Passamos algumas semanas fora da cidade executando projetos de georreferenciamento em áreas rurais pertencentes ao grupo. Dois dias após o nosso retorno, Fernanda me chamou ao escritório a fim de me passar uma outra atividade. Desta vez, tratava-se de um levantamento planialtimétrico em uma área nos arredores de Goiânia.
— Essa aqui é a área a qual eu lhe falei. — disse Fernanda mostrando-me em seu laptop a imagem de um mapa capturada pelo satélite do Google Maps. — São 968 mil metros quadrados compostos de partes florestadas, partes em pastagens e uma parte contendo 56 casas irregulares, ou seja, invasões.
Não pode ser, pensei. Percorri, então, toda a imagem na esperança de não se tratar da parte invadida do Residencial Vila Sonhada. Doce ilusão...
— Notou algo familiar Sr. Ton? Pois é exatamente lá, onde está pensando que é. Chegou a hora.
— Como assim, chegou a hora?
— Não se lembra da reunião que participou com o Dr. Tavares e com o Dr. Cabral?
— Sim. Me lembro. Mas não de todos os detalhes que conversamos.
— Neste caso, deixe-me colocá-lo a par dos detalhes: Essas cinquenta e seis famílias construíram suas casas exatamente sobre uma área pertencente ao Dr. Cabral e, como sabe, ele tem um plano imediato para ela.
— O que quer dizer com plano imediato?
— Quero dizer que nesta área ele pretende construir um condomínio de luxo, o “Portal d’Lapland”.
— Agora que disse o nome do condomínio me lembrei.
— Pois então. E para que tudo ocorra dentro do plano previsto, teremos que agir com muita rapidez. Não podemos nos esquecer de que o Dr. Tavares firmou um acordo com o atual prefeito, no sentido de conseguirmos, até o final do seu mandato, todas as licenças necessárias à aprovação desse empreendimento.
— E quando termina o mandato desse tal prefeito?
— Em dezembro deste ano. Exatamente daqui a quatro meses. Compreendeu agora a urgência?
— Compreendi. Por isso também a urgência em deslocar aquelas famílias para a segunda etapa do Nice View. Pois, enquanto houver uma só família morando lá não se consegue todas as licenças, não é mesmo?
— Exatamente, meu amigo! E quero ver esse planialtimétrico sobre a minha mesa dentro de no máximo uma semana. Estamos conversados?
— Sim, Fernanda. Amanhã mesmo já daremos início.
— Excelente!
No dia seguinte, eu e Pedro nos dirigimos para o depósito da construtora a fim de apanhar os equipamentos necessários. Embora eu ainda estivesse bastante contrariado por me sentir, agora mais do que nunca, parte do processo de deslocamento daquelas famílias, também experimentava, pela primeira vez em minha vida, um estranho sentimento de empoderamento. Talvez isso fosse devido ao tão amplo, e inesperado, apoio que a Favourite nos dera. Tanto é verdade que, para a realização desse levantamento, nos foi liberado um veículo utilitário seminovo, duas estações totais de última geração, níveis eletrônicos, EPIs, ticket alimentação e até dois ajudantes foram colocados à nossa disposição.
Entramos pela parte rural do perímetro e iniciamos o aferimento dos instrumentos. Vestimos os trajes de proteção: botas, camisetas de manga longa, máscara de proteção para o rosto, bonés e óculos escuros. Em seguida, eu e um dos ajudantes nos dirigimos para a parte da invasão. As pessoas nos observavam à distância, desconfiadas. Uma delas até nos confundiu com o pessoal da companhia de água:
p. 56— Até que enfim! Não é de hoje que a prefeitura promete pra gente arrumá essa rede de esgoto. — desabafou uma moradora.
Para evitar o risco de ser reconhecido por algum dos moradores, preferi não dizer nada àquela moradora e manter-me camuflado debaixo daquele traje.
Quando chegamos nas proximidades da casa de Lindomar, percebi a presença de Mica e Denílson me espiando. Procurei disfarçar o meu olhar, embora, no fundo, estivesse doido de vontade de me revelar ao Mica. Eu me apegara muito àquela criança.
No dia que seguinte, continuei me defrontando com a mesma situação: Mica e Denílson me seguindo o tempo todo e eu fingindo não os ver. Às vezes chegavam muito próximos, a alguns metros apenas. Porém, como eu os ignorava, eles não se sentiam encorajados a puxar assunto. Aquilo me cortava o coração, pois Mica não tirava os olhos de mim. Cada movimento que eu fazia diante da estação seus olhinhos brilhavam. Eu queria muito poder levantá-lo até a altura da luneta do equipamento para que ele pudesse ver através de sua lente, matando, assim, a sua curiosidade inocente. Eu me sentia um desalmado em não dar a ele aquela oportunidade.
Até que apareceu Dona Anaildes, a vizinha de Lindomar que, sempre na sua ausência, ajudava a cuidar das crianças.
— Denílson e Mica?! O que os dois estão fazendo aqui? Já é hora de voltar pra casa. O sol tá muito forte. Vocês vão ficar doentes! — advertiu D. Anaildes.
— Aném, tia. Dêxa a gente brincá mais um pôquinho! — protestou Denílson.
— Nada disso! Bora logo pra casa. A tia fez um montão de biscoitos pra vocês.
— Ebaaa! — comemorou Mica.
Mica e Denílson saíram voando na direção da casa de D. Anaildes. Num certo sentido me senti aliviado, pois já não aguentava mais de vontade de me revelar a eles. Contudo, sabia que isso poderia me trazer uma baita dor de cabeça. Só de imaginar aqueles moradores me questionando sobre a mudança para o residencial já me deixava apavorado.
Assim, voltei a me concentrar no trabalho. Fiz sinal ao ajudante, que se achava distante de mim aproximadamente duzentos metros, pedindo a ele que posicionasse o bastão do prisma na posição vertical. Depois, ajustei a mira de alça da estação a fim de visualizar o ponto de medição. Posicionei meu olhar no visor da luneta, mirei na direção do prisma da baliza e, de repente, quase desmaiei de susto com o que focalizei: a imagem daquele desfiladeiro que me atormentara durante o pesadelo.
Desesperado, chequei o visor inúmeras vezes, mas o desfiladeiro ainda estava lá, do mesmo jeito, cinza e sem vida. Acenei para o ajudante chamando-o rapidamente. Trocamos de posição. Pedi a ele que focasse na luneta o ponto de medição e caminhei até o local onde ele estava a fim de ajustar a posição do prisma. Depois, esperei até que fizesse o sinal chamando-me de volta:
p. 57— Então, o que viu pelo foco? — perguntei, angustiado.
— Vi o ponto do prisma e o senhor segurando o bastão.
— Só isso?! Não viu nada diferente?
— Não. Por quê? Por acaso eu deixei o bastão mal posicionado? Se o senhor quiser, podemos aferir mais uma vez. — respondeu o ajudante.
— Não é isso. Quero saber se não visualizou uma depressão no terreno, assim, tipo uma grota enorme.
— Grota?!
— Isso mesmo! Uma grota enorme, do tamanho de um campo de futebol. Toda ladeada por rochas e com o solo arenoso.
— Não senhor. — afirmou o ajudante. — Entre a estação e o prisma, e em volta dele, só há pastagem, e muito plana por sinal, nenhuma grota.
No caminho de volta, contei a Pedro o que me ocorrera:
— Pedro. Eu posso jurar que vi pela luneta, por várias vezes, o mesmo desfiladeiro que vi em meu pesadelo. Não estou de brincadeira, e também não estou mentalmente transtornado!
— Ninguém aqui tá dizendo que está. — disse Pedro.
— Será que foi um surto psicótico? Devo procurar um médico?
— Calma, meu amigo. Coisas desse tipo podem acontecer a qualquer um. Talvez você só esteja passando por um desses estresses psicológicos devido a alguma experiência traumática. — amenizou Pedro —. Relaxa, tire o resto da semana de folga. Se quiser, deixe o restante do levantamento por minha conta. Eu consigo entregá-lo para a Fernanda na segunda feira, sem falta.
— Talvez o amigo tenha razão. Confesso que não estou aguentando mais ter que viver como um daqueles agentes duplos dos filmes de James Bond. Isso tá me deixando louco, sabia?
— Como assim, agente duplo?!
p. 58— Você sabe: trabalhar para o grupo Favourite e, ao mesmo tempo, manter relações afetivas com algumas pessoas que moram naquela invasão.
— Tem razão. Neste caso, sou obrigado a concordar com você. Eu mesmo não gostaria de estar na sua pele.
— E o que você faria então, se estivesse no meu lugar?
— Sei lá, Ton. Talvez eu tentasse me livrar deste sentimento de culpa admitindo o fato de ter caído na lábia da Fernanda, assim como caíram todos aqueles moradores. Além do mais, nós dois sabemos: só estávamos em defesa do nosso ganha pão, não é mesmo?
— Pode ser, mas se não tínhamos culpa no início, continuo pensando que passamos a tê-la no momento em que aceitamos fazer parte do grupo. Não acha?
— Acho que já conversamos muito sobre isso. E, se continuarmos, não chegaremos a lugar algum; será como andar em círculos. — disse Pedro na intenção de encerrar o assunto de uma vez por todas.
Concordei com o Pedro em tirar alguns dias de folga.
Na manhã seguinte, procurei me distrair: fui ao mercado, faxinei a quitinete e assisti TV. Contudo, a imagem daquele desfiladeiro não saía de minha mente nem por um segundo.
