Os negócios estavam indo de vento em popa. Com a primeira poupança que fizemos, decidimos adquirir um veículo utilitário. Percorremos inúmeras revendas de carros usados até que, finalmente, encontramos o veículo que nos atendia: uma picape Fiorino ano 99; velhinha, mas muito conservada. Imediatamente, mandamos plotar, em toda a sua extensão, a nossa logomarca, Geopeton. Tal feito nos encheu de orgulho.
Naquele mês estávamos com a agenda cheia. Tínhamos quatro levantamentos para entregar, todos ligados a projetos de expansão imobiliária no entorno da capital.
E numa manhã, quando estávamos nos deslocando de uma obra à outra, percebi, caminhando pela calçada, uma menina cujas características me fizeram lembrar da tal criança prenunciada pela velha da invasão: descalça, vestido velho acinzentado e um saquinho de pano branco preso ao pulso. Naquele momento, toda a paranoia do desfiladeiro me voltou a mente. Tentei resistir. Andamos mais alguns metros, o trânsito estava congestionado. Perdi a menina de vista. Dei graças a Deus. Andamos mais um pouco e o semáforo ficou vermelho. De repente, vejo a menina passar, calmamente, ao lado de minha janela. Não tive coragem de encará-la. Ela, então, caminhou mais alguns metros, parou, deu meia volta e projetou seu olhar diretamente sobre mim. Senti um frio na barriga, mas fingi não a ter visto. O sinal abre, arrancamos com o carro. Olhei amedrontado pelo retrovisor, meio que de canto de olho, e lá estava ela, balançando o saquinho. Parecia sorrir para mim.
Permaneci com os olhos grudados no retrovisor vendo a menina se distanciar. Sua postura continuava a mesma: braços estendidos balançando o saquinho.
— Pedro? Pare o carro! — gritei confuso.
— O que foi Ton?!
— Preciso descer aqui. Mais tarde nos encontramos na obra.
Pedro ainda tentou entender a situação oferecendo-me ajuda, mas não dei tempo a ele. Mal o carro parou saltei desesperado no encalço da menina.
Caminhei rapidamente na sua direção, mas acabei perdendo-a de vista. Fiquei parado ao lado de um poste de luz na esperança de vê-la passar. A menina se foi. Será que eu ainda não estava pronto, ou era somente a minha consciência me pregando mais uma peça? Entrei em alguns comércios daquele quarteirão e perguntei pela menina. Quem sabe ela não seria uma daquelas crianças pedintes já conhecida daqueles comerciantes. Ninguém a conhecia.
Numa mistura de decepcionado com aliviado preferi chamar um Uber para ir até à obra me encontrar com Pedro. O GPS do aplicativo mostrava três minutos restantes até a chegada do veículo, um Ford Ka branco, placa final trinta e quatro. Mas, antes da chegada do Uber, notei a presença da menina a poucos metros de mim, caminhando em direção à esquina. Guardei o celular no bolso e comecei a segui-la.
A menina caminhava rápido. Apertei o passo. Imaginei-me pisando a areia fina do desfiladeiro. Dobramos várias esquinas, atravessamos inúmeras ruas, quarteirões e mais quarteirões. Seria apenas uma menina pobre voltando para a sua casa? Talvez. Mas eu precisava ir até o fim.
p. 71Continuei a segui-la. Ela parecia não se cansar. Eu a olhava fixamente. A cada uma de suas passadas podia ver a sola de seus pequeninos pés, encardidos pela sujeira da calçada. Vez ou outra, ela fazia movimentos circulares com o braço fazendo o saquinho de pano bambolear em torno de seu pulso.
