Ao saber que o Dr. Tavares havia nos convidado para sermos seus parceiros em um contrato de exclusividade, Pedro quase enlouqueceu. Para ele, aquele convite significava o nosso bilhete de passagem rumo ao sucesso.
De minha parte, eu ainda estava tentando digerir tudo aquilo. Um turbilhão de ideias me invadia a mente: de um lado, os argumentos de Fernanda e Tavares se juntavam aos sonhos profissionais de Pedro e também a possibilidade de eu poder proporcionar à Ana Cleide uma vida mais confortável; do outro, os semblantes decepcionados de Glacylene e de seus vizinhos me atravessavam a alma como uma flecha chamejante.
Naquela noite não consegui dormir. Pesadelos me roubaram o sono. Num deles, eu estava dentro de um desfiladeiro deserto, rochoso e frio. Faminto e descalço, caminhei por ele durante horas. Nenhum som, nenhum cheiro, nada que pudesse indicar a presença de vida. Quando os meus pés já não conseguiam mais caminhar sobre aquele solo pedregoso, comecei a gritar desesperadamente, na esperança de que alguém pudesse me ouvir. Quanto mais eu gritava mais forte a minha voz ecoava. Mais adiante, o desfiladeiro desembocou em um vale que parecia não ter fim.
p. 49O solo era arenoso, sem nenhuma vegetação. No céu, três luas cheias, extremamente reluzentes, iluminavam todo o vale. Intuitivamente, voltei meu olhar para dentro do desfiladeiro e comecei a ver pessoas brotando de dentro dele. Muitas pessoas, dezenas, talvez centenas. Todas silenciosas e vestidas com o mesmo traje, uma espécie de túnica acinzentada. De repente, tive a impressão de já ter visto antes alguns daqueles rostos. Sim, eu estava certo. Eram todos moradores da parte invadida do Residencial Vila Sonhada. Tentei, então, chamá-las à atenção: gritei, pulei e até puxei suas vestes, mas sequer me olhavam. Seguiam caladas, vagarosamente, todas com os olhos esbugalhados, como se estivessem num estado de transe. Então, inesperadamente, pararam diante de dois pequenos feixes de luz que pulsavam, compassadamente, ora mais lento, ora mais rápido. Quanto mais rápido pulsavam mais intensa ficava a luminosidade de suas centelhas. Depois, suas luminescências começaram a esvaecer, lentamente, até se perfilarem em duas formas, uma do tipo humanoide, e outra malproporcionada. Misturei-me à multidão chegando o mais perto que pude. As pessoas, uma a uma, se aproximavam dos dois seres e recebiam deles um rápido toque de pontas de dedo, bem no centro de suas testas. Em seguida, retornavam, silenciosamente, para dentro do desfiladeiro. Quando não restava mais ninguém, tomei coragem e me aproximei dos seres. Fiquei paralisado diante do que vi: os dois seres eram Mica e Biscoito. Mica, então, me olhou com ternura e, com os dedos abertos em “V”, tocou-me os olhos, me causando intenso ardor. Lancei-me ao solo me contorcendo de dor. Depois que a dor se foi, eu não conseguia mais enxergar, absolutamente nada. Eu estava completamente cego e solitário num mundo que não era o meu.
Acordei com o som de minha própria voz gritando por socorro. Ao me certificar que estava intacto e enxergando, senti um grande alívio, embora ainda atormentado pelas experiências vividas durante o pesadelo.
Olhei-me no espelho, demoradamente, na esperança de que a minha imagem nele refletida pudesse me dizer o que eu deveria fazer naquele dia. Tudo o que consegui foi uma vertiginosa sensação ao ver a minha própria imagem me olhando. Era como se houvesse ali um outro de mim, desconhecido, calado e frio, como as pessoas que vi em meu pesadelo.
Meu cérebro só queria um café. Adentrei, então, a minúscula cozinha da quitinete e me deparei com o primeiro desafio do dia:
— Bom dia sócio! Então, bora ligar pra Fernanda e dizer a ela que aceitamos a proposta do Dr. Tavares? — perguntou-me Pedro entusiasmado.
