SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Relógio de areia

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Passei toda a semana me perguntando sobre como toda aquela areia fora parar dentro dos tênis de Mica. Mas era só um tênis de criança cheio de areia... As crianças brincam, sujam suas roupas, pisam em poças d’água e sobem em montes de areia. Elas fazem isso o tempo todo! Por que, então, aquilo me incomodava tanto? Mas, no fundo, eu sabia: só estava tentado driblar a minha mente. Eu continuava paranoico com aquela história do desfiladeiro. Houve um momento, contudo, durante aquele piquenique, em que eu até cheguei a pensar que havia superado essa história. Já estava me conformando com a ideia de ter tido uma ilusão de ótica devido a algum tipo de estresse, ou coisa do gênero. Mas aquela areia, surgindo do nada, reacendeu em mim a nóia do desfiladeiro. Era uma areia muito fina, exatamente igual àquela que meus pés pisaram durante o pesadelo. E, do pouco que eu ainda podia me lembrar dos ensaios de geologia, a granulometria daquela areia só poderia ser o resultado de uma construção sedimentar eólica, ou seja, aquele tipo de areia só é encontrado em dunas desérticas ou litorâneas. Como, então, aquela areia havia parado lá? Só tinha um jeito de saber: indo lá.

Aproveitei as primeiras horas do domingo e me dirigi para a casa de Ana Cleide. O sol estava raiando e ainda não havia ninguém trafegando pelo setor. Percorri, bem devagar, os quarteirões vizinhos a casa de D. Tê, na esperança de encontrar um monte de areia com aquelas características, onde, possivelmente, Mica teria brincado. Não encontrei. Então, fiz todos os trajetos possíveis entre a casa de D. Tê e a invasão. Também não encontrei nada além de algumas casas em reforma com tijolos e areia depositados em suas calçadas. Mas eram somente areias grossas do tipo usado para construção. Só me restavam, então, dois últimos lugares: o interior da invasão e o percurso que eu e Mica fizéramos no dia do piquenique. Iniciei pela segunda opção, pois, com toda aquela população canina, ao entrar tão cedo na invasão, certamente eu seria uma presa fácil para algum cãozinho de plantão.

Estacionei a moto ao lado da mesma árvore do piquenique. Nas proximidades do tronco notei que uma pequena porção da areia ainda estava lá, justamente aonde Ana Cleide batera os tênis de Mica para esvaziá-los. Ajuntei o máximo que pude daquela porção e fiquei ali esfregando-a entre os dedos. Depois, fui em direção à trilha que percorremos. Caminhei vagarosamente por todo o percurso. A cada dez passos caminhados, eu parava e abria as moitas de capim para ver se não havia depósitos de areia. Nada. Não achei um só grão de areia. Era só capim plantado sobre um latossolo vermelho-escuro. Agora, só me restava o interior da invasão.

Parei em frente à casa de Lindomar e permaneci sentado sobre a moto esperando que acordassem. Não demorou muito até que a porta da sala se abriu. Biscoito foi o primeiro a ganhar o terreiro seguido por Mica e Denílson. Imitando o amiguinho, os dois foram se desapertar junto à pilha de tijolos.

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Naquele mesmo momento, Lindomar sai do banho:

Ter me aberto com a Glacylene me dera um pouco de alívio. Há muito esperava por aquela oportunidade. Tudo bem que ela ainda me culpava por eu ter sido omisso. No fundo, ela tinha razão. Eu mesmo ainda não havia livrado a minha consciência daquela parcela de culpa. E, na volta da padaria, aproveitei para entrar no assunto que mais me interessava naquele momento, a areia:

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Tomamos o café e seguimos invasão adentro. Denílson junto ao pai, e Mica segurando firme a minha mão. Passamos, praticamente, por quase todos os quintais e nenhum sinal de areia fina. Atencioso, Lindomar escolheu uma areia que julgou ser a mais fina e a colocou em um balde a fim de peneirá-la. Agradeci a sua ajuda informando-lhe de que aquela areia seria adequada aos meus propósitos — eu não queria desapontá-lo —. Peneiramos uma porção da areia e a colocamos dentro de uma sacola plástica. Despedimo-nos e esperei até que Lindomar e sua família dobrassem o quarteirão para que eu pudesse me livrar daquela areia. Dirigi-me, então, até o monte de areia mais próximo e esvaziei a sacola. Ao me virar, dei de cara com a D. Anaildes, a vizinha da casa ao lado:

O que eu tinha a perder? Para não parecer mal-educado, consenti. Passado algum tempo, D. Anaildes volta carregando um saquinho de pano abarrotado de areia. A primeira coisa que me veio à mente foi que ela usava aquele saco como escorador de portas. Então ela se aproximou, desamarrou a boca do saco e despejou sobre a minha mão uma porção da areia. Senti o frescor e a fina textura de seus grãos escorrer pelos meus dedos. Era, praticamente, idêntica àquela que retiramos de dentro do tênis de Mica.

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Não pode ser. Aquilo só podia ser uma brincadeira. Então, resolvi interrogá-la mais objetivamente:

Naquele momento, ela olhou nos meus olhos e não disse mais uma só palavra. Simplesmente, abriu a boca do saco despejando, lentamente, toda a areia sobre o chão. À medida que a areia polvilhava o solo, ela ia passando os pés sobre ela misturando-a à terra do quintal. Depois, deu-me as costas dizendo:

Aquilo parecia surreal. Então tentei conjecturar: por que ela apontou o dedo justamente para o lugar onde eu e Mica havíamos caminhado? Vai ver nos observou naquele domingo. Daí, após escutar a minha conversa com o Lindomar, só precisou juntar os fatos e vir com aquela lorota de pisar e rolar na areia. Mas e aquele seu saco de pano contendo aquela areia finíssima? Pura coincidência somada à criatividade. Ela se lembrou de que possuía em sua casa aquele escora-portas contendo areia fina. Assim, inteligentemente, o usou para me confundir. Mas como ela sabia que eu estava mentindo? Bem, com toda aquela criatividade, saber blefar não deve ser algo difícil para ela. Sim, acho que isso explica tudo.

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Voltei para a minha moto com a certeza de que havia sido enganado por uma velha maluca, além de ter perdido um precioso tempo, uma vez que já deveria estar nos braços de Ana Cleide. Contudo, ao engatar a marcha me ocorreu que ainda havia uma pergunta a ser respondida: que interesse teria aquela senhora em me atrair com sua história sobre areia? Talvez quisesse apenas me impressionar. E mesmo que eu lhe dissesse a verdade, ela jamais acreditaria em mim.

Soltei a embreagem da moto e fui saindo devagarinho, pensativo. Olhei para o meu lado esquerdo e vi a velha na janela com o olhar fixo em mim. Então, num gesto impulsivo, desliguei o motor e caminhei em direção a ela, parando a alguns metros de sua janela. Debruçada sobre o peitoril, me perguntou:

Aquele ultimato me deixou encabulado. Era como se ela soubesse que havia mais coisas em meu sonho.

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Enchi-me de coragem e entrei. Era uma casa simples, muito parecida com o interior da casa de Lindomar. Porém, quando comecei a prestar atenção aos detalhes, me assustei com a quantidade de saquinhos de pano, cheios de areia, exatamente iguais àquele que ela levara para mim. Todos eram do mesmo tamanho e estavam espalhados por toda a sala: sobre a mesa, sobre o sofá, detrás da porta e até pelo chão.

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Deixei a casa da velha ainda mais confuso. Não fosse pelo mistério da areia nos tênis de Mica, eu diria que a velha só estava tentando me pregar uma peça. Então me dei conta de que já estava ali há horas e havia prometido a Ana Cleide que chegaria em sua casa até às nove. Montei na moto e saí voando rua acima.

Entrei apressado e fui logo encontrando D. Tê saindo da cozinha com uma xícara de café:

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Corri até o quarto de Ana Cleide. Ela ainda estava na cama:

Olhei, então, para o celular e levei um baita susto ao me certificar de que ainda eram dez para as nove. Imediatamente, fiz as contas: se Lindomar deixou a invasão por volta de oito e meia, como é possível, em apenas vinte minutos, eu ter conseguido conversar tantas coisas com aquela senhora, ter me deslocado até aqui e ainda ter tomado uma xícara de café com a vó Tê antes de chegar no quarto de Ana Cleide?