas maiores e bem mais cintilantes ele quis que eu desse tchau justamente para aquela estrelinha quase imperceptível. Molequinho danado, vive me pregando peças...