— Houston, aqui é o comandante Ton. Coordenadas conferidas. Tempo de aproximação três minutos, iniciando contagem.
— bip, bip.
— Pouso confirmado. Aguardando instruções.
— bip... bip.
— Traje checado, cabine em despressurizarão.
— bip.
— Astronauta em solo. Procedendo a varredura.
— bip.
— Temperatura acima dos padrões de adaptabilidade humana, solo basáltico com alto conteúdo em óxido de ferro, vento moderado com formação de nuvens de poeira avermelhada.
— bip... bip.
— Houston, temos um problema. Código Z, repito, alerta! Código Z.
— bip.
— Identificando a presença de seres alienígenas.
— bip, bip.
— Relato de atividades: três seres com grande capacidade de mobilidade, perseguindo um objeto esférico de pequena dimensão.
— bip, bip, bip.
— Descrição morfológica: Baixa estatura, tez escura, membros inferiores e superiores esguios e alongados.
— bip.
— Atenção Houston, minha presença foi percebida, repito, fui identificado. Aguardando ordens. Responda Houston, estão se aproximando, responda Houston!
p. 05Isso não é ficção. Trata-se de três crianças afrodescendentes correndo atrás de uma bola por uma rua de terra vermelha sob um sol escaldante de meio-dia. O cosmonauta Ton sou eu, Erivelton, um estudante último anista em geografia, usando a imaginação para driblar a ansiedade, saltando de minha nave, um ‘busão’ lotado, diretamente sobre o solo de um bairro periférico de Goiânia, o Residencial Vila Sonhada.
Aquele último ano de universidade estava intenso: minha bolsa de iniciação científica já havia sido cortada, meus dias como residente na casa do estudante universitário, carinhosamente chamada de CEU, estavam no fim e, para fechar o pacote, não havia nem sombra de chamadas públicas de concursos para professores nas redes de ensino municipal e estadual.
Contudo, ainda me restavam sessenta dias como agente recenseador temporário do IBGE, com retribuição mensal de mil e duzentos reais, auxílio transporte e alimentação. Depois disso, eu nem queria pensar... ou conseguia um emprego melhor, ou voltaria para o interior onde meus pais trabalhavam como capatazes em uma fazenda. Ficava arrepiado só de imaginar a cena, eu chegando à casa de meus pais e minha mãe dizendo: “que saudade meu filho, estou tão orgulhosa de você, mostra o diploma pra mamãe”.
p. 06Tudo pronto: boné, crachá e colete. Só me restava conferir as coordenadas do ponto inicial de coleta descritas na imagem de satélite do meu dispositivo móvel. Pelos meus cálculos, aquele seria o último setor censitário de coleta dessa minha carreira meteórica de recenseador.
Caminhei pela avenida central do bairro, também chamada pelos moradores de “linha do ônibus”. Parecia ser mais um bairro de periferia, igual a tantos outros que recenseei: A maior parte das ruas ainda sem pavimentação, casas simples seguindo o padrão “minha casa minha vida”, crianças correndo pelas ruas e uma grande quantidade de cães soltos perambulando.
Primeiro domicílio; cadê a campainha? Não tem. Então, lá vai pancada no portão. Ninguém atende. Mais pancada e o grito de guerra: ô de caaasa? Até que surge uma criança. E depois de muito lutar com o trinco do portão, suportando bravamente entre os dentes uma “geladinha”, a mocinha, de aproximadamente seis anos de idade, finalmente destrava o portão e solta um berro:
— Mãeêêê! Corre aqui. É o moço da dengue!
Lá do fundo do quintal, a voz da mãe ecoa:
— Manda ele entrar!
Segundo domicílio. Esse tinha campainha. A porta da casa se abre, um senhor aponta a cabeça para fora e, por um momento, fica me observando por entre os vãos da grade do portão na tentativa de identificar o meu traje. Depois, vagarosamente se aproxima:
— Do que o senhor precisa?
Disse a ele a qual órgão eu pertencia e a natureza da visita. Após isso, ele coçou a barba, olhou para o relógio insinuando não dispor de tempo e disparou:
— Então, me diz o que a gente ganha em responder esse monte de perguntas? Você diz que é de um órgão do governo e coisa e tal, mas o governo não está nem aí pra gente, só lembra que a gente existe em tempo de eleição, não é mesmo? Olha só a situação desse bairro! Quando não falta água, falta luz. Asfalto então, já virou piada! Entra governo, sai governo, a gente só vê promessas!
Depois de tantos domicílios, aquele tipo de resistência, recheada de desabafo, já não mais representava um obstáculo para mim. Eu tinha, na ponta da língua, todos os argumentos sugeridos no manual do recenseador e outros que eu mesmo desenvolvi durante as ‘zilhões’ de coletas que realizei. Ao final, aquele senhor apressado até me chamou para um “cafezinho”.
p. 07Décima primeira casa. Essa será a minha última visita do dia, sentenciei. Nem precisei chamar pelo morador, a casa se separava da via pública por uma muretinha de mais ou menos meio metro de altura, e uma senhorinha que regava as plantas parecia até que já me esperava. Assim que me viu aproximar lançou um sonoro “bom dia seu moço! ”.
— Bom dia! Minha senhora! — respondi de pronto.
— O moço está andando pelo bairro fazendo umas perguntas, não é mesmo?
— Sim! E agora é a vez da senhora participar. — emendei aproveitando a pergunta.
A anciã fechou a torneira, recolheu, vagarosamente, sua velha mangueira repleta de remendos feitos a partir de tiras de câmara de ar e esgoelou:
— Ana Cleide! Ô Ana Cleide, traz uma cadeira aqui pra sua avó.
— Não é preciso, posso me sentar aqui mesmo nessa mureta, não vou me demorar. — tentei atalhar, mas foi inútil, a anciã fazia questão de me acomodar.
Lá vem a cadeira. Inacreditável! Seria uma miragem provocada pelo calor? A neta da velha, a Ana Cleide, era uma Deusa! Retirei o dispositivo móvel do bolso do jaleco, mas não conseguia tirar os olhos daquele anjo: pele de tom achocolatado, cabelos negros e brilhantes que se prolongavam até a altura da cintura, acompanhando a belíssima silhueta que se deixava mostrar pela transparência de seu vestido estampado. Olhar astuto, lábios grossos e um sorriso tão reluzente quanto aqueles das propagandas de creme dental. Porém, no mesmo instante em que aquela beldade posicionou a cadeira, sua avó lhe ordenou:
— Pode voltar Ana Cleide, a vovó vai atender o moço aqui.
Repentinamente, soltei um grito:
— Nãoooo!
p. 08Aquela situação foi muito embaraçosa. Ana Cleide olhava para a sua avó como quem esperava uma decisão e eu ali, meio que paralisado, até que consegui consertar o estrago:
— Sabe o que é Dona... como é mesmo o nome da senhora?
— Tereza.
— Então, Dona Tereza, é que para o tipo de censo que estamos realizando este ano há perguntas que devem ser respondidas por um maior número de membros residentes em um mesmo domicílio, entende? E, aproveitando que a sua neta já está aqui para nos ajudar, a gente poderia adiantar o serviço, não é mesmo?
— Tá. — consentiu a velha meio desconfiada.
A aplicação daquele questionário demorou mais do que de costume. Meu olhar tracejava um triangulo, dispositivo – vovó – Ana Cleide. Concluída a entrevista, agradeci e comecei a me distanciar da mureta, quase que em slow motion, na esperança de que a Dona Tereza me convidasse para um copo d’água ou um cafezinho. Nada disso. Silenciosamente, Ana Cleide pegou a cadeira, reconduzindo-a para dentro da casa, enquanto a vovó retomava seus afazeres no jardim. A última imagem de Ana Cleide não desgrudou de minha mente, ela segurando a cadeira com as duas mãos, empurrando a porta com um de seus pés, enquanto seus longos cabelos agitavam-se ao vento me dizendo adeus.
Ah..., como é bom sonhar. Dentro do ‘busão’, durante o trajeto de volta, eu e Ana Cleide, juntinhos, caminhando por uma praia deserta, depois, ao pôr do sol, um coco gelado e beijos, muitos beijos...
No dia seguinte, pulei logo da cama e com uma decisão tomada, precisava ver Ana Cleide novamente. A metodologia escolhida foi a seguinte: como a casa dela foi a de número onze de minha coleta, e como ela se achava em casa por volta do meio-dia, calculei, em vez de estabelecer como ponto inicial de coleta a casa posterior a dela, começaria pela última casa da quadra anterior, em sentido anti-horário. Assim, exatamente por volta do meio-dia, eu estaria chegando em frente à sua casa. Beleza. Só me faltava a parte principal do plano, o que eu deveria fazer para tornar a vê-la quando chegasse lá? Bem, isso eu decidiria durante a coleta.
