Para a surpresa dos três, o ronco que ouviram não procedia do motor do caminhão de Onésio, e sim de um ônibus que acabara de chegar. Tratava-se de uma excursão de turismo, organizada por uma empresa de Palmas em cujo roteiro incluía, além de montanhas, dunas e cachoeiras, também a comunidade quilombola do Capim. Do ônibus desceram turistas brasileiros, estrangeiros e um guia da companhia. Após sacarem suas câmeras disparando milhares de clicks para todas as direções, foram conduzidos até um barracão onde são produzidos artesanatos a partir do capim dourado. Devidamente distribuídos dentro do barracão, os turistas escutaram as explanações do guia:
— Atenção pessoal, todos prontos? Então, quero que prestem bastante atenção, pois vou contar a vocês um pouco da história dessa comunidade — anunciou o guia.
Enquanto o guia preparava o seu discurso, uma das artesãs organizava a exposição das peças, no intuito de vendê-las aos turistas ali presentes.
— Muito bem; vocês estão na centenária comunidade quilombola do Capim. Todos sabem o que é um quilombo? São chamadas de quilombos todas as comunidades cuja história está ligada a grupos de africanos e afrodescendentes escravizados que, inconformados com as mais variadas formas de opressão e violência que lhes eram impostas, buscaram refúgio em regiões ermas do sertão do Brasil onde era possível recomeçarem suas vidas. A comunidade do Capim é uma dessas comunidades — prosseguiu o guia. — Foi reconhecida pelas autoridades há pouco mais de uma década, mas está aqui desde o final do período colonial. O nome Capim é proveniente de sua principal fonte de renda, os belíssimos e únicos artesanatos produzidos a partir de um capim nativo desta região, o capim dourado. Como poderão ver, trata-se de um capim cujas ramas ganham uma coloração tão dourada que se confunde com o próprio ouro. Aquelas duas simpáticas senhoras ali, são as artesãs Dona Maria das Dores e Dona Aparecida. Elas vão mostrar a vocês algumas características dessa incrível arte, e, em seguida, vocês poderão comprá-las.
p. 99Enquanto o guia preparava o terreno para a venda dos artesanatos, muitas pessoas da comunidade, do lado de fora do barracão, aguardavam, ansiosamente, o momento de os turistas saírem do barracão, para também poderem vender seus artesanatos. Tal situação, no entanto, despertou o interesse de Silvestre que, reconhecendo Sinvaldo que passava ali por perto, perguntou-lhe:
— Sinvaldo, desculpe a intromissão, mas, posso lhe fazer uma pergunta?
— Pode sim, Seu Silvestre.
— É que fiquei intrigado com uma coisa: parece que toda a comunidade tá envolvida na venda de artesanatos. É isso mesmo?
— Isso mesmo, Seu Silvestre; todo mundo aqui fáiz artesanato pra vendê; até as criança ajuda.
— Mas, além dos artesanatos, há outras coisas que a comunidade produz para vender?
— Ôtros tipo de artesanato? — perguntou Sinvaldo.
— Não. Estou me referindo a outros tipos de produtos como farinha, polvilho, rapadura, doces, ovos, galinha, essas coisas...
— Ah, sei... Olha Seu Silvestre, muitas coisa dessas aí que o sinhô tá falando, aqui na comunidade não produz mais não. Caso que, os artesanato que os turista compra da gente dá mais dinhêro do que vendê galinha e essas ôtras coisa.
— Mas, como a comunidade faz para obter essas outras coisas, comprando?
— Desse jeito mesmo; comprano as coisa na cidade.
Tá vendo aquele caminhão lá, do Seu Onésio? Então, ele tá esperano o ônibus dos turista ir embora pra levá o pessoal da comunidade pra cidade. Com o dinhêro da venda dos artesanato, o pessoal paga o Seu Onésio pra levá eles pra fazê as compra e trazê de volta. É assim que funciona.
— E as pessoas que não conseguem vender seus artesanatos aos turistas, como podem ir às compras?
— Ninguém fica sem vendê não, Seu Silvestre.
— Como assim?