— Ainda não sei. — respondi cabisbaixo.
— O que você tem?! Ficou maluco? Essa é a nossa grande chance, tá ligado? Se desistir, penso que nem a Ana Cleide vai te perdoar — argumentou, enfezado.
— Pode ser, mas, se aceitarmos, seremos cúmplices do que está prestes a acontecer com aquela gente. Como vou poder encarar Glacylene, Mica, Lindomar e seus vizinhos?
— Agora é tarde, não acha?
— Como assim?
— O fato de você não aceitar o convite não irá mudar em nada a opinião de Glacylene e dos outros. Por mais que você tente dizer a eles que não sabia de nada a respeito do que estava por trás do levantamento que fez para a Favourite, não entenderiam. Para eles, você fez parte de toda a jogada e ponto final!
p. 50Talvez Pedro tivesse razão. Naquela altura do campeonato, declinar da proposta do Dr. Tavares não atenuaria a situação; o que já estava feito não tinha mais volta. E depois, com certeza Ana Cleide entenderia o meu lado quando eu contasse a ela.
— Tudo bem, sócio. Você está certo. Vamos procurar a Fernanda e fechar logo essa parceria.
— É assim que se fala! Puta que pariu! Nós vamos bombar! — comemorou Pedro me abraçando e derrubando todas as coisas sobre a mesa.
Três dias depois, Fernanda nos solicitou que a encontrássemos em um cartório. Assinamos o contrato, fizemos o reconhecimento das assinaturas e o registramos.
— Meus parabéns! — cumprimentou Fernanda — vocês agora fazem parte da família Favourite. Saibam que poucos conseguem uma oportunidade como esta. Portanto, façam valer a pena.
— Fique tranquila. Eu e meu sócio não vamos decepcioná-la. — disse Pedro, apertando forte a mão de Fernanda.
Na sequência, Fernanda encarou-me com um sorriso de canto de boca estendendo-me a mão. Enquanto me cumprimentava, inesperadamente, ergueu a sua mão esquerda, até a altura de minha face, tocando-me a testa com o dedo indicador dizendo:
— Sabia que faria a escolha certa.
Assim que nos distanciamos, Pedro perguntou-me:
— O que foi aquilo?
— Aquilo o que?
— Acha que eu não vi? — disse Pedro em tom de deboche. — A Fernanda tocando a sua testa com a carinha toda derretida pro seu lado.
— Não tem nada a ver. — censurei.
— Fique frio, sócio. Não vou contar nada pra Ana Cleide. — continuou Pedro a provocar-me.
No restante do dia, enquanto Pedro comemorava o feito enviando imagens do contrato para a mãe e irmãos, vesti um short e fui caminhar tentando entender aquele toque que Fernanda me dera na testa, repetindo, exatamente, o que fizera Mica durante o pesadelo da noite anterior. Será que tive um sonho do tipo premonitório? Lembro-me de minha avó contar histórias sobre sonhos que se realizavam no outro dia. Ou, quem sabe havia sido uma daquelas experiências, como é mesmo o nome? Déjà vu , é isso. Bobagem, acho que ela estava apenas debochando de mim devido àquela conversa que tivemos outro dia em que expus minhas preocupações em relação àquelas famílias. Afinal, foi exatamente por conta da minha insatisfação quanto aos seus destinos que acabei participando daquela reunião com o Dr. Tavares, o que resultou naquele contrato de parceria.
Temendo ter que encarar a família de Glacylene, liguei para Ana Cleide e combinamos de eu passar em frente à sua casa e apanhá-la no portão. Foi a primeira vez que fui à casa de Ana Cleide sem entrar para cumprimentar a sua avó. Fomos a uma sanduicheria, e lá contei tudo a ela, tanto sobre o contrato que assinamos com a Favourite, como também sobre o meu completo desconhecimento a respeito dos planos daquela empresa em desocupar a invasão.
Ana Cleide comemorou a parceria. No entanto, não quis comentar nada a respeito do que a sua irmã lhe dissera sobre a minha participação no processo de desocupação e transferência para a segunda etapa do Nice View. Imaginei que ela estivesse querendo me poupar de algum aborrecimento.
