Transcorridos quatro dias desde o inesperado sumiço de Bhagat e Silvestre, alguns quilombolas, inconformados com o acontecido, se puseram a pensar sobre os possíveis motivos que teriam levado aqueles dois a deixarem a comunidade sem sequer se despedir.
A principal hipótese era a de que o vereador os teria levado até as autoridades da capital a fim de solucionarem o caso do sequestro a que foram submetidos enquanto viajavam pelo Jalapão. Ainda assim, continuavam achando que tal motivo não justificaria aquela partida inesperada. Alguns, no entanto, já começavam a pensar que os dois decidiram abandonar a comunidade simplesmente porque haviam conseguido meios de voltar para suas casas e pronto.
Mesmo considerando a hipótese do abandono, Osório e D. Dita, que tanto se afeiçoaram aqueles dois astronautas, ainda nutriam a esperança de que os veriam novamente.
— Óia só Dita, amanhã, eu mais o Sinvaldo, vâmo pra Predrinhas móde sabê do Zé Reis que rumo tomô aqueles dois — avisou Osório.
— Vai Osório; vai mêmo. Só dispois docê sabê da verdade é que as nossa cabeça vai sussegá — apoiou D. Dita.
Assim, Osório partiu na garupa da motocicleta de seu filho Sinvaldo rumo a Pedrinhas. Após cruzarem um longo descampado, ornado por pequenos arbustos, avistaram a sinuosa faixa de vegetação densa que acompanhava as margens do ribeirão das Pedras. Ao se aproximarem, notaram a presença de um caminhão amarelo estacionado à beira da estrada. Aquele ribeirão era como uma parada obrigatória para todos que cruzavam aquela região. Nele, os viajantes se refaziam para seguirem viagem. Osório e Sinvaldo já eram velhos conhecidos daquele regato. Osório foi logo descendo o barranco empunhando sua cabaça d’água. Sinvaldo se desfez das vestes saltando sobre o seu leito. Alguns metros, ponte abaixo, alguns homens, aparentemente, os tripulantes do caminhão, também se refrescavam. Enquanto enchia sua cabaça, Osório prestava atenção na algazarra que os rapazes do caminhão faziam dentro d’água. Um deles subia o barranco, ganhava o centro da ponte e saltava sobre o poço que se formara pelo rebojo da água. O rapaz repetiu o feito por inúmeras vezes, até que, num dado momento, desafiou um dos companheiros a fazer o mesmo:
p. 112— Agora é a sua vez Silvestre. Quero ver se tem coragem.
Aquele nome chamou a atenção de Osório. Poderia ser qualquer outra pessoa, pensou ele, afinal, quantos Silvestres poderiam existir nesse mundo? Mas o tal Silvestre hesitou em saltar da ponte dizendo:
— Obrigado, mas, não tô a fim. Convide o meu amigo, ele é mais corajoso.
— Qual é o nome dele mesmo? — gritou o rapaz de cima da ponte.
— É Bhagat. Ele se chama Bhagat.
Aquilo já era muita coincidência, matutou Osório.
— Sinvaldo? Corre aqui!
— Que foi meu pai?! — perguntou Sinvaldo assustado.
— Silvestre e Bhagat estão logo ali dibaxo da ponte! Assunta só procê vê.
— Não deve de sê não, meu pai. O sinhô deve de tê se enganado por causa do barúio da corredêra.
— Tô enganado não! Eu escuitei os moço do caminhão chamá os nome Silvestre, dispois Bhagat.
— Só tem um jeito de nóis sabê: É chegando lá pra vê — sugeriu Sinvaldo.
E assim fizeram os dois. Seguiram pelo barranco, passando por debaixo da ponte, devagarinho, se escondendo por detrás do capinzal, se aproximando com segurança. Ao perceberem que realmente se tratava de Bhagat e Silvestre, Osório não titubeou, levantou-se, correu em direção ao ribeirão, balançando os braços e gritando o nome dos amigos.
Reconhecendo a presença de Osório, Silvestre e Bhagat nadaram em sua direção:
— Osório? Que bom encontrá-lo! È muita coincidência, eu e Bhagat estávamos justamente indo para a comunidade.
— Poisé. Eu, mais o Sinvaldo, tava ino pra Pedrinhas móde encontrá com o Zé Reis pra sabê nutíça docêis dois. A véia Dita, coitada, não fala nôta coisa. Todo mundo lá do povoado ficou incomodado com o sumiço docêis.
— Mas, agora, estamos de volta! — disse Bhagat sorridente, gastando o seu incipiente português.
Assim, colocaram a motocicleta na carroceria do caminhão e seguiram juntos para o povoado do Capim. A carga do caminhão era composta de dezenas de implementos agrícolas: Enxadas, enxadões, foices, facões, carrinhos de mão, chapéus, botas de borracha, sacos de linho, luvas de couro, serrotes, mangueiras, roçadeiras a gasolina, arados, carreta pipa e até um mini trator. Osório imaginou que aquele caminhão estivesse indo para as cidades de Mateiros e de Novo Acordo, a fim de abastecer seus comércios, e que Silvestre e Bhagat estivessem nele na condição de caronas.
— Sentindo-se agradecido pela carona oferecida aos dois amigos, Osório puxa conversa com um dos rapazes encarregado da entrega:
— Quano chegá no Capim, antes docêis seguí pras cidade com as entrega, quero serví procêis uns bolo de macaxera que a minha patroa fáiz, é o mió da região!
— Só do senhor falar desse bolo minha barriga roncou; aquele banho no ribeirão me deu uma fome danada. Mas, depois da comunidade, não vamos seguir para mais nenhuma cidade — respondeu o rapaz agradecendo o convite.
— Então, essa carga vai pra arguma fazenda grande, lá das divisa?
p. 113— Não, senhor; essa carga vai para essa comunidade, qual é mesmo o nome que o senhor acabou de falar? Capim, não é mesmo? Agora me lembrei do nome na ficha de entrega, Comunidade Quilombola do Capim, é isso.
— Cêis deve de tá enganado. Lá no Capim não tem nenhuma loja não. Ocêis pode dá um jeito de sabê do endereço certo — sugeriu Osório.
— O endereço é esse mesmo, e nós confirmamos o trajeto pelo GPS — rebateu o rapaz.
— Então, ocêis pode ligá pra esse tal de GPS e pedi pra ele oiá de novo — insistiu Osório.
— Acho melhor, então, o senhor perguntar para esses dois aí — disse o rapaz apontando o dedo na direção de Bhagat e Silvestre.
Aquela resposta deixou Osório ainda mais confuso. Até que Silvestre, não vendo outra maneira, se antecipou:
— Osório, era pra ser uma surpresa, mas, acho que já é hora de contar. Todas essas coisas que o senhor está vendo dentro desta carroceria pertencem agora a comunidade do Capim.
— Cêis tão brincando com o véi aqui? Pra quê tudo isso?! Ocêis dois tão quereno colocá uma loja na bêra da estrada, é isso? Mais lá quase não passa gente!
— Não é nada disso Osório. Quando chegarmos a comunidade, eu e Bhagat pretendemos reunir todas as famílias para comunicar a elas o nosso plano. Isso se o senhor estiver de acordo.
No dia seguinte, atendendo aos anseios de Silvestre e Bhagat, Osório convocou toda a comunidade para uma reunião. Assim, lá pelo final da tarde, as pessoas foram se acomodando próximo a casa de Osório, sob a sombra de duas frondosas mangueiras. Alguns levaram tamboretes, outros improvisaram bancos, e a meninada em volta competia com os periquitos na modalidade algazarra. Todos reunidos, Osório tomou a palavra:
— Primêramente quero agradecê a Deus pelas graça alcançada, pela presença dos parente, e por esses dois moço aqui, Bhagat e Silvestre, que resorvêro vortá pro quilombo. Agora vô pedí prêles tomá a palavra.
p. 114— Pessoal, eu e Bhagat estamos muito felizes em vê-los novamente. Tenho a certeza de que a maioria de vocês está se perguntando por que esses dois aventureiros, um de Brasília e o outro da Índia, resolveram se mudar para este quilombo? Será que estão fugindo de alguém? E por qual motivo retornaram agora trazendo todos esses equipamentos agrícolas? Podem acreditar, se eu estivesse no lugar de vocês faria as mesmas perguntas. Por isso vamos tentar respondê-las, e, ao mesmo tempo, fazer um convite a todos e a todas desta querida comunidade. Pois bem, na verdade, eu e Bhagat estávamos fugindo sim. Mas não da polícia, ou de alguém que ficamos devendo no passado. Estávamos fugindo de um projeto que entramos por vontade própria, mas, durante o percurso percebemos que se tratava de um projeto para poucos, e, pior ainda, que desconsiderava a importância de continuar lutando por uma vida mais justa neste planeta, tanto para as pessoas quanto para as demais formas de vida, vegetal e animal. Se vocês desejarem saber que projeto é esse, eu conto.