— É que quando os turista vai embora, o Seu Onésio arremata todo o artesanato que ficô sem vendê. Daí, ele leva pra capital e vende lá pras loja.
p. 100— Agora entendi. Esse seu Onésio, além de lucrar com as viagens, também lucra ao revender os artesanatos para as lojas da capital.
— Desse jeito — confirmou Sinvaldo.
Após a partida do ônibus, mesmo sem terem chegado a alguma conclusão sobre o rumo que dariam a suas vidas daí em diante, Bhagat, Mariano e Silvestre optaram pela carona. Onésio pediu aos três que entrassem na boleia, destinando o espaço da carroceria aos quilombolas. Com os olhos fixos no retrovisor, os três assistiam o povoado se afastar na linha do horizonte. Curioso, Onésio foi logo puxando assunto:
— Qual dos moço fala o português?
— Pode falar comigo — disse Silvestre.
— O pessoal do quilombo falô que ocêis trêis são turista e que tava fugindo duns bandido sequestradô; já o Osório, pai de Sinvaldo, me falô que ocêis tava é fugindo duns gringo que tinha chegado de helicope. Afinal, de quem ocêis tá fugindo?
Sem saber qual das versões ofereceria a Onésio, Silvestre preferiu consultar os companheiros:
— O que digo a ele?
— E se esse Onésio tiver alguma ligação com o pessoal da Nova Marte? — suspeitou Mariano.
— Neste caso, é preferível dizer toda a verdade a ele e esperarmos pela sua reação — sugeriu Bhagat.
Assim, após Silvestre contar toda a história a Onésio, inclusive os motivos que os levaram a desistir do projeto, Onésio matutou:
— Ocêis tão certo... Meu pai já falava pra nóis, “ocêis tem que preocupá é com os vivo, porque dos morto quem cuida é Deus”.
— O que ele quis dizer quando se referiu aos mortos? — indagou Mariano.
— Não sei... Talvez, em seu sistema de crenças, o céu, onde se encontra Marte, seja a morada dos mortos, ao passo que a Terra abriga os seres viventes.
— Penso que Bhagat está certo – concluiu Silvestre. – O céu, como morada de santos e anjos, bem como dos fiéis desencarnados que recebem a salvação é uma crença muito comum no âmbito do catolicismo popular brasileiro. Seja como for, não creio que Onésio tenha algum tipo de ligação com aqueles cretinos da Nova Marte.
Enquanto o velho caminhão sacudia sobre a interminável estrada arenosa, na carroceria, os quilombolas se protegiam como podiam da densa poeira que precipitava das falhas do assoalho.
A viagem já durava cerca de três horas quando, finalmente, avistou-se, incrustado entre uma extensa formação rochosa, o pequenino Vilarejo de Pedrinhas. O caminhão seguiu pela rua principal até chegar a uma pequena praça jardinada contendo alguns bancos de concreto, uma fonte d’água e uma singela igreja pintada de branco, com portas e janelas azuis, ostentando em sua torre uma cruz de madeira revestida de lâmpadas. Freando o caminhão, Onésio projeta sua cabeça para fora da boleia e esgoela um aviso:
p. 101— Aí pessoal, ocêis tem que voltá prô caminhão até as trêis, então arrocha! Quem não chegá na hora, já sabe...
Os quilombolas desembarcaram apressados se espalhando pelas ruas do Vilarejo. Bhagat, Mariano e Silvestre desceram da boleia permanecendo próximos ao caminhão. Mas logo chega Onésio acompanhado de um sujeito moreno, sorridente, estatura baixa, calçando um par de botas pontiagudas, e na cabeça um chapéu branco de abas largas.
— Pessoal, dêxa eu apresentá prôceis um amigo — disse Onésio com umas das mãos apoiada sobre o ombro do sujeito. — Esse aqui é o Zé Reis, vereador aqui da cidade. Cabôco bão dimais da conta; amigão meu desde quando nóis era menino. Nóis dois semo assim, quais irmão um do ôto. Contei pra ele a história que ocêis me contô, e ele tá disposto a ajudá. Mas, antes, nóis vamo ali pra pensão da Dona Fia almoçá, porque ocêis deve de tá varado de fome.
