Passei toda a semana me perguntando sobre como toda aquela areia fora parar dentro dos tênis de Mica. Mas era só um tênis de criança cheio de areia... As crianças brincam, sujam suas roupas, pisam em poças d’água e sobem em montes de areia. Elas fazem isso o tempo todo! Por que, então, aquilo me incomodava tanto? Mas, no fundo, eu sabia: só estava tentado driblar a minha mente. Eu continuava paranoico com aquela história do desfiladeiro. Houve um momento, contudo, durante aquele piquenique, em que eu até cheguei a pensar que havia superado essa história. Já estava me conformando com a ideia de ter tido uma ilusão de ótica devido a algum tipo de estresse, ou coisa do gênero. Mas aquela areia, surgindo do nada, reacendeu em mim a nóia do desfiladeiro. Era uma areia muito fina, exatamente igual àquela que meus pés pisaram durante o pesadelo. E, do pouco que eu ainda podia me lembrar dos ensaios de geologia, a granulometria daquela areia só poderia ser o resultado de uma construção sedimentar eólica, ou seja, aquele tipo de areia só é encontrado em dunas desérticas ou litorâneas. Como, então, aquela areia havia parado lá? Só tinha um jeito de saber: indo lá.
Aproveitei as primeiras horas do domingo e me dirigi para a casa de Ana Cleide. O sol estava raiando e ainda não havia ninguém trafegando pelo setor. Percorri, bem devagar, os quarteirões vizinhos a casa de D. Tê, na esperança de encontrar um monte de areia com aquelas características, onde, possivelmente, Mica teria brincado. Não encontrei. Então, fiz todos os trajetos possíveis entre a casa de D. Tê e a invasão. Também não encontrei nada além de algumas casas em reforma com tijolos e areia depositados em suas calçadas. Mas eram somente areias grossas do tipo usado para construção. Só me restavam, então, dois últimos lugares: o interior da invasão e o percurso que eu e Mica fizéramos no dia do piquenique. Iniciei pela segunda opção, pois, com toda aquela população canina, ao entrar tão cedo na invasão, certamente eu seria uma presa fácil para algum cãozinho de plantão.
Estacionei a moto ao lado da mesma árvore do piquenique. Nas proximidades do tronco notei que uma pequena porção da areia ainda estava lá, justamente aonde Ana Cleide batera os tênis de Mica para esvaziá-los. Ajuntei o máximo que pude daquela porção e fiquei ali esfregando-a entre os dedos. Depois, fui em direção à trilha que percorremos. Caminhei vagarosamente por todo o percurso. A cada dez passos caminhados, eu parava e abria as moitas de capim para ver se não havia depósitos de areia. Nada. Não achei um só grão de areia. Era só capim plantado sobre um latossolo vermelho-escuro. Agora, só me restava o interior da invasão.
Parei em frente à casa de Lindomar e permaneci sentado sobre a moto esperando que acordassem. Não demorou muito até que a porta da sala se abriu. Biscoito foi o primeiro a ganhar o terreiro seguido por Mica e Denílson. Imitando o amiguinho, os dois foram se desapertar junto à pilha de tijolos.
p. 62— Manhêêê? Olha quem tá aqui! — gritou Mica correndo em minha direção.
— Ton?! O que faz aqui tão cedo? Entra pra dentro. — convidou-me Glacylene —. Não vem me dizê que veio aqui pra nos avisar que já marcaram uma data pra gente desocupá a invasão. É isso?
— Não é nada disso Glacylene. É que eu estava indo me encontrar com a Ana Cleide, mas, como ainda estava muito cedo, resolvi passar aqui pra dar um abraço no Mica. — respondi desconcertado num improviso. —. Mas já que tocou no assunto, me responda: o que os outros moradores estão dizendo sobre a mudança para o Nice View?