— Então conta pra gente! — sugeriu um dos presentes.
— Vocês podem não acreditar — continuou Silvestre. – Mas é um projeto espacial que seleciona pessoas para construírem uma colônia no espaço. Isso mesmo! No espaço. Mais precisamente no planeta Marte. É uma longa história que não dá pra contar agora. Mas prometemos contar para vocês, com todos os detalhes, nos próximos dias.
— E o caminhão de ferramenta? — se antecipou Osório.
— Essa é a parte mais importante dessa história! – disse Bhagat arrancando risos da plateia devido ao seu estranho sotaque.
— É a parte da história em que todos vocês entram! — retomou Silvestre. — Todas essas ferramentas e equipamentos agrícolas que vocês estão vendo fazem parte dessa viagem espacial. Vou explicar: após chegarmos a conclusão de que as grandes corporações industriais, depois que promovem a destruição das florestas, a poluição dos rios e a expulsão de pessoas do campo para cidades, estão preferindo investir bilhões de dólares nesses projetos espaciais em vez de usar esse dinheiro para recuperarem os estragos que causaram ao planeta, eu e Bhagat decidimos que o melhor que tínhamos a fazer de nossas vidas, daqui por diante, seria usarmos nossas experiências e formação para lutar contra esse modelo destrutivo, apontando caminhos que permitam as pessoas produzirem um bem viver, com a natureza e consigo mesmo, de forma simples e saldável. Qual a vantagem de se construir uma colônia em um outro planeta, sem antes consertar os estragos que foram feitos a este planeta aqui, que é a nossa casa?
— E as ferramentas? — perguntou Sinvaldo ansioso.
— Já ia falar sobre elas — respondeu Silvestre. — Mas, antes de dizer a vocês sobre o que faremos com elas, precisamos falar sobre autonomia. Quem aqui é capaz de responder o que significa ter autonomia?
Depois de algum tempo sem ninguém se encorajar, o próprio Sinvaldo levantou a mão:
— Autonomia no meu entendimento é a gente podê fazê alguma coisa por conta própria, sem precisá da ajuda de ninguém.
p. 115— Boa resposta, Sinvaldo! Agora, farei uma pergunta para todos responderem: Vocês consideram a comunidade do Capim uma comunidade que tem autonomia, ou seja, que consegue manter-se por conta própria?
Diante desse questionamento, as pessoas se olharam, trocaram ideias e, por fim, pareceram concordar que a comunidade era autônoma.
— Pelo jeito — prosseguiu Silvestre. — A maioria de vocês concorda que a comunidade do Capim é uma comunidade autônoma. Nesse caso, deixe-me fazer outra pergunta a vocês: Qual a principal, ou principais fontes de renda que a comunidade dispõe para sobreviver?
A essa pergunta, as respostas indicaram quatro fontes de renda: o artesanato, como sendo a principal; em segundo lugar, algumas poucas aposentadorias, pensões e bolsas; em terceiro, alguns serviços prestados a turistas, como os de guias locais, e, por último, a produção agrícola. Esta última, atualmente sendo praticada apenas por algumas famílias como a do Sr. Justino cuja moradia fica retirada da comunidade alguns quilômetros.
— Muito bem. — continuou Silvestre.— Prestem bem atenção nas duas perguntas que vou fazer agora: Vamos pensar na possibilidade de os turistas, que aqui vêm para visitar o quilombo e comprar o artesanato, por algum motivo que desconhecemos, deixem de vir, ou passem a vir somente de vez em quando. Se isso acontecer, vocês terão alguma dificuldade para manterem suas despesas? Imaginemos também a possibilidade de surgir, em breve, algum governante que, por desconsiderar as causas sociais, e a importância da diversidade cultural, deixe de pagar essas bolsas e aposentadorias que alguns de vocês recebem, como fariam para sobreviver diante de tais situações?