De tanto olhá-la, seu entorno tornou-se brumoso. Parecia ser só aquela frágil menina emoldurada num tecido acinzentado. E à medida que eu a olhava, sua imagem também foi se decompondo. Até não restar mais nada além de um pequeno círculo disforme tremulando à minha frente. Para onde ela foi? E para onde fora o resto das coisas?! Os carros, as ruas, não havia mais nada. Nem mesmo o meu próprio corpo eu podia ver. Tudo se convertera numa completa escuridão. Sem sons, sem vento, sem chão. Seria aquela ausência de tudo a passagem para o desfiladeiro?
— Oi! Tio Ton.
— Quem é? Onde estou? Aqui já é o desfiladeiro?
— O tio andou rápido! Quase me alcançou.
— Você é aquela menina que eu seguia?
— Você diz aquele corpo? Digamos que sim.
— Então já estamos no desfiladeiro?
— Não.
— Não?! Quanto tempo ainda falta para chegarmos?
— Isso dependerá apenas de você.
— De mim?! Não estou entendendo. A velha me disse que eu estaria pronto para acessar o desfiladeiro assim que encontrasse a criança com o saquinho. O que mais falta?
— Para chegar ao desfiladeiro, antes, será preciso que atravesse o seu interior, o seu próprio corpo.
p. 72— Isso será fácil! Sou somente uma pessoa. Um ser minúsculo se comparado ao tamanho desta cidade, não é mesmo?
— Olhe bem a sua volta, tio Ton. O que vê?
— Nada! Não vejo nada além de escuridão.
— Olhe bem! Olhe para dentro da escuridão. Bem no fundo dela.
De repente, comecei a enxergar alguns círculos disformes em movimento. Depois, vi que eram muitos, milhares. Parecia uma multidão se movendo rápido e desordenadamente.
— O que são essas coisas?
— São células! — respondeu a menina.
— Células?! Como assim, células?
— São as suas células. Você está dentro de seu próprio corpo.
— Como vim parar aqui?
— Ora, você já está nele desde que era apenas uma única célula, o zigoto, não se lembra? Aquela célula-ovo formada pela união entre o gameta masculino e o gameta feminino. Agora, você é uma infinidade de células. Isso não é o máximo?! Você saberia me dizer quantas células há em você?
— Não.
— Ah, me lembrei! Você é um geógrafo, não é mesmo? Neste caso, vamos pensar em escalas: como você representaria, em escala astronômica, o tamanho da Terra em relação à sua galáxia, a Via Láctea?
p. 73— Agora sim. Assuntos sobre o Cosmo são os meus favoritos. Bem, ainda não há um cálculo exato sobre a quantidade de corpos celestes que compõem a Via Láctea devido às limitações de nossa capacidade de observação. Contudo, se formos fazer uma analogia entre a quantidade de grãos de areia que há em um metro cúbico de praia, que é da ordem de aproximadamente 100 bilhões de grãos de areia por metro cúbico, em relação à quantidade de estrelas que há na Via Láctea, que é da ordem de aproximadamente 200 a 400 bilhões de estrelas, podemos afirmar que o tamanho da Terra, em relação à Via Láctea, pode ser pensado como sendo a Terra um grão de areia no interior de quatro metros cúbicos de areia, ou seja, no interior de oitenta carrinhos de mão cheios de areia. E, se quiser, posso ir ainda mais longe: depois que o telescópio espacial Hubble foi colocado em órbita, os astrônomos calcularam que há, no universo observável, pelo menos 230 bilhões de galáxias. Agora, se considerarmos que cada uma dessas 230 bilhões de galáxias possui a mesma quantidade de estrelas que possui a nossa Via Láctea, resultará que a soma de todas as estrelas do Universo corresponderá ao número total de grãos de areia que compõem todas as praias do nosso planeta, ou seja, todos os 1 milhão de quilômetros correspondentes ao comprimento total das costas da Terra.
— Muito bem! Ton. Não há como negar que você seja um estudioso do Cosmo. E quanto às células?
— O que têm as células? Já disse, não sei nada sobre elas.