— Desculpe, mas não temos como pagar o almoço — avisou Silvestre.
class="dialogo"— Mas quem falô em pagá alguma coisa aqui seu moço? Hoje, ocêis tudo são meus convidado — disse o vereador.
Após se fartarem com o almoço da pensão, o vereador tomou a palavra:
— Espero que ocêis tenha gostado da comida aqui da pensão da D. Fia; não tem chiqueza, mas é tudo muito limpim e feito com muito gosto.
— Estava tudo muito bom! Nem sabemos como lhe retribuir — agradeceu Silvestre.
— Não tem de quê. Aqui nóis semo um pelo o ôto. Não é memo Onésio?
— É!
— Se ocêis tive de acordo — continuou o vereador. — Eu posso levá os trêis até a sede do nosso município, e lá nóis incontremo com o prefeito móde ele falá com as autoridade da capital. Tenho certeza de que num instantin vai chuvê de gente interessado na história docêis. Até a televisão vai querê mostrá o caso. Pode tê certeza!
p. 102Apesar da boa intenção demonstrada, transpareceu que o vereador pretendia tirar proveito daquela circunstância, no sentido de se autopromover. Na tentativa de contornar a situação, Silvestre pediu alguns minutos de licença, a fim de discutir o caso com os outros dois amigos.
— Enquanto ocêis pensa — respondeu o vereador. — Vô pedi pra D. Fia passá um cafezin pra nóis.
— Parece que não temos saída — refletiu Mariano. — Se não temos condições sequer de fazer um telefonema, como poderemos rejeitar a ajuda desse vereador? É isso! Por que não pensei nisso antes?! Podemos pedir ao vereador que nos deixe fazer uma ligação a cobrar de seu celular!
— Não custa tentar, mas, para quem você ligaria? — pergunto Bhagat.
— Para o meu sócio em Bucaramanga. Pedirei a ele que faça contato com a embaixada de meu país aqui no Brasil, a fim de viabilizar o meu retorno e me enviar algum recurso financeiro.
— E você Silvestre, vai ligar para algum parente em Brasília? — perguntou Bhagat.
— O problema é que ainda não sei se quero ligar para alguém — respondeu Silvestre.
— Mas, o que pensa então em fazer? As pessoas daqui não vão lhe oferecer ajuda para sempre — advertiu Mariano. — E você Bhagat, também está com o mesmo dilema que Silvestre?
Bhagat e Silvestre trocaram um rápido olhar, mas, nenhum dos dois se encorajou em responder as provocações de Mariano. Ficaram literalmente paralisados. Até que uma senhora idosa, moradora do quilombo do Capim, se aproximou de Silvestre, tocou-lhe o ombro e pediu:
— Seu moço, o sinhô pode ajudá a véia aqui a botá esse saco em riba do caminhão?
Sem titubear, Silvestre aceitou. Bhagat, vendo naquela situação a chance de se esquivar de Mariano, se antecipou:
— Deixe que eu lhe ajude, subirei na carroceria para receber o saco; você levanta e eu puxo.
Ao acomodar o pesado saco de compras daquela idosa, Bhagat percebeu que, dentro dele, os itens mais pesados eram as mandiocas e as abóboras; o restante do peso dividia-se entre dois litros de óleo, algumas latas de massa de tomate, um pacote de arroz, um de feijão, sal, açúcar, café, bolachas, farinha, detergentes e macarrão. Em seguida, Bhagat fez um sinal a Silvestre convocando-o a subir na carroceria, o qual foi atendido prontamente.
— Silvestre? Você se lembra daquela conversa que tivemos, lá na casa de D. Dita, sobre os riscos que poderia correr a comunidade do Capim caso não mais conseguisse manter seus níveis de arraigamento ecológico? — perguntou Bhagat abrindo a boca do saco.
p. 103— Sim. Me lembro, mas, por que está me perguntando isso agora?
— Se as compras dos demais quilombolas forem parecidas com as compras que estamos vendo dentro do saco dessa senhora, eu me arrisco a dizer que toda a comunidade do Capim corre um grande risco — concluiu Bhagat.