A esses questionamentos, foram unânimes em afirmar que passariam por grandes dificuldades, caso houvesse tanto uma diminuição drástica nas vendas do artesanato a turistas quanto um corte de bolsas e pensões. Alguns lembraram, inclusive, de ter havido períodos em que, devido ao mal tempo, a frequência de turistas diminuiu drasticamente e precisaram se submeter aos preços extremamente baixos oferecidos por pessoas como o Sr. Onésio e outros comerciantes locais de artesanato.
— Agora, farei as últimas perguntas. Mas quero que somente as pessoas mais idosas aqui presentes as respondam para mim.
— A mais veia é a D. Fia — informou Osório. — Só que ela tá aduentada e quais num escuita mais. Dispois dela, a mais véia é a D. Dita.
Naquele mesmo momento, D. Dita se aproxima de Silvestre e se senta em um tamborete trazido por um de seus netos.
— D. Dita, a senhora se lembra do tempo em que, aqui na comunidade, não vinham turistas e nem existiam aposentadorias e pensões?
Dona Dita ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, fitou o horizonte e respondeu:
— No tempo dos antigo não existia nada dessas coisa. Turista, aposentadoria, pensão, e essas ôta coisarada, eu só fui cunhecê dispois que nasceu minha primêra neta.
— Outra pergunta D. Dita: Nesse tempo, a população da comunidade era maior ou menor do que é hoje?
p. 116— Naquele tempo era muita gente. Tinha muito mais do que hoje; só ocê veno, era um munderéu de gente. Quando tinha as festa de santo, isso aqui ficava duro de gente assim. As muié reunia pra fiá argodão, era uma cantoria só. Dispois, os mais novo fôro mudano prôtas banda, os mais véi foi morreno, aí o povo foi minguano.
>— Só mais uma pergunta D. Dita: Nesse tempo, que a senhora chamou de “tempo dos antigos”, não havia turistas, venda de artesanatos e nem aposentadoria, certo? A vida era mais fácil ou mais difícil?
— Só dispois que aqui virô quilombo é que esse povo da cidade começô a chegá pra conhecê e comprá os artesanato. Também não tinha esses benefíci não. Quem ficava véi e não pudia mais trabaiá na roça, recebia ajuda dos mais novo. De primêro, ninguém fazia objeto de capim pra vendê não, fazia só pra usá mêmo em casa, cesto prá panhá as fruta do mato, abano, infeite de cabelo, essas coisa. A vida era dura seu moço... Nóis começava trabaiá desde minino, ajudano os pais da gente na roça e em tudo quanto há. Mas ninguém cramava falta de nada não. Tinha era muita fartura! Nois prantava roça de mí, fêjão, abobra, criava galinha, porco, fazia farinha, nunca fartava nada. Os pai da gente seperava o tanto que era para nois consumí durante o ano e, o que sobrava, nóis levava pra Vila móde vendê ô trocá por querosene, tecido, sal, essas ôta coisa que nóis não pudia produzi, sabe?
— Muito obrigado, D. Dita. A senhora ajudou bastante. Muito bem pessoal — prosseguiu Silvestre. — Agora, uma pergunta para todos: com base na história que D. Dita acabou de nos contar, vocês acham que a comunidade, na época dos antigos, tinha mais, ou menos autonomia em comparação aos dias de hoje?
— No tempo dos antigo — interrompeu Osório. — Que eu também peguei um pôco desse tempo, eu ainda alembro, eu era um mulequim assim, o povo passava quais o ano intêro aqui, sem precisá í pra cidade. Quais tudo que precisava pra vivê tirava daqui mêmo.
— Obrigado pelas informações, Sr. Osório. Neste caso, se todos também concordam, podemos afirmar que a comunidade do Capim de hoje não possui mais a mesma autonomia que possuía no passado, pois, para sobreviver, ela agora depende de recursos que vêm de fora como é o caso dos turistas que compram os artesanatos e das aposentadorias e pensões que os anciãos e anciãs recebem todo mês. Não é mesmo?
p. 117— Discurpa interrompê o moço, mas, hoje tem mais ricurso do que no tempo dos antigo. Óia só pro senhô vê: se alguém daqui ficá doente, nóis põe ele na garupa de uma moto, ô arruma alguma ôta condução, e leva pra cidade tratá; se precisa comunicá com algum parente que mora longe, nóis vai pra Pedrinhas e usa o celular; se tivé faltano as coisa em casa tem o caminhão do Onésio pra levá a gente e trazê pra tráis. Muita coisa miorô seu moço — rebateu uma quilombola que trazia uma criança enganchada à sua cintura.
— Concordo com a senhora — ponderou Silvestre. — Poder levar um parente doente a um hospital na cidade, usar um celular para falar com um parente distante e ir de caminhão a Pedrinhas fazer compras, são recursos que facilitam a vida de todos. Contudo, uma coisa é ter acesso a esses recursos tendo autonomia para decidir como e a que momento usá-los. Outra coisa é ter que depender da vontade de pessoas de fora da comunidade pra poder acessar esses recursos. Um povo — prosseguiu Silvestre. — Só possui autonomia quando for capaz de sobreviver sem depender de ajudas que vêm de fora. Pois, quanto mais dependente estiver mais fraco estará para vencer preconceitos e explorações. Do que adianta terem sido reconhecidos como Quilombo, se não agem como Quilombolas.
O Quilombo é lugar de luta, de sabedoria, de sobrevivência autônoma, de alegria e de orgulho pela história de resistência que construiu. E o Quilombo do Capim, se ainda existe, isso se deve aqueles seus parentes, do “tempo dos antigos”, pois, foram eles , pessoas como a D. Dita, D. Fia e S. Osório, que se tornaram autossuficientes numa época em que ainda não havia por aqui turistas, caminhões e celulares.
Após aquelas duras palavras, muitos daqueles olhos negros e atentos se banharam em lágrimas.
— Quem agora quer arriscar um palpite sobre o que iremos fazer com todas essas ferramentas, máquinas e implementos? — retomou Silvestre.
Uma mão se ergueu e, para surpresa de Silvestre e Bhagat, era a mão do Sr. Justino, esposo de Zeferina, aquele que os acolheu e os conduziu até a comunidade.
— Fico muito feliz em revê-lo S. Justino. O senhor quer responder pra gente?
— Sim, S. Silvestre. Enquanto o sinhô falava, eu fiquei ali matutano. Ocêis trôxe essas ferramenta pro quilombo móde o povo vortá a produzí as roça igual nos tempo dos antigo. É isso mêmo?
— O senhor acertou! A ideia é justamente fazer com que a comunidade volte a produzir alimentos para não mais depender da ajuda de fora.
— E os artesanato de capim dôrado, não vai mais precisá fazê? — perguntou uma das artesãs da comunidade.
— Nada disso, a comunidade deve continuar a produzi-los e a vendê-los, não somente para os turistas, como também, para qualquer outra pessoa que queira comprá-los.
p. 118O projeto que eu e Bhagat queremos propor para a comunidade não implica em substituir uma forma de produção por outra. Ao contrário, nossa proposta é a de juntar a produção do artesanato com a produção agrícola. Assim, conquistaremos a tal autonomia. Imaginem vocês não precisarem mais entregar os artesanatos a preços baratos para especuladores como Onésio e alguns agentes de turismo. Já pensaram na possibilidade de vocês mesmo poderem vender o artesanato a preços justos para os próprios lojistas das grandes cidades?
— Mais essa autonomia aí que ocêis tá falano, nóis vai arcançá ela é plantano umas rocinha praquí, ôtas pra aculá, igual era antigamente? — perguntou Osório.
— Nada disso Osório. É um tipo de roça muito diferente.
E quem vai nos ensinar como plantá-la é o nosso amigo Bhagat. Mas como ele ainda não está dominando muito bem a nossa língua, ele pediu para que eu contasse a vocês como funciona esse tipo de roça. Bem, vou começar pelo nome. Esse tipo de lavoura é chamado de agrofloresta. Mas, não se preocupem com esse nome agora. Pensem apenas que é um tipo de plantação que vira floresta, ou uma floresta de plantação.
No momento em que Silvestre mencionou a combinação entre floresta e plantação, a comunidade se mostrou incomodada e confusa. Justino, que depende de sua lavoura de subsistência para o sustento de sua família, foi logo levantando a mão e pedindo a palavra:
— Seu Silvestre? Agora cê fêiz eu dá um nó aqui na minha cabeça. Que história é essa de misturá a roça com os mato?! A vida intêra nóis fáiz as roça aqui do mêmo jeito que o pai da gente, o avô e os mais antigo fazia: primêro escói o lugá, rânca os mato, junta as coivara, inlêra, queima e revira o chão. Dispois, pranta a roça que quizé, pode sê de arróiz, mí, mandioca ô fêjão. E nos lerão que queimô as coivara, nóis semeia abóbra, batata doce, maxixe, melancia, e vai fazeno essas combinação. Dispois, quano a chuva começa a pegá, aí nóis vai fazeno a limpa na lavôra móde não espraguejá muito; vai capinano esses mato entremei as pranta pra elas crescê forte. Dispois é só vigiá pra argum bicho não entrá e istragá a roça. Aí é só í zelano, vigiano e agradeceno a Deus inté a hora de coiê. Desse jeito que nóis fáiz aqui.