— Neste caso, permita-me que eu lhe apresente. Comecemos pela quantidade delas que compõem o seu espaço interior: estima-se que esse seu corpo de humano seja composto por uma quantidade de células que varia entre vinte e quarenta trilhões de células, de todos os tipos. Muito possivelmente, essa quantidade ultrapassa a soma de todos os corpos celestes existentes em sua galáxia. Então, ainda acha que o seu interior seja algo minúsculo?
— Nossa! Nunca pensei que fossem tantas.
— Tente agora multiplicar a quantidade de células que há em seu corpo pelos oito bilhões de seres humanos que atualmente habita seu planeta. Multiplicou?
— Minha matemática não é tão boa assim.
— Tudo bem, eu respondo. O resultado seria de 320 sextilhões de células, ou seja, um número igual, ou até superior, à quantidade de todas as estrelas do Universo observável. Neste caso, eu diria que vocês humanos, andando sobre o seu planeta, imitam e reproduzem o próprio design do universo. Quero dizer com isso que cada ser humano é como uma galáxia comportando seus trilhões de corpos celestes.
— Todas essas comparações são realmente incríveis! Mas, qual é exatamente a relação entre as células do meu corpo e a minha chegada ao desfiladeiro?
— Agora você fez a pergunta exata, tio Ton. E as respostas a esta pergunta lhe permitirão cruzar o seu interior.
— Desculpe, mas não consigo pensar em nenhuma relação.
— Vou ajudá-lo. Quando começou a enxergar aquele amontoado de células em seu corpo, comparou-o a uma multidão agitada e sem rumo. Não foi?
p. 74— Sim.
— Muito bem. Agora quero que imagine uma estação de metrô lotada de pessoas agitadas, se acotovelando. Você compararia tal amontoado de pessoas às células que vê em seu corpo?
— Não.
— Por que não?
— Ora, porque são pessoas! Não são células. Vistas de perto, são diferentes uma da outra. Sabem para aonde estão indo. Possuem história, famílias, conhecem o meio em que vivem, seus limites, enfim, possuem cultura!
— Já que falou em cultura, tio Ton, devo dizer-lhe que as células também podem ser comparadas às culturas. Pois, da mesma forma que carrega uma galáxia em seu corpo, também habitam nele milhares de diferentes culturas.
— Poderia explicar isso melhor?
— Claro! Comece pensando da seguinte maneira: todo e qualquer tipo de célula que compõe o seu corpo é um ser vivo e autônomo. O que as definem assim é o fato de possuírem uma organização capaz de produzirem de modo contínuo a si próprias. Tal organização é chamada de “organização autopoiética” . Assim, uma célula, ao longo de toda a sua existência, produzirá gerações e gerações de outras células parecidas com ela, porém não exatamente iguais. Começou a perceber a semelhança entre célula e cultura?
— Ainda não. Só por que se reproduzem continuamente devo compará-las a uma cultura?
— Vejamos, então: todas as células, assim como todos os seres vivos distinguem-se entre si somente pelas diferenças que há em suas respectivas estruturas, uma vez que possuem organizações semelhantes, ou seja, todos estabelecem trocas com o meio, se reproduzem, transmitem heranças genéticas e assim por diante. As culturas também são assim — continuou a menina —, diferem-se entre si numa infinidade de coisas, como língua, vestuário, crenças, costumes, etc., mas também possuem organizações semelhantes, ou seja, elaboram padrões de união e reprodução, socializam filhos, ordenam sistemas de parentesco, criam estratégias de produção de alimentos, de tecnologias, etc. Percebeu agora as semelhanças?
— Deixe me ver se entendi: células e culturas possuem sistemas de organização semelhantes, pois tanto uma quanto a outra geram, ao longo de suas existências, necessidades equivalentes. Diferem-se entre si apenas quanto aos tipos de estratégias que criam para suprirem tais necessidades.
— Exatamente, tio Ton!
— Quanto a isso, tudo bem, mas e quanto às suas histórias?
