O VERDE DE MINHA ROÇA VEM DE MARTE • ISBN: 978-65-86422-43-6
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Enfim, Marte

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Transcorridos quatro dias desde o inesperado sumiço de Bhagat e Silvestre, alguns quilombolas, inconformados com o acontecido, se puseram a pensar sobre os possíveis motivos que teriam levado aqueles dois a deixarem a comunidade sem sequer se despedir.

A principal hipótese era a de que o vereador os teria levado até as autoridades da capital a fim de solucionarem o caso do sequestro a que foram submetidos enquanto viajavam pelo Jalapão. Ainda assim, continuavam achando que tal motivo não justificaria aquela partida inesperada. Alguns, no entanto, já começavam a pensar que os dois decidiram abandonar a comunidade simplesmente porque haviam conseguido meios de voltar para suas casas e pronto.

Mesmo considerando a hipótese do abandono, Osório e D. Dita, que tanto se afeiçoaram aqueles dois astronautas, ainda nutriam a esperança de que os veriam novamente.

Assim, Osório partiu na garupa da motocicleta de seu filho Sinvaldo rumo a Pedrinhas. Após cruzarem um longo descampado, ornado por pequenos arbustos, avistaram a sinuosa faixa de vegetação densa que acompanhava as margens do ribeirão das Pedras. Ao se aproximarem, notaram a presença de um caminhão amarelo estacionado à beira da estrada. Aquele ribeirão era como uma parada obrigatória para todos que cruzavam aquela região. Nele, os viajantes se refaziam para seguirem viagem. Osório e Sinvaldo já eram velhos conhecidos daquele regato. Osório foi logo descendo o barranco empunhando sua cabaça d’água. Sinvaldo se desfez das vestes saltando sobre o seu leito. Alguns metros, ponte abaixo, alguns homens, aparentemente, os tripulantes do caminhão, também se refrescavam. Enquanto enchia sua cabaça, Osório prestava atenção na algazarra que os rapazes do caminhão faziam dentro d’água. Um deles subia o barranco, ganhava o centro da ponte e saltava sobre o poço que se formara pelo rebojo da água. O rapaz repetiu o feito por inúmeras vezes, até que, num dado momento, desafiou um dos companheiros a fazer o mesmo:

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Aquele nome chamou a atenção de Osório. Poderia ser qualquer outra pessoa, pensou ele, afinal, quantos Silvestres poderiam existir nesse mundo? Mas o tal Silvestre hesitou em saltar da ponte dizendo:

Aquilo já era muita coincidência, matutou Osório.

E assim fizeram os dois. Seguiram pelo barranco, passando por debaixo da ponte, devagarinho, se escondendo por detrás do capinzal, se aproximando com segurança. Ao perceberem que realmente se tratava de Bhagat e Silvestre, Osório não titubeou, levantou-se, correu em direção ao ribeirão, balançando os braços e gritando o nome dos amigos.

Reconhecendo a presença de Osório, Silvestre e Bhagat nadaram em sua direção:

Assim, colocaram a motocicleta na carroceria do caminhão e seguiram juntos para o povoado do Capim. A carga do caminhão era composta de dezenas de implementos agrícolas: Enxadas, enxadões, foices, facões, carrinhos de mão, chapéus, botas de borracha, sacos de linho, luvas de couro, serrotes, mangueiras, roçadeiras a gasolina, arados, carreta pipa e até um mini trator. Osório imaginou que aquele caminhão estivesse indo para as cidades de Mateiros e de Novo Acordo, a fim de abastecer seus comércios, e que Silvestre e Bhagat estivessem nele na condição de caronas.

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Aquela resposta deixou Osório ainda mais confuso. Até que Silvestre, não vendo outra maneira, se antecipou:

No dia seguinte, atendendo aos anseios de Silvestre e Bhagat, Osório convocou toda a comunidade para uma reunião. Assim, lá pelo final da tarde, as pessoas foram se acomodando próximo a casa de Osório, sob a sombra de duas frondosas mangueiras. Alguns levaram tamboretes, outros improvisaram bancos, e a meninada em volta competia com os periquitos na modalidade algazarra. Todos reunidos, Osório tomou a palavra:

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Diante desse questionamento, as pessoas se olharam, trocaram ideias e, por fim, pareceram concordar que a comunidade era autônoma.

