SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Penso, logo enlouqueço

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Os negócios estavam indo de vento em popa. Com a primeira poupança que fizemos, decidimos adquirir um veículo utilitário. Percorremos inúmeras revendas de carros usados até que, finalmente, encontramos o veículo que nos atendia: uma picape Fiorino ano 99; velhinha, mas muito conservada. Imediatamente, mandamos plotar, em toda a sua extensão, a nossa logomarca, Geopeton. Tal feito nos encheu de orgulho.

Naquele mês estávamos com a agenda cheia. Tínhamos quatro levantamentos para entregar, todos ligados a projetos de expansão imobiliária no entorno da capital.

E numa manhã, quando estávamos nos deslocando de uma obra à outra, percebi, caminhando pela calçada, uma menina cujas características me fizeram lembrar da tal criança prenunciada pela velha da invasão: descalça, vestido velho acinzentado e um saquinho de pano branco preso ao pulso. Naquele momento, toda a paranoia do desfiladeiro me voltou a mente. Tentei resistir. Andamos mais alguns metros, o trânsito estava congestionado. Perdi a menina de vista. Dei graças a Deus. Andamos mais um pouco e o semáforo ficou vermelho. De repente, vejo a menina passar, calmamente, ao lado de minha janela. Não tive coragem de encará-la. Ela, então, caminhou mais alguns metros, parou, deu meia volta e projetou seu olhar diretamente sobre mim. Senti um frio na barriga, mas fingi não a ter visto. O sinal abre, arrancamos com o carro. Olhei amedrontado pelo retrovisor, meio que de canto de olho, e lá estava ela, balançando o saquinho. Parecia sorrir para mim.

Permaneci com os olhos grudados no retrovisor vendo a menina se distanciar. Sua postura continuava a mesma: braços estendidos balançando o saquinho.

Pedro ainda tentou entender a situação oferecendo-me ajuda, mas não dei tempo a ele. Mal o carro parou saltei desesperado no encalço da menina.

Caminhei rapidamente na sua direção, mas acabei perdendo-a de vista. Fiquei parado ao lado de um poste de luz na esperança de vê-la passar. A menina se foi. Será que eu ainda não estava pronto, ou era somente a minha consciência me pregando mais uma peça? Entrei em alguns comércios daquele quarteirão e perguntei pela menina. Quem sabe ela não seria uma daquelas crianças pedintes já conhecida daqueles comerciantes. Ninguém a conhecia.

Numa mistura de decepcionado com aliviado preferi chamar um Uber para ir até à obra me encontrar com Pedro. O GPS do aplicativo mostrava três minutos restantes até a chegada do veículo, um Ford Ka branco, placa final trinta e quatro. Mas, antes da chegada do Uber, notei a presença da menina a poucos metros de mim, caminhando em direção à esquina. Guardei o celular no bolso e comecei a segui-la.

A menina caminhava rápido. Apertei o passo. Imaginei-me pisando a areia fina do desfiladeiro. Dobramos várias esquinas, atravessamos inúmeras ruas, quarteirões e mais quarteirões. Seria apenas uma menina pobre voltando para a sua casa? Talvez. Mas eu precisava ir até o fim.

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Continuei a segui-la. Ela parecia não se cansar. Eu a olhava fixamente. A cada uma de suas passadas podia ver a sola de seus pequeninos pés, encardidos pela sujeira da calçada. Vez ou outra, ela fazia movimentos circulares com o braço fazendo o saquinho de pano bambolear em torno de seu pulso.

De tanto olhá-la, seu entorno tornou-se brumoso. Parecia ser só aquela frágil menina emoldurada num tecido acinzentado. E à medida que eu a olhava, sua imagem também foi se decompondo. Até não restar mais nada além de um pequeno círculo disforme tremulando à minha frente. Para onde ela foi? E para onde fora o resto das coisas?! Os carros, as ruas, não havia mais nada. Nem mesmo o meu próprio corpo eu podia ver. Tudo se convertera numa completa escuridão. Sem sons, sem vento, sem chão. Seria aquela ausência de tudo a passagem para o desfiladeiro?

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De repente, comecei a enxergar alguns círculos disformes em movimento. Depois, vi que eram muitos, milhares. Parecia uma multidão se movendo rápido e desordenadamente.

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Após respondê-la não mais percebi a sua presença. Imediatamente, todas aquelas células frenéticas foram aumentando de tamanho e o silêncio interrompido por dois toques curtos de buzina seguidos de uma voz:

Olhei assustado e me vi com o celular em punho. Ao meu lado, um veículo Ford Ka branco.

Ainda atordoado, abri a porta do passageiro e, ao me sentar, o motorista repreendeu-me enfurecido: