Passei muitos dias matutando sobre todos aqueles misteriosos acontecimentos envolvendo Mica, mas não consegui encontrar nenhuma resposta plausível. Então, decidi esquecer aquilo tudo e concentrar minha atenção apenas no trabalho e, claro, no meu namoro com Ana Cleide.
Mas num desses finais de semana, Glacylene teve a ideia de instalar um balanço de cordas para Mica em um pé de goiaba que ficava entre a cozinha e o muro de fundo. Comprei as cordas e as amarrei em um velho pneu de motocicleta, criando, assim, um seguro e confortável balanço. Para testar a sua resistência eu mesmo subi no balanço e fiz o test drive inicial. De cima do balanço, eu podia ver Mica brincando em seu tabuleiro de plantas, movimentando entre as ruas alguns carrinhos de plásticos. Tal cenário me remeteu à minha infância quando eu e meu irmão mais velho montávamos verdadeiras minicidades em nosso quintal. Nelas, tínhamos casas, carros, vizinhos, inventávamos personagens para nós e histórias de aventuras.
E assim que me viu balançando, Mica se pronunciou:
— Tio Ton? Agora é a vez do Mica balançar.
— Então venha logo! — chamei.
Acomodei Mica no balanço e comecei a empurrá-lo. Cada vez que o balanço chegava ao seu ponto máximo de altura, Mica soltava um “ihuuu” de felicidade.
— Veja! Você agora é o super-Mica e está voando sobre o seu tabuleiro de plantas — disse a ele no intuito de provocar a sua imaginação.
— Não é tabuleiro, tio Ton. É o nosso setor. E a casa onde está aquele carrinho é a casa do Mica!
Mais tarde, me enchi de coragem e puxei assunto com Ana Cleide sobre os mistérios que envolviam Mica e seu jardim:
— Esse seu sobrinho, realmente, tem muita imaginação. Acredite, ele representou naquele arranjo de jardim o próprio setor onde mora, substituindo casas por vasos de plantas e ainda atribuindo números a elas.
— Então, era por isso que ele apontava o dedinho para aquela casa e dizia “casa oito, planta oito”? — perguntou Ana Cleide.
— Exatamente!
— Então, pronto! Resolvido o mistério! Quando voltarmos ao psicólogo para a segunda avaliação diremos a ele que solucionamos o caso da obsessão de Mica pela tal casa oito. — concluiu Ana Cleide.
— Gostaria que fosse simples assim. — prossegui.
— Como assim, Amorzinho? Não estou entendendo.
Naquela hora, não vi outro jeito senão contar a Ana Cleide sobre a minha investigação a respeito das associações que Mica fizera entre as casas um e oito e a origem das respectivas plantas de seu jardim. Assim, após detalhar as estranhas coincidências por mim investigadas, concluí dizendo a ela que o arranjo de plantas de Mica era, na verdade, uma espécie de mapa mental do setor. Independente de qual fosse a reação de Ana Cleide, só de poder dividir com ela aquela minha inquietação já seria um alívio. Mas, para minha surpresa, Ana Cleide olhou para mim, segurou a minha mão, e disse:
— Amorzinho?! Não vejo problema algum em Mica fazer um mapa mental do setor onde mora.
p. 27Ainda assim, insisti explicando a ela que aquilo não era normal, pois, para se produzir um mapa mental de qualquer lugar, seria necessário conhecer, profundamente, cada detalhe do espaço que se quer representar e que Mica era apenas uma criancinha incapaz de memorizar sequer o quarteirão de sua casa, quanto mais uma grande parte do setor. Mesmo depois daquela explicação, Ana Cleide continuou não dando a menor importância ao fato e até me pediu para que eu esquecesse aquelas ideias de uma vez por todas. Daquele momento em diante, concluí que estava sozinho no caso.
