SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Contas de cabeça

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O tempo parecia voar. Ana Cleide já estava matriculada no curso de enfermagem e a minha colação de grau estava marcada para o final do mês seguinte. Lutar contra o relógio era inútil, eu sabia, mas o medo de ter que voltar para a fazenda onde meus pais e meus outros dois irmãos mais velhos trabalhavam aumentava a cada virada do ponteiro. Pelo menos eu ainda poderia permanecer morando na casa do estudante até a semana da formatura.

Durante toda a “semana do calouro”, convenci Ana Cleide de que eu deveria acompanhá-la até a porta de sua faculdade sob o pretexto de protegê-la de possíveis trotes indesejáveis. Mas, no fundo, eu estava era com ciúmes dos rapazes veteranos, verdadeiros carcarás, capazes de detectar uma caloura bonita a milhas de distância.

Num desses dias, como Ana Cleide não teria aula pela tarde, combinamos de almoçar com a vó Tê. Tomamos o ônibus e fomos curtindo o trajeto. Após o almoço, sentamos na mureta da frente da casa para esperar o ônibus. Avisei a Ana Cleide da minha necessidade em voltar logo para a casa do estudante, pois havia marcado uma reunião com um colega de curso cuja situação era idêntica à minha, ou seja, formado e desempregado. Nossa ideia era a de, após nos registrarmos no CREA, criarmos uma empresa virtual de consultoria para questões referentes à topografia, cartografia, sensoriamento remoto, agrimensura, geoprocessamento, enfim, qualquer tipo de serviço ligado à área de formação de um geógrafo. Segundo esse meu amigo, havia uma linha de crédito aberta para financiar iniciativas dessa natureza. Foi então que vimos o ônibus apontar no final da rua. Levantei-me apressado, ensaiei um beijo de despedida, mas Ana Cleide tranquilizou-me:

Quem, em sã consciência resistiria a um convite desses?

E assim foi: um beijinho aqui, um ‘eu te amo’ ali, um cafuné acolá, até que nos demos conta de que o ônibus não nos esperaria. Corri para a avenida a fim de chegar a tempo, mas, adivinhem, o danado do ônibus já havia passado. O jeito seria esperar o próximo, sabe-se lá quando.... Enquanto esperava, pessoas foram se amontoando no ponto. Não era bem um ponto de ônibus como aqueles que se vê na parte central da cidade, com proteção contra sol e chuva, bancos de concreto e faixa de pedestre. Na verdade, era uma “parada” de ônibus do tipo improvisada. Talvez fruto de uma combinação entre o dono do estabelecimento e alguém ligado à empresa de transporte, já que se tratava de um comércio onde o proprietário, além de oferecer à sua freguesia uma ampla gama de ‘secos e molhados’, também tentava entreter os usuários do transporte oferecendo-lhes, desde um pequeno e empoeirado televisor, permanentemente sintonizado na Globo, até a venda de bebidas de dose, cigarros avulsos e partidas de sinuca. Entrei no estabelecimento para comprar uma água e notei que um bocado de pessoas se aglomeravam, formando um círculo em torno de um sujeito. Tentei me aproximar e vi que se tratava de um homem de mais ou menos trinta anos, sentado em uma cadeira, suportando uma criança sobre o seu colo. Ele usava um boné vermelho e óculos escuros. A criança em seu colo deveria ter entre quatro e seis anos, e também usava um boné sobre a cabeça; com certeza seria o seu filho. Então, o sujeito pediu silêncio aos presentes e solicitou um voluntário entre o público. Um homem, trajando um jaleco de açougueiro e botas de borracha ergueu a mão:

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O sujeito do boné, então, lhe provocou em voz alta:

A criança assentiu com a cabeça, permanecendo calada e com o olhar fixo no pai; até que este berrou:

Algumas pessoas, após conferirem a resposta da criança, a aplaudiam lançando moedas dentro do boné do pai. Ao final de mais três rodadas, o público se dispersou rapidamente devido à aproximação do ônibus.

Dentro do coletivo, durante boa parte do percurso, escutei comentários a respeito daquele show de matemática. Alguns maravilhados, e outros, incrédulos, imputavam ao fato algum tipo de charlatanismo:

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Tal acontecimento, entretanto, não despertara em mim grande curiosidade. Minha atenção estava inteiramente voltada para a reunião com o meu colega, tomara Deus, futuro sócio.

A reunião nos deixou muito esperançosos. Depois, fomos ao banco e reunimos toda a documentação necessária para darmos entrada no pedido de financiamento. De lá, visitamos algumas coordenações da nossa Faculdade a fim de pedir-lhes apoio na constituição de nossa empresa de consultoria. Felizmente, todos os professores e professoras visitadas foram unânimes em querer nos apoiar.