Só havia dois caminhos a tomar: enfrentar Glacylene e sua família, ou, sair de cena até a poeira abaixar.
No sábado pela tarde uma mensagem fatal salta da tela de meu celular:
p. 51Pelo jeito, só me restara a primeira opção: encarar Glacylene.
No caminho, comprei sorvetes e fui matutando uma maneira de livrar o meu pescoço caso a barra ficasse pesada pro meu lado. Não consegui pensar em nada.
Do portão já se podia ouvir a algazarra provocada por Mica e Denílson. Atravessei o jardim, empurrei a porta da sala, lentamente, e, adivinhe, dei de cara com Glacylene. Ana Cleide se interpôs dando-me um beijo e pegando de minhas mãos os sorvetes para pô-los na geladeira. Dei um oi para Glacylene recebendo de volta outro acanhadíssimo oi. Vovó Tê e Mica fizeram a maior festa ao me verem:
— O moço tá sumido! Não qué mais sabê da véia aqui é? — provocou Dona Tereza, dando-me um abraço.
— Não é nada disso Dona Tê. É que tenho estado muito atarefado, coisas lá do trabalho... também estava com saudades da senhora.
— Tio Ton? Tio Ton? Vem vê o tamanhão que tá o Biscoito! — festejou Mica, puxando-me até o quintal.
— Nossa! Esse cachorro virou uma fera! — comentei.
Durante o almoço, ninguém fez um só comentário sobre assunto da mudança para o residencial. O silêncio de Glacylene me deixava aflito. Eu precisava saber como estavam lidando com a ideia de morarem na segunda etapa do Nice View e, sobretudo, o que pensavam sobre a minha participação. Eu queria, a todo custo, espantar aquele sentimento de culpa que me corroía. Ela não tocou no assunto, e eu não tive coragem de perguntá-la.
Por fim, vovó Tê avisou a Glacylene que havia arrumado uma marmita para levar ao Lindomar. Naquele domingo, era a sua vez de cobrir a folga do outro vigia da escola. Glacylene pediu ao Robson que levasse a marmita para o pai. A escola ficava a poucas quadras dali. Vi naquela situação uma boa oportunidade para conversar com Lindomar sobre a questão da mudança para o residencial.
— Se quiserem, posso acompanhar o Robson até a escola. — me dispus.
— Precisa não. O menino sabe o caminho e já está bem grandinho. — disse Glacylene.
— Eu faço questão. Depois de comer tanto, uma caminhada me fará muito bem. — insisti.
— Se quiser, pode ir então. — consentiu Glacylene.
p. 52No caminho para a escola, Robson, como de costume, manteve-se calado, imerso em seu mundo.
Lá estava Lindomar: sentado em um tamborete, próximo ao portão de entrada da escola, tendo como companhia seu pequeno rádio de pilha e uma garrafa de café.
— Bom dia Seu Lindomar. Como tem passado?
— Vamo levando, seu moço, como Deus manda.
Enquanto Lindomar almoçava, sugeri ao Robson que me levasse para conhecer o interior da escola. Assim que entramos, um detalhe me chamou a minha atenção: no pátio, numa ampla área entre o parquinho e o muro dos fundos, ao longo de toda a sua extensão, havia uma pequena roça de milho em consórcio com feijão e abóbora e, junto dela, alguns canteiros com hortaliças.
Voltamos ao portão. Lindomar já havia almoçado. Então, resolvi puxar assunto:
— Robson me levou pra conhecer a escola. Achei muito legal, tudo muito limpo e organizado. E o que eu mais gostei foi da rocinha com a hortaliça. Isso é um projeto da secretaria municipal, Seu Lindomar?
— Não, seu moço. Eu mais o ôtro vigia, o Sinvaldo, é que cuidamo dessas planta.
— A ideia, então, partiu de algum professor ou professora da escola?
— Não. Foi eu mêmo que comecei plantá. Uma plantinha aqui ôtra aculá. O pessoal da escola foi achando bão e eu continuei a plantá. Hoje, tá desse jeito aí que o sinhô tá vendo.
p. 53— Está mesmo uma beleza! E a produção, como é consumida?