Algo dentro de mim me dizia para esquecer os enigmas de Mica. Mas aquilo parecia me atrair de uma maneira incontrolável. Então, no dia seguinte, liguei para um amigo que trabalhava no departamento de cartografia do IBGE e pedi a ele que me enviasse o mapa censitário daquele setor. Embora atraído por aqueles mistérios, precisava pôr um fim àquela questão para não contrariar Ana Cleide. Por isso, decidi submeter aqueles indícios a uma espécie de prova final: subi no pé de goiabeira e fotografei o jardim de Mica de vários ângulos, a fim de cartografar todo o perímetro. Depois, organizei a projeção de coordenadas no mapa mental de Mica respeitando a mesma escala do mapa censitário do setor, ou seja, 1:50.000, cada 1 cm no mapa correspondendo a 50.000 cm no plano real. Usando uma ferramenta de georreferenciamento, localizei as coordenadas tanto da casa de Dona Tê como das casas Um e Oito por mim visitadas. Por fim, aferi as coordenadas geográficas de latitude e longitude e comparei os dois mapas. Após analisar todos os pontos comparados tomei um baita susto: o mapa mental de Mica representava, com exatidão, as mesmas coordenadas contidas no mapa censitário do setor, ou seja, as localizações das casas Um, Oito, de Dona Tê, bem como as casas dos demais logradouros representados eram exatamente as mesmas nos dois mapas.
Contudo, para obter a prova derradeira da qual eu precisava, decidi escolher, de forma aleatória, três plantas do jardim de Mica e ir, pessoalmente, nos seus endereços correspondentes aos do mapa censitário. Assim, quando tive a chance, capturei uma imagem de Mica brincando em seu jardim, localizei as três plantas escolhidas no mapa censitário e as visitei. Eu tinha bolado uma estratégia de abordagem para os três domicílios: mostraria a imagem de Mica brincando no meio das plantas, e diria a eles que, em nome da família, eu estava ali para agradecer as graças alcançadas e as mudas de plantas doadas. E para que não restassem dúvidas, eu ainda pediria às respectivas moradoras que identificassem as plantas na foto, ou, caso não conseguissem, que pelo menos me dissessem o nome da espécie deixada na casa de Dona Tê.
Pois bem, nas duas primeiras residências visitadas suas moradoras, apesar da baixa resolução da imagem, conseguiram reconhecer as plantas com a ajuda das lembranças que ainda tinham das respectivas embalagens que utilizaram como vaso. Já na terceira residência, a dona não estava, mas seu marido me assegurou que esteve com a esposa na casa de Dona Tê no dia da vigília:
p. 28— Nóis cheguemo lá já era noite. Rezemo o terço e dêxemo um vaso de frô inriba da mesa. Agora, o nome da pranta eu não me alembro não sinhô. Se quisé posso preguntá pra muié hora que ela chegá.
Estava comprovado. Mica, por alguma capacidade desconhecida, conseguira reproduzir em seu jardim uma cartografia perfeita do setor.
Aquela constatação me deixou muito perturbado. E por mais que eu me esforçasse para ignorá-la eu não conseguia. E sem o apoio de Ana Cleide, eu teria que me esforçar muito para conviver com o Mica ocultando o meu fascínio pelos fenômenos que o cercam.
Remoí aquele dilema por semanas, até não aguentar mais. Então, resolvi partilhá-lo com alguém. Todo mundo tem, ou, pelo menos pensa que tem, um “melhor amigo”; aquela pessoa a quem você pode confiar seus segredos. No meu caso, era o Pedro. Colega de faculdade, tínhamos muitas coisas em comum, além de sermos sócios nos negócios. Assim, contei a ele tudo o que se passara com o Mica, cada detalhe. Ao final, ele me disse:
— Normal. Isso é muito normal!
— Como assim?! Acabei de te contar uma história das mais cabeludas, com todas as evidências, e você me diz apenas que acha normal?
— Isso mesmo! Crianças na idade do Mica são muito sensitivas. Elas conseguem ver e ouvir coisas que um adulto, normalmente, não consegue. Segundo os entendidos do assunto, as mentes dessas crianças, por estarem livres de qualquer tipo de travas, conseguem liberar ondas de energia capazes de abrir campos de percepção impossíveis de serem alcançados por uma mente adulta, quase sempre afetada por vícios sociais de todo o tipo.
p. 29— Como pode ter certeza disso que está dizendo? — perguntei.
— Não tenho certeza de nada. Só estou repassando o que já li e ouvi dizer sobre a existência de crianças sensitivas que desenvolvem habilidades paranormais. Se você entrar na internet verá milhares de páginas explorando esse assunto, inclusive, com imagens, depoimentos e até filmagens. É muito interessante! Você vai adorar. O cinema norte-americano também adora explorar este tema. Nunca assistiu ao filme X-Men: evolution?
A conversa com o Pedro fora decepcionante. Eu esperava dele outro tipo de reação; no mínimo um “Nossa! Véi, que doidêra! ”, como ele mesmo gosta de dizer quando se depara com algo incomum. De toda forma, aquela sua reação talvez ajude conter o meu ímpeto de continuar investigando Mica e seus enigmas. Além do mais, se Pedro estiver certo, as tais habilidades paranormais de Mica deverão desaparecer tão logo ele alcance a idade adulta.
Nos quase quatro meses que se seguiram, algumas mudanças inusitadas ocorreram na casa de Ana Cleide: Dona Tê, devido ao fato de as plantas do tabuleiro de Mica terem se desenvolvido, precisou retirá-las de dentro de seus respectivos vasos replantando-as em vários pontos de seu quintal. Tal situação, entretanto, não provocou em Mica nenhuma reação adversa. Ao contrário, para a minha surpresa, ele até ajudou a sua vó na transposição das plantas. Outra mudança excepcional foi o anúncio da repentina mudança de Glacylene. Após a prisão de seu antigo namorado, o Gildésio, Glacylene iniciou um novo romance. Trata-se de Lindomar, viúvo de quarenta e cinco anos, pai de dois filhos, natural do nordeste goiano e que trabalha como vigilante na mesma creche em que Glacylene é merendeira. Tudo aconteceu muito rápido. Lindomar foi à casa de Dona Tê, avisou de sua intenção de se juntar com Glacylene e, na semana seguinte, já iniciaram os preparativos para a mudança. Havia rumores de que os dois já vinham tendo um caso, às escondidas, antes mesmo de Lindomar tornar-se viúvo.
Felizmente, a mudança de Glacylene não causara grande descontentamento à Dona Tê, pois a casa onde foram morar situa-se no mesmo setor, algo em torno de dez minutos de caminhada. Assim, Ana Cleide e sua vó poderiam matar a saudade de seus amados sempre que desejassem.
E na primeira oportunidade que surgiu, fui com Ana Cleide visitá-los. A casa de Lindomar fora construída numa parte do setor cujos terrenos não possuíam documentação. Segundo nos informou Lindomar, quando o Residencial Vila Sonhada foi construído, a maioria das residências havia sido adquirida por meio de um programa habitacional do governo federal denominado “Minha Casa, Minha Vida”. Porém, muitas famílias que também estavam inscritas no programa, por razões que não foram a elas esclarecidas, tiveram seus direitos negados . E por não terem para onde ir, essas famílias, como foi o caso da família de Lindomar, não viram outra solução senão ocuparem uma parte do setor que, no entendimento delas, estaria destinada a abrigá-las da mesma forma como abrigou as demais. Desde então, essa parte é chamada pelos moradores do setor de invasão, denominação essa que, no dizer de Lindomar, causa muito constrangimentos a seus moradores.
p. 30Mica parecia muito feliz.
— Tio Ton? Venha ver os dois irmãozinhos que o Mica ganhou. — disse Mica entusiasmado me puxando pela mão — . Esse é o Denílson, ele é da mesma idade do Mica. E esse aqui é o Robson, ele é o mais velho. Minha mãe disse que ele quase não fala. Qué vê? Denílson? Dá oi para o tio Ton! Viu?
Temendo algum tipo de constrangimento, Glacylene interrompeu a apresentação de Mica:
— O Robson é uma criança muito inteligente! Eu o conheci na creche quando ele ainda tinha três aninhos. Ele é assim, caladinho, por causa de um probleminha de nascença, como é mesmo o nome Lindomar?