A explicação dada por Justino era um retrato fiel do modelo tradicional de lavoura, praticado por aquela comunidade desde o tempo de sua formação. Portanto, Silvestre e Bhagat sabiam que a implantação de outro modelo de produção agrícola, em substituição ao tradicional, não seria tarefa fácil. Ainda mais naquela comunidade em que a produção agrícola já vinha sendo substituída, ano após ano, pela produção e venda do artesanato. Por outro lado, o discurso que fizera Silvestre sobre o problema da autonomia conseguiu atingi-los muito profundamente. Assim, ficou claro a eles que seria aquela a linha que deveriam seguir caso quisessem conduzi-los à mudança esperada.
p. 119— Obrigado pela contribuição, amigo Justino. — retomou Silvestre. — Seu conhecimento e sua experiência muito vai nos ajudar no desenvolvimento de nossa agrofloresta, pois, como todos poderão ver, tudo o que se faz numa agrofloresta combina com todos os conhecimentos agrícolas que já possuem, ou seja, a gente só precisará mudar algumas maneiras de plantar e zelar a plantação. O mais importante é saber que numa agrofloresta a gente pode produzir uma grande variedade de alimentos, durante o ano inteiro, e ainda com a grande vantagem de usar apenas uma pequena extensão de terra.
— O sinhô pode, então, contá pra gente como é que fáiz pra lidá com essa tal agrofloresta? — perguntou Osório interessado.
— Com todo o prazer, Sr. Osório. Mas antes, quero mostrar a todos que a agrofloresta, não será pra vocês nenhuma novidade. Sabem por quê? É muito simples! É porque tudo o que deve acontecer numa agrofloresta, já acontece, por exemplo, no Cerrado.
Aquela resposta deixou todos muito curiosos. Afinal, eles eram, acima de tudo, um povo do Cerrado.
— Muito bem — iniciou Silvestre. — Qual é a principal qualidade que a gente vê num Cerrado, assim que entramos nele?
— Muitos tipo diferente de árvre juntas uma quas ôtra — se antecipou Justino.
— Exatamente! Uma das principais características do Cerrado é justamente a presença de uma grande variedade de plantas convivendo. Agora, vou fazer outra pergunta: vocês já viram no Cerrado, algum tipo de planta atrapalhar a outra, vizinha a ela, de produzir os seus frutos?
— Não — respondeu Justino. — Quano a gente vai prô Cerrado panhá fruta, cê acha um pé de caju, carregadin, do lado de um pé de pequi, tamém carregadin. E entremei esse pé de caju e o pé de pequi, cê vê tamém aquelas ôtas pranta mais pequena, tamém carregadinha, mama-cadela, muricí, mangaba, gabiroba, tudo junto produzino. É só a gente entrá lá e panhá.
— Perfeito! Justino. Agora, lá vai outra pergunta: alguém de vocês precisa entrar nesse Cerrado e fazer algum tipo de adubação ou limpeza para essas espécies de plantas poderem produzir?
— Ah, Seu Silvestre, essa pergunta é fáci dimais da conta! — respondeu Justino. — Claro que não! O Cerrado tá lá e pronto. Durante o ano, tem o tempo das seca, dispois vem o tempo das água; as coisa acontece tudo sozin, por lá mêmo. Os bicho vão entrano, comeno as fruta e espaiano as semente delas pra tudo quanto é banda; as árve mais viéa morre, vai tombano, as mais nova vão cresceno, as vêiz cai um rái, pega fogo, mais dispois, sai os brôto e tudo fica verdin. É assim a vida toda. A gente vai lá só pra panhá as fruta, arguma pranta pra fazê um remédio, caçá argum bicho pra comê, rancá uma madêra pra fazê casa, lenha, essas coisa...
p. 120— Maravilha! S. Justino. É isso mesmo que acontece no Cerrado. Ele tem vida própria. Ninguém precisa ajudá-lo a produzir. As próprias plantas, animais e insetos vão se ajudando mutuamente, não é mesmo? É como o senhor mesmo disse: Animais e pássaros comem as frutas e vão espalhando as sementes. Depois, vem a chuva para fazê-las brotar. Insetos vão de flor em flor fertilizando-as. As árvores mais velhas vão caindo, e as folhas das árvores se soltam durante a estação seca; tudo se tornando adubo natural. Isso mesmo! Tudo o que as plantas do cerrado deixam cair, como as folhas e os frutos, transformam-se em nutrientes, ou seja, alimento para o solo. Até mesmo o homem participa desse processo. Pois, ao entrar no cerrado para colher algo de que necessita, ele também está contribuindo com todo esse processo de renovação. Viram como vocês já sabem direitinho como funciona uma agrofloresta?
— O sinhô pode então expricá mió como nóis vai produzí igual o Cerrado? — pediu Justino.
— Sim. A lavoura que vamos plantar, a tal agrofloresta, imita o funcionamento do Cerrado. Vamos fazer canteiros para plantar verduras e legumes, e entre esses canteiros, plantaremos bananeiras, e árvores que produzem lenha e madeira. Cada uma dessas plantas tem o seu próprio tempo de crescimento e produção, igual no Cerrado. À medida que todas vão se desenvolvendo, uma vai ajudando a outra.
— Então, nóis vamo fazê essa prantação misturada, largá ela lá, e dêxá ela produzí sozinha, igual no cerrado? — perguntou Osório.
— É quase isso daí, Osório. A diferença é que, como o Cerrado já aprendeu a viver sozinho há milhões de anos, ele tornou-se completamente autônomo, ou seja, não precisa da ajuda do homem. Já a agrofloresta, como ela é um tipo de floresta nova, que o próprio homem planta, ela precisa de cuidados. Ela precisa que a gente faça por ela o que a natureza faz pelo Cerrado, ou seja, como a gente quer produzir plantas de rápida produção, como hortaliças, legumes, frutas e cereais, teremos que dar uma mãozinha...
— Que tipo de mãozinha? — perguntou Justino.
— É o seguinte: se lembram do que falei sobre adubação? De que tudo o que as plantas do Cerrado deixam cair, ou que desprendem delas vira adubo? Então, é isso que vamos fazer durante todo o ano, ou seja, seremos nós que faremos os serviços que fazem as árvores e os animais no Cerrado. Vamos podar as plantas maiores, tanto para deixar o sol entrar como para depositar suas folhas e galhos nos canteiros. Isso protege o solo contra o ressecamento e o deixa fértil. Também seremos nós, no lugar dos animais, que espalharemos as sementes para renovar os canteiros. Basicamente é isso que teremos que fazer. Enquanto as plantas crescem, nós podamos, forramos o solo, colhemos e replantamos. O mais importante disso tudo, é que, num curto espaço de tempo, teremos uma floresta de plantas que produz o ano todo, e com plantas que a gente mesmo escolheu, tanto para usarmos em nosso consumo diário como para vender na cidade.
p. 121— Essa tal roça de floresta me dexô animado — disse Osório após a explicação de Silvestre. — Mas, cumé que vamo começá a prantá ela? É preciso discutí aqui entre nóis, quem vai querê largá o que tá fazeno e pegá nessa roça nova.
A questão levantada por Osório deixou todos calados temendo terem que deixar suas atividades corriqueiras para se engajar numa proposta de produção ainda desconhecida.
— Eu e Bhagat entendemos o receio de vocês. Por isso temos uma proposta a fazer: pensamos que, com os equipamentos e maquinários que temos a nossa disposição, se conseguirmos pelo menos cinco companheiros entre vocês, aí serão sete com a gente. Um número suficiente para produzirmos nossa agrofloresta. Das compras de equipamentos que fizemos, ainda sobrou uma reserva em dinheiro capaz de manter esses cinco companheiros até iniciarmos as primeiras colheitas. O que acham?
Após muito conversarem entre si, Justino encabeçou a formação do grupo conseguindo convocar outros quatro companheiros interessados em participar da atividade proposta.
Assim, durante quase dois anos, dia após dia, Justino, Silvestre, Bhagat e os outros quatro companheiros se dedicaram ao projeto com grande afinco. Produziram uma agrofloresta de aproximadamente quinhentos metros de diâmetro, e que foi sucesso absoluto. A comunidade passou a se alimentar com muito mais qualidade e a extrair uma excelente renda extra com a venda dos produtos colhidos tanto para turistas como para alguns comerciantes de Pedrinhas.
Já em outra parte do mundo, Mariano, conforme prometera aos amigos de que um dia voltaria para visitá-los, planejava sua viagem de férias com destino ao Jalapão. Traçou seu voo de Bucaramanga a Palmas, com escalas em São Paulo e Goiânia. Ao chegar em Palmas, fretaria um voo turístico até ao aeroporto de São Felix do Jalapão, onde alugaria um veículo que o lavaria ao Quilombo do Capim. E assim fez Mariano.
— É um prazer conhecê-lo. A que horas partiremos? — perguntou Mariano ao piloto da aeronave fretada.
— Partiremos amanhã, por volta das sete horas. Quantas pessoas mais irão com você?
— Somente mais duas pessoas, com suas bagagens de mão.
Assim, na hora combinada, voaram para São Felix do Jalapão.
Durante o voo...
— Amigo, precisamos que sobrevoe esta localidade que está marcada no mapa — pediu Mariano ao piloto entregando-lhe as coordenadas.
— Posso saber o motivo desse sobrevoo? — perguntou o piloto.
— Claro! É que neste ponto sobrevoaremos o povoado do Capim. Trata-se de uma comunidade quilombola onde meus dois amigos residem atualmente.
— Nossa! Mal posso esperar par encontrar aqueles dois — disse Samira à Helga.
p. 122Isso mesmo! Mariano conseguiu localizar o paradeiro das duas amigas e as convidou para esse reencontro histórico. Aquela experiência não mudara apenas as consciências de Silvestre, Bhagat e Mariano. Em certa medida, atingiu a todos. Helga voltou para Bremerhaven, onde trabalhou, por alguns meses, em um hospital local, mas, preferiu se alistar numa organização internacional de ajuda humanitária que atua na África Central. Samira, após receber sua indenização, voltou para Zahlé, onde construiu uma escola para crianças atingidas pelos confrontos no Líbano. Quanto aos outros, bem, Jennifer, após uma verdadeira batalha judicial, conseguiu que a Nova Marte indenizasse a todos, até mesmo a família de Ichiro, no Japão. A parte curiosa disso, é que, por conta de seu brilhante trabalho, a própria Nova Marte lhe deu um cargo em seu departamento jurídico. Manolito escreveu um livro autobiográfico sobre a sua aventura, e acabou se casando com a própria professora que contratara para corrigir o seu texto. Atualmente, o casal vive em Mérida, cidade natal de Manolito, onde constituíram uma pequena indústria metalúrgica chamada Íons, o mesmo nome do metal presente na atmosfera de Marte.
— Vejam aquilo! — disse o piloto apontando em direção ao solo, onde se podia ver um gigantesco círculo arborizado com uma seta se prolongando de sua borda.
— Quem fez aquilo sabia se tratar do símbolo do gênero masculino? — perguntou Helga em tom de piada.
— Com toda a certeza, senhorita — interferiu Mariano. — Pois, aquele formato também é o símbolo do planeta Marte. Foi a maneira encontrada por Silvestre e Bhagat para confrontar o projeto desumano e antiecológico pretendido pela Nova Marte e seus colaboradores.
p. 123Naquele mesmo ano em que se encontraram, Bhagat se casou com uma das sobrinhas de Osório, uma jovem viúva cujo único filho, era aquele rapazinho que ele dera algum dinheiro naquele dia em que partiu para Palmas. Silvestre, usou a sua parte da indenização para se associar a Bhagat. Juntos, fundaram uma ONG, com sede em Palmas, especializada em apoiar comunidades rurais em situação de vulnerabilidade a desenvolverem projetos agroecológicos votados para obtenção de soberania alimentar e manejo socioecológico de seus territórios. Atualmente, o povoado do Capim vem se consolidando como uma espécie de comunidade modelo, recebendo visitantes de várias partes do País, para experiências, estudos e capacitação em sistemas agroecológicos comunitários.
E Marte, pobre planeta vermelho... Mesmo sem culpa alguma, continua sendo cúmplice de um multimilionário esquema de estelionato ecológico praticado contra o nosso lindo planeta azul.