— E o fato de haver abóboras e mandiocas dentro daquele saco de compras comprova isso que está dizendo, pois, tanto uma quanto a outra sempre foram essenciais à manutenção de seus sistemas socioalimentares e culturais. Dificilmente deixariam de cultivá-las; a menos que estivessem passando por algum tipo de pressão ambiental, forte o bastante para forçá-los a abandonar tais cultivos — completou Silvestre.
— E caso não estejam passando por pressões ambientais — prosseguiu Bhagat. — É muito provável que tenham encontrado outros caminhos para suprirem suas necessidades alimentares, não acha?
— Não apenas concordo com você, mas sei muito bem quais são esses outros caminhos — afirmou Silvestre. — Numa conversa que tive com Sinvaldo, momentos antes de embarcarmos neste caminhão. Falávamos justamente sobre o fato de os moradores do quilombo terem optado por uma renda advinda do artesanato em substituição ao tradicional sistema de venda do excedente da produção de suas lavouras de subsistência. Segundo ele, praticamente todas as pessoas da comunidade estão se ocupando da produção e venda dos artesanatos por se tratar de uma atividade mais lucrativa.
— Neste caso, essa comunidade está caminhando sobre o fio da anavalha. O dinheiro alcançado com as vendas de artesanatos a turistas vem causando profundas mudanças em seus hábitos alimentares, o que pode levá-los não apenas ao desenvolvimento de doenças como diabetes, obesidade e outros, mas, também, ao desaparecimento de seus sistemas agroecológicos tradicionais — sentenciou Bhagat.
— Exatamente! E quanto mais consolidada se tornar a produção e vendas de artesanato entre eles mais distanciados ficarão de seus sistemas tradicionais de conhecimentos e práticas agroalimentares. E pensando naquelas suas ideias sobre o arraigamento ecológico, já deve haver pelo menos dois níveis de desarraigamento ecológico na comunidade — raciocinou Silvestre.
p. 104— Interessante. Poderia me dizer quais são esses dois níveis? — perguntou Bhagat curioso.
— Para mim eles correspondem as duas gerações posteriores a de D. Dita, pois, a geração de D. Dita e do S. Osório pode ser denominada de a geração dos arraigados ecológicos, ou seja, aqueles que aprenderam os padrões adaptativos tradicionais praticando junto com seus pais, uma vez que dependiam deles para produzirem seus alimentos; já a geração de Sinvaldo, o filho de S. Osório, pode ser denominada de a geração em processo de desarraigamento ecológico, ou seja, são aqueles que aprenderam sobre tais padrões adaptativos, mas apenas observando quem fez, não sendo mais capazes de reproduzi-los na prática, pois passaram a depender de outros meios para sobreviverem, como é o caso do próprio Sinvaldo que desempenha trabalhos como guia turístico; e o segundo nível trata-se da geração que podemos denominar de a geração dos desarraigados ecológicos, ou seja, trata-se daquelas crianças da comunidade que certamente não aprenderão nada sobre os padrões adaptativos tradicionais, uma vez que estarão completamente dependentes de outros padrões alimentares e, por extensão, de outras estratégias de conquista de subsistência — explicou Silvestre.
— E seria um grande engano pensar que, pelo simples fato de toda a comunidade estar envolvida na produção do artesanato, isso lhe garantiria autonomia cultural — prosseguiu Bhagat. — Por mais que o artesanato consiga reunir as pessoas em torno de atividades coletivas como à coleta do capim e o aprendizado das técnicas, ele estaria sempre suscetível às influencias negativas do mercado. Não é como a construção de suas casas, conforme vimos no relato de D. Dita, em que a participação da comunidade assume um caráter puramente colaborativo, portanto, sem pretensões financeiras. Se a produção do artesanato se tornar o único meio de subsistência dessa comunidade, isso poderá criar disputas indesejadas entre eles. Basta-nos pensar na possibilidade de um de seus membros desenvolver maior habilidade para negociar o preço do artesanato, enquanto outros, embora habilidosos para produzi-los, não consigam impor ao comprador o valor desejado. Certamente surgirão hierarquias entre aqueles mais bem-sucedidos e aqueles outros que não conseguirão se sair tão bem nas suas relações com a sociedade envolvente. Não é mesmo?
