Quatro meses já haviam se passado desde o dia em que assinaram seus contratos de adesão. Glacylene estava superansiosa. Não falava noutra coisa a não ser sobre o dia em que poderia, finalmente, conhecer a casa de seus sonhos. Não somente ela, mas toda a sua vizinhança ansiava pela mesma oportunidade. E ao descobrirem que a irmã de Glacylene era a minha namorada, algumas de suas vizinhas não a deixaram mais em paz. Elas queriam que eu intercedesse junto à empresa, no sentido de conseguir um tour ao residencial.
Achei justo e importante que essas famílias pudessem visitar suas futuras residências. Então, telefonei para Fernanda informando-a de tal demanda. Algumas horas depois, Fernanda me retornou dizendo que repassara o pedido para o pessoal da diretoria de eventos e que em breve me comunicaria o resultado.
Deu certo. Três dias após o meu pedido, Fernanda anunciou a decisão positiva da empresa em providenciar dois ônibus para levar os interessados ao empreendimento. A data da visita seria o domingo próximo.
A notícia foi recebida com muita alegria. Glacylene ficou radiante.
Até que o domingo tão esperado chegou. Às sete e trinta da manhã os dois ônibus encostaram bem diante da venda. A criançada em alvoroço se acotovelava em frente às portas de entrada. Fernanda não estava presente. Perguntei, então, a um dos motoristas sobre quem iria nos guiar quando chegássemos ao residencial. Prontamente, o motorista me informou que no local haveria um encarregado a nossa espera.
Ana Cleide, Glacylene, Lindomar e eu nos acomodamos na primeira fila. Atrás de nós, Robson, Mica e Denílson. E assim que o ônibus ganhou a rodovia, Mica e Denílson se juntaram às outras crianças numa algazarra ensurdecedora. Robson preferiu permanecer sentado com o olhar fixo na paisagem. E com pouco mais de dez minutos de viagem o ônibus parou em frente à entrada de um residencial. Pela janela nos foi possível enxergar as casas prontas, recém-pintadas. O residencial era cortado ao meio por uma larga avenida de duas pistas contendo arborização ao centro. Os passageiros ficaram encantados. Batiam palmas e gritavam frases de agradecimento. A alegria era contagiante.
— Aí motorista? Não vai abrí a porta pra gente descê? — gritou alguém do fundão.
Àquele grito somou-se um coro entoando um ruidoso abre, abre, abre.
— Não quero que ninguém desça até eu mandá _ ordenou o motorista, botando fim àquela agitação. — Vou até a guarita falá com o guardinha.
E assim fez o motorista: caminhou até guarita, chamou pelo vigia e os dois conversaram rapidamente. Ao retornar, o motorista abriu a porta de sua cabine e noticiou:
— Pessoal? Esse aqui é o Residencial Nice View.
— Oh! Glória! — gritou uma das passageiras seguida de gritos e palmas.
— Só que essa é a primeira etapa do Residencial Nice View . — interrompeu o motorista silenciando mais uma vez os passageiros. — O vigia me falou que a etapa de vocês é a segunda, um pouco mais a frente.
p. 40— Então, bora lá motorista! — gritou um passageiro angustiado.
O ônibus seguiu por mais vinte minutos, até sair da rodovia entrando por uma estrada vicinal não pavimentada. E após rodar mais alguns quilômetros parou em frente a outro residencial. Neste, só havia algumas poucas casas prontas. O restante ainda se encontrava em fase de fundação. Ao contrário do que ocorrera na primeira parada, o clima agora era de apreensão.
— Motorista? Tem certeza de que estamos no endereço certo? — perguntou uma passageira, desapontada.
O motorista não respondeu, apenas liberou a porta. E assim que começamos a descer do ônibus, um homem se aproximou sorridente portando um crachá de identificação e um boné com a logo da construtora:
— Bom dia pessoal! Sejam muito bem-vindos! Eu sou o Vinícius, encarregado de mostrar a vocês a segunda etapa do Nice View. Quero que se sintam à vontade para me perguntarem tudo o que quiserem saber sobre a obra.
— Desculpa aí, seu Viníçu, mas, o senhor tem certeza de que o nosso residencial não é aquele que ficô patráis? — perguntou um pretenso morador.
— Absoluta, meu amigo! Como é mesmo o seu nome?
— Zé Reis.
