SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Um Mundo dentro de outro

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Ao saber que o Dr. Tavares havia nos convidado para sermos seus parceiros em um contrato de exclusividade, Pedro quase enlouqueceu. Para ele, aquele convite significava o nosso bilhete de passagem rumo ao sucesso.

De minha parte, eu ainda estava tentando digerir tudo aquilo. Um turbilhão de ideias me invadia a mente: de um lado, os argumentos de Fernanda e Tavares se juntavam aos sonhos profissionais de Pedro e também a possibilidade de eu poder proporcionar à Ana Cleide uma vida mais confortável; do outro, os semblantes decepcionados de Glacylene e de seus vizinhos me atravessavam a alma como uma flecha chamejante.

Naquela noite não consegui dormir. Pesadelos me roubaram o sono. Num deles, eu estava dentro de um desfiladeiro deserto, rochoso e frio. Faminto e descalço, caminhei por ele durante horas. Nenhum som, nenhum cheiro, nada que pudesse indicar a presença de vida. Quando os meus pés já não conseguiam mais caminhar sobre aquele solo pedregoso, comecei a gritar desesperadamente, na esperança de que alguém pudesse me ouvir. Quanto mais eu gritava mais forte a minha voz ecoava. Mais adiante, o desfiladeiro desembocou em um vale que parecia não ter fim.

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O solo era arenoso, sem nenhuma vegetação. No céu, três luas cheias, extremamente reluzentes, iluminavam todo o vale. Intuitivamente, voltei meu olhar para dentro do desfiladeiro e comecei a ver pessoas brotando de dentro dele. Muitas pessoas, dezenas, talvez centenas. Todas silenciosas e vestidas com o mesmo traje, uma espécie de túnica acinzentada. De repente, tive a impressão de já ter visto antes alguns daqueles rostos. Sim, eu estava certo. Eram todos moradores da parte invadida do Residencial Vila Sonhada. Tentei, então, chamá-las à atenção: gritei, pulei e até puxei suas vestes, mas sequer me olhavam. Seguiam caladas, vagarosamente, todas com os olhos esbugalhados, como se estivessem num estado de transe. Então, inesperadamente, pararam diante de dois pequenos feixes de luz que pulsavam, compassadamente, ora mais lento, ora mais rápido. Quanto mais rápido pulsavam mais intensa ficava a luminosidade de suas centelhas. Depois, suas luminescências começaram a esvaecer, lentamente, até se perfilarem em duas formas, uma do tipo humanoide, e outra malproporcionada. Misturei-me à multidão chegando o mais perto que pude. As pessoas, uma a uma, se aproximavam dos dois seres e recebiam deles um rápido toque de pontas de dedo, bem no centro de suas testas. Em seguida, retornavam, silenciosamente, para dentro do desfiladeiro. Quando não restava mais ninguém, tomei coragem e me aproximei dos seres. Fiquei paralisado diante do que vi: os dois seres eram Mica e Biscoito. Mica, então, me olhou com ternura e, com os dedos abertos em “V”, tocou-me os olhos, me causando intenso ardor. Lancei-me ao solo me contorcendo de dor. Depois que a dor se foi, eu não conseguia mais enxergar, absolutamente nada. Eu estava completamente cego e solitário num mundo que não era o meu.

Acordei com o som de minha própria voz gritando por socorro. Ao me certificar que estava intacto e enxergando, senti um grande alívio, embora ainda atormentado pelas experiências vividas durante o pesadelo.

Olhei-me no espelho, demoradamente, na esperança de que a minha imagem nele refletida pudesse me dizer o que eu deveria fazer naquele dia. Tudo o que consegui foi uma vertiginosa sensação ao ver a minha própria imagem me olhando. Era como se houvesse ali um outro de mim, desconhecido, calado e frio, como as pessoas que vi em meu pesadelo.

Meu cérebro só queria um café. Adentrei, então, a minúscula cozinha da quitinete e me deparei com o primeiro desafio do dia:

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Talvez Pedro tivesse razão. Naquela altura do campeonato, declinar da proposta do Dr. Tavares não atenuaria a situação; o que já estava feito não tinha mais volta. E depois, com certeza Ana Cleide entenderia o meu lado quando eu contasse a ela.

Três dias depois, Fernanda nos solicitou que a encontrássemos em um cartório. Assinamos o contrato, fizemos o reconhecimento das assinaturas e o registramos.

Na sequência, Fernanda encarou-me com um sorriso de canto de boca estendendo-me a mão. Enquanto me cumprimentava, inesperadamente, ergueu a sua mão esquerda, até a altura de minha face, tocando-me a testa com o dedo indicador dizendo:

Assim que nos distanciamos, Pedro perguntou-me:

No restante do dia, enquanto Pedro comemorava o feito enviando imagens do contrato para a mãe e irmãos, vesti um short e fui caminhar tentando entender aquele toque que Fernanda me dera na testa, repetindo, exatamente, o que fizera Mica durante o pesadelo da noite anterior. Será que tive um sonho do tipo premonitório? Lembro-me de minha avó contar histórias sobre sonhos que se realizavam no outro dia. Ou, quem sabe havia sido uma daquelas experiências, como é mesmo o nome? Déjà vu , é isso. Bobagem, acho que ela estava apenas debochando de mim devido àquela conversa que tivemos outro dia em que expus minhas preocupações em relação àquelas famílias. Afinal, foi exatamente por conta da minha insatisfação quanto aos seus destinos que acabei participando daquela reunião com o Dr. Tavares, o que resultou naquele contrato de parceria.