— O que têm elas?
— Ora, células e culturas possuem origens completamente diferentes. Não é mesmo?
— Ao contrário, tio Ton. Eu diria que possuem origens bastante semelhantes entre si. Veja: na infância da formação da Terra, devido a reações moleculares de um tipo peculiar, moléculas orgânicas se juntaram em redes, formando famílias de moléculas orgânicas, limitando seu entorno espacial e reproduzindo a si mesmas, ou seja, tornaram-se células. Já com as culturas ocorreu um fenômeno análogo, pois, há cerca de três milhões de anos, mudanças de um tipo igualmente peculiar ocorreram na linhagem de hominídeos substituindo os ciclos estrais de fertilidade das fêmeas por menstruações, tornando a sexualidade feminina contínua. Tal transformação ocasionou a formação de um domínio de sociabilidade recorrente, dando origem a comunidades como as do Australopithecus, Homo habilis e Homo erectus. E agora, o que me diz?
p. 75— Bem, pensando por esse lado, parece que tanto as células como as culturas iniciaram suas histórias a partir de um acontecimento excepcional ocorrido em seus sistemas de organização.
— Isso mesmo, tio Ton!
— Mas, enquanto as células ficam contidas dentro de um corpo, as culturas estão em toda parte, não é mesmo? As estruturas físicas de uma e de outra se acham acopladas em ambientes diferentes. E isso não as tornam completamente diferentes entre si?
— Ao contrário, tio Ton. O fato de estarem estruturalmente acopladas em ambientes completamente diferentes as tornam ainda mais semelhantes entre si. Preste atenção: um dado organismo dentro do qual uma célula se encontra é o meio onde ela se acha acoplada estruturalmente. Tudo o que se encontra em seu entorno, inclusive outras células, correspondem às suas fontes de interações durante a sua ontogenia. O mesmo pode ser dito em relação às culturas: qualquer cultura se acha estruturalmente acoplada a um meio, no interior do qual estabelece seu sistema organizacional. Durante a sua ontogenia, esse meio lhe proporcionará incontáveis situações de interação tanto com outras culturas como com uma infinidade de fenômenos provenientes do próprio meio onde se acha acoplada. Viu só?
— Neste ponto você tem razão. Mas isso me fez pensar numa outra questão: as mudanças.
— Mudanças? O tem as mudanças?
— Bem, aprendi na escola que as culturas, ao longo de suas existências, se transformam e evoluem, constantemente, ao encararem os desafios e perturbações impostos a elas pelo meio onde vivem. E, com as células, não penso que algo semelhante ocorra. Por mais que se reproduzam entre si e interajam com o meio onde vivem, serão sempre as mesmas células! Não é mesmo?
— Parabéns, tio Ton! Perguntas profundas exigem respostas profundas. Isso está lhe ajudando a atravessar o seu interior. Acho que irá gostar de saber que as células, assim como as culturas, ao interagirem com o meio onde vivem, também se transformam continuamente ao sofrerem perturbações e desafios. Estão sempre buscando, com grande autonomia e conhecimento, encontrar maneiras de superá-los. E pode ter certeza de uma coisa: tal dinâmica possibilita as células se evoluírem tornando-as aptas a continuarem suas jornadas pela vida.
— Poderia descrever isso?