— Me entristece só de pensar na constelação de conhecimentos e práticas que desaparecerá caso decidam substituir por completo seus sistemas agroecológicos tradicionais pela produção do artesanato. Isso, sem falar na perda de sua soberania alimentar — comentou Silvestre.
— Certamente! Toda vez que um sistema como esse deixa de existir, toda a humanidade sofre um grande prejuízo. Mas, o amigo conhece bem os sistemas agroecológicos das populações quilombolas? — perguntou Bhagat.
p. 105— Há espalhados pelo Brasil, aproximadamente três mil e quinhentos quilombos, cada qual com suas tradições. Contudo, de acordo com alguns estudos que realizei em algumas dessas comunidades, posso assegurar que para cultivarem suas lavouras de subsistência essas comunidades quilombolas colocam em circulação uma constelação de conhecimentos. Tomemos como exemplo, seus sistemas de plantio de cereais como o milho, feijão e arroz.Trata-se de processos circulares e contínuos, impossível de determinar onde começam e onde terminam. É como olhar para uma hélice girando em velocidade, quando parada é possível identificar seu eixo, seus bordos, os contornos de suas palas e tudo mais. Mas, uma vez em movimento, só se vê a imagem de um círculo contínuo. Dito de outra maneira, para tais sistemas de cultivo é um grande erro afirmar que o processo se inicia quando se enterra a semente no chão e termina no dia da sua colheita. Pois, antes, durante e depois desses dois momentos, há uma série de outros que vão muito além das simples técnicas de plantar e colher. Após colherem suas roças, selecionam as melhores sementes e as armazenam para o próximo plantio. São as chamadas sementes crioulas, preservadas por essas comunidades desde as suas origens. Paralelo a isso fazem festas para agradecer todos os seres, vivos e mortos, visíveis e invisíveis, sagrados e profanos, todos eles juntos, que de uma maneira ou de outra participaram de todo o processo. Observam o solo após a colheita. Será possível plantar nele novamente, ou seria melhor variar de terreno? Sabem que o solo é também um ser vivente, precisa descansar para recobrar as suas forças. Escolhem a data certa para plantarem a nova roça. Mas qual data estará mais próxima das primeiras chuvas? Vai saber... Isso dependerá dos sinais que vem da natureza: De um pássaro que pia numa determinada hora, de uma flor que brota em um determinado lugar e momento, de outro pássaro que constrói a sua casa com a porta virada para uma determinada direção e não para outra, da posição de uma estrela, ou da posição de muitas em relação às outras, ou talvez do sonho de um ancião. Quem e quantos poderão participar do plantio das próximas roças? Todos? Talvez. O conhecimento socioecológico é transgeracional e depende da idade certa para o menino acompanhar o pai até a roça, a fim de vê-lo trabalhar e imitá-lo. Mas qual a idade certa para isso? Seis, oito, dez, doze anos de idade ou nenhum deles? Não se sabe. Talvez isso dependa apenas do momento em que esse pequeno aprendiz se sinta pronto. Então, ele passa a mão numa enxada e segue o pai até a roça. Portanto, meu amigo Bhagat, se tais práticas tradicionais de produção agroecológica deixarem de ter importância entre eles, será como uma “amnésia biocultural” coletiva.
Naquele momento, Mariano se aproxima do caminhão todo sorridente:
— Ei! Vocês dois! Desçam do caminhão — ordenou Mariano segurando o celular do vereador. — Eu consegui!
— O que conseguiu? — perguntou Silvestre.
p. 106— Consegui falar com meu sócio em Bucaramanga! Ele já está providenciando o meu retorno. Passagens aéreas, cópias de meus documentos e algum dinheiro. Isso não é o fantástico?!
— É... — respondeu Bhagat com ar desinteressado.
— Vamos! Façam suas ligações também — insistiu Mariano.
— Se quiser, ligue você Silvestre, porque eu não o farei — pronunciou Bhagat.
Aquela decisão de Bhagat deixou Mariano confuso:
— Não estou entendendo mais nada. Não quer retornar ao seu país?! Não foi você mesmo a afirmar que as experiências vividas aqui propiciaram a motivação para um novo recomeço?
— Sim. Eu disse.
— Então?!
— Bem, um dia resolvi deixar Malana, vilarejