Após a formatura, conseguimos registrar a nossa tão sonhada empresa virtual de consultoria, a GEOPETON, GEO de geografia, PE de Pedro, meu sócio, e Ton de Erivelton. Por sorte, contamos com o empurrãozinho de uma professora da faculdade que nos auxiliou na montagem de um projeto para concorrermos a um edital para contratação de serviços de consultoria em planejamento urbano para uma prefeitura do interior. Deu certo! Era a nossa primeira atuação como geógrafos profissionais, e também nosso primeiro salário de verdade. Estávamos realmente muito entusiasmados, pois aquele contrato nos enchia de esperança.
E tudo correu conforme o planejado: fizemos os levantamentos, processamos os dados e produzimos os relatórios no tempo combinado. Com o dinheiro que recebemos daquela prefeitura, pagamos alguns meses de aluguel adiantado da quitinete que eu e Pedro dividíamos, e também consegui comprar uma motocicleta usada, praticamente pelo valor de seus impostos atrasados, ou seja, dois mil reais.
Mas naquela mesma semana, na manhã da sexta-feira, ocorreu uma tragédia na família de Ana Cleide: seu sobrinho, o Mica, havia desaparecido. Todos estavam tão arrasados que decidi passar o final de semana em sua casa, a fim de ajudá-las no que fosse possível. Fomos à delegacia do bairro, também à secretaria de segurança pública, mandamos fotos de Mica para o SOS Criança Desaparecida e percorremos a maior parte das casas do setor entregando cópias da foto de Mica aos moradores. Desesperada, Glacylene foi inúmeras vezes à delegacia do setor na esperança de obter notícias. E numa dessas idas à delegacia, um agente de polícia a deixou ainda mais desesperada ao informar-lhe que, no Brasil, quase cinquenta mil crianças e adolescentes desaparecem todos os anos, e que os motivos já eram bem conhecidos: comércio internacional de órgãos, adoção ilegal, trabalho escravo e exploração sexual.
p. 18A essa altura do campeonato, eu já tinha me proibido, terminantemente, de comentar com Ana Cleide sobre os supostos prodígios de Mica temendo agravar, ainda mais, a situação. Além do mais, pensei, sequestro de crianças por motivo de prodígios, definitivamente, não frequentava as estatísticas sobre crianças desaparecidas. Contudo, resolvi seguir a minha própria linha de investigação tomando por base o que ocorrera entre Mica e o Flores de Jesus. Assim, passei o resto do dia percorrendo vários comércios do setor indagando sobre um garotinho que andava pela região fazendo complexos cálculos matemáticos de cabeça. Porém, toda a informação que consegui obter me conduzia de volta àquela parada de ônibus. Pela noite, eu e Ana Cleide acessamos dezenas de páginas da internet que expunham conteúdos sobre crianças desaparecidas, na esperança de ver surgir o rosto de Mica.
Na manhã seguinte, decidi voltar àquela parada de ônibus a fim de puxar conversas com os moradores locais na esperança de que pudesse surgir alguma pista sobre o sumiço de Mica. E após conversar com dezenas de moradores, lembrei-me do que aquele agente de polícia dissera à Glacylene; então refleti: ora, se as estatísticas apontam que entre os quase cinquenta mil casos anuais de desaparecimentos de crianças no Brasil, o rapto para fins de comercialização é apontado como sendo um dos principais motivos, e se uma criança sequestrada pode ser levada para qualquer uma das milhares de cidades espalhadas pelos 193 países existentes no planeta, logo, as chances de Mica ainda estar naquele bairro seriam mínimas. Assim, me levantei do banco e me despedi do proprietário do mercadinho dizendo a ele que não iria mais incomodar os seus clientes com perguntas. O proprietário mostrou-se entristecido e tentou me consolar:
— Rapaz? Não desista de procurar pelo menino, Deus é grande!
— Não estou desistindo. Apenas acho que aqui, no Vila Sonhada, não há mais ninguém que possa nos ajudar. — conclui agradecendo-o pela cooperação.
Três dias se passaram desde o desaparecimento de Mica e ainda nenhuma notícia ou pista haviam surgido. Na casa de Ana Cleide, as orações se misturavam aos choros, num estado de profunda dor. Vizinhos de todas as partes do setor se espremiam no interior daquela pequena casa numa espécie de vigília, oferecendo orações, flores, cantos e chás. Glacylene, abraçada ao cãozinho Biscoito, fazia a ele, repetidamente, a mesma pergunta: “Vai biscoito, conta pra mamãe pra onde levaram o nosso Mica? ”.
Lá pelas dez da noite, já não havia mais nenhum vizinho na casa. Algumas velas ainda queimavam, e, espalhadas por todos os cantos, haviam dezenas de flores e mudas de plantas, a maioria delas cultivada dentro de vasos improvisados como garrafas pet, latas de tinta e potes de margarina. Eram como oferendas deixadas pelos vizinhos como prova de respeito e afeto. Foi então que uma viatura da polícia parou em frente a casa acionando a sirene. Glacylene saltou do sofá e saiu correndo porta afora. Da viatura desceu um dos policiais esclarecendo o motivo da visita:
— Boa noite. Nesta casa mora a Sra. Glacylene Pereira da Silva?
— Sim! Sou eu. — respondeu, aflita.
p. 19— É que uma equipe do tático do 31º BPM de Aparecida encontrou, no Jardim Iracema, uma criança que se encaixa na descrição do menino Micael, dado como desaparecido.
— Ele tá vivo?! Como é que ele tá? Pelo amor de Deus! Fala pra gente seu guarda! — disparou Glacylene desesperada.
— Calma minha Senhora. O primeiro procedimento é a família identificar a criança. Ô Souza? Traz pra mim o celular. — ordenou o policial ao seu parceiro.
— Tá na mão, Sargento.
Na sequência, o sargento mostra para Glacylene uma foto na qual Mica aparece sentado no banco de trás de uma viatura, segurando uma caixinha de suco de uva. Ao ver a foto do filho, Glacylene não se contém: desaba em choro abraçando o sargento. Indiferente àquela cena, ele afasta Glacylene de sua farda e ordena:
— Souza? Encaminhe a mãe do menino para os procedimentos.
— A Senhora terá que nos acompanhar até a delegacia em Aparecida.
Imediatamente, Glacylene corre para dentro da casa com o intuito de apanhar seus documentos e os de Mica.
Seguimos para a delegacia, a fim de formalizar o reconhecimento e liberar o menino. Para a nossa surpresa, Mica, apesar dos quase quatro dias de perambulação, estava calmo e completamente intacto: roupas limpas, nenhum sinal de maus tratos, desnutrição, insolação, nada! Estava claro o fato de que recebera atenção durante todo o tempo em que esteve desaparecido. O delegado de plantão havia feito uma série de perguntas, mas Mica não conseguiu se lembrar de absolutamente nada. O delegado, então, expos a sua hipótese:
— Esse menino foi sequestrado, provavelmente para fins de comercialização no estrangeiro. Isso explica o porquê de ter sido encontrado assim, tão bem tratado. Durante o tempo em que esteve no cativeiro, o sequestrador lhe deu alimentação e acomodações. Esses bandidos são muito profissionais, eles não transportam “mercadorias” com defeito, me entendem? Porém — continuou o delegado —, por algum motivo que desconhecemos, uma das partes envolvidas no sequestro quebrou o acordo forçando o sequestrador a abandonar a criança à própria sorte.
— Esse tipo de ocorrência é muito comum — prosseguiu o delegado. —. Por trás de um simples rapto de uma criança há uma verdadeira rede. Vocês nem fazem ideia... Entre uma ponta e outra do esquema, ou seja, desde o elemento que pratica o sequestro até aquele que recebe a encomenda, existem diversos tipos envolvidos: os encarregados de falsificar documentos, passaportes; os que transportam as crianças fingindo serem seus parentes; e até funcionários de aeroportos mancomunados com o esquema. Entretanto, basta que apenas uma das linhas dessa rede se rompa para que a operação inteira seja abortada. Vocês tiveram muita sorte! — concluiu o delegado.
Era uma boa hipótese. Contudo, ainda me deixava intrigado o fato de Mica não ter conseguido se lembrar de absolutamente nada. Nem do momento em que se afastou de casa, ou de quando alguém, supostamente, o tenha atraído até a um veículo. E o mais intrigante: ele não se lembrava de nenhuma experiência vivida durante o tempo em que esteve ausente. Mas, para essas minhas inquietações, o delegado também tinha uma explicação plausível:
p. 20— Também é muito comum essas crianças ficarem sob efeito de soníferos durante todo o processo do sequestro. Assim, além de não sentirem falta de seus verdadeiros pais, também não despertam desconfianças durante o embarque.
Depois do interrogatório, o delegado liberou Mica e sugeriu a Glacylene que o levasse a um médico, o quanto antes, para saber se o menino não teria sido infectado ou intoxicado durante o suposto sequestro.
E tudo voltou ao normal na casa de Ana Cleide. Glacylene foi chamada, mais uma vez, ao conselho tutelar, e vovó Tê, como forma de agradecimento ao carinho e às preces que recebera de seus vizinhos, acomodou em seu jardim cada uma das plantas que ganhara. De minha parte, aproveitei aquele momento de euforia e resolvi conversar com a família sobre a extraordinária capacidade de Mica em realizar cálculos matemáticos. Ana Cleide não aprovava aquela minha ideia, mas eu me sentia como alguém que estava escondendo um daqueles “segredos de Estado”. Além do mais, se algo de mal acontecesse ao menino por conta daquela sua capacidade eu iria me culpar pelo resto de minha vida. Afinal, outros Flores de Jesus poderiam surgir em seu caminho. Assim, na primeira oportunidade que surgiu revelei o talento de Mica:
— Pessoal? É o seguinte: não quero que entrem em pânico com o que vou revelar sobre o Mica, pois é um fenômeno normal. Estive até lendo sobre o assunto e constatei que é comum ocorrer tal fenômeno com crianças nessa idade. Portanto, não se trata de uma doença ou algo do tipo possessão ou coisas do gênero, ok?
— Amorzinho? Pare com essa embromação e conte logo! — interrompeu Ana Cleide, impaciente.
— Tem razão. É melhor que vocês vejam “ao vivo e em cores”.
— Mica? — chamei o prodígio —. Sente-se aqui no sofá, ao lado do tio Ton. Agora, para que nenhum de vocês pense que estou querendo pregar uma peça, pedirei a Ana Cleide que elabore uma operação de multiplicação para o Mica responder.
— Tudo bem — consentiu Ana Cleide, desinteressada.
Glacylene estava atenta à demonstração do filho, enquanto Dona Tê, nem tanto. Continuou catando uma porção de feijão que espalhara sobre a mesa, assistindo à cena de rabo de olho.
— Docinho da titia? Quantos dedinhos você está vendo?
— Cinco! — respondeu Mica de pronto.
— Agora quero que diga para titia: e se fossem oitenta mãos iguais a essa, quantos dedinhos seriam?
Eu me sentia como um torcedor de um time de futebol esperando só a cobrança do pênalti para gritar o gol, quando Mica respondeu:
— O Mica não sabe mais fazer contas.
Eu não sabia o que dizer. Então, me lembrei daquela vez na cozinha, e sugeri ao Mica que pedisse ao Biscoito que respondesse à pergunta, mas, foi em vão:
— O Biscoito também não quer mais fazer contas, não é Biscoito? — disse Mica, segurando o cãozinho.
Eu não sabia onde enfiar a minha cara. Ana Cleide, envergonhada por mim, tentou amenizar:
—Quem sabe outro dia, não é gente? Acho que toda aquela situação acabou provocando um tipo de blecaute em Mica. Deve ter sido muito traumático para o coitadinho.
p. 21O comentário de Ana Cleide amenizou o meu vexame. Depois, ninguém mais quis tocar no assunto.
Passados alguns dias, Mica me chamou para ver algo que fizera no quintal da vovó Tê: o menino havia pegado todos aqueles vasos de plantas que os vizinhos deixaram na casa e os posicionou, espaçadamente, formando um traçado semelhante a um tabuleiro. Tal situação, no entanto, me fez lembrar de um artigo que li na faculdade sobre como as crianças produzem, poeticamente, seus próprios brinquedos e brincadeiras em pequenos espaços e a partir de objetos que se encontram ao seu redor. Em seguida, vovó Tê aproximou-se dirigindo milhares de elogios ao netinho:
— Que lindo! Foi o docinho da vovó que fez esse jardim maravilhoso? Vovó Tê pode brincar também?
Todo sorridente, Mica respondeu que sim assentindo com a cabeça. Então, ela entrou na brincadeira mudando alguns vasos de posição. Imediatamente, Mica refez a ordem original repreendendo a vovó:
— Não vovó! A senhora não pode mudar as casas de lugar. Cada plantinha fica na casa onde nasceu.
Naquele mesmo dia, eu e Ana Cleide resolvemos dar uma volta pelo setor e chamamos Mica para ir com a gente. Na hora de sairmos, Ana Cleide advertiu o sobrinho para que não levasse o Biscoito. Mica fez uma carinha triste e pediu à tia que o deixasse levar outra amiguinha para passear. Ana Cleide consentiu. Mica, então, correu para dentro da casa e logo voltou carregando uma das plantinhas do arranjo que fizera no quintal. Vez ou outra, durante a caminhada, Mica pedia a tia que carregasse a amiguinha para aliviá-lo do peso. Num dado momento, Mica segurou a plantinha, parou em frente a uma casa e disse:
— Casa um, plantinha um.
A tia coruja achou aquilo tão incrível que até tirou uma selfie com o sobrinho para registrar o momento. Para mim, Mica estava apenas dando continuidade à brincadeira que começara no quintal de sua avó.
No outro final de semana, eu e Ana Cleide estávamos na cozinha ajudando a vovó Tê com o almoço, quando Mica invadiu a cozinha, aos prantos, apontando o dedinho para o quintal. Corremos até lá e não conseguimos enxergar nada de errado, exceto alguns poucos vasos de plantas tombados com suas terras espalhadas pelo chão.
— O Biscoito destruiu três casas — chorava Mica em meio a soluços.
— Não chore, meu docinho! — tentou consolar Dona Tê —, a vovó vai arrumar tudo direitinho.
p. 22Carinhosamente, vovó Tê refez os três vasos de plantas que Biscoito havia espalhado. Um dos vasos, no entanto, teve a sua planta totalmente destroçada. E para consertar a situação, vovó Tê juntou uma porção de terra, arrancou uma muda de seu jardim e a replantou no vaso em que a planta fora abocanhada. Imediatamente, Mica contestou:
— Não vovó! Essa não é a planta certa!
Por sorte, Dona Tê possuía em um de seus canteiros a mesma espécie que estava plantada no vaso que Biscoito destruíra.
— Pronto! Vovó plantou a mesma plantinha que estava na casinha de Mica — disse Dona Tê encerrando a questão.
Mesmo assim, Mica protestou:
— Não é a planta certa, Vovó!
— É sim! Olhe bem, a vovó plantou a mesma plantinha! — insistiu Dona Tê mostrando ao neto a semelhança entre elas.
— Mas não é a plantinha da mesma casa, Vovó! — continuou protestando.
Cansada daquela situação, vovó Tê retornou para a cozinha e pediu ajuda à neta:
— Ana Cleide, vê se consegue dar um jeito no Mica. Hoje ele está enjoadinho, deve ser um resfriado. Mais tarde vou fazer um chá para ele.
Tentamos animá-lo, mas, foi inútil. Ficou repetindo centenas de vezes o mesmo pedido: “Tia Ana Cleide? Busca para o Mica a plantinha na casa oito”.
p. 23Eu sempre soube que crianças davam birra. Mas o que eu não conseguia entender era a insistência de Mica em buscar a planta na tal casa oito, mesmo tendo a sua avó lhe dado outra da mesma espécie. Por fim, concluí que se tratava de algum tipo de drama que Mica desenvolvera no interior do seu mundo imaginário.
Os dias passavam e Mica não conseguia superar aquele seu drama. Ao contrário, passava horas pedindo para que alguém buscasse a tal planta na tal casa oito. Eu e Ana Cleide já estávamos preocupados. Até pedimos a Glacylene que nos deixasse levar Mica a um psicólogo. Nossa hipótese era a de que o menino sofrera algum tipo de trauma durante o desaparecimento. Glacylene aprovou a nossa ideia e até conseguiu, com a ajuda da coordenadora da creche onde trabalhava, marcar uma consulta para o Mica ainda naquela semana.
No dia combinado, passei na casa de Ana Cleide e apanhei os dois para irmos ao psicólogo. Quando estávamos quase na avenida da linha do ônibus, Mica se solta da mão de Ana Cleide e corre na direção de uma casa onde uma senhora se achava sentada no alpendre. Ele, então, para, permanece estático em frente ao portão, aponta o dedo e dispara a gritar:
— Casa oito! Casa oito! Tio Ton? Casa oito!
A dona da casa, desentendida, apenas sorri abanando a mão para o Mica. Ana Cleide interveio imediatamente:
— Nos desculpe. Esse menino tem muita imaginação. Só a senhora vendo...
Durante a consulta, o psicólogo não detectou nada de errado com o Mica. Contamos a ele sobre a sua obsessão em achar a tal casa oito, etc., mas o doutor julgou se tratar de um trauma passageiro, ocasionado, muito provavelmente, pela terrível experiência vivida durante o sequestro. Por precaução, indicou algumas atividades do tipo ludoterapêuticas e sugeriu que retornássemos para uma segunda avaliação após seis meses.
Na volta da consulta fizemos questão de passar na porta daquela casa onde Mica fizera o alvoroço, na esperança de que ele, após a longa conversa que teve com o psicólogo, já tivesse superado aquele trauma. Propositalmente, paramos duas casas acima e tentamos desviar a sua atenção mostrando a ele um galinheiro repleto de pintinhos. Mica apontou o dedinho na direção dos filhotes e não hesitou:
— Quero um tio Ton!
— Tio Ton vai comprar um para o Mica, todo amarelinho. Não vai tio Ton? — incentivou Ana Cleide.
Mica ficou todo entusiasmado com a ideia de ganhar um pintinho amarelinho. Passamos, então, em frente a tal casa e Mica sequer tomou conhecimento. Naquele momento, tínhamos a certeza de que ele já havia deixado aquele trauma para trás. Ledo engano... Mica retornou correndo, parou em frente à casa e recomeçou:
— Casa oito, casa oito, casa oito.
Eu e Ana Cleide ficamos decepcionados e apreensivos. Contudo, decidimos poupar Glacylene de mais uma chateação não contando a ela nada sobre o ocorrido.
Impressionado com o fato de Mica ter reconhecido, por duas vezes, a mesma casa e atribuído a ela o mesmo número, resolvi investigar. Assim, comecei pela pista que estava mais próxima: a planta causadora de todo o imbróglio.
p. 24— Dona Tê? Qual é o nome daquela planta que a senhora replantou para o Mica naquele dia? — perguntei à vovó.
— Aquela é a hortelã gorda. É um santo remédio pra todo o tipo de resfriado, chiadeira no peito, inflamação de garganta e muitas outras coisas. Se quiser, posso fazer um chá pra você. Tenho muito dessa folha, bem aí no canteiro da frente você acha elas.
— Obrigado, Dona Tê. Mais tarde vou querer sim. — disfarcei.
Sem que Mica ou qualquer outra pessoa da casa pudesse perceber, peguei a latinha com a hortelã gorda e fui até a aludida casa oito. Eu ainda não tinha nada em mente sobre o que eu deveria fazer, ou dizer, quando chegasse lá. Então, improvisei. Chamei no portão e fui recebido por aquela senhora que vimos no alpendre pela manhã:
— Boa tarde, minha senhora!
— Boa tarde! Em que posso ajudá-lo?
— É que passamos por aqui hoje de manhã; eu, minha namorada e o sobrinho dela, não sei se a senhora ainda se lembra.
— Sim, me lembro — interrompeu a dona da casa.
— Pois é, aquele menino tem cada ideia... Imagine só, ele insistiu para que eu lhe desse essa muda de planta.
Desconfiada, a moradora perguntou:
— Por que uma criança faria uma coisa dessas?
— É que na creche que ele frequenta, a coordenadora lançou um programa chamado “a semana da muda”. Assim, cada criança deve escolher uma casa do setor e presenteá-la com uma muda de planta. E, por um motivo que desconhecemos, o menino quer que seja a senhora a ganhar essa muda.
— Mas, cadê o menino?
— Não pôde vir. Hoje, pela tarde, sua mãe irá levá-lo ao médico. Por isso, resolvi trazer a muda.
— Como se chama a mãe desse menino?
— Glacylene. — respondi.
— Não é a Glacylene merendeira?
— Sim. A senhora a conhece?
— Claro! É a neta de Dona Tereza. Foi ela quem recuperou o filho desaparecido. Como é mesmo o nome do menino?
— É Micael. Mas nós o chamamos de Mica.
— Então, é ele quem quer que eu fique com esta muda?
— Sim! Ele mesmo.
— Pois diga a ele que vou cuidar dela com muito carinho. — respondeu a moradora aceitando o presente.
Mas, no momento em que lhe entreguei a muda, ela olhou fixamente para ela, examinou a embalagem de margarina que a continha e comentou:
— Engraçado, eu poderia jurar que é a mesma muda de hortelã gorda que deixei na casa de Glacylene no dia da vigília.
Aquele comentário me deixou ainda mais confuso, já que a espécie da planta coincidia com a afirmação de Mica sobre a casa. Imediatamente, me despedi da moradora e dei no pé temendo que ela me fizesse alguma pergunta embaraçosa. No caminho de volta, me ocorreu que só havia uma maneira de saber se tudo aquilo não passava de uma incrível coincidência: Eu teria que fazer a mesma checagem comparando a planta um com a casa um.
p. 25Felizmente, Ana Cleide ainda tinha em seu celular a selfie que tirara com o Mica em frente à casa que ele apontou como sendo a “casa um”. Agora, eu só teria que atrair Mica até o seu jardim e pedir a ele que me mostrasse a “planta um”. Meu único receio era o de que ele notasse a ausência da planta oito que eu dera de presente àquela moradora. Então, pensei rápido: fui até a cozinha, abri a geladeira, peguei a embalagem de margarina e passei seu conteúdo para uma vasilha. Depois, fui ao canteiro de Dona Tê, retirei uma muda de sua moita de hortelã gorda e replantei na embalagem de margarina concluindo, assim, o clone. Na mosca! O pequeno Mica, além de não notar nada de diferente na planta oito, também me mostrou a sua planta “um”. Achei estranho, no entanto, o fato daquela planta ser a número um de seu jardim e não corresponder ao primeiro lugar da primeira fila no interior de seu arranjo. Então notei que o mesmo se dava com a planta oito, ela estava posicionada na última fila. E pela minha contagem, a planta denominada por Mica de oito deveria ser a de número vinte e dois. Como poderia um menino tão brilhante em cálculos matemáticos se confundir com uma ordem numérica tão elementar?
Eu me lembrava, perfeitamente, qual era a rua onde Mica localizara a tal “casa um”. Afinal, depois de tantos vai e vens naquele setor fazendo o recenseamento, eu já me considerava um guia local. E com a ajuda daquela selfie foi mais fácil ainda.
Pois bem, parei em frente à casa, comparei mais uma vez com a imagem da selfie e chamei batendo palmas. Eu já estava preparado para encenar aquele enredo sobre a ‘semana da muda’, quando, para minha surpresa, a senhora que me recepcionou, assim que botou os olhos sobre a planta foi logo dizendo:
— Essa muda de macela foi um presente que deixei para Dona Tereza. Foi ela quem mandou devolver?!
Fiquei desconcertado ao perceber a aflição da moradora:
— Não! De jeito nenhum. Dona Tereza adorou o presente! É que ela estava na dúvida sobre qual das vizinhas havia deixado essa muda de macela em sua casa. Então, prometi a ela que iria descobrir.
— Se ela não sabia de quem era a muda, como o senhor veio parar aqui na minha casa? Está batendo de porta em porta, por todo o setor, só pra saber isso?!
Aquela pergunta me tirou o chão. Por sorte, ela mesma encerrou a questão:
— O moço não precisava ter tido todo esse trabalho. Neste domingo, de todo jeito, eu e Dona Tereza vamos nos encontrar na igreja. Daí ela saberia!
Aquele desfecho foi um alívio. Eu já estava me sentindo um mentiroso profissional.
Subi a rua lentamente tentando encontrar respostas para um monte de perguntas: como Mica, estando desaparecido, poderia saber a origem daquelas plantas? Mesmo se alguém tivesse lhe revelado os nomes de quem as havia deixado, como ele acertaria seus endereços? E por qual motivo ele teria distribuído aquelas plantas em forma de tabuleiro enumerando-as de maneira desordenada? Como ele sabia que a muda de hortelã gorda que a sua avó replantara não era originária da casa oito?