— Assim, estão meio dividido, sabe? Uns pensa que a mudança vai ser uma boa, ôtros, nem toca no assunto; acho que eles ainda não têm uma opinião formada. Mas, tem um bocado de gente que tá com muito medo de mudá pra lá. A Dona Anaildes, mesmo, a vizinha aqui de lado, anda muito preocupada com essa mudança.
— E vocês?
— O que tem a gente?
— O que estão achando da mudança?
— Não vou mentir pra você, Ton. No começo fiquei muito feliz com a ideia de conseguir a nossa casa própria. Pensei até que era um presente de Deus. Mas depois que a construtora levô a gente lá, isso deu um nó na minha cabeça, sabe? Mas, deixe eu te pedir um favor: não fala nada dessas coisa pro Lindomar, tá bom? Ele anda muito jururu, e eu sei que é por conta dessa mudança.
— Em que essa mudança está afetando tanto ele?
— É que o Lindomar é muito apegado as coisa daqui, sabe? Ele viu este setor nascê. Antes de virá vigia da escola, o Lindomar trabalhô aqui de ajudante de pedrêro num monte de obra. Ele conhece, praticamente, todas as pessoa daqui. E todo mundo, não só da invasão, mas, de tudo quanto é canto do setor, adora o Lindomar. Além disso, o Lindomar fica desesperado só de pensá que vai ficá longe das planta que ele cuida, lá da escola e em volta da nossa casa aqui.
— Entendi. Ele até me falou das plantas no dia em que fomos até a escola levar o almoço para ele. Eu sinto muito que tudo isso esteja acontecendo, mas, quero que saiba, Glacylene, que, quando aceitamos o trabalho, nem eu nem o meu sócio sabíamos sobre a intensão da construtora em transferir vocês para a segunda etapa do residencial Nice View. No início, pensávamos que o nosso relatório beneficiaria todas as famílias da invasão. Desde então venho criando coragem para esclarecer isso para você.
— Por que então, não veio logo nos avisá quando ficou sabendo do plano deles de tirá a gente daqui e nos levá praquele fim de mundo? Já sei, não queriam perdê a “boquinha” com a empresa, não é isso? — disparou Glacylene.
— Não se trata disso. Depois que soube do plano, fiquei desesperado, mas já era tarde.
— Como assim, tarde?
— Não tinha mais volta. Ao assinarem os contratos de adesão ao programa de habitação, também concordaram em abrir mão de qualquer tipo de direito adquirido sobre as áreas invadidas deste setor. Toda essa documentação, depois de registrada em cartório, foi também protocolada no ministério público, o que deu ao proprietário original plenos direitos para despejá-los caso resistam em desocupar esses terrenos na data combinada.
p. 63— Mas, então, por que ainda trabalha pra essa gente?
— Depois que me formei, essa foi a primeira oportunidade real que me apareceu capaz de me tirar da pobreza na qual eu me encontrava. Eu quero dar uma vida bem legal para Ana Cleide. Sei que um dia vai entender e me perdoar.
Naquele mesmo momento, Lindomar sai do banho:
— Bom dia seu moço! Caiu da cama?
— Bom dia, seu Lindomar. Acho que caí mesmo. Tava indo pra casa de Ana Cleide e resolvi passar aqui pra dar um abraço no Mica.
— Bão. Então, o moço fica mais um bocadin que vô ali buscá um pão enquanto Glacylene passa um café pra nóis.
— Então, vou com o senhor até a padaria. — me ofereci.
— Bora lá.
Ter me aberto com a Glacylene me dera um pouco de alívio. Há muito esperava por aquela oportunidade. Tudo bem que ela ainda me culpava por eu ter sido omisso. No fundo, ela tinha razão. Eu mesmo ainda não havia livrado a minha consciência daquela parcela de culpa. E, na volta da padaria, aproveitei para entrar no assunto que mais me interessava naquele momento, a areia:
— Seu Lindomar? Talvez o senhor possa me ajudar com um problema.
— Pode falar, seu moço.