— Então, Seu José Reis, fique tranquilo. Essa segunda etapa ficará idêntica àquela que vocês viram no caminho. A construtora mantém sempre o mesmo padrão. Vou levá-los a uma quadra de casas já prontas para vocês terem uma ideia exata de como será a casa de vocês.
O grupo se dispersou por entre as casas. Entravam e saíam, abriam e fechavam janelas, testavam torneiras e percorriam as áreas externas. Por estarem recém-construídas, suas aparências causavam uma boa impressão. Contudo, embora apresentassem a mesma distribuição de cômodos descrita no modelo do portfólio, pessoalmente, suas dimensões me pareceram bem mais acanhadas. Mas isso eu preferi não comentar para não acirrar ainda mais os ânimos.
Aproveitando o momento de euforia Vinícius tentou encher a bola:
— Então, pessoal, viram como a casa depois de pronta fica uma beleza? E todas são feitas com viga de concreto! — completou.
— A casa parece firme, mas, como é que vâmo morá aqui nesse fim de mundo?! — reclamou uma mãe de família arrancando protestos dos demais.
— Calma pessoal. Vocês estão assustados à toa! Depois que estiver tudo prontinho: asfalto, meio-fio, praças com quadras poliesportivas e parquinhos para as crianças, isso aqui vai ficar demais! — tentou aliviar Vinicius.
— Mais só a belezura não adianta, seu moço. Como é que nóis vai chegá nos nosso emprego morando numa distância dessa?! — protestou outro integrante.
— Quanto a isso, não se preocupem. — rebateu Vinicius — Vai ter linha de ônibus, minha gente. Isso já está acertado com a prefeitura.
p. 41A visita foi rápida. Mas, o percurso de volta parecia interminável. As pessoas me olhavam como se eu as tivesse enganado. Minha vontade era a de pular do ônibus em movimento. Vendo a minha cara de desespero, Ana Cleide ainda tentou disfarçar puxando assunto com Glacylene sobre a escola e as crianças. Lindomar não proferiu uma só palavra. Permaneceu estático, olhando fixamente a paisagem que lhe escapava pela janela do ônibus em movimento.
Passei o resto da semana muito angustiado. No fundo, eu dava razão àquelas pessoas para que desconfiassem de mim; afinal, eu havia participado de todas as fases, desde a visita inicial com a Fernanda até a assinatura dos contratos. Elas não tinham nenhuma obrigação de saberem que eu também me sentia traído. Então, decidi marcar um encontro com o Dr. Tavares a fim de dizer a ele qual fora a reação daquelas pessoas ao conhecerem o empreendimento. Minha esperança era a de poder persuadi-lo a remanejá-los para a primeira etapa do residencial.
Liguei milhares de vezes para o Dr. Tavares, mas ele não me atendia. Então, resolvi ligar para Fernanda. E depois de várias tentativas malogradas, finalmente ela retornou a ligação se desculpando por não ter podido me atender, alegando ter estado envolvida em reuniões com o pessoal do grupo. Contei a ela sobre o resultado da visita ao residencial e sobre como eu estava me sentindo a respeito. Ela escutou-me com atenção e depois, calmamente, me perguntou:
— Você e seu sócio ficaram satisfeitos com a quantia que receberam?
— Sim. — respondi.
— Nós também ficamos satisfeitos com os resultados obtidos. Então pronto! Não é assim que devem ser as boas relações comerciais?
— Sim, mas, e aquelas famílias?
— O que tem aquelas famílias, Sr. Ton?
— Elas estão se sentindo enganadas!
— Enganadas de que forma? Não estou entendendo. Você mesmo acompanhou todo o processo e pôde ver que tudo estava dentro da legalidade. Elas vão ter onde morar, pagando somente dez por cento do custo do imóvel, e ainda de uma maneira que não lhes causará impacto sobre seus orçamentos familiares. Além do mais, deixarão de ser invasoras para se tornarem legítimas proprietárias de suas residências. O que mais elas podem querer Sr. Ton?!
— É que o local para onde vão, a segunda etapa do Nice View, é muito distante em relação aos locais onde atualmente trabalham e estudam. Temo que tal mudança possa deixar essas famílias ainda mais vulneráveis. Em vez de trazer-lhes benefícios, isso pode resultar no colapso de seus meios de subsistência.
p. 42— Quer um conselho Sr. Ton? Esqueça essas questões e se concentre no sucesso de sua empresa. Raciocine comigo: se essas famílias conseguiram sobreviver invadindo propriedades particulares e construindo nelas seus barracos, com certeza alcançarão melhor sorte morando em casas próprias e ainda dotadas de infraestrutura e saneamento básico. Não é mesmo?
Fernanda parecia não se importar com nenhuma de minhas preocupações. Seus argumentos giravam exclusivamente em torno do acesso à casa própria. Decepcionado, agradeci e encerrei a ligação.
Então revelei a Pedro todo o meu tormento. Embora ele partilhasse comigo as mesmas preocupações, percebi que o caso não o havia deixado tão abalado como me deixara. Isso era obvio; afinal, era eu quem agora possuía uma cunhada e um sobrinho, diretamente afetados por uma situação da qual eu tomara parte.
Passei a noite toda acordado, remoendo a situação, até que me decidi: eu iria pessoalmente àquele hotel, falar com o Dr. Tavares.
Cheguei ao hotel às 7 h em ponto. Não queria correr o risco de chegar após a sua saída. O atendente já me conhecia. Perguntou-me se o Dr. Tavares estaria à minha espera no refeitório. Eu respondi que não, mas, que o esperaria no lobby. Fiquei ali por quase duas horas, até que o vi brotar de dentro do elevador.
— Bom dia Dr. Tavares.
— Bom dia meu jovem. O que faz aqui? — perguntou-me com ar de poucos amigos.
Naquele momento, tive a sensação de que Fernanda já havia lhe contado sobre o conteúdo da conversa que tivemos no dia anterior. E antes mesmo que eu pudesse respondê-lo, ele atravessou:
— Qual é a sua idade? — perguntou olhando-me de cima a baixo.
— Vinte e seis. — respondi.
p. 43— Exatamente a mesma idade de meu filho Roberto. — disse em tom moderado.
— Seu filho também trabalha para o grupo Favourite? — perguntei na intenção de puxar assunto.
— Não. Ele morreu há um ano vítima de um acidente.
— Sinto muito Dr. Tavares.
— Olha, infelizmente não poderei falar com você agora. Terei uma reunião importante dentro de, exatamente, quarenta minutos. Por favor, veja com a Fernanda um outro dia. Com certeza, ela achará uma brecha na minha agenda.
Dizendo aquilo, checou o celular e caminhou apressado em direção à saída. Porém, antes que a porta se abrisse, virou-se para mim e falou:
— Acho que essa reunião vai lhe fazer bem. Você está começando a sua empresa agora e eu não gostaria de vê-la naufragar, assim tão cedo. — ironizou. —. Você dispõe de tempo para ir comigo a essa reunião?
— Sim. Dr. Tavares. Talvez, durante o caminho eu possa dizer ao senhor o motivo de minha presença aqui.
— Sem dúvida.
Tomamos um Uber e seguimos para o endereço selecionado. E no momento em que eu estava me preparando para abordá-lo, ele se antecipou:
— Eu sei sobre o que você e a Fernanda conversaram. Portanto, você já pode ir direto ao ponto. Sem rodeios, por favor.
p. 44— Gostaria que o senhor pensasse sobre a possibilidade de remanejar aquelas famílias para a primeira etapa do residencial Nice View.
Por um minuto ele não disse uma só palavra, mantendo o olhar fixo sobre o seu celular. Em seguida, tocou-me o ombro dizendo:
— Quando eu conheci a Fernanda, ela era exatamente como você: recém-formada, cheia de nobres ideais, mas precisava juntar as moedas do fundo de sua bolsa para completar o valor de uma refeição. Hoje, oito anos depois, ela se olha no espelho e sente orgulho de si mesma, pois a imagem que vê é de uma vencedora.
— O senhor está tentando me dizer que a busca pelo sucesso profissional implica em deixar de lado o ideal de fazer o bem às pessoas que estão a nossa volta? É isso, Dr. Tavares?
— Não, Sr. Ton. Estou apenas tentando lhe dizer que não podemos salvar o mundo. As pessoas simplesmente escolhem seus caminhos e ponto. Muitos acreditam que podem interferir, mas é pura ilusão. As pessoas fazem suas escolhas com base no que fizeram de si e não a partir do que podemos fazer ou dizer a elas. Se não fosse assim, instituições como educação e religião, todas elas repletas de bons valores e conhecimentos, já teriam feito deste mundo um lugar melhor para se viver, não é mesmo? Mas, ao contrário — continuou Dr. Tavares —, veja no que as pessoas se transformaram. A nossa civilização se tornou um grande paradoxo: quanto mais evoluímos tecnologicamente, mais destrutivos e intolerantes em relação à vida nos tornamos.
— Sou obrigado a concordar, mas, somente em parte, com esse paradoxo que acaba de descrever.
— É mesmo? E qual é, então, a parte de que não concorda? — provocou Dr. Tavares.
— Não concordo com a parte onde o Sr. diz “nossa civilização”.
— Pode ser mais claro, jovem Ton?
— Sim. Quando diz nossa civilização, o senhor acaba fazendo uma generalização simplificadora da realidade humana. Me desculpe, mas essa sua maneira de pensar a civilização o impede de perceber a existência de um significativo número de pessoas e comunidades, espalhadas pelo mundo, que têm evoluído não apenas tecnologicamente, mas também espiritualmente.
— Espiritualmente?! Ora, Sr. Ton, pule esta parte de religião. Seja lá qual for a sua, isso não importa; além do mais, lembre-se de que os motivos religiosos sempre estiveram no centro das guerras mais sangrentas, não é mesmo?
— Me permita uma correção, Dr. Tavares. Quando mencionei a evolução espiritual, não estava fazendo referência àquela parte da população dedicada às seitas religiosas ou coisa do gênero. Eu estava me referindo a uma importante parcela da população que vem mudando suas percepções a respeito do que, de fato, seja a vida, de como ela funciona e de como fazer parte dela de maneira sustentável. É disso que eu estava falando.
p. 45— Lindo o que acabou de dizer. — ironizou Dr. Tavares —. Mas quer saber o que eu realmente acho? Acho que essa tal parcela da população, que você diz evoluída espiritualmente, no fim está agindo como todos nós: desenvolvendo seus produtos para se darem bem na vida. — concluiu soltando uma sonora gargalhada.
Naquela hora, percebi que seria inútil continuar aquela discussão. Então, retornei para a questão que me levara para dentro daquele Uber:
— Tudo bem, Dr. Tavares, respeito a sua opinião. Então, já que acredita que as pessoas têm autonomia para fazerem suas escolhas, independente do que possamos dizer a elas, ou fazer por elas, presumo que aquelas famílias da invasão poderão escolher entre ir para a segunda etapa do Nice View, ou simplesmente permanecerem onde estão. Estou certo?
— Sem dúvida! Só que agora, se escolherem permanecer, isso causará a elas grandes aborrecimentos.
— Como assim, aborrecimentos? O senhor poderia ser mais claro?
— Agora não temos mais tempo, chegamos. Mas não se preocupe, tenho certeza de que durante a reunião essa e muitas outras dúvidas que porventura tiver, serão esclarecidas.
O Uber estacionou em frente a um edifício alto, todo revestido de vidraças espelhadas. Fizemos nossos cadastros na recepção e nos dirigimos ao elevador. O escritório ficava no vigésimo terceiro piso, era muito luxuoso e ocupava todo aquele andar. Assim que chegamos, uma das secretárias nos encaminhou para uma sala onde um senhor alto, magro, cabelos grisalhos e aparentando ter uns sessenta e cinco anos nos esperava. Sua enorme mesa ficava de costas para uma parede, toda em vidro, através da qual se podia enxergar uma grande parte da cidade.
— Sejam muito bem-vindos — disse o empresário em meio a um largo sorriso.
— Obrigado, Dr. Cabral. — agradeceu Dr. Tavares apertando-lhe a mão. —. Ah, me desculpe. Já ia me esquecendo, deixe que eu lhe apresente. Esse aqui é o Sr. Ton. Ele é um geógrafo e possui uma jovem empresa de consultoria. Foi ele quem realizou aquele levantamento junto aos invasores do Residencial Vila Sonhada.
— É um prazer conhecê-lo, Sr. Ton.
— O prazer é todo meu, Sr. Cabral.
Naquele instante, duas outras secretárias se aproximaram: uma empurrava um carrinho contendo água, suco de laranja, café e biscoitos enquanto a outra, segurando dois controles, fez descer do teto uma tela e um projetor. Em seguida, foi até a mesa do Dr. Cabral, abriu um laptop e projetou sobre a tela imagens, em 3D, de um luxuoso projeto de condomínio fechado em cuja entrada estampava o nome Portal d’Lapland.
— Isso que vocês estão vendo — disse o Dr. Cabral — é nada mais nada menos do que o mais audacioso empreendimento imobiliário projetado, exclusivamente, para atender a classe “A A” desta cidade. Serão sobrados, de até quinhentos metros de construção, em terrenos que irão variar entre mil e dois mil metros quadrados e construídos com o mais alto padrão de qualidade. E justamente para assegurar tal qualidade é que escolhemos o grupo Favourite para executar esta obra.
p. 46— Para o nosso grupo é sempre uma grande honra poder servir-lhe — disse o Dr. Tavares.
E quando a secretária projetou uma imagem aérea do local do empreendimento, tomei o maior susto: o projeto abrangeria toda a parte invadida do Residencial Vila Sonhada, mais uma área anexa a ele que ainda se encontrava recoberta por pastagens e vegetação natural.
— E sobre a desocupação, Dr. Tavares, o que pode nos adiantar? — perguntou o Dr. Cabral.
— Quanto a isso, pode ficar sossegado. A segunda etapa do residencial Nice View deverá ficar pronta em noventa dias. A partir daí, dependeremos apenas da prefeitura local liberar o documento habite-se para iniciarmos a transposição das famílias invasoras. — Agora — continuou Dr. Tavares — Deus queira que aquele prefeito não venha nos pedir mais nenhuma “molhadinha de mão”. Ultimamente, esses prefeitos estão ficando com o olho cada vez mais gordo.
— E quanto mais esses prefeitos tiram da gente, mais somos obrigados a diminuir a qualidade das habitações. — comentou Dr. Cabral.
— Pois é! Alguém tem que “pagar o pato”, não é mesmo? Se continuar assim, daqui a uns dias, se quisermos manter a nossa faixa de lucro, no lugar do “Minha Casa Minha Vida”, teremos que começar a construir para essas famílias o Meu Barraco Minha Vida. — ironizou Dr. Tavares, soltando uma frouxa gargalhada.
— E quanto àquelas famílias, Dr. Tavares, houve alguma resistência em aderirem aos contratos? Espero que tudo tenha corrido bem. Aquele bando de passa-fome já está ali há muitos anos. Não quero ter dor de cabaça com nenhum deles, me entendeu? Essa gente não pode criar raizinha no lugar que já começa a falar em usucapião.
— Não se preocupe com isso Dr. Cabral, graças ao desempenho do nosso geógrafo aqui, não haverá problema algum.
— Como assim, graças ao meu desempenho? — perguntei, confuso.
— Não repare Dr. Cabral, o Ton é muito modesto. — atravessou Dr. Tavares — É que as fichas de detalhamento elaboradas por ele ficaram tão perfeitas e tão bem preenchidas que se tornaram provas documentais incontestáveis. Verdadeiras confissões de próprio punho. Todas elas foram arroladas em um dossiê e devidamente protocoladas no Ministério Público. Como diz o ditado, matamos “dois coelhos com uma única cajadada”: ao mesmo tempo em que detalharam a forma como ocuparam, ilegalmente, a sua propriedade, também se declararam favoráveis à desocupação, em caráter irrevogável, mediante a adesão ao programa MCMV na segunda etapa do Nice View.
p. 47— Bom trabalho! O ramo imobiliário precisa de profissionais como você. — Parabenizou-me Dr. Cabral.
Eu estava perplexo. Como pude ser tão inocente! Todos os levantamentos que realizamos e documentos que os fizemos assinar não passavam de um estratagema, muito bem arquitetado, para expulsar aquelas famílias de lá. Eu acabara de tomar parte de uma verdadeira rede de especulação imobiliária.
— Inclusive — emendou Dr. Tavares —, como representante do grupo Favourite convidarei o Sr. Ton e seu sócio para se associarem ao nosso grupo por meio de um contrato de exclusividade. Assim, não precisarão mais correr por aí, feitos loucos, atrás de licitações. Terão trabalhos à volta do ano, e muito bem remunerados. O que acha meu jovem? Mas, calma! Não precisa me responder agora. Converse primeiro com o seu sócio e podem me responder amanhã.
Deixamos a sala do Dr. Cabral e seguimos para o primeiro piso. Dr. Tavares me ofereceu uma carona até o hotel, mas preferi não aceitar. Senti que precisava ficar sozinho.