Algumas semanas após nossa visita ao novo lar de Glacylene, aquele mesmo amigo do IBGE, a quem eu pedira o mapa censitário do setor, me telefonou dizendo que recebera a visita de um funcionário de um importante grupo empresarial ligado à construção civil cujo interesse era o de obter dados específicos de domicílios do Residencial Vila Sonhada, exatamente o setor censitário onde eu havia conhecido a minha princesa, Ana Cleide. Mas como o IBGE possui uma política de confidencialidade para preservação do sigilo das informações individuais coletadas nos domicílios, em nada pôde ajuda-lo. Por esta razão, passou a ele o meu telefone na esperança de que o tal homem pudesse contratar os meus serviços.
No mesmo dia recebi o telefonema de um sujeito chamado Dr. Ricardo Tavares, que se apresentou como sendo gerente comercial do grupo Favourite Home S. A, na região Centro Oeste. Disse-me, sem muitos detalhes, sobre o seu interesse em contratar os meus serviços e convidou-me para um encontro presencial no hotel onde estava hospedado. Combinamos para a segunda-feira, às oito horas em ponto. Eu e meu sócio Pedro ficamos muito esperançosos com essa possibilidade de trabalho, afinal, nosso último serviço já havia sido encerrado no final do mês anterior e tudo o que tínhamos eram dois outros orçamentos, ainda em fase de análise.
E a tão esperada segunda feira finalmente havia chegado. Peguei a minha motoca e segui rápido até o hotel. Estacionei a moto distante do hotel o bastante para que a minha chegada não fosse notada. Não queria que o tal Gerente me visse chegando numa motocicleta tão velha. Por um lado, sabia que aquela minha atitude não passava de uma grande idiotice. Por outro, também sabia que no mundo dos negócios as pessoas são julgadas mais pelas suas aparências do que pelas suas capacidades.
Assim, atravessei a rua, adentrei o lobby e fui interpelado pelo capitão porteiro:
— Bom dia Senhor! Posso ajudá-lo em algo?
— Sim, obrigado. Tenho um encontro agendado com um de seus hóspedes, para às oito horas. O nome dele é Dr. Ricardo Tavares.
— Me acompanhe, por favor.
A uma jovem e sorridente funcionária foi dada a missão de me conduzir até o referido hospede. Descemos por um elevador até o salão de refeições. E lá estava ele: terno azul escuro, impecável, sapatos recém-engraxados, cabelos penteados à base de gel, um grande relógio de pulso dourado e, sobre a mesa, um laptop de última geração.
— Sr. Erivelton, eu presumo.
— Sim. É um prazer conhecê-lo. Mas pode me chamar de Ton.
— O prazer é meu, Sr. Ton. Sou o Dr. Ricardo Tavares. Mas, pode me chamar de Tavares. É assim que meus amigos me chamam.
— Sim, Sr. Tavares, aqui estou à sua disposição.
— Muito bem, meu jovem. Vou direto ao ponto, pois, como dizem por aí, “tempo é dinheiro”, não é mesmo? O grupo para o qual eu trabalho é muito poderoso. Possui escritórios em vários países e atua em diferentes ramos como construção civil, mineração, mercados de capitais, agropecuária e outros. E os três motivos pelos quais eu te chamei aqui para este encontro, e que, portanto, fazem de você um forte candidato para fechar um contrato com o nosso grupo são os seguintes: ter atuado como recenseador no Residencial Vila Sonhada; ser geógrafo; e possuir uma empresa de consultoria devidamente registrada.
p. 33— Pelo jeito, meu amigo do IBGE passou a você minha ficha completa.
— Sim. É por isso que está aqui: além de conhecer bem o setor, também possui as habilidades profissionais necessárias para realizar o levantamento de que precisamos.
— Entendi. Mas, o que há naquele setor que interessa ao seu grupo?
— Fez a pergunta exata, Sr. Ton. Como você deve saber, há uma parte naquele setor que, atualmente, se acha ocupada por famílias que não são, vamos dizer assim, legítimas proprietárias dos terrenos onde habitam. Em outras palavras, Sr. Ton, são invasoras. Neste sentido, quer queiramos ou não, mais dia, menos dia terão que desocupar aquele terreno para que o seu legítimo proprietário possa exercer seus plenos direitos sobre o bem que lhe pertence, de fato e de direito.
— Deixe-me ver se entendi. O Sr. quer que eu faça o levantamento de todas as famílias que ocupam aquela parte do setor para depois vocês providenciarem a sua desocupação, é isso?
— É mais ou menos por aí, Sr. Ton — disse o gerente enxugando o suor que brotava de sua enorme testa.
— Mas, aquelas famílias não têm para onde ir! Como vão sobreviver? Suas crianças estudam na escola municipal daquele setor. Elas não podem, simplesmente, serem despejadas de suas casas e jogadas na rua! Não posso participar de algo assim. Sinto muito, Sr. Tavares.