— É que devo realizar uma experiência hoje, coisa de geografia, e precisarei de um pouquinho de areia, assim, só meio balde. E como hoje é domingo, não sei se vou achar alguma loja de material de construção aberta.
— Pode ficá tranquilo. Podêmo dá uma voltinha aqui pela invasão e ajeitá essa areia rapidin.
p. 64— Sabe o que é Seu Lindomar, é que precisa ser uma areia, assim, bem fininha mesmo, sabe? Quase igual a um polvilho.
— Bão, fininha assim, não sei se vâmo achá. Mas, isso tamém não é pobrema. A gente acha uma areia e passa ela numa penêra bem fina. Serve assim?
— Talvez sirva. Depois do café, o senhor pode andar comigo pela invasão?
— Ando sim. Só não vô podê demorá muito, causo que a Glacylene precisa chegá na igreja as nove em ponto, e já é quais oito.
Tomamos o café e seguimos invasão adentro. Denílson junto ao pai, e Mica segurando firme a minha mão. Passamos, praticamente, por quase todos os quintais e nenhum sinal de areia fina. Atencioso, Lindomar escolheu uma areia que julgou ser a mais fina e a colocou em um balde a fim de peneirá-la. Agradeci a sua ajuda informando-lhe de que aquela areia seria adequada aos meus propósitos — eu não queria desapontá-lo —. Peneiramos uma porção da areia e a colocamos dentro de uma sacola plástica. Despedimo-nos e esperei até que Lindomar e sua família dobrassem o quarteirão para que eu pudesse me livrar daquela areia. Dirigi-me, então, até o monte de areia mais próximo e esvaziei a sacola. Ao me virar, dei de cara com a D. Anaildes, a vizinha da casa ao lado:
— Bom dia! Meu jovem. Por acaso está procurando uma areia bem fininha, dessas que o vento carrega pra lá e pra cá?
— Isso mesmo. E a senhora andou escutando a minha conversa com o seu Lindomar, não foi? — perguntei-lhe desconfiado.
— Andei sim. E se ainda estiver interessado, posso ajudá-lo a encontrar a sua areia.
— Muito agradecido, senhora. Mas não precisa se incomodar. Está tudo certo agora.
— Isso não me incomoda nenhum pouco. Se puder esperar um minutinho, posso ir até minha casa buscar um pouco da areia para você.
O que eu tinha a perder? Para não parecer mal-educado, consenti. Passado algum tempo, D. Anaildes volta carregando um saquinho de pano abarrotado de areia. A primeira coisa que me veio à mente foi que ela usava aquele saco como escorador de portas. Então ela se aproximou, desamarrou a boca do saco e despejou sobre a minha mão uma porção da areia. Senti o frescor e a fina textura de seus grãos escorrer pelos meus dedos. Era, praticamente, idêntica àquela que retiramos de dentro do tênis de Mica.
p. 65— Nossa! Que areia fresquinha! — dei corda a ela. — quem deu essa areia para a senhora?
— Ninguém não. Eu mesma busquei.
— Que legal! Em que parte do litoral a senhora estava quando apanhou essa areia tão fininha?
— Não foi em nenhum litoral. Apanhei esta areia bem pertinho daqui.
— Em alguma loja de material de construção?
— Não! Foi perto daquele mato ali. — respondeu a velha apontando o dedo exatamente na direção do perímetro onde eu fizera o levantamento.
Não pode ser. Aquilo só podia ser uma brincadeira. Então, resolvi interrogá-la mais objetivamente:
— Não entendo, senhora, andei por toda aquela área e não encontrei areia alguma. Quando encontrou essa areia lá? Isso faz muito tempo?
— Não! Isso foi esses dias mesmo. Umas duas ou três semanas atrás.
— E essa areia ainda está lá, nesse mesmo lugar onde a senhora apontou?
— Sim!
— Neste caso, se a senhora me mostrar o lugar exato eu também poderei encontrá-la, não em mesmo?
— Talvez.
— Como talvez?! Agora a senhora me deixou confuso.