— Claro! Veja bem: uma célula, como qualquer outra unidade autopoiética que possui uma estrutura particular, participa de interações com o meio. E à medida que essas interações entre unidade e meio tornam-se recorrentes, isso se constituirá num campo permanente de perturbações recíprocas. Ao se perturbarem reciprocamente, as diferentes estruturas em interação podem apenas desencadear, umas nas outras, possibilidades de mudanças em suas estruturas particulares, ou seja, nenhuma delas é capaz de determinar, ou informar, que tipo de mudança ocorrerá na outra. Pois cada unidade, ao sofrer perturbações, imediatamente põe em funcionamento os componentes presentes em seus sistemas de organização a fim de responder a tais perturbações. Por isso afirmamos que são autônomas e possuem conhecimento armazenado. O resultado de tal dinâmica será uma história de mudanças estruturais mútuas com predomínio de seus sistemas internos de organização, desde que a unidade autopoiética e o meio não entrem em colapso. E com as Culturas acontece exatamente o mesmo, pois, ao sofrerem perturbações resultantes das interações que estabelecem com as outras estruturas (humanas ou não), presentes no meio onde se acham acopladas, colocam em funcionamento seus sistemas de conhecimentos e práticas, adquiridos e armazenados durante uma longa história de interações, para, por meio deles, operarem mudanças de estado em suas estruturas, sem, no entanto, alterarem suas organizações internas, ou seja, suas identidades culturais. Assim, ao longo de suas existências, as culturas passam por incontáveis processos de mudanças estruturais, que podem ser percebidos por meio de fenômenos como inovação, recriação, adaptação e até abandono de determinadas práticas culturais tradicionais sem, com isso, ocasionar a sua desestruturação. Assim, como pôde ver, células e culturas vivem uma história de variações, numa espécie de jogo infinito entre os de dentro e os de fora, ou seja, unidade e meio.
p. 76— Isso foi realmente superinteressante! Mas me responda uma coisa: se células e culturas possuem entre si histórias de sobrevivência e transformação equivalentes, por que, então, os motivos pelos quais se extinguem são tão diferentes?
— Sim. As histórias de extinção são bem diferentes, mas os processos que as levam à extinção, ou desestruturação, são análogos.
— Como assim?
— É simples: como viu, culturas e células só podem existir quando estão estruturalmente acopladas a seus respectivos meios. Se as interações que ambas mantêm com a demais estruturas presentes em seus meios forem do tipo compatíveis, ou seja, interações geradoras de perturbações mútuas capazes de desencadear mudanças mútuas de estado, mas com conservação de suas identidades organizacionais, tanto as culturas como as células se manterão vivas num processo contínuo denominado acoplamento estrutural. Agora, se as interações forem do tipo desencadeadoras de processos destrutivos, isso porá fim à continuidade de seus acoplamentos estruturais. No caso de uma célula, dentre todas as formas de interações possíveis, encontramos algumas que são particularmente recorrentes ou repetitivas. Por exemplo, se examinarmos a membrana de uma célula, notaremos que através dela se dá um constante transporte ativo de certos íons (tais como o sódio e o cálcio), de forma que, na presença desses íons, a célula reage incorporando-os à sua rede metabólica. Esse transporte iônico ativo ocorre muito regularmente. Assim, podemos dizer que o acoplamento estrutural das células ao meio permite suas interações recorrentes com os íons que o meio contém. Contudo, o acoplamento estrutural celular requer que tais interações ocorram somente com certos íons, pois, se forem introduzidos no meio outros íons, como por exemplo, césio ou lítio, as mudanças estruturais que estes desencadeariam na célula interromperiam a sua existência. E o mesmo fenômeno de interrupção pode também acontecer com as culturas!
— De que maneira?
— Tomemos o exemplo dos povos indígenas do Brasil durante a invasão europeia. Enquanto um dado povo indígena abria suas fronteiras apenas para certos povos indígenas do seu entorno, num tipo de interação recorrente, como no caso daquela célula que incorpora continuamente à sua rede metabólica os íons de sódio e cálcio, as mudanças desencadeadas em tal povo permaneciam do tipo compatível. Mas à medida que esse mesmo povo indígena deixou que atravessassem suas fronteiras outros tipos de elementos, como por exemplo, portugueses e espanhóis, as mudanças estruturais nele desencadeadas resultaram na interrupção de sua linhagem. Viu agora como as histórias de extinção envolvendo células e culturas podem ser diferentes, mas com processos destrutivos análogos?