— O Dotô falô o nome; não sei se era urtisgo, urtismio, uma coisa desse tipo. A memória não tá boa agora. — respondeu Lindomar, envergonhado.
— O nome correto é Autismo, Seu Lindomar, o senhor quase acertou. Mas isso não é problema algum! — tentei amenizar — Vocês sabiam que grandes gênios da história eram autistas? Isso mesmo! Dizem que até Einstein era autista.
— Vocês aceitam um cafezinho? — perguntou Glacylene mudando o rumo da conversa.
Lindomar era um pai dedicado, de origem humilde e rural. Sua casa ainda estava inacabada: Não havia muros, nas paredes externas faltava reboco e a maior parte do piso ainda não tinha recebido revestimentos. Aliás, a maioria das casas de sua vizinhança se encontrava em condição semelhante. E justamente devido à falta do acabamento, a aparência das casas da invasão ajudava a reforçar estereótipos destinados a inferiorizar seus moradores. Como resultado, criava-se uma falsa imagem segundo a qual os moradores da invasão seriam mais carentes em comparação àqueles moradores da outra parte do setor cujas casas já estavam acabadas e escrituradas. Pura ilusão, uma vez que não haviam significativas diferenças de renda familiar entre uma parte e outra dos domicílios daquele bairro. E ninguém melhor para atestar isso do que a própria pessoa que realizara o recenseamento de todo aquele perímetro, ou seja, eu. A causa, então, por trás do atraso na conclusão de suas obras não eram devido a diferenças de renda familiar, mas sim, pelo simples fato de não terem sido assistidos pelo programa habitacional MCMV. Deste modo, tiveram que erguer suas casas usando recursos próprios, economizados, ano após ano, a duras penas.
Duas outras características comuns àquelas residências eram a presença tanto de cisternas para captação de água como o cultivo de plantas para fins culinários e medicinais. Invariavelmente, tal plantio era realizado em pequenos canteiros ou em latas vazias, como ocorria na casa da vó Tê.
Enquanto Ana Cleide e Glacylene preparavam o café, Lindomar e eu permanecemos na sala observando as crianças brincarem. Mica e Denílson corriam com o Biscoito na frente da casa, enquanto Robson, sentado sobre uma pilha de tijolos, os observava serenamente. Pedi licença a Lindomar e me aproximei de Robson na esperança de instigá-lo a tomar parte na brincadeira:
p. 31— Aí Robson? O tio Ton teve uma ideia! O que acha de chamarmos aqueles dois para uma aposta? Uma corrida até a venda da esquina. Quem chegar primeiro escolhe o sabor do pote de sorvete que o tio Ton vai comprar para todos.
Sem demonstrar entusiasmo, Robson desceu da pilha de tijolos, limpou o pó das mãos em seu calção, ensaiou um discretíssimo sorriso e pronunciou um acanhado “tá bom tio”.
Assim, convoquei Mica e Denílson para a competição. Risquei no chão a linha de largada, defini o trajeto e pedi que ficassem atentos ao meu comando. Porém, antes de eu dar o sinal, Mica se aproximou de Robson dizendo-lhe:
— Não fique com medo. Se não quiser, não precisa entrar na venda.
Aquilo me deixou intrigado. Contudo, preferi não dar importância para não deixar o Robson constrangido.
E Robson correu o mais rápido que pôde. Foi o primeiro a chegar à venda. Mas, conforme sugeriu Mica, não quis entrar. Respeitei a sua decisão. E para garantir a premiação, pedi ao Mica que lhe perguntasse qual era o sabor do sorvete de sua preferência. Mica me olhou por um momento e antecipou:
— Tio Ton? O Robson quer que o Denílson escolha o sabor do sorvete.
Temendo trair a confiança de Robson, fui até a porta da venda para saber de sua decisão. Retraído, Robson virou-se para outro lado, abaixou a cabeça e me perguntou:
— O Denílson pode escolher pra mim, Tio?
Comprei o sorvete sugerido por Denílson e voltamos para a casa de Lindomar. No caminho fiquei me perguntado se o Mica não teria lido os pensamentos de Robson. Não sei. Talvez eu já estivesse autossugestionado.