E outro domingo chegou. Desta vez, eu e Ana Cleide combinamos de dar um descanso para a vovó Tê. Pedimos a ela para não entrar na cozinha, pois, naquele dia, seria a nossa vez de cozinhar. A vovó relutou um pouco, mas acabou gostando da ideia. Como nossos conhecimentos culinários não eram lá essas coisas, decidimos fazer um prato “básico”: arroz de forno. Na hora de dosar a quantidade de sal, fiquei inseguro. Então, perguntei a Ana Cleide mostrando a ela a porção de arroz que eu havia separado. Aquela situação fez Ana Cleide se lembrar de um comentário feito por uma de suas professoras durante a aula:

Naquele momento, Micael, que estava a nossa volta, brincando com o seu cãozinho Biscoito, sacudiu o vestido de Ana Cleide reclamando a atenção da tia:

Ana Cleide sorriu e se abaixou para abraçar o sobrinho:

Foi então que me lembrei da criança fazedora de contas da parada de ônibus. Seria o Mica? Naquele tumulto não o reconheci. Talvez fosse pelo boné que lhe encobria o rosto. Se for mesmo ele, isso comprovaria a autenticidade do fenômeno. Mas quem era aquele homem do boné vermelho? Só tinha uma maneira de saber:

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Contrariando Ana Cleide insisti:

Mica então se abaixou, agarrou o cãozinho biscoito e respondeu-me:

Decepcionado, perguntei:

Ana Cleide pôs uma das mãos sobre a barriga e com a outra apontou-me o dedo indicador num gesto de escárnio, até que Mica a interrompeu:

Imediatamente, Ana Cleide se afastou do fogão, apanhou o celular que estava sobre a geladeira, acessando a calculadora a fim de checar a resposta do sobrinho.

Preferi deixar Ana Cleide acreditando que tudo aquilo não passava de uma armação. Afinal, do que adiantaria argumentar sobre algo que eu ainda estava tentando entender? Minha única hipótese era a de que Mica poderia ser mesmo o menino do mercadinho, a menos que estivesse acontecendo uma invasão de meninos prodígios naquele bairro.

Mas aquele menino havia mexido com a minha cabeça. Eu precisava solucionar aquele mistério, se não ficaria louco. Assim, disfarçando uma puxada de assunto do tipo banal, fiz algumas perguntas à Ana Cleide sobre o dia a dia de Mica. Entre outras coisas, descobri que o menino, assim como ela e a irmã, tinha um pai ausente que nunca mais dera notícia. Enquanto a mãe trabalhava como merendeira na escola, em tempo integral, Mica passava as manhãs na creche da prefeitura. Normalmente, eram a vó Tê e Ana Cleide que buscavam Mica todos os dias. Contudo, depois que Ana Cleide entrou para a faculdade, Reinaldo, o namorado de Glacylene, também passou a buscá-lo. Aquela era uma pista concreta. Mas quais seriam os dias da semana em que o tal Reinaldo buscava Mica na creche? Seguindo um raciocino lógico, julguei que quarta-feira seria um desses dias, já que fora o dia da semana em que presenciei aquela sessão de adivinhação no mercadinho.

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Dito e feito. Na quarta-feira que se seguiu, sem que Ana Cleide soubesse, cheguei ao mercadinho por volta do meio-dia. Fiquei por ali, tomei um refrigerante e até joguei uma partida de sinuca com um morador local. Não demorou muito até que vi chegar a dupla Mica e Reinaldo. Agora sim, pude reconhecê-los, pois estavam sem os seus bonés. Tudo transcorria como naquela outra quarta-feira. Reinaldo vestiu o boné vermelho, pôs seus óculos escuros, e o boné na cabeça de Mica. Notei também que Reinaldo não usava de muita criatividade, pois, repetia praticamente as mesmas frases que usara naquele dia:

Logo se formava uma roda de pessoas em torno deles, e, por fim, isso lhes rendia alguns trocados.

Só que naquele dia, “deu ruim” para Reinaldo. Uma senhora que assistia à sessão, começou a gritar, acusando a dupla de estar usando o diabo para tirar proveito dos moradores locais. E a coisa não ficou por aí, outras pessoas se encorajaram e juntaram-se à causa daquela senhora. Logo percebi que se tratava de um grupo de religiosos radicais que enxergaram naquela cena a própria mão do coisa-ruim. Reinaldo agarrou a criança e tentou sair à francesa, mas já era tarde; uma viatura de polícia que passava ali em frente percebeu a movimentação e encostou. Resultado: os dois foram parar na delegacia. Reinaldo foi detido sob a acusação de exploração de trabalho infantil, mas após levantarem a sua ficha corrida, ele recebeu, literalmente, um pacote fechado, pois, além de pequenos delitos que cometera, Reinaldo estava enquadrado no artigo 157, ou seja, roubo seguido de morte. Tal crime se dera em uma cidade do interior do Estado do Pará, durante um assalto praticado a uma casa lotérica. Além do mais, Reinaldo nem era o seu verdadeiro nome, seu nome de batismo era Gildésio Flores de Jesus. Achei hilário alguém com aquela ficha possuir um sobrenome tão afetuoso.

Após a liberação de Mica, eu só queria poder contar a Ana Cleide sobre os prodígios de seu sobrinho. Contudo, percebi que aquele ainda não era o momento ideal, já que o clima em sua casa não estava nada bom: Glacylene não parava de chorar desde que perdera Reinaldo para a polícia, ou melhor, o Flores de Jesus; sem falar nas fofoqueiras bairro que passaram a atazanar a sua vida. E, para piorar ainda mais a situação de Glacylene, ela foi chamada ao conselho tutelar a fim de dar explicações sobre o ocorrido. Já a vovó Tê, apesar de não suportar ver o sofrimento da filha, sentia-se aliviada por saber que Glacylene e Mica achavam-se livres das garras daquele tremendo mala.