SERES NA PERIFERIA • ISBN: 978-65-997623-4-5
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Coordenadas para o amor

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Isso não é ficção. Trata-se de três crianças afrodescendentes correndo atrás de uma bola por uma rua de terra vermelha sob um sol escaldante de meio-dia. O cosmonauta Ton sou eu, Erivelton, um estudante último anista em geografia, usando a imaginação para driblar a ansiedade, saltando de minha nave, um ‘busão’ lotado, diretamente sobre o solo de um bairro periférico de Goiânia, o Residencial Vila Sonhada.

Aquele último ano de universidade estava intenso: minha bolsa de iniciação científica já havia sido cortada, meus dias como residente na casa do estudante universitário, carinhosamente chamada de CEU, estavam no fim e, para fechar o pacote, não havia nem sombra de chamadas públicas de concursos para professores nas redes de ensino municipal e estadual.

Contudo, ainda me restavam sessenta dias como agente recenseador temporário do IBGE, com retribuição mensal de mil e duzentos reais, auxílio transporte e alimentação. Depois disso, eu nem queria pensar... ou conseguia um emprego melhor, ou voltaria para o interior onde meus pais trabalhavam como capatazes em uma fazenda. Ficava arrepiado só de imaginar a cena, eu chegando à casa de meus pais e minha mãe dizendo: “que saudade meu filho, estou tão orgulhosa de você, mostra o diploma pra mamãe”.

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Tudo pronto: boné, crachá e colete. Só me restava conferir as coordenadas do ponto inicial de coleta descritas na imagem de satélite do meu dispositivo móvel. Pelos meus cálculos, aquele seria o último setor censitário de coleta dessa minha carreira meteórica de recenseador.

Caminhei pela avenida central do bairro, também chamada pelos moradores de “linha do ônibus”. Parecia ser mais um bairro de periferia, igual a tantos outros que recenseei: A maior parte das ruas ainda sem pavimentação, casas simples seguindo o padrão “minha casa minha vida”, crianças correndo pelas ruas e uma grande quantidade de cães soltos perambulando.

Primeiro domicílio; cadê a campainha? Não tem. Então, lá vai pancada no portão. Ninguém atende. Mais pancada e o grito de guerra: ô de caaasa? Até que surge uma criança. E depois de muito lutar com o trinco do portão, suportando bravamente entre os dentes uma “geladinha”, a mocinha, de aproximadamente seis anos de idade, finalmente destrava o portão e solta um berro:

Lá do fundo do quintal, a voz da mãe ecoa:

Segundo domicílio. Esse tinha campainha. A porta da casa se abre, um senhor aponta a cabeça para fora e, por um momento, fica me observando por entre os vãos da grade do portão na tentativa de identificar o meu traje. Depois, vagarosamente se aproxima:

Disse a ele a qual órgão eu pertencia e a natureza da visita. Após isso, ele coçou a barba, olhou para o relógio insinuando não dispor de tempo e disparou:

Depois de tantos domicílios, aquele tipo de resistência, recheada de desabafo, já não mais representava um obstáculo para mim. Eu tinha, na ponta da língua, todos os argumentos sugeridos no manual do recenseador e outros que eu mesmo desenvolvi durante as ‘zilhões’ de coletas que realizei. Ao final, aquele senhor apressado até me chamou para um “cafezinho”.

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Décima primeira casa. Essa será a minha última visita do dia, sentenciei. Nem precisei chamar pelo morador, a casa se separava da via pública por uma muretinha de mais ou menos meio metro de altura, e uma senhorinha que regava as plantas parecia até que já me esperava. Assim que me viu aproximar lançou um sonoro “bom dia seu moço! ”.

A anciã fechou a torneira, recolheu, vagarosamente, sua velha mangueira repleta de remendos feitos a partir de tiras de câmara de ar e esgoelou:

Lá vem a cadeira. Inacreditável! Seria uma miragem provocada pelo calor? A neta da velha, a Ana Cleide, era uma Deusa! Retirei o dispositivo móvel do bolso do jaleco, mas não conseguia tirar os olhos daquele anjo: pele de tom achocolatado, cabelos negros e brilhantes que se prolongavam até a altura da cintura, acompanhando a belíssima silhueta que se deixava mostrar pela transparência de seu vestido estampado. Olhar astuto, lábios grossos e um sorriso tão reluzente quanto aqueles das propagandas de creme dental. Porém, no mesmo instante em que aquela beldade posicionou a cadeira, sua avó lhe ordenou:

Repentinamente, soltei um grito:

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Aquela situação foi muito embaraçosa. Ana Cleide olhava para a sua avó como quem esperava uma decisão e eu ali, meio que paralisado, até que consegui consertar o estrago:

A aplicação daquele questionário demorou mais do que de costume. Meu olhar tracejava um triangulo, dispositivo – vovó – Ana Cleide. Concluída a entrevista, agradeci e comecei a me distanciar da mureta, quase que em slow motion, na esperança de que a Dona Tereza me convidasse para um copo d’água ou um cafezinho. Nada disso. Silenciosamente, Ana Cleide pegou a cadeira, reconduzindo-a para dentro da casa, enquanto a vovó retomava seus afazeres no jardim. A última imagem de Ana Cleide não desgrudou de minha mente, ela segurando a cadeira com as duas mãos, empurrando a porta com um de seus pés, enquanto seus longos cabelos agitavam-se ao vento me dizendo adeus.

Ah..., como é bom sonhar. Dentro do ‘busão’, durante o trajeto de volta, eu e Ana Cleide, juntinhos, caminhando por uma praia deserta, depois, ao pôr do sol, um coco gelado e beijos, muitos beijos...

No dia seguinte, pulei logo da cama e com uma decisão tomada, precisava ver Ana Cleide novamente. A metodologia escolhida foi a seguinte: como a casa dela foi a de número onze de minha coleta, e como ela se achava em casa por volta do meio-dia, calculei, em vez de estabelecer como ponto inicial de coleta a casa posterior a dela, começaria pela última casa da quadra anterior, em sentido anti-horário. Assim, exatamente por volta do meio-dia, eu estaria chegando em frente à sua casa. Beleza. Só me faltava a parte principal do plano, o que eu deveria fazer para tornar a vê-la quando chegasse lá? Bem, isso eu decidiria durante a coleta.

Pronto. Venci o meu rali de regularidade. Ao meio-dia, em ponto, lá estava eu, bem em frente àquela muretinha. Só que desta vez, a vovó não estava no Jardim. Então, tive que recorrer ao famoso “ô de casa”! Agora a Ana Cleide atende, afinal, ela não iria deixar a pobre vovó caminhar até a porta. Nada disso, foi a própria vovó quem atendeu à porta, um a zero pra vovó...

E antes que eu pronunciasse a primeira sílaba de meu álibi, a velha atravessou:

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Tá funcionando! Aí papai do céu dá uma força aí, rezei. Depois de alguns minutos, goool! Lá vem Dona Tereza e sua linda neta carregando a mesma cadeira. Só que desta vez, a cadeira não era para mim, era para a vovó.

Minha voz interior me dizia que aquela seria a grande, e quem sabe a última, chance de eu poder conquistar a linda princesa daquele pequeno, longínquo, quente e empoeirado planeta. A coleta seguia veloz e eu ainda não sabia como iria dar o famoso “pulo do gato”. Se eu pedisse um pouco de água, sem dúvida que seria a Ana Cleide a buscá-lo, deixando-me a sós com a vovó. Eu tinha que pensar rápido. Dar uma piscadinha para ela, talvez, mas, poderia não surtir o efeito esperado. Ai meu Deus! Restava-me pouco tempo, até que surgiu uma pergunta sobre ocupação:

Mostrando-se um pouco hesitante, talvez por uma dose de constrangimento, Dona Tereza respondeu à questão justificando em seguida:

Ana Cleide parecia nem ouvir o que a sua avó dizia; permaneceu com o olhar voltado para as suas mãos, raspando o que ainda restava da última demão de esmalte que dera em suas unhas. Ansioso, agradeci a vovó pela resposta e convoquei a neta:

A cantada era de segunda linha, eu sabia, mas foi a única coisa que me veio à mente naquela hora. Ana Cleide lançou a mão sobre a boca escondendo um sorriso matreiro e olhou para avó meio que esperando uma reação. De minha parte, eu nutria trinta por cento de esperança e setenta por cento de pronto para dar no pé.

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Envergonhada, Ana Cleide agradeceu o elogio me perguntando se eu ainda queria saber sobre a sua “segunda” ocupação. Ela estava em um cursinho público se preparando para o vestibular, e ainda me confessou que tinha muita dificuldade em redação. Na velocidade da luz disse a ela que redação era o meu forte, e que, caso não se importasse, seria um enorme prazer, após as coletas, ajudá-la.

Tentei disfarçar o meu semblante de “bobo alegre”, dei um “tchauzinho até amanhã”, e me afastei caminhando, solenemente, até a uma distância segura para soltar um berro de felicidade. Daquele momento em diante, eu tinha apenas uma certeza: a de que eu deveria chegar logo em casa e passar a noite inteira acordado estudando redação para não me sair mal com a Ana Cleide, já que, para falar a verdade, sempre fui um desastre em redação.

Algumas semanas se passaram, e tudo era só felicidade. Todos os dias, pontualmente, eu chegava à casa de Ana Cleide para ensiná-la redação. Quando tínhamos a certeza de que ninguém estava por perto, rolava uma sessão de beijinhos. Os dias voavam e o meu desejo era o de poder fazer o tempo parar. Dois meses depois, no mesmo dia em que ela recebeu a notícia de que havia passado no vestibular para enfermagem, o meu contrato como recenseador foi rescindido. Dona Tereza, vovó Tê para os íntimos, não se cabia de tanta felicidade. E para comemorar o feito de Ana Cleide me convidou para um almoço de domingo em sua casa. No fundo, eu desconfiava de que, além de querer comemorar o vestibular da neta e me agradecer pela força na redação, ela também intencionava oficializar o meu namoro com a neta. Certamente a vovó nos espreitava já há algum tempo.

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E o tão esperado domingo chegou. Vovó Tê foi uma das primeiras a chegar à feira do bairro. Comprou um frango caipira, uma guariroba, algumas espigas de milho e uma porção de quiabo. Sua intenção era a de nos servir uma galinhada, acompanhada de um angu de milho verde. Todos se acomodaram na diminuta sala de estar que, na casa de Dona Tê, funcionava como uma espécie de sala multiuso. Ali se recebiam visitas, se assistia TV, faziam-se as refeições, as tarefas de escola, e tudo o mais. Numa pequena e desgastada mesa de metal, cujo tampo ainda revelava a logomarca da cerveja patrocinadora, eu, Ana Cleide e a vovó nos sentamos. No velho sofá, forrado com uma multicolorida colcha de retalhos, feita pela própria vó Tereza, encontravam-se os demais familiares: Glacylene, irmã mais velha de Ana Cleide, dedicada mãe solteira que trabalhava como merendeira na escola do bairro; seu espertíssimo filho de cinco anos, Micael, carinhosamente chamado de Mica; e Reinaldo, morador da quadra de baixo com quem Glacylene mantinha uma complicada relação amorosa. Por fim, no chão da sala, e abanando, incessantemente, o seu rabinho, Biscoito, um pequenino vira-latas que, de tanto seguir Glacylene durante o seu percurso à escola, acabou sendo por ela adotado.

O almoço transcorria na mais perfeita ordem, até que Glacylene resolveu provocar a irmã:

Ana Cleide enrubesceu a face e ficou paralisada segurando um pedaço de galinha que levava a boca. Dona Tê, aproveitando a deixa, se adiantou:

Gaguejante, Ana Cleide me apresentou:

Como resposta, Ana Cleide só conseguiu balbuciar um breve “Uhum”. Mesmo assim, vovó Tê continuou:

Naquele momento, tive a vontade de me transformar num inseto e, literalmente, sair voando pela janela. Um lado meu queria muito dizer a todos que o meu contrato como recenseador temporário havia chegado ao fim, e que, portanto, eu era agora um ilustre desempregado. Mas o outro lado não queria desapontar aquela vovó tão amorosa.