A essa pergunta, as respostas indicaram quatro fontes de renda: o artesanato, como sendo a principal; em segundo lugar, algumas poucas aposentadorias, pensões e bolsas; em terceiro, alguns serviços prestados a turistas, como os de guias locais, e, por último, a produção agrícola. Esta última, atualmente sendo praticada apenas por algumas famílias como a do Sr. Justino cuja moradia fica retirada da comunidade alguns quilômetros.

A esses questionamentos, foram unânimes em afirmar que passariam por grandes dificuldades, caso houvesse tanto uma diminuição drástica nas vendas do artesanato a turistas quanto um corte de bolsas e pensões. Alguns lembraram, inclusive, de ter havido períodos em que, devido ao mal tempo, a frequência de turistas diminuiu drasticamente e precisaram se submeter aos preços extremamente baixos oferecidos por pessoas como o Sr. Onésio e outros comerciantes locais de artesanato.

Naquele mesmo momento, D. Dita se aproxima de Silvestre e se senta em um tamborete trazido por um de seus netos.

Dona Dita ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, fitou o horizonte e respondeu:

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O Quilombo é lugar de luta, de sabedoria, de sobrevivência autônoma, de alegria e de orgulho pela história de resistência que construiu. E o Quilombo do Capim, se ainda existe, isso se deve aqueles seus parentes, do “tempo dos antigos”, pois, foram eles , pessoas como a D. Dita, D. Fia e S. Osório, que se tornaram autossuficientes numa época em que ainda não havia por aqui turistas, caminhões e celulares.

Após aquelas duras palavras, muitos daqueles olhos negros e atentos se banharam em lágrimas.

Uma mão se ergueu e, para surpresa de Silvestre e Bhagat, era a mão do Sr. Justino, esposo de Zeferina, aquele que os acolheu e os conduziu até a comunidade.

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O projeto que eu e Bhagat queremos propor para a comunidade não implica em substituir uma forma de produção por outra. Ao contrário, nossa proposta é a de juntar a produção do artesanato com a produção agrícola. Assim, conquistaremos a tal autonomia. Imaginem vocês não precisarem mais entregar os artesanatos a preços baratos para especuladores como Onésio e alguns agentes de turismo. Já pensaram na possibilidade de vocês mesmo poderem vender o artesanato a preços justos para os próprios lojistas das grandes cidades?

E quem vai nos ensinar como plantá-la é o nosso amigo Bhagat. Mas como ele ainda não está dominando muito bem a nossa língua, ele pediu para que eu contasse a vocês como funciona esse tipo de roça. Bem, vou começar pelo nome. Esse tipo de lavoura é chamado de agrofloresta. Mas, não se preocupem com esse nome agora. Pensem apenas que é um tipo de plantação que vira floresta, ou uma floresta de plantação.

No momento em que Silvestre mencionou a combinação entre floresta e plantação, a comunidade se mostrou incomodada e confusa. Justino, que depende de sua lavoura de subsistência para o sustento de sua família, foi logo levantando a mão e pedindo a palavra:

A explicação dada por Justino era um retrato fiel do modelo tradicional de lavoura, praticado por aquela comunidade desde o tempo de sua formação. Portanto, Silvestre e Bhagat sabiam que a implantação de outro modelo de produção agrícola, em substituição ao tradicional, não seria tarefa fácil. Ainda mais naquela comunidade em que a produção agrícola já vinha sendo substituída, ano após ano, pela produção e venda do artesanato. Por outro lado, o discurso que fizera Silvestre sobre o problema da autonomia conseguiu atingi-los muito profundamente. Assim, ficou claro a eles que seria aquela a linha que deveriam seguir caso quisessem conduzi-los à mudança esperada.

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Aquela resposta deixou todos muito curiosos. Afinal, eles eram, acima de tudo, um povo do Cerrado.

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— É quase isso daí, Osório. A diferença é que, como o Cerrado já aprendeu a viver sozinho há milhões de anos, ele tornou-se completamente autônomo, ou seja, não precisa da ajuda do homem. Já a agrofloresta, como ela é um tipo de floresta nova, que o próprio homem planta, ela precisa de cuidados. Ela precisa que a gente faça por ela o que a natureza faz pelo Cerrado, ou seja, como a gente quer produzir plantas de rápida produção, como hortaliças, legumes, frutas e cereais, teremos que dar uma mãozinha...

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Após muito conversarem entre si, Justino encabeçou a formação do grupo conseguindo convocar outros quatro companheiros interessados em participar da atividade proposta.

Assim, durante quase dois anos, dia após dia, Justino, Silvestre, Bhagat e os outros quatro companheiros se dedicaram ao projeto com grande afinco. Produziram uma agrofloresta de aproximadamente quinhentos metros de diâmetro, e que foi sucesso absoluto. A comunidade passou a se alimentar com muito mais qualidade e a extrair uma excelente renda extra com a venda dos produtos colhidos tanto para turistas como para alguns comerciantes de Pedrinhas.

Já em outra parte do mundo, Mariano, conforme prometera aos amigos de que um dia voltaria para visitá-los, planejava sua viagem de férias com destino ao Jalapão. Traçou seu voo de Bucaramanga a Palmas, com escalas em São Paulo e Goiânia. Ao chegar em Palmas, fretaria um voo turístico até ao aeroporto de São Felix do Jalapão, onde alugaria um veículo que o lavaria ao Quilombo do Capim. E assim fez Mariano.

Assim, na hora combinada, voaram para São Felix do Jalapão.

Durante o voo...

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Isso mesmo! Mariano conseguiu localizar o paradeiro das duas amigas e as convidou para esse reencontro histórico. Aquela experiência não mudara apenas as consciências de Silvestre, Bhagat e Mariano. Em certa medida, atingiu a todos. Helga voltou para Bremerhaven, onde trabalhou, por alguns meses, em um hospital local, mas, preferiu se alistar numa organização internacional de ajuda humanitária que atua na África Central. Samira, após receber sua indenização, voltou para Zahlé, onde construiu uma escola para crianças atingidas pelos confrontos no Líbano. Quanto aos outros, bem, Jennifer, após uma verdadeira batalha judicial, conseguiu que a Nova Marte indenizasse a todos, até mesmo a família de Ichiro, no Japão. A parte curiosa disso, é que, por conta de seu brilhante trabalho, a própria Nova Marte lhe deu um cargo em seu departamento jurídico. Manolito escreveu um livro autobiográfico sobre a sua aventura, e acabou se casando com a própria professora que contratara para corrigir o seu texto. Atualmente, o casal vive em Mérida, cidade natal de Manolito, onde constituíram uma pequena indústria metalúrgica chamada Íons, o mesmo nome do metal presente na atmosfera de Marte.

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Naquele mesmo ano em que se encontraram, Bhagat se casou com uma das sobrinhas de Osório, uma jovem viúva cujo único filho, era aquele rapazinho que ele dera algum dinheiro naquele dia em que partiu para Palmas. Silvestre, usou a sua parte da indenização para se associar a Bhagat. Juntos, fundaram uma ONG, com sede em Palmas, especializada em apoiar comunidades rurais em situação de vulnerabilidade a desenvolverem projetos agroecológicos votados para obtenção de soberania alimentar e manejo socioecológico de seus territórios. Atualmente, o povoado do Capim vem se consolidando como uma espécie de comunidade modelo, recebendo visitantes de várias partes do País, para experiências, estudos e capacitação em sistemas agroecológicos comunitários.

E Marte, pobre planeta vermelho... Mesmo sem culpa alguma, continua sendo cúmplice de um multimilionário esquema de estelionato ecológico praticado contra o nosso lindo planeta azul.