Temendo ter que encarar a família de Glacylene, liguei para Ana Cleide e combinamos de eu passar em frente à sua casa e apanhá-la no portão. Foi a primeira vez que fui à casa de Ana Cleide sem entrar para cumprimentar a sua avó. Fomos a uma sanduicheria, e lá contei tudo a ela, tanto sobre o contrato que assinamos com a Favourite, como também sobre o meu completo desconhecimento a respeito dos planos daquela empresa em desocupar a invasão.

Ana Cleide comemorou a parceria. No entanto, não quis comentar nada a respeito do que a sua irmã lhe dissera sobre a minha participação no processo de desocupação e transferência para a segunda etapa do Nice View. Imaginei que ela estivesse querendo me poupar de algum aborrecimento.

Só havia dois caminhos a tomar: enfrentar Glacylene e sua família, ou, sair de cena até a poeira abaixar.

No sábado pela tarde uma mensagem fatal salta da tela de meu celular:

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Pelo jeito, só me restara a primeira opção: encarar Glacylene.

No caminho, comprei sorvetes e fui matutando uma maneira de livrar o meu pescoço caso a barra ficasse pesada pro meu lado. Não consegui pensar em nada.

Do portão já se podia ouvir a algazarra provocada por Mica e Denílson. Atravessei o jardim, empurrei a porta da sala, lentamente, e, adivinhe, dei de cara com Glacylene. Ana Cleide se interpôs dando-me um beijo e pegando de minhas mãos os sorvetes para pô-los na geladeira. Dei um oi para Glacylene recebendo de volta outro acanhadíssimo oi. Vovó Tê e Mica fizeram a maior festa ao me verem:

Durante o almoço, ninguém fez um só comentário sobre assunto da mudança para o residencial. O silêncio de Glacylene me deixava aflito. Eu precisava saber como estavam lidando com a ideia de morarem na segunda etapa do Nice View e, sobretudo, o que pensavam sobre a minha participação. Eu queria, a todo custo, espantar aquele sentimento de culpa que me corroía. Ela não tocou no assunto, e eu não tive coragem de perguntá-la.

Por fim, vovó Tê avisou a Glacylene que havia arrumado uma marmita para levar ao Lindomar. Naquele domingo, era a sua vez de cobrir a folga do outro vigia da escola. Glacylene pediu ao Robson que levasse a marmita para o pai. A escola ficava a poucas quadras dali. Vi naquela situação uma boa oportunidade para conversar com Lindomar sobre a questão da mudança para o residencial.

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No caminho para a escola, Robson, como de costume, manteve-se calado, imerso em seu mundo.

Lá estava Lindomar: sentado em um tamborete, próximo ao portão de entrada da escola, tendo como companhia seu pequeno rádio de pilha e uma garrafa de café.

Enquanto Lindomar almoçava, sugeri ao Robson que me levasse para conhecer o interior da escola. Assim que entramos, um detalhe me chamou a minha atenção: no pátio, numa ampla área entre o parquinho e o muro dos fundos, ao longo de toda a sua extensão, havia uma pequena roça de milho em consórcio com feijão e abóbora e, junto dela, alguns canteiros com hortaliças.

Voltamos ao portão. Lindomar já havia almoçado. Então, resolvi puxar assunto:

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Tudo aquilo que Lindomar acabara de me contar sobre como ele e seus vizinhos se organizavam para plantar em pequenos espaços improvisados, me fez perder, completamente, a coragem de especulá-lo sobre a sua mudança para o residencial. Naquele momento, percebi que a transferência daquelas famílias para a segunda etapa do Nice View causaria a elas impactos muito mais sérios do que aqueles já contabilizados, como o difícil acesso, a carência de linhas de ônibus, ou as acanhadas dimensões das casas e dos terrenos. Não estava em jogo apenas a adição de mais algumas dificuldades às suas vidas, já tão cheia de dificuldades. O que estava realmente em jogo era o esfacelamento de um mundo. Um mundo que só era possível continuar existindo ali, naquele lugar, uma vez que, naquele ambiente, cada um de seus moradores desempenha um importante papel na sua organização e funcionamento. Eram décadas de convívio e, apesar das divergências corriqueiras, havia uma dinâmica integrativa capaz de manter as especificidades e continuidades dos elementos que compunham aquele mundo. Dinâmica essa representada pelo compartilhamento solidário de práticas, conhecimentos e afinidades.