SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Delírios técnicos

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Passamos algumas semanas fora da cidade executando projetos de georreferenciamento em áreas rurais pertencentes ao grupo. Dois dias após o nosso retorno, Fernanda me chamou ao escritório a fim de me passar uma outra atividade. Desta vez, tratava-se de um levantamento planialtimétrico em uma área nos arredores de Goiânia.

Não pode ser, pensei. Percorri, então, toda a imagem na esperança de não se tratar da parte invadida do Residencial Vila Sonhada. Doce ilusão...

No dia seguinte, eu e Pedro nos dirigimos para o depósito da construtora a fim de apanhar os equipamentos necessários. Embora eu ainda estivesse bastante contrariado por me sentir, agora mais do que nunca, parte do processo de deslocamento daquelas famílias, também experimentava, pela primeira vez em minha vida, um estranho sentimento de empoderamento. Talvez isso fosse devido ao tão amplo, e inesperado, apoio que a Favourite nos dera. Tanto é verdade que, para a realização desse levantamento, nos foi liberado um veículo utilitário seminovo, duas estações totais de última geração, níveis eletrônicos, EPIs, ticket alimentação e até dois ajudantes foram colocados à nossa disposição.

Entramos pela parte rural do perímetro e iniciamos o aferimento dos instrumentos. Vestimos os trajes de proteção: botas, camisetas de manga longa, máscara de proteção para o rosto, bonés e óculos escuros. Em seguida, eu e um dos ajudantes nos dirigimos para a parte da invasão. As pessoas nos observavam à distância, desconfiadas. Uma delas até nos confundiu com o pessoal da companhia de água:

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Para evitar o risco de ser reconhecido por algum dos moradores, preferi não dizer nada àquela moradora e manter-me camuflado debaixo daquele traje.

Quando chegamos nas proximidades da casa de Lindomar, percebi a presença de Mica e Denílson me espiando. Procurei disfarçar o meu olhar, embora, no fundo, estivesse doido de vontade de me revelar ao Mica. Eu me apegara muito àquela criança.

No dia que seguinte, continuei me defrontando com a mesma situação: Mica e Denílson me seguindo o tempo todo e eu fingindo não os ver. Às vezes chegavam muito próximos, a alguns metros apenas. Porém, como eu os ignorava, eles não se sentiam encorajados a puxar assunto. Aquilo me cortava o coração, pois Mica não tirava os olhos de mim. Cada movimento que eu fazia diante da estação seus olhinhos brilhavam. Eu queria muito poder levantá-lo até a altura da luneta do equipamento para que ele pudesse ver através de sua lente, matando, assim, a sua curiosidade inocente. Eu me sentia um desalmado em não dar a ele aquela oportunidade.

Até que apareceu Dona Anaildes, a vizinha de Lindomar que, sempre na sua ausência, ajudava a cuidar das crianças.

Mica e Denílson saíram voando na direção da casa de D. Anaildes. Num certo sentido me senti aliviado, pois já não aguentava mais de vontade de me revelar a eles. Contudo, sabia que isso poderia me trazer uma baita dor de cabeça. Só de imaginar aqueles moradores me questionando sobre a mudança para o residencial já me deixava apavorado.

Assim, voltei a me concentrar no trabalho. Fiz sinal ao ajudante, que se achava distante de mim aproximadamente duzentos metros, pedindo a ele que posicionasse o bastão do prisma na posição vertical. Depois, ajustei a mira de alça da estação a fim de visualizar o ponto de medição. Posicionei meu olhar no visor da luneta, mirei na direção do prisma da baliza e, de repente, quase desmaiei de susto com o que focalizei: a imagem daquele desfiladeiro que me atormentara durante o pesadelo.

Desesperado, chequei o visor inúmeras vezes, mas o desfiladeiro ainda estava lá, do mesmo jeito, cinza e sem vida. Acenei para o ajudante chamando-o rapidamente. Trocamos de posição. Pedi a ele que focasse na luneta o ponto de medição e caminhei até o local onde ele estava a fim de ajustar a posição do prisma. Depois, esperei até que fizesse o sinal chamando-me de volta:

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No caminho de volta, contei a Pedro o que me ocorrera:

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Concordei com o Pedro em tirar alguns dias de folga.

Na manhã seguinte, procurei me distrair: fui ao mercado, faxinei a quitinete e assisti TV. Contudo, a imagem daquele desfiladeiro não saía de minha mente nem por um segundo.

E depois de muito pensar, concluí que deveria voltar até o ponto de medição onde eu havia visualizado o desfiladeiro. Eu precisava confrontar a minha própria consciência. Talvez assim, após constatar que tudo não passara de uma ilusão ocasionada, quem sabe, por um estresse, como sugerira Pedro, eu superaria o problema. Então, me ocorreu a ideia de aproveitar o domingo para levar Ana Cleide e Mica até o local sob o pretexto de fazermos um piquenique. Com isso, eu mataria dois coelhos com uma só cajadada: pôr a minha imaginação à prova e, ao mesmo tempo, matar a saudade de Mica e Ana Cleide.

E no sábado, armei todo o esquema:

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No domingo, às oito horas, eu já estava com tudo pronto. E para não correr o risco de errar o ponto onde o desfiladeiro fora focalizado, enviei os dados do levantamento planialtimétrico para o meu celular.

Cheguei na casa da vovó Tê às nove horas. Ana Cleide e Mica já me esperavam no portão. Mica pulou de alegria ao me ver chegar. Paramos na padaria do setor, compramos as guloseimas para o piquenique e seguimos para o local. Passamos pela cancela que se achava trancada por uma corrente, atravessamos um longo trecho de pastagem e estacionamos debaixo de um enorme pé de jatobá, cuja extensão das galhas proporcionava uma sombra de vários metros de diâmetro. Mas, assim que descemos, Ana Cleide me questionou incomodada:

Tudo certo. Agora eu só tinha que localizar o ponto pelas coordenadas do meu celular e ir até lá. Para isso, sugeri à Ana Cleide que organizasse as coisas do piquenique enquanto eu e Mica iríamos dar uma volta pela propriedade.

Coloquei Mica sobre os meus ombros e segui até o ponto inicial de medição. Depois de não mais suportar o seu peso, o coloquei no chão e seguimos caminhando até a outra extremidade, sempre segurando a sua mão. Percorremos, por três vezes, aquelas coordenadas e nem sinal do desfiladeiro.

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Naquele momento, me senti aliviado em ver que a imagem do desfiladeiro não passara de uma ilusão de ótica.