Pronto. Venci o meu rali de regularidade. Ao meio-dia, em ponto, lá estava eu, bem em frente àquela muretinha. Só que desta vez, a vovó não estava no Jardim. Então, tive que recorrer ao famoso “ô de casa”! Agora a Ana Cleide atende, afinal, ela não iria deixar a pobre vovó caminhar até a porta. Nada disso, foi a própria vovó quem atendeu à porta, um a zero pra vovó...
— O senhor não é o moço de ontem, das perguntas?
— Sim.
— Esqueceu alguma coisa?
E antes que eu pronunciasse a primeira sílaba de meu álibi, a velha atravessou:
— Se o moço esqueceu alguma coisa aqui na porta, já deve ter criado perna há muito tempo. Aqui nesse bairro, qualquer coisa que a gente deixa “dando sopa”, eles carregam mesmo! Essa meninada daqui é terrível, só o senhor vendo.
p. 09— Não é nada disso Dona Tereza.
— Então, o que é?
_É que ontem, eu tive um problema com o meu dispositivo móvel. Sabe aquela maquininha que eu usei para marcar as respostas? Essa aqui ó. — levantei o dispositivo sobre a minha cabeça a fim de dar ênfase ao pretexto.
— Sei.
— Pois é, a senhora não vai acreditar, apertei o botão errado e as respostas sumiram.
— E agora? — perguntou-me a velha com ar de desconfiada.
— Agora, eu preciso que a senhora e aquela sua neta, como é mesmo o nome dela?
— Ana Cleide.
— Então, preciso que a senhora e a Ana Cleide me ajudem respondendo novamente aquele questionário, senão, o meu chefe vai me engolir vivo! Sabe como é né?
— Tudo bem. Vou ver se a Ana Cleide pode vir.
Tá funcionando! Aí papai do céu dá uma força aí, rezei. Depois de alguns minutos, goool! Lá vem Dona Tereza e sua linda neta carregando a mesma cadeira. Só que desta vez, a cadeira não era para mim, era para a vovó.
Minha voz interior me dizia que aquela seria a grande, e quem sabe a última, chance de eu poder conquistar a linda princesa daquele pequeno, longínquo, quente e empoeirado planeta. A coleta seguia veloz e eu ainda não sabia como iria dar o famoso “pulo do gato”. Se eu pedisse um pouco de água, sem dúvida que seria a Ana Cleide a buscá-lo, deixando-me a sós com a vovó. Eu tinha que pensar rápido. Dar uma piscadinha para ela, talvez, mas, poderia não surtir o efeito esperado. Ai meu Deus! Restava-me pouco tempo, até que surgiu uma pergunta sobre ocupação:
— Dona Tereza, qual é a sua principal ocupação, cargo ou função?
Mostrando-se um pouco hesitante, talvez por uma dose de constrangimento, Dona Tereza respondeu à questão justificando em seguida:
— No lugar de onde vim, seu moço, não tinha, assim, uma profissão certa como aqui na cidade. A gente ajudava em casa, desde menininha e, depois de casada, ajudava o marido também na roça. Era assim a vida toda.
Ana Cleide parecia nem ouvir o que a sua avó dizia; permaneceu com o olhar voltado para as suas mãos, raspando o que ainda restava da última demão de esmalte que dera em suas unhas. Ansioso, agradeci a vovó pela resposta e convoquei a neta:
— Ana Cleide? Além de alegrar o bairro com a sua beleza, qual a sua segunda ocupação?
A cantada era de segunda linha, eu sabia, mas foi a única coisa que me veio à mente naquela hora. Ana Cleide lançou a mão sobre a boca escondendo um sorriso matreiro e olhou para avó meio que esperando uma reação. De minha parte, eu nutria trinta por cento de esperança e setenta por cento de pronto para dar no pé.
— O moço é muito bondoso. A vovó também acha que ela é a moça mais bonita do bairro. Agradece ele Ana Cleide! — sugeriu Dona Tereza com ar de orgulhosa.
p. 10Envergonhada, Ana Cleide agradeceu o elogio me perguntando se eu ainda queria saber sobre a sua “segunda” ocupação. Ela estava em um cursinho público se preparando para o vestibular, e ainda me confessou que tinha muita dificuldade em redação. Na velocidade da luz disse a ela que redação era o meu forte, e que, caso não se importasse, seria um enorme prazer, após as coletas, ajudá-la.
— Vovó? Ele pode vir em casa me ajudar com a redação?
— Claro que sim, Ana Cleide. — consentiu Dona Tereza segurando a minha mão num gesto de agradecimento.