— Isso foi impressionante. Contudo, enquanto falava, percebi que há um componente nas células que as tornam bem diferentes das culturas: as células possuem uma fronteira muito bem definida, representada pelas suas membranas. Essas membranas as separam do meio e estabelecem limites. Já as culturas não possuem esses limites. Elas podem viver em seus meios, livremente, sem a necessidade de se separarem umas das outras. Não é mesmo?
— Essa foi uma pergunta bem provocativa, Ton. Por isso, vou respondê-la devolvendo-lhe uma pergunta também provocativa: você sabia que as culturas também possuem membranas cujas funções são equivalentes às de uma membrana celular?
— Como é isso?
p. 77— Bem, numa célula as membranas podem ser caracterizadas como sendo multifuncionais e integrativas. Não são apenas invólucros, ou cercas de contenção. Pois, ao mesmo tempo em que distinguem a célula do meio onde se acha acoplada, também promovem a sua integração a ele. E do ponto de vista organizacional, ao mesmo tempo em que estabelecem os limites da extensão da rede de transformações da célula, elas também participam ativamente de tal rede de transformações. Da mesma forma, as culturas também possuem suas membranas. Isso mesmo! São as chamadas “fronteiras culturais”. Praticamente, tais fronteiras cumprem com as mesmas funções que cumpre uma membrana celular. Pois ao mesmo tempo que a fronteira de uma dada cultura cumpre a função de estabelecer diferenças distinguindo-a das demais culturas envolventes, ela também participa ativamente de todo o processo de circulação de bens simbólicos entre os seus membros responsáveis pelo compartilhamento de sentimentos de copertencimento e de valores sociais integrativos. E, assim como as membranas celulares, as fronteiras culturais, além de promoverem a integração entre diferentes culturas, já que são elas que permitem o trânsito de elementos provenientes de outras culturas para o seu interior, também participam ativamente de toda a sua rede de transformações, pois os significados que as fazem existir são os mesmos que ela própria ajudou a estruturar ao selecionar e permitir a entrada de elementos provenientes do meio. Assim, uma fronteira cultural é dotada das mesmas capacidades especiais encontradas nas membranas celulares. O que me diz agora?
— Isso foi incrível! Mas ainda há uma última questão: as culturas se reproduzem originando famílias de uma mesma linhagem. Tais famílias seguirão dando origem, continuamente, a outras gerações de famílias numa espécie de corrente transgeracional: filhos, pais, avós, bisavós e assim por diante. Entretanto, para que uma geração de famílias possa se identificar culturalmente com suas linhagens anteriores faz-se necessário que uma geração siga sempre transmitindo à geração seguinte um arsenal de conhecimentos, práticas e percepções que, embora possam sofrer variações de uma geração à outra, seguirão mantendo intactos determinados padrões de relação com mundo a partir dos quais as gerações mais novas sigam se recriando com base nesses padrões culturais herdados. Isso não torna a cultura algo bastante diferente de uma célula?
— Tio Ton, quanto mais diferenças buscar entre elas, mais semelhanças irá encontrar. Mas já que falou em reprodução, preste bem atenção no que vou lhe dizer: a reprodução celular se dá por meio da Mitose ou reprodução por fratura. As unidades resultantes dessas fraturas não são idênticas à original nem entre si, mas pertencem à mesma classe da original, pois, mesmo sendo estruturalmente diferentes entre si, conservam, ao longo de toda a sua existência, a mesma organização. Neste caso, são como as culturas, já que a reprodução cultural se dá de forma semelhante, ou seja, uma cultura se expande por meio da reprodução, e as unidades familiares resultantes de tal reprodução nunca serão idênticas àquelas dos pais e avós que as originou, como também entre si, irmãos e primos. Contudo, sempre pertencerão à mesma classe da original enquanto conservarem a mesma organização, isto é, os mesmos padrões culturais herdados. Satisfeito? Ou quer que eu vá ainda mais longe com as questões sobre reprodução?
p. 78— Há mais coisas?
