SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Minha Casa, Minha Vida

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Algumas semanas após nossa visita ao novo lar de Glacylene, aquele mesmo amigo do IBGE, a quem eu pedira o mapa censitário do setor, me telefonou dizendo que recebera a visita de um funcionário de um importante grupo empresarial ligado à construção civil cujo interesse era o de obter dados específicos de domicílios do Residencial Vila Sonhada, exatamente o setor censitário onde eu havia conhecido a minha princesa, Ana Cleide. Mas como o IBGE possui uma política de confidencialidade para preservação do sigilo das informações individuais coletadas nos domicílios, em nada pôde ajuda-lo. Por esta razão, passou a ele o meu telefone na esperança de que o tal homem pudesse contratar os meus serviços.

No mesmo dia recebi o telefonema de um sujeito chamado Dr. Ricardo Tavares, que se apresentou como sendo gerente comercial do grupo Favourite Home S. A, na região Centro Oeste. Disse-me, sem muitos detalhes, sobre o seu interesse em contratar os meus serviços e convidou-me para um encontro presencial no hotel onde estava hospedado. Combinamos para a segunda-feira, às oito horas em ponto. Eu e meu sócio Pedro ficamos muito esperançosos com essa possibilidade de trabalho, afinal, nosso último serviço já havia sido encerrado no final do mês anterior e tudo o que tínhamos eram dois outros orçamentos, ainda em fase de análise.

E a tão esperada segunda feira finalmente havia chegado. Peguei a minha motoca e segui rápido até o hotel. Estacionei a moto distante do hotel o bastante para que a minha chegada não fosse notada. Não queria que o tal Gerente me visse chegando numa motocicleta tão velha. Por um lado, sabia que aquela minha atitude não passava de uma grande idiotice. Por outro, também sabia que no mundo dos negócios as pessoas são julgadas mais pelas suas aparências do que pelas suas capacidades.

Assim, atravessei a rua, adentrei o lobby e fui interpelado pelo capitão porteiro:

A uma jovem e sorridente funcionária foi dada a missão de me conduzir até o referido hospede. Descemos por um elevador até o salão de refeições. E lá estava ele: terno azul escuro, impecável, sapatos recém-engraxados, cabelos penteados à base de gel, um grande relógio de pulso dourado e, sobre a mesa, um laptop de última geração.

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Dizendo aquilo, o Sr. Tavares se levantou, apertou a minha mão e se dirigiu para o elevador.

Eu e Pedro lemos, cuidadosamente, por três vezes, todo o conteúdo da apostila. O valor ofertado para a realização dos serviços era bastante generoso, vinte e dois mil reais. Com certeza aquele seria o contrato com a melhor relação custo-benefício que poderíamos imaginar: um número relativamente pequeno de domicílios para visitar a um custo operacional baixíssimo; não se falando ainda que poderíamos contar com as casas de Ana Cleide e Glacylene como bases operacionais.

Por precaução, percorremos a internet a fim de atestarmos a veracidade das informações dadas pelo Sr. Tavares a respeito do grupo Favourite Home S. A. E, até onde pudemos ver, havia um considerável número de empreendimentos imobiliários, como prédios, condomínios de luxo e loteamentos de casas populares que levava a sua marca.

Além do aspecto financeiro, ficamos também muito animados com o fato de podermos participar de uma ação que daria àquelas famílias, de uma vez por todas, suas casas próprias. Fiquei imaginando a felicidade de Lindomar e de seus vizinhos que, finalmente, morarão em casas acabadas, com toda infraestrutura e saneamento básico. Então, ligamos para o Sr. Tavares e confirmamos a nossa aceitação. E, no mesmo hotel, marcamos um novo encontro para assinarmos os contratos e acertarmos os detalhes operacionais.

Após a assinatura do contrato, fomos apresentados a uma funcionária do grupo, a Srta. Fernanda, cuja missão seria a de nos acompanhar durante a primeira visita a cada um dos domicílios. Segundo o Sr. Tavares, a presença de uma assistente social durante a primeira abordagem fazia parte da metodologia adotada pelo grupo.

Basicamente, teríamos que coletar os mesmos dados que coletei para o IBGE, durante o recenseamento, à exceção do preenchimento de um documento denominado Ficha Individual de Detalhamento de Processo de Ocupação de Imóvel. Tal ficha deveria obter, de cada uma das famílias, informações detalhadas sobre sua permanência naquele setor, desde o deslocamento de seus locais de origem, passando pela ocupação do terreno, até a construção de sua habitação e adaptação às condições locais.