— A maió parte vai pra cantina pra ajudá no almoço das criança e dos funcionário. O que sobra, nóis reparte com o pessoal que trabáia aqui na escola. Cada um leva um pôquin pra casa.
— Isso é maravilhoso! Seu Lindomar. E como o senhor teve essa ideia?
— Uai, essa ideia nóis carrega ela a vida intêra. Se a gente vê um pedacin de terra, assim, que pode plantá, a gente vai e planta. Desde eu minino, eu alembro do meu pai fazê a mêma coisa. O véi meu pai era danado, qualqué pedacin de chão que ele achava dentro do quintal, ô im roda da casa, ele plantava. Foi assim que ele mais minha mãe deu conta de criá eu mais trêis irmão e duas irmã. Naquele tempo, quais não tinha dinhêro, assim, pra comprá as coisa, sabe? Intão, meu pai fazia fartura com as planta dele. Tudo que nóis precisava era só í no quintal que achava: banana, manga, limão, goiaba, jaca, era tantas qualidade de fruta que eu nem alembro de tudo. Tamém tinha as foiage pra fazê mistura, era taioba, inhame, e tinha tamém as planta de fazê remédio, tudo quanto há, tudo espaiado pelo quintal. Quando um de nóis apresentava, assim, um pobrema qualqué de saúde, nossa mãe curria lá no quintal e achava a planta certa para fazê o remédio. Intão, essa ideia vem dos antigo, seu moço. Eu não inventei ela não. Se o sinhô dé uma vorta lá im roda da invasão, vai achá muito pedacin de chão plantado pelos vizin.
— Interessante... e onde eles plantam, nos quintais?
— Isso mêmo. Nos quintal, eles planta essas coisarada tudo. Os espaço pra plantá é pôco, mêmo assim as planta é surtida. Quando um vizin tá precisado de fazê, assim, um chá pra curá argun problema de saúde e não acha no quintal dele, aí, ele vai no quintal do ôtro e pega uma mudinha. Daí, as planta vai espaiando pelos quintal afora. Desse jeito. Agora, tem uns conhecido meu, lá da invasão, que planta inté nas praça. Sabe essas praça que era pra tê banco, quadra de isporte, e ôtros equipamento, mais que a prefeitura nunca colocô? Pois é, eles planta nessas praça. Lá perto da invasão tem trêis praça dessa. Nos final de semana eles junta e fáiz mutirão pra plantá abobra, mí e fêjão. Eu mêmo, mais o companhêro Sinvaldo, achemo um lote, aqui perto da escola, que tá vazio desde quando nóis mudô pra cá. Nunca pareceu ninguém pra falá que é dono. Intão, todo ano nóis fáiz uma rocinha nesse lote. Inquanto não parecê ninguém pra recramá, nóis vai plantano nele. Se o moço quisé conhecê, podemo passá lá qualqué hora. Lá noís plantemo mí de pipoca, fêjão de corda, abobra e jiló. Tá tudo verdin, que inté dá gosto de vê.
p. 54Tudo aquilo que Lindomar acabara de me contar sobre como ele e seus vizinhos se organizavam para plantar em pequenos espaços improvisados, me fez perder, completamente, a coragem de especulá-lo sobre a sua mudança para o residencial. Naquele momento, percebi que a transferência daquelas famílias para a segunda etapa do Nice View causaria a elas impactos muito mais sérios do que aqueles já contabilizados, como o difícil acesso, a carência de linhas de ônibus, ou as acanhadas dimensões das casas e dos terrenos. Não estava em jogo apenas a adição de mais algumas dificuldades às suas vidas, já tão cheia de dificuldades. O que estava realmente em jogo era o esfacelamento de um mundo. Um mundo que só era possível continuar existindo ali, naquele lugar, uma vez que, naquele ambiente, cada um de seus moradores desempenha um importante papel na sua organização e funcionamento. Eram décadas de convívio e, apesar das divergências corriqueiras, havia uma dinâmica integrativa capaz de manter as especificidades e continuidades dos elementos que compunham aquele mundo. Dinâmica essa representada pelo compartilhamento solidário de práticas, conhecimentos e afinidades.