SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Sonhos em etapas

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Quatro meses já haviam se passado desde o dia em que assinaram seus contratos de adesão. Glacylene estava superansiosa. Não falava noutra coisa a não ser sobre o dia em que poderia, finalmente, conhecer a casa de seus sonhos. Não somente ela, mas toda a sua vizinhança ansiava pela mesma oportunidade. E ao descobrirem que a irmã de Glacylene era a minha namorada, algumas de suas vizinhas não a deixaram mais em paz. Elas queriam que eu intercedesse junto à empresa, no sentido de conseguir um tour ao residencial.

Achei justo e importante que essas famílias pudessem visitar suas futuras residências. Então, telefonei para Fernanda informando-a de tal demanda. Algumas horas depois, Fernanda me retornou dizendo que repassara o pedido para o pessoal da diretoria de eventos e que em breve me comunicaria o resultado.

Deu certo. Três dias após o meu pedido, Fernanda anunciou a decisão positiva da empresa em providenciar dois ônibus para levar os interessados ao empreendimento. A data da visita seria o domingo próximo.

A notícia foi recebida com muita alegria. Glacylene ficou radiante.

Até que o domingo tão esperado chegou. Às sete e trinta da manhã os dois ônibus encostaram bem diante da venda. A criançada em alvoroço se acotovelava em frente às portas de entrada. Fernanda não estava presente. Perguntei, então, a um dos motoristas sobre quem iria nos guiar quando chegássemos ao residencial. Prontamente, o motorista me informou que no local haveria um encarregado a nossa espera.

Ana Cleide, Glacylene, Lindomar e eu nos acomodamos na primeira fila. Atrás de nós, Robson, Mica e Denílson. E assim que o ônibus ganhou a rodovia, Mica e Denílson se juntaram às outras crianças numa algazarra ensurdecedora. Robson preferiu permanecer sentado com o olhar fixo na paisagem. E com pouco mais de dez minutos de viagem o ônibus parou em frente à entrada de um residencial. Pela janela nos foi possível enxergar as casas prontas, recém-pintadas. O residencial era cortado ao meio por uma larga avenida de duas pistas contendo arborização ao centro. Os passageiros ficaram encantados. Batiam palmas e gritavam frases de agradecimento. A alegria era contagiante.

Àquele grito somou-se um coro entoando um ruidoso abre, abre, abre.

E assim fez o motorista: caminhou até guarita, chamou pelo vigia e os dois conversaram rapidamente. Ao retornar, o motorista abriu a porta de sua cabine e noticiou:

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O ônibus seguiu por mais vinte minutos, até sair da rodovia entrando por uma estrada vicinal não pavimentada. E após rodar mais alguns quilômetros parou em frente a outro residencial. Neste, só havia algumas poucas casas prontas. O restante ainda se encontrava em fase de fundação. Ao contrário do que ocorrera na primeira parada, o clima agora era de apreensão.

O motorista não respondeu, apenas liberou a porta. E assim que começamos a descer do ônibus, um homem se aproximou sorridente portando um crachá de identificação e um boné com a logo da construtora:

O grupo se dispersou por entre as casas. Entravam e saíam, abriam e fechavam janelas, testavam torneiras e percorriam as áreas externas. Por estarem recém-construídas, suas aparências causavam uma boa impressão. Contudo, embora apresentassem a mesma distribuição de cômodos descrita no modelo do portfólio, pessoalmente, suas dimensões me pareceram bem mais acanhadas. Mas isso eu preferi não comentar para não acirrar ainda mais os ânimos.

Aproveitando o momento de euforia Vinícius tentou encher a bola:

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A visita foi rápida. Mas, o percurso de volta parecia interminável. As pessoas me olhavam como se eu as tivesse enganado. Minha vontade era a de pular do ônibus em movimento. Vendo a minha cara de desespero, Ana Cleide ainda tentou disfarçar puxando assunto com Glacylene sobre a escola e as crianças. Lindomar não proferiu uma só palavra. Permaneceu estático, olhando fixamente a paisagem que lhe escapava pela janela do ônibus em movimento.

Passei o resto da semana muito angustiado. No fundo, eu dava razão àquelas pessoas para que desconfiassem de mim; afinal, eu havia participado de todas as fases, desde a visita inicial com a Fernanda até a assinatura dos contratos. Elas não tinham nenhuma obrigação de saberem que eu também me sentia traído. Então, decidi marcar um encontro com o Dr. Tavares a fim de dizer a ele qual fora a reação daquelas pessoas ao conhecerem o empreendimento. Minha esperança era a de poder persuadi-lo a remanejá-los para a primeira etapa do residencial.

Liguei milhares de vezes para o Dr. Tavares, mas ele não me atendia. Então, resolvi ligar para Fernanda. E depois de várias tentativas malogradas, finalmente ela retornou a ligação se desculpando por não ter podido me atender, alegando ter estado envolvida em reuniões com o pessoal do grupo. Contei a ela sobre o resultado da visita ao residencial e sobre como eu estava me sentindo a respeito. Ela escutou-me com atenção e depois, calmamente, me perguntou:

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Fernanda parecia não se importar com nenhuma de minhas preocupações. Seus argumentos giravam exclusivamente em torno do acesso à casa própria. Decepcionado, agradeci e encerrei a ligação.

Então revelei a Pedro todo o meu tormento. Embora ele partilhasse comigo as mesmas preocupações, percebi que o caso não o havia deixado tão abalado como me deixara. Isso era obvio; afinal, era eu quem agora possuía uma cunhada e um sobrinho, diretamente afetados por uma situação da qual eu tomara parte.

Passei a noite toda acordado, remoendo a situação, até que me decidi: eu iria pessoalmente àquele hotel, falar com o Dr. Tavares.

Cheguei ao hotel às 7 h em ponto. Não queria correr o risco de chegar após a sua saída. O atendente já me conhecia. Perguntou-me se o Dr. Tavares estaria à minha espera no refeitório. Eu respondi que não, mas, que o esperaria no lobby. Fiquei ali por quase duas horas, até que o vi brotar de dentro do elevador.

Naquele momento, tive a sensação de que Fernanda já havia lhe contado sobre o conteúdo da conversa que tivemos no dia anterior. E antes mesmo que eu pudesse respondê-lo, ele atravessou:

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Dizendo aquilo, checou o celular e caminhou apressado em direção à saída. Porém, antes que a porta se abrisse, virou-se para mim e falou:

Tomamos um Uber e seguimos para o endereço selecionado. E no momento em que eu estava me preparando para abordá-lo, ele se antecipou:

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Por um minuto ele não disse uma só palavra, mantendo o olhar fixo sobre o seu celular. Em seguida, tocou-me o ombro dizendo:

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Naquela hora, percebi que seria inútil continuar aquela discussão. Então, retornei para a questão que me levara para dentro daquele Uber:

O Uber estacionou em frente a um edifício alto, todo revestido de vidraças espelhadas. Fizemos nossos cadastros na recepção e nos dirigimos ao elevador. O escritório ficava no vigésimo terceiro piso, era muito luxuoso e ocupava todo aquele andar. Assim que chegamos, uma das secretárias nos encaminhou para uma sala onde um senhor alto, magro, cabelos grisalhos e aparentando ter uns sessenta e cinco anos nos esperava. Sua enorme mesa ficava de costas para uma parede, toda em vidro, através da qual se podia enxergar uma grande parte da cidade.

Naquele instante, duas outras secretárias se aproximaram: uma empurrava um carrinho contendo água, suco de laranja, café e biscoitos enquanto a outra, segurando dois controles, fez descer do teto uma tela e um projetor. Em seguida, foi até a mesa do Dr. Cabral, abriu um laptop e projetou sobre a tela imagens, em 3D, de um luxuoso projeto de condomínio fechado em cuja entrada estampava o nome Portal d’Lapland.

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E quando a secretária projetou uma imagem aérea do local do empreendimento, tomei o maior susto: o projeto abrangeria toda a parte invadida do Residencial Vila Sonhada, mais uma área anexa a ele que ainda se encontrava recoberta por pastagens e vegetação natural.

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Eu estava perplexo. Como pude ser tão inocente! Todos os levantamentos que realizamos e documentos que os fizemos assinar não passavam de um estratagema, muito bem arquitetado, para expulsar aquelas famílias de lá. Eu acabara de tomar parte de uma verdadeira rede de especulação imobiliária.

Deixamos a sala do Dr. Cabral e seguimos para o primeiro piso. Dr. Tavares me ofereceu uma carona até o hotel, mas preferi não aceitar. Senti que precisava ficar sozinho.