— Calma, meu jovem. Vejo que você é uma pessoa que se preocupa com o lado social das coisas. E isso é bom! Saiba que o nosso grupo divide com você a mesma preocupação.
— Como podem estar preocupados com o lado social se querem despejá-los? Não consigo entendê-lo.
— Era exatamente neste ponto que eu queria chegar, Sr. Ton. Nós, do grupo Favourite Home S. A não nos contentamos apenas em encher as burras. Acreditamos que o sucesso de uma empresa só pode ser pleno se parte de seus lucros for canalizada para aquela parte da população, digamos, desafortunada. Por isso, escolhemos aquelas famílias invasoras do Residencial Vila Sonhada para agraciá-las com o produto que mais nos importa, o bem-estar social.
— Por que escolheram aquelas famílias e como promoverão o seu bem-estar se querem despejá-las?
— Não se trata de despejo. Ao contrário! Pretendemos dar a elas aquilo que não puderam alcançar antes de invadirem aquele terreno, ou seja, a tão sonhada casa própria.
— Como farão isso?
— Já fizemos! Sr. Ton. Nosso grupo está sempre a um passo à frente.
— Como assim?
— Fechamos um acordo com a prefeitura do Município vizinho e construiremos um residencial adequado ao bem-estar dessas famílias, dando a elas a dignidade que tanto merecem. Elas serão beneficiadas pelo programa MCMV, do governo federal, o qual arcará com até 90% do custo de seus imóveis. O valor restante poderá ser pago em parcelas muito baratas e com prazos a perder de vista.
— Entendi. Mas, ainda não me respondeu por que escolheram justamente aquele setor e não outro.
— Bem, na verdade, não sou eu quem determina qual população deverá ser beneficiada pelas ações do grupo. De toda forma, posso lhe adiantar que são escolhas feitas com base em relatórios que nos chegam, constantemente, sobre populações em situação de vulnerabilidade, como é o caso dessas famílias do Residencial Vila Sonhada. Nosso grupo tem atendido centenas de outras famílias por todo o Brasil.
p. 34— Isso é muito bom!
— Eu sabia que iria gostar.
— Mas que tipo de dados vocês querem que eu levante junto àquelas famílias?
— Dentro deste envelope, Sr. Ton, vai encontrar uma apostila com todas as informações necessárias. Desde os dados que precisarão levantar, os prazos que deverão cumprir, até os valores que receberão pelos serviços contratados. É assim que trabalhamos: não fazemos licitações ou coisas do gênero, apenas informamos as características do trabalho a ser realizado e o valor que podemos pagar por ele. A empresa contatada lê, analisa se pode, ou não realizá-lo e depois nos comunica dentro do prazo estipulado. Simples assim. Portanto, você tem setenta e duas horas para nos responder. Bem, se não há mais perguntas, foi um enorme prazer conhecê-lo, Sr. Ton.
Dizendo aquilo, o Sr. Tavares se levantou, apertou a minha mão e se dirigiu para o elevador.
Eu e Pedro lemos, cuidadosamente, por três vezes, todo o conteúdo da apostila. O valor ofertado para a realização dos serviços era bastante generoso, vinte e dois mil reais. Com certeza aquele seria o contrato com a melhor relação custo-benefício que poderíamos imaginar: um número relativamente pequeno de domicílios para visitar a um custo operacional baixíssimo; não se falando ainda que poderíamos contar com as casas de Ana Cleide e Glacylene como bases operacionais.
Por precaução, percorremos a internet a fim de atestarmos a veracidade das informações dadas pelo Sr. Tavares a respeito do grupo Favourite Home S. A. E, até onde pudemos ver, havia um considerável número de empreendimentos imobiliários, como prédios, condomínios de luxo e loteamentos de casas populares que levava a sua marca.
Além do aspecto financeiro, ficamos também muito animados com o fato de podermos participar de uma ação que daria àquelas famílias, de uma vez por todas, suas casas próprias. Fiquei imaginando a felicidade de Lindomar e de seus vizinhos que, finalmente, morarão em casas acabadas, com toda infraestrutura e saneamento básico. Então, ligamos para o Sr. Tavares e confirmamos a nossa aceitação. E, no mesmo hotel, marcamos um novo encontro para assinarmos os contratos e acertarmos os detalhes operacionais.
Após a assinatura do contrato, fomos apresentados a uma funcionária do grupo, a Srta. Fernanda, cuja missão seria a de nos acompanhar durante a primeira visita a cada um dos domicílios. Segundo o Sr. Tavares, a presença de uma assistente social durante a primeira abordagem fazia parte da metodologia adotada pelo grupo.
Basicamente, teríamos que coletar os mesmos dados que coletei para o IBGE, durante o recenseamento, à exceção do preenchimento de um documento denominado Ficha Individual de Detalhamento de Processo de Ocupação de Imóvel. Tal ficha deveria obter, de cada uma das famílias, informações detalhadas sobre sua permanência naquele setor, desde o deslocamento de seus locais de origem, passando pela ocupação do terreno, até a construção de sua habitação e adaptação às condições locais.
p. 35Calculei que a produção de tal ficha seria a parte mais pesada de nossas atividades devido à complexidade das informações requeridas. Mas, conforme nos esclareceu a assistente social, o registro de tal conjunto de informações era imprescindível, pois serviria a dois importantes propósitos: primeiro, montar um dossiê de cada família, a fim de justificar o benefício destinado a ela pelo órgão financiador; segundo, alimentar o banco de dados da fundação Favourite, no sentido de continuar oferecendo, às mais diversas instituições de pesquisa, dados que possam contribuir com a ampliação dos índices do IDH entre as populações consideradas vulneráveis, não somente no Brasil, mas também no resto do planeta.
Eu estava ansioso para dar as boas novas a Glacylene, Lindomar e a todas aquelas famílias.
Marcamos, então, com a Srta. Fernanda, de iniciarmos a primeira visita, no dia seguinte, às oito horas, na casa de Lindomar. Para isso, tomei o cuidado de ligar antes para Glacylene para que nada desse errado.
E lá estávamos. Fernanda estacionou seu carro em frente à venda e atravessou a rua a passos apressados: cabelos amarrados, celular em punho, maleta tipo executivo a tiracolo e um grande crachá com a logo da Favourite preso à gola de sua blusa.
— Bom dia, pessoal! — cumprimentou Fernanda.
— Vamos entrar; a senhora não repara a bagunça, essa meninada não deixa nada no lugar. — desculpou-se Glacylene ajeitando uma almofada de crochê sobre o velho sofá.
Lindomar buscou na cozinha alguns tamboretes e todos se ajeitaram. Mica e Denílson continuaram brincando no quintal enquanto Robson preferiu permanecer no quarto, indiferente a toda aquela inusitada movimentação em sua casa.
p. 36Acomodada no sofá ao lado de Glacylene, Fernanda tomou a palavra:
— Seu Lindomar, D. Glacylene; é um enorme prazer para nós, do grupo Favourite, poder transformar o velho sonho de vocês em realidade, a conquista definitiva da casa própria. — iniciou Fernanda entregando a Lindomar um portfólio com imagens de um residencial com casas recém-construídas.
— A casa que a senhora vai arrumá pra gente vai sê desse jeitin que tá nesse papel? — perguntou Lindomar.
— Sim! Desse jeitinho. — respondeu Fernanda.
— E o endereço, é perto daqui?
— Pertíssimo! Será no município ao lado, no residencial Nice View. Deixe que eu mostre no mapa para o senhor. — prosseguiu Fernanda, mostrando a planta de localização numa das abas do portfólio:
— O senhor está vendo esta parte verdinha aqui?
— Tô.
— Então, aqui será onde o senhor e sua família irão morar. Esta linha pontilhada aqui é a rodovia, está vendo? E bem aqui ó, neste pontinho vermelho, é onde a gente está. Viu como é pertinho daqui? Agora vou mostrar para vocês a planta da construção.
Desenrolando a planta sobre o colo, Fernanda pediu ao Lindomar que se aproximasse do sofá.
— Vejam que tamanhão de casa: sala, cozinha espaçosa, dois quartos, área de serviço e banheiro no corredor. Tem até varanda! Isso não é o máximo?! Nela vocês poderão estender rede, colocar vasos de plantas, o que quiserem.
À medida que Fernanda descrevia os ambientes da futura casa, os olhos de Glacylene brilhavam de contentamento. Por fim, Fernanda fez perguntas sobre a saúde da família, a idade das crianças, as séries em que estavam matriculadas e as dificuldades que enfrentavam por morarem numa área invadida. Numa caderneta, Fernanda ia tomando nota das respostas de Glacylene.
— Eu entendo Glacylene. — interrompeu Fernanda — Mas, graças a Deus, vocês não terão mais que enfrentar esses problemas em sua nova morada. Lá, vocês terão água pura de poço artesiano, linha de ônibus na porta, escola municipal, posto de saúde e o mais importante, uma linda casa só de vocês!
— E a senhora sabe dizê quanto nóis vâmo tê que pagá pra morá lá? — perguntou Lindomar, preocupado.
— Quase nada, Seu Lindomar! Em parceria com o governo, vocês receberão um benefício de até 90% do custo do imóvel. O restante, ou seja, 10%, vocês poderão pagar de uma maneira que não prejudicará a renda mensal de sua família. Se o senhor me disser quanto é a sua renda mensal, somada com a de Glacylene, posso calcular, agora mesmo, e dar para vocês uma estimativa do valor mensal que terão que desembolsar com a nova casa. — explicou Fernanda sacando uma tabela de dentro de sua maleta.
— Juntando nossos dois salários — interferiu Glacylene — capaz que vai beirar uns três mil reais. Não é Lindomar?
— É mais o mêno isso daí. — concordou Lindomar.
— Neste caso, vocês pertencerão a “faixa 1,5” do MCMV. Vou simular o valor da prestação com base na faixa de renda mensal de dois mil e seiscentos reais, o que corresponde ao teto máximo permitido para enquadramento nesta faixa. Vamos ver... Ok. Pelos meus cálculos, vocês deverão pagar algo em torno de duzentos e setenta reais, durante cento e vinte meses, ou seja, dez anos. Viram? Terão a casa própria com pouquíssimo esforço. Então, isso é ou não é um presente de Deus?
p. 37— Oh! Glória. Foi uma benção de Deus a senhora aparecer aqui na nossa casa — respondeu Glacylene, emocionada.
— É a senhora que vai arrumá a papelada pra gente? — perguntou Lindomar.
— Não. Serão esses dois moços aqui, o Ton e o Pedro. Eles acompanharão vocês durante todo o processo de preenchimento das fichas e dos formulários. Depois disso, tudo será encaminhado para o nosso escritório a fim de gerar os contratos. Depois dos contratos assinados, faremos o cadastramento de vocês no programa MCMV. Daí para frente é só esperar o dia da mudança para a nova casa, novinha em folha!
— Vai demorar muito pra gente mudar? — perguntou Glacylene, ansiosa.
— Um tempinho de nada. Acredito que no máximo até o início do próximo ano vocês já estarão instalados na sua casa própria. Bem, agora, se nos derem licença, precisamos visitar muitas outras famílias. Fiquem com Deus.
Antes de nos retirarmos, Robson aproximou-se de Lindomar e permaneceu estático com o olhar fixo em Fernanda.
— Olá mocinho! Eu sou a Fernanda. E você, como se chama?
Robson não disse uma só palavra. Constrangida, Glacylene acudiu:
— Ele é assim mesmo, meio avexado. Fala oi pra moça Robson.
Então, Robson surpreendeu a todos:
— Eu posso ir com vocês?
— De onde cê tirô essa ideia minino? A moça precisa trabaiá! — censurou Lindomar.
Fernanda disfarçou um sorriso, meditou e disse a Lindomar:
— Não há problema algum! Será um prazer ter a companhia de Robson em nossas visitas.
— Deixa o menino ir, Lindomar. Ele tá de férias. Vai ser bom pra ele. — insistiu Glacylene.
Mesmo a contragosto, Lindomar consentiu:
— Tá bão. Mas, se ele incomodá, ocêis manda ele de vorta.
No restante do dia, acompanhamos Fernanda em mais cinco residências. Ela parecia ter decorado cada palavra que dissera na casa de Lindomar. Embora Robson permanecesse calado durante todo o tempo, a sua presença parecia diminuir o impacto causado pelo caráter inesperado de nossas visitas; afinal, ele era um membro daquela comunidade.
No dia seguinte, todas as cinquenta e duas famílias restantes já sabiam de nossas intenções e ansiavam pela nossa visita. Então, propus a Fernanda que juntássemos várias famílias, em uma única reunião, a fim de adiantar o processo. Fernanda me desaconselhou dizendo que a visita presencial, em cada um dos domicílios, além de surtir melhor efeito também fazia parte da metodologia adotada pela empresa.
E assim fizemos: foram mais oito dias de visitação, sempre na companhia de Robson.
Vencida a etapa das apresentações, seria a vez de Pedro e eu assumirmos a coleta de dados e o preenchimento das fichas de detalhamento nos cinquenta e seis domicílios, incluindo o de Lindomar.
Levamos quatorze dias para a conclusão de toda a nossa parte. Não encontramos dificuldade em nenhum dos domicílios visitados. Ao contrário, todos se mostraram prontos em nos ajudar com a coleta. Fernanda os havia deixado completamente encantados com a ideia do projeto. Ela estava absolutamente certa sobre os resultados que se alcança quando se visita cada domicílio individualmente. Em seguida, levamos o material para o escritório da Favourite onde fomos encaminhados para a contabilidade a fim de recebermos a primeira parte dos serviços. A segunda nos seria paga após encerrada a análise do material coletado.
p. 38Quinze dias depois, Fernanda foi até a invasão levar os contratos de adesão para serem assinados. Para isso, o escritório colocou à disposição dos moradores duas Vans a fim de levá-los ao cartório para reconhecimento de suas assinaturas.
Na semana posterior a assinatura dos contratos a empresa me convocou para receber a segunda parte do pagamento.