— Posso saber para que o jovem quer essa areia?
— É que sou geógrafo e estou realizando uma pesquisa sobre os tipos de areia que ocorrem nessa região. Por isso é que preciso reunir o maior número possível de diferentes amostras de areia. — improvisei.
— Entendi. Neste caso, posso dar a você este meu saco de areia. O que acha?
— É muita bondade de sua parte, mas não posso aceitá-lo.
— Por que não? Pode levar! Depois vou até lá apanhar mais. Estou mesmo precisando fazer uma caminhada.
— Sabe o que é, senhora? A areia não pode ser colhida assim, de qualquer jeito.
— Como assim, de qualquer jeito?
— É que a coleta da areia envolve todo um processo, sabe? É preciso usar luvas, armazená-la em um recipiente específico para não haver contaminação, essas coisas de ciência, entende?
— Entendi. E estou vendo também que estou diante de um jovem muito criativo. — disse a velha disfarçando um sorriso.
— A senhora não está acreditando em mim? — desafiei.
— É que não entendo muito bem dessas coisas de ciência. Você poderia me dizer novamente por que quer a areia?
— Mas eu acabei de contar para a senhora. É para uma experiência!
Naquele momento, ela olhou nos meus olhos e não disse mais uma só palavra. Simplesmente, abriu a boca do saco despejando, lentamente, toda a areia sobre o chão. À medida que a areia polvilhava o solo, ela ia passando os pés sobre ela misturando-a à terra do quintal. Depois, deu-me as costas dizendo:
— Se decidir me contar a verdade, poderá não apenas pisar na areia, mas, rolar sobre ela e até cobrir o seu corpo com ela. Agora, vá. Tenho mais o que fazer.
Aquilo parecia surreal. Então tentei conjecturar: por que ela apontou o dedo justamente para o lugar onde eu e Mica havíamos caminhado? Vai ver nos observou naquele domingo. Daí, após escutar a minha conversa com o Lindomar, só precisou juntar os fatos e vir com aquela lorota de pisar e rolar na areia. Mas e aquele seu saco de pano contendo aquela areia finíssima? Pura coincidência somada à criatividade. Ela se lembrou de que possuía em sua casa aquele escora-portas contendo areia fina. Assim, inteligentemente, o usou para me confundir. Mas como ela sabia que eu estava mentindo? Bem, com toda aquela criatividade, saber blefar não deve ser algo difícil para ela. Sim, acho que isso explica tudo.
p. 66Voltei para a minha moto com a certeza de que havia sido enganado por uma velha maluca, além de ter perdido um precioso tempo, uma vez que já deveria estar nos braços de Ana Cleide. Contudo, ao engatar a marcha me ocorreu que ainda havia uma pergunta a ser respondida: que interesse teria aquela senhora em me atrair com sua história sobre areia? Talvez quisesse apenas me impressionar. E mesmo que eu lhe dissesse a verdade, ela jamais acreditaria em mim.
Soltei a embreagem da moto e fui saindo devagarinho, pensativo. Olhei para o meu lado esquerdo e vi a velha na janela com o olhar fixo em mim. Então, num gesto impulsivo, desliguei o motor e caminhei em direção a ela, parando a alguns metros de sua janela. Debruçada sobre o peitoril, me perguntou:
— Se esqueceu do caminho de volta, ou resolveu me contar a verdade?
— Resolvi lhe contar toda a verdade, mesmo achando que a senhora só estava tentando me embromar.
— Então pode começar. — disse a velha esboçando um semblante sereno.
— Bem, poucos dias após uma de minhas visitas aqui, à invasão, tive um sonho, quer dizer, um pesadelo. Nele, eu caminhava por um desfiladeiro arenoso. Eu estava seminu e meus pés descalços pisavam uma areia fina, macia e fresca, como essa que a senhora derramou sobre as minhas mãos.
— Continue. — ordenou-me a velha após eu ter parado.
— Mas foi esse o meu sonho!