— Muito mais! E seu eu lhe disser que, tanto as células quanto as culturas para se tornarem capazes de se reproduzir precisam passar por uma fase comum de aprendizagem no interior da qual constroem os elementos necessários à conquista de suas autonomias reprodutivas?
— Como isso acontece?
— Pois bem, antes de acontecer a reprodução celular, ou fratura, a célula se encontra em um estado denominado de interfase. Durante esse estágio, todo o seu sistema encontra-se compartimentalizado, ou seja, muitos de seus componentes permanecem localizados em partes específicas da célula, como é o caso do DNA que, durante tal fase, permanece contido no interior do núcleo. Assim, caso a célula sofra uma fratura durante a sua interfase, ela não será capaz de originar outra célula de sua linhagem. Já durante a mitose, ou divisão celular, ocorre o fenômeno de descompartimentalização, ou seja, aqueles componentes que antes permaneciam localizados em partes específicas da célula passam a habitar os demais espaços devido à dissolução da membrana nuclear. Nesta fase, ao se fraturar, a célula é capaz de originar outra célula, igualmente provida de todos os componentes necessários à manutenção da vida. Na cultura acontece a mesma coisa, pois, antes de acontecer a reprodução cultural, ou formação de uma nova unidade familiar, a cultura experimenta uma fase análoga a interfase celular: uma fase em que um jovem homem e uma jovem mulher que darão origem a uma nova unidade, ou célula familiar, ainda se acham compartimentalizados, ou seja, muitos dos componentes culturais necessários ao enfrentamento da vida ainda se encontram em quantidade maior nas respectivas células familiares das quais provêm, ou seja, entre seus pais e avós. Assim, tal como acontece a uma célula durante a interfase, esse jovem casal ainda é incapaz de originar uma segunda unidade familiar autônoma uma vez que ainda não possui domínio sobre determinados padrões culturais necessários à manutenção da vida. Quando, porém, ocorrer nesse casal a descompartimentalização cultural, em outros termos: quando muitos daqueles componentes culturais que antes se achavam em maior número entre seus pais já estiverem presentes no referido casal, este estará pronto para se separar de sua célula-mãe, ou casa dos pais, para iniciar sua própria história reprodutiva. Então, quer continuar com as comparações?
— Não. Obrigado.
— Por que quer parar?
— Porque acho que já compreendi a mensagem que quis me transmitir. Seja lá quem quer que você seja.
— E o que você compreendeu?
— Compreendi que os seres humanos, assim como todos os demais seres viventes deste planeta, embora distintos entre si devido às suas diferenças estruturais, possuem sistemas de organização semelhantes, isto é, todos se dedicando à tarefa de “produzirem de modo contínuo a si próprios” . Se eu tivesse que traduzir numa única palavra essa tarefa ininterrupta de produzir vida, eu diria que essa tarefa deveria se chamar amor. Assim, para que a civilização humana reverta a sua marcha rumo à autodestruição, ela terá que voltar suas atenções para os sistemas de organização dos seres vivos a fim de aprender com eles o verdadeiro sentido de suas existências sobre este planeta.
p. 79Após respondê-la não mais percebi a sua presença. Imediatamente, todas aquelas células frenéticas foram aumentando de tamanho e o silêncio interrompido por dois toques curtos de buzina seguidos de uma voz:
— Ei você aí, chamou o Uber?
Olhei assustado e me vi com o celular em punho. Ao meu lado, um veículo Ford Ka branco.
— Então, não vai entrar? — chamou minha atenção o motorista.
Ainda atordoado, abri a porta do passageiro e, ao me sentar, o motorista repreendeu-me enfurecido:
— Só pode estar de sacanagem, não é? Como pôde ter a coragem de se sentar no banco do meu carro, assim, sujo de areia dos pés à cabeça?! Vai ter que me pagar a lavagem!