Bhagat e Silvestre permaneceram por algumas semanas morando em um dos quartos da casa de D. Dita. Depois, com a ajuda de alguns de seus netos e bisnetos, foi construída uma nova casa para eles. Nos dias que se seguiram a construção da casa, os dois passaram a acompanhar a rotina daquele povo. Aprenderam como coletar o capim dourado e a produzir alguns tipos de artesanatos. Com o passar do tempo, Bhagat já arriscava algumas frases em português, e, devido ao seu acentuado sotaque híndi, ouvi-lo falar era sempre uma grande diversão para as crianças. Mesmo participando de todo o processo de produção dos artesanatos, sempre que chegava uma excursão de turistas ao povoado, os dois preferiam não tomar parte das negociações. Contudo, todas às vezes que a comunidade precisava ir à cidade fazer as compras, Osório, o líder da comunidade, ia até a casa de Silvestre e Bhagat, a fim de elaborar uma lista de compras para os dois. Modestos, pediam sempre pouquíssimos itens, somente o necessário a sobrevivência. Mesmo assim, sempre que possível Osório os presenteava com alguns gêneros a mais como roupas e calçados. E quanto mais se afeiçoavam às pessoas daquela comunidade, mais se inteiravam de seus costumes, saberes e dificuldades. A afeição era recíproca, pois, ambos eram sempre convidados a tomarem parte tanto das festividades como das rodas de conversa.
Certo dia, Silvestre e Bhagat decidiram ir a Pedrinhas junto com os outros. A intenção de Silvestre era a de pedir a segunda via de seus documentos. Já Bhagat, queria apenas ajudar algumas pessoas da comunidade durante suas compras. Mas, assim que desceram do caminhão, os dois deram de cara com Zé Reis, o vereador que ajudara Mariano em seu regresso a Bucaramanga:
— Que bão que topei com ocêis aqui na rua. Já ia mandá alguém da minha confiança buscá os dois lá no quilombo.
Bhagat e Silvestre se encheram de pavor temendo se tratar de algum tipo de perseguição. Silvestre, então, se encorajou:
— Podemos saber do que se trata, vereador?
— Craro! Esses dia pa tráiz, recebi um telefonema; cêis qué sabê de quem?
— Diga logo, vereador, por favor!
— Daquele gringo, amigo docêis, o Mariano!
— Nossa! O que ele queria? — perguntou Silvestre aliviado.
— Ele queria duas coisa: primêro, era pra pedi prôceis í comigo até o Banco do Brasil, móde recebê um dinhêro que ele mandô prôceis dois. A ôta coisa, era prêu intregá prôceis esse papel aqui com um email que ele passô pra mim. Se quisé, posso levá ocêis lá agora mêmo. É só travessá a praça da igreja, fica bem ali do lado da farmácia do Zuza, o banco funciona dênto da agência do correio.
— Tudo bem, vereador, só que há um pequeno problema:
— Qual?
— É que, tanto eu como meu amigo Bhagat, perdemos todos os nossos documentos durante a viagem.
p. 109— Num carece documento não, Mariano falô que é só ocêis respondê umas pergunta prô home do banco, que ele sorta o dinheiro na hora! Então, vâmo ou não vâmo? Ah, já ia me esqueceno, Mariano pediu também prôceis arrumá algum dinheirin pra min, sabe como é... Tipo uma comissão. Mais isso, só se ocêis achá que o Zé Reis aqui merece um agrado – amenizou o vereador.
Mesmo desconfiados, resolveram seguir com o vereador até os Correios. A agência estava aparentemente vazia; apenas um atendente no guichê de correspondências, e no caixa destinado a serviços bancários não havia ninguém. Então, Zé Reis enfiou a cabeça no vão que ficava entre o vidro e o balcão e berrou:
— Ô de casa!
Na mesma hora, uma voz ecoa lá do fundo da agência:
— Guênta mão aí que já tô chegando!
Então, se apresenta um rapaz magro, camisa branca, ostentando um crachá funcional preso à gravata.
— Boa tarde, vereador. O que vai ser hoje, depósito ou saque?
— Nem um nem ôto. É prêces dois moço aqui. Tem um dinhêro que chegô prêles lá do estrangêro.
Após checar a senha requerida para liberação da arremessa, o bancário entregou uma caneta e uma folha em branco para cada um dos dois:
— Cada um de vocês precisa preencher os seguintes dados: nome completo, local de nascimento, área de formação, nome da cidade onde todos se conheceram, nome do guia que os conduziu dentro do parque, causa da morte de Ichiro, nome do animal que Bhagat abateu e a arma utilizada, e, por último, qual a dupla que se intoxicou dentro do parque e o que ingeriram — informou o atendente espantado disfarçando um riso.
Para Bhagat e Silvestre não havia mais dúvidas de que se tratava de Mariano. E após o bancário conferir as respostas buscou a arremessa de dinheiro.
— Aqui está. São noventa e cinco mil, quinhentos e quarenta e três reais. Podem conferir os maços.
— Êta lasquêra! Com essa dinherama, ocêis pode pegá um taxi pra Palmas, de lá, tomá um avião, e picá a mula pras casa dôceis. Não é mêmo? — comentou Zé Reis.
— Sim, vereador, mas não é isso o que queremos fazer — disse Bhagat no seu híndi-português.
— Bão, só falei por falá. Então, vâmo encerrá essa prosa e partí prô lado mió do negócio. Quanto que os moço tá pensando em gratificá o Zé Reis aqui?
— Seu Zé Reis, o senhor poderia nos dar licença por alguns minutos para que eu e meu amigo pudéssemos pensar a respeito? — pediu Silvestre.
— Craro!
p. 110Enquanto Silvestre e Baghat conversavam, Zé Reis, impaciente, procurava gastar o tempo clicando em seu celular. Transcorridos alguns minutos, Silvestre anuncia o veredito:
— Senhor vereador, eu e Bhagat lhe oferecemos a seguinte proposta: vamos lhe dar cinco mil reais.
— Muito obrigado! Que Deus ilumine o camin dôceis dois — interrompeu o vereador eufórico.
— Porém, sob uma condição: – completou Silvestre. —
O senhor deverá nos levar até Palmas e nos acompanhar a todos os lugares onde julgarmos necessário. Somente após encerrarmos todos os nossos compromissos é que o senhor estará livre para voltar. Estamos combinados?
— Combinado! – assentiu Zé Reis exibindo um sorriso de ponta a ponta e mostrando os polegares para cima.
— Então, só vô passá lá em casa, avisá a muié e panhá uma muda de rôpa. Nos encontremo daqui umas meia hora, lá na praça da igreja.
Bhagat depositou todo o dinheiro dentro de um saco de algodão cru que trazia consigo. Depois, seguiram em direção ao caminhão de Onésio onde já se achavam reunidos alguns quilombolas com suas compras. Bhagat aproximou-se de um deles, um rapaz que aparentava ter entre 12 a 14 anos, deu a ele um pouco de dinheiro e cochichou algumas palavras ao pé do ouvido.
Intrigado, Silvestre o interpelou:
— O que foi aquilo Bhagat?
— Nada de importante. Apenas pedi ao rapaz que entregasse algum dinheiro a uma pessoa da comunidade.
— Posso saber quem?
— Se não se importa, direi ao amigo em outra ocasião.
— Tudo bem.
Logo perceberam a aproximação de Zé Reis, buzinando seu veículo e acenando com o chapéu:
— Bóra pra Palmas!
Assim, partiram rumo a Palmas.
Na comunidade, uma comitiva de quilombolas aguardava ansiosamente a chegada do caminhão de Onésio. E para a surpresa de todos, aqueles dois astronautas, que tanto haviam se afeiçoado àquele cosmo chamado Capim, não desembarcaram do caminhão. Entre os presentes transparecia um misto de pesar e de decepção. D. Dita, após se certificar da ausência dos dois amigos, retornou chorosa para a sua casa, onde foi amparada por um pequenino São Benedito que habitava um cantinho de sua cozinha.
Em Palmas, Silvestre e Bhagat cumpriram uma longa agenda: fizeram compras, requereram novos documentos, trocaram mensagens com a embaixada da Índia e acessaram o endereço eletrônico de Mariano tanto para agradecê-lo como para informá-lo sobre o destino que dariam ao dinheiro. Cumprido a agenda, Zé Reis foi liberado para retornar a Pedrinhas.