— Me conte o resto, ou vá embora para sempre.
Aquele ultimato me deixou encabulado. Era como se ela soubesse que havia mais coisas em meu sonho.
p. 67— Tudo bem. Vou contar o resto. — concordei. — Quando eu já estava sem forças e desesperado, o desfiladeiro desembocou em um deserto coberto por imensas dunas de areia. De repente, vi surgir de dentro do desfiladeiro dezenas de pessoas vestidas com uma espécie de túnica acinzentada. Tudo se tornou ainda mais estranho quando percebi que aquelas pessoas eram as mesmas que residem nesta invasão. Depois, vi o menino Mica, filho de Glacylene, ao lado da Fernanda, uma funcionária da construtora onde eu trabalho. De seus corpos brotavam feixes de luz. As pessoas se aglomeravam, silenciosamente, em torno dos dois na esperança de serem atingidas por esses feixes de luz. Quando, finalmente, consegui me aproximar de Mica e Fernanda, tudo se tornou luz. Depois disso, quando me despertei, estava deitado sobre a areia, completamente cego, desorientado e tomado por uma imensa dor.
— Tudo bem. — disse a velha. — Agora, por favor, entre.
— Por que quer que eu entre em sua casa? — relutei.
— Não faça mais perguntas. Só entre.
Enchi-me de coragem e entrei. Era uma casa simples, muito parecida com o interior da casa de Lindomar. Porém, quando comecei a prestar atenção aos detalhes, me assustei com a quantidade de saquinhos de pano, cheios de areia, exatamente iguais àquele que ela levara para mim. Todos eram do mesmo tamanho e estavam espalhados por toda a sala: sobre a mesa, sobre o sofá, detrás da porta e até pelo chão.
— Quantos sacos! A senhora os faz para vender como escoradores de porta? E para enchê-los, a senhora usa a mesma areia que diz apanhar próximo à mata? Vai me levar até lá? — disparei sufocando-a com perguntas.
— Se acalme, jovem Ton. Com o tempo, irá saber de tudo.
— Como assim, com o tempo?! Quero saber agora! Eu lhe contei a verdade, agora, precisa cumprir sua parte me levando até o lugar onde apanhou toda essa areia.
— Tudo bem. É justo. Mas, antes, me diga por que procurava a areia exatamente naquele lugar, se em seu sonho ela aparecia somente em um desfiladeiro?
— Já que me perguntou isso, também acho justo contar-lhe. Foi num desses dias em que estive aqui fazendo algumas medições, dentro da invasão e na área ao lado. De repente, olhei pela lente do equipamento e vi, pelo menos por três vezes, o desfiladeiro. Foi assim. Desde então, passei a conviver com a ideia de que havia sofrido um tipo de surto psicótico, ou sei lá o que. Um dia, num domingo, levei Ana Cleide e Mica até aquele local sob o pretexto de fazermos um piquenique. Mas o verdadeiro motivo pelo qual eu os havia convidado eu não revelei. Na verdade, eu queria tirar de minha mente, de uma vez por todas, o fantasma do desfiladeiro.
— Prossiga.
— Então, na manhã do piquenique, Mica e eu, fomos e voltamos, por várias vezes, pelo mesmo caminho descrito nas coordenadas, sem achar um grão de areia sequer. Porém, quando chegamos até a árvore onde estava Ana Cleide, os tênis de Mica estavam abarrotados de areia, o mesmo tipo de areia que a senhora retirou daquele seu saquinho. Pronto. Falei. Agora, por favor, me diga se vai, ou não, me levar até a areia.
p. 68— Você já se perguntou o porquê de ter sido apenas os tênis de Mica a se encherem de areia, se ambos andaram pelo mesmo caminho?
— Essa é uma pergunta muito interessante! Por que não pensei nisso antes? A senhora saberia me responder?
— Quer que eu lhe responda por que não pensou nisso antes, ou por que só os tênis de Mica se encheram de areia?
— Somente sobre os tênis de Mica. Por favor.
— A resposta é muito simples: enquanto andavam, o menino Mica passou pelo desfiladeiro e você não.
— Então a senhora está tentando me dizer que há, de fato, um desfiladeiro naquele lugar, só que não em estado físico. É isso?
— Em estado físico também. Do contrário, não teria tocado a areia que saiu do tênis do menino, não é mesmo?
— Neste ponto a senhora tem razão, mas por que somente Mica teve acesso ao desfiladeiro?
— Finalmente fez uma pergunta importante, jovem Ton. — disse a velha segurando as minhas mãos. — É preciso ter um propósito para acessar o desfiladeiro.
— Propósito?! Que propósito teria uma criança na idade de Mica?
— Olhe para todos estes sacos. Agora, me diga, o que vê?
— Vejo sacos de areia! O quer que eu veja?
— Sim. É verdade. São sacos de areia. Mas também, são sacos de propósitos.
— Propósitos?! A senhora está tentando me enlouquecer?
— Ao contrário. Estou te oferecendo a oportunidade de conhecer o seu verdadeiro propósito.
— Desculpe, mas não estou conseguindo entender absolutamente nada do que está me dizendo.
— Bem, jovem Ton. Tudo o que está acontecendo com você está repleto de propósitos. Apenas ainda não sabe disso. Muitos mais desses saquinhos virão. E quando estiver pronto, um dos sacos nesta sala será o seu. Pois você mesmo o terá trazido até aqui.
— Como assim? Então não é a senhora quem traz esses sacos para cá?
— Os sacos sim. Mas a areia dentro deles, não. As pessoas, ao encontrarem seus verdadeiros propósitos, chegam em minha casa e eu lhes dou os sacos vazios. Daí elas vão até o lugar, que você chama de desfiladeiro, os enchem com areia e me devolvem. Por essa razão é que afirmo não se tratar apenas sacos de areia, mas, também, sacos de propósito. Tome aqui este saco. Quando conseguir acessar o desfiladeiro encha-o com a areia e traga-me de volta. Então, entenderá o seu verdadeiro propósito.
— E como farei para acessar o desfiladeiro?
— No momento em que estiver pronto, uma criança surgirá para você. Vestida como no seu sonho e portando um saquinho igual a este. É o sinal. Apenas a siga. Ela é a chave. Agora vá.
Deixei a casa da velha ainda mais confuso. Não fosse pelo mistério da areia nos tênis de Mica, eu diria que a velha só estava tentando me pregar uma peça. Então me dei conta de que já estava ali há horas e havia prometido a Ana Cleide que chegaria em sua casa até às nove. Montei na moto e saí voando rua acima.
Entrei apressado e fui logo encontrando D. Tê saindo da cozinha com uma xícara de café:
— Bom dia! Ton. Chegou bem na hora. Acabei de passar um café.
p. 69— Obrigado D. Tê. Vou aceitar sim. E a Ana Cleide, onde ela está?
— Acho que ainda não acordou. Aproveita e vá lá acordá-la. Vai vê ela se esqueceu do compromisso.
Corri até o quarto de Ana Cleide. Ela ainda estava na cama:
— Oi, meu benzinho. Que surpresa! Você chegou cedo! — disse Ana Cleide, bocejante.
— Cedo?! Não é de hoje que estou no setor: já tomei café com a Glacylene, andei pela invasão e até conversei, durante um tempão, com uma senhora vizinha de Lindomar.
— Que horas são? — perguntou Ana Cleide.
Olhei, então, para o celular e levei um baita susto ao me certificar de que ainda eram dez para as nove. Imediatamente, fiz as contas: se Lindomar deixou a invasão por volta de oito e meia, como é possível, em apenas vinte minutos, eu ter conseguido conversar tantas coisas com aquela senhora, ter me deslocado até aqui e ainda ter tomado uma xícara de café com a vó Tê antes de chegar no quarto de Ana Cleide?