— Se quiserem, podemos começar amanhã mesmo! — sugeri, entusiasmado.
— Sim! — respondeu Ana Cleide sorrindo.
Tentei disfarçar o meu semblante de “bobo alegre”, dei um “tchauzinho até amanhã”, e me afastei caminhando, solenemente, até a uma distância segura para soltar um berro de felicidade. Daquele momento em diante, eu tinha apenas uma certeza: a de que eu deveria chegar logo em casa e passar a noite inteira acordado estudando redação para não me sair mal com a Ana Cleide, já que, para falar a verdade, sempre fui um desastre em redação.
Algumas semanas se passaram, e tudo era só felicidade. Todos os dias, pontualmente, eu chegava à casa de Ana Cleide para ensiná-la redação. Quando tínhamos a certeza de que ninguém estava por perto, rolava uma sessão de beijinhos. Os dias voavam e o meu desejo era o de poder fazer o tempo parar. Dois meses depois, no mesmo dia em que ela recebeu a notícia de que havia passado no vestibular para enfermagem, o meu contrato como recenseador foi rescindido. Dona Tereza, vovó Tê para os íntimos, não se cabia de tanta felicidade. E para comemorar o feito de Ana Cleide me convidou para um almoço de domingo em sua casa. No fundo, eu desconfiava de que, além de querer comemorar o vestibular da neta e me agradecer pela força na redação, ela também intencionava oficializar o meu namoro com a neta. Certamente a vovó nos espreitava já há algum tempo.
p. 11E o tão esperado domingo chegou. Vovó Tê foi uma das primeiras a chegar à feira do bairro. Comprou um frango caipira, uma guariroba, algumas espigas de milho e uma porção de quiabo. Sua intenção era a de nos servir uma galinhada, acompanhada de um angu de milho verde. Todos se acomodaram na diminuta sala de estar que, na casa de Dona Tê, funcionava como uma espécie de sala multiuso. Ali se recebiam visitas, se assistia TV, faziam-se as refeições, as tarefas de escola, e tudo o mais. Numa pequena e desgastada mesa de metal, cujo tampo ainda revelava a logomarca da cerveja patrocinadora, eu, Ana Cleide e a vovó nos sentamos. No velho sofá, forrado com uma multicolorida colcha de retalhos, feita pela própria vó Tereza, encontravam-se os demais familiares: Glacylene, irmã mais velha de Ana Cleide, dedicada mãe solteira que trabalhava como merendeira na escola do bairro; seu espertíssimo filho de cinco anos, Micael, carinhosamente chamado de Mica; e Reinaldo, morador da quadra de baixo com quem Glacylene mantinha uma complicada relação amorosa. Por fim, no chão da sala, e abanando, incessantemente, o seu rabinho, Biscoito, um pequenino vira-latas que, de tanto seguir Glacylene durante o seu percurso à escola, acabou sendo por ela adotado.
— Dona Tê, esse seu frango com angu está uma maravilha! — elogiei.
— Obrigada! É um almocinho simples, mas feito de coração — agradeceu a vovó.
O almoço transcorria na mais perfeita ordem, até que Glacylene resolveu provocar a irmã:
— Aí Ana Cleide, não vai apresentar o namorado?
Ana Cleide enrubesceu a face e ficou paralisada segurando um pedaço de galinha que levava a boca. Dona Tê, aproveitando a deixa, se adiantou:
— Fala pra sua irmã Ana Cleide, não precisa ficar avexada.
Gaguejante, Ana Cleide me apresentou:
— Gente, esse aqui é o Erivelton. Mas, podem chamá-lo de Ton. Ele me ajudou com a redação e está terminando o curso de Geografia.
— E o que mais? — continuou Glacylene a provocá-la.
— Glacylene?! Você está deixando a Ana Cleide sem graça! — acudiu a vó. —. Se querem mesmo saber, eles estão namorando sim. Não é, Ana Cleide?
Como resposta, Ana Cleide só conseguiu balbuciar um breve “Uhum”. Mesmo assim, vovó Tê continuou:
— Olha gente, o rapaz trabalha no governo! Ele anda pelos bairros com uma maquininha fazendo perguntas. Foi assim que ele conheceu a Ana Cleide. Não foi, Ana Cleide?
Naquele momento, tive a vontade de me transformar num inseto e, literalmente, sair voando pela janela. Um lado meu queria muito dizer a todos que o meu contrato como recenseador temporário havia chegado ao fim, e que, portanto, eu era agora um ilustre desempregado. Mas o outro lado não queria desapontar aquela vovó tão amorosa.