E depois de muito pensar, concluí que deveria voltar até o ponto de medição onde eu havia visualizado o desfiladeiro. Eu precisava confrontar a minha própria consciência. Talvez assim, após constatar que tudo não passara de uma ilusão ocasionada, quem sabe, por um estresse, como sugerira Pedro, eu superaria o problema. Então, me ocorreu a ideia de aproveitar o domingo para levar Ana Cleide e Mica até o local sob o pretexto de fazermos um piquenique. Com isso, eu mataria dois coelhos com uma só cajadada: pôr a minha imaginação à prova e, ao mesmo tempo, matar a saudade de Mica e Ana Cleide.
E no sábado, armei todo o esquema:
p. 59No domingo, às oito horas, eu já estava com tudo pronto. E para não correr o risco de errar o ponto onde o desfiladeiro fora focalizado, enviei os dados do levantamento planialtimétrico para o meu celular.
Cheguei na casa da vovó Tê às nove horas. Ana Cleide e Mica já me esperavam no portão. Mica pulou de alegria ao me ver chegar. Paramos na padaria do setor, compramos as guloseimas para o piquenique e seguimos para o local. Passamos pela cancela que se achava trancada por uma corrente, atravessamos um longo trecho de pastagem e estacionamos debaixo de um enorme pé de jatobá, cuja extensão das galhas proporcionava uma sombra de vários metros de diâmetro. Mas, assim que descemos, Ana Cleide me questionou incomodada:
— Benzinho? Já que estamos de carro, por que escolheu logo este local pra fazermos o piquenique?
— Não gostou?
— É muito bonito, mas não poderia ter escolhido um lugar, assim, um pouco mais distante do setor? Olhe lá, daqui dá pra gente enxergar até a casa do Lindomar!
— Eu sei, amor. É porque aqui me sinto mais seguro, sabe como é, esse carro é emprestado e aqui é uma propriedade privada. Eu tenho as chaves do cadeado e autorização para entrar. Assim, qualquer coisa que acontecer, posso simplesmente justificar dizendo que precisei vir até aqui, no domingo, para checar alguns pontos do levantamento antes de entregá-lo na segunda. — tentei contornar a situação.
— Neste ponto, acho que você está certo, meu benzinho. — concordou Ana Cleide.
— Vamos fazer assim: depois que a gente sair daqui, o que acha de deixarmos o Mica em casa e darmos um rolê pelo centro? — lancei a proposta na intenção de consertar o programa.
— Nossa, meu benzinho! Vou amar! — comemorou Ana Cleide, dando-me um beijo.
Tudo certo. Agora eu só tinha que localizar o ponto pelas coordenadas do meu celular e ir até lá. Para isso, sugeri à Ana Cleide que organizasse as coisas do piquenique enquanto eu e Mica iríamos dar uma volta pela propriedade.
Coloquei Mica sobre os meus ombros e segui até o ponto inicial de medição. Depois de não mais suportar o seu peso, o coloquei no chão e seguimos caminhando até a outra extremidade, sempre segurando a sua mão. Percorremos, por três vezes, aquelas coordenadas e nem sinal do desfiladeiro.
— Tio Ton? Não quero bincá mais. Quero voltá lá pra onde tá a tia Ana Cleide. — reclamou Mica esgotado.
— Tudo bem Mica. Vamos voltar. Mas antes, responda para o tio Ton: o Mica não viu, em nenhuma das vezes em que fomos e voltamos, um buracão bem grandão, assim, maior do que a casa da vó Tê?
— Um buracão do tamanho do mundo assim? — perguntou Mica abrindo os braços na horizontal.
— Isso mesmo! Um buracão desse tamanhão assim. — respondi na esperança de que ele tivesse visto o desfiladeiro.
— Não, tio Ton. O Mica não viu nenhum buracão. Tio Ton? Quero tomá guaraná.
— Guaraná? Vamos lá pedir à tia Ana Cleide.
— Ebaaa!
p. 60Naquele momento, me senti aliviado em ver que a imagem do desfiladeiro não passara de uma ilusão de ótica.
— Nossa! Aonde é que vocês dois foram? O Mica está com o rostinho todo vermelho! — bronqueou Ana Cleide.
— Me desculpe, amor. Acho que me empolguei e acabamos andando mais do que devíamos.
— Vem cá Mica, a tia vai te dar um suquinho de uva geladinho. Deixe eu tirar o seu tênis pra você descansar um pouco aqui no colinho da tia. Mas que tanto de areia é esse?! — se espantou Ana Cleide ao retirar os tênis do sobrinho.
— Não sei, amor. Por onde andamos não há areia, é só pastagem. Talvez essa areia tenha vindo da casa de Lindomar, ou de algum quintal da vizinhança por onde ele esteve brincando.
— De jeito nenhum, meu benzinho. Fui eu mesma quem calçou esses tênis no Mica antes de sairmos. Eles estavam limpíssimos!