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Calculei que a produção de tal ficha seria a parte mais pesada de nossas atividades devido à complexidade das informações requeridas. Mas, conforme nos esclareceu a assistente social, o registro de tal conjunto de informações era imprescindível, pois serviria a dois importantes propósitos: primeiro, montar um dossiê de cada família, a fim de justificar o benefício destinado a ela pelo órgão financiador; segundo, alimentar o banco de dados da fundação Favourite, no sentido de continuar oferecendo, às mais diversas instituições de pesquisa, dados que possam contribuir com a ampliação dos índices do IDH entre as populações consideradas vulneráveis, não somente no Brasil, mas também no resto do planeta.

Eu estava ansioso para dar as boas novas a Glacylene, Lindomar e a todas aquelas famílias.

Marcamos, então, com a Srta. Fernanda, de iniciarmos a primeira visita, no dia seguinte, às oito horas, na casa de Lindomar. Para isso, tomei o cuidado de ligar antes para Glacylene para que nada desse errado.

E lá estávamos. Fernanda estacionou seu carro em frente à venda e atravessou a rua a passos apressados: cabelos amarrados, celular em punho, maleta tipo executivo a tiracolo e um grande crachá com a logo da Favourite preso à gola de sua blusa.

Lindomar buscou na cozinha alguns tamboretes e todos se ajeitaram. Mica e Denílson continuaram brincando no quintal enquanto Robson preferiu permanecer no quarto, indiferente a toda aquela inusitada movimentação em sua casa.

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Acomodada no sofá ao lado de Glacylene, Fernanda tomou a palavra:

Desenrolando a planta sobre o colo, Fernanda pediu ao Lindomar que se aproximasse do sofá.

À medida que Fernanda descrevia os ambientes da futura casa, os olhos de Glacylene brilhavam de contentamento. Por fim, Fernanda fez perguntas sobre a saúde da família, a idade das crianças, as séries em que estavam matriculadas e as dificuldades que enfrentavam por morarem numa área invadida. Numa caderneta, Fernanda ia tomando nota das respostas de Glacylene.

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Antes de nos retirarmos, Robson aproximou-se de Lindomar e permaneceu estático com o olhar fixo em Fernanda.

Robson não disse uma só palavra. Constrangida, Glacylene acudiu:

Então, Robson surpreendeu a todos:

Fernanda disfarçou um sorriso, meditou e disse a Lindomar:

Mesmo a contragosto, Lindomar consentiu:

No restante do dia, acompanhamos Fernanda em mais cinco residências. Ela parecia ter decorado cada palavra que dissera na casa de Lindomar. Embora Robson permanecesse calado durante todo o tempo, a sua presença parecia diminuir o impacto causado pelo caráter inesperado de nossas visitas; afinal, ele era um membro daquela comunidade.

No dia seguinte, todas as cinquenta e duas famílias restantes já sabiam de nossas intenções e ansiavam pela nossa visita. Então, propus a Fernanda que juntássemos várias famílias, em uma única reunião, a fim de adiantar o processo. Fernanda me desaconselhou dizendo que a visita presencial, em cada um dos domicílios, além de surtir melhor efeito também fazia parte da metodologia adotada pela empresa.

E assim fizemos: foram mais oito dias de visitação, sempre na companhia de Robson.

Vencida a etapa das apresentações, seria a vez de Pedro e eu assumirmos a coleta de dados e o preenchimento das fichas de detalhamento nos cinquenta e seis domicílios, incluindo o de Lindomar.

Levamos quatorze dias para a conclusão de toda a nossa parte. Não encontramos dificuldade em nenhum dos domicílios visitados. Ao contrário, todos se mostraram prontos em nos ajudar com a coleta. Fernanda os havia deixado completamente encantados com a ideia do projeto. Ela estava absolutamente certa sobre os resultados que se alcança quando se visita cada domicílio individualmente. Em seguida, levamos o material para o escritório da Favourite onde fomos encaminhados para a contabilidade a fim de recebermos a primeira parte dos serviços. A segunda nos seria paga após encerrada a análise do material coletado.

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Quinze dias depois, Fernanda foi até a invasão levar os contratos de adesão para serem assinados. Para isso, o escritório colocou à disposição dos moradores duas Vans a fim de levá-los ao cartório para reconhecimento de suas assinaturas.

Na semana posterior a assinatura dos contratos a empresa me convocou para receber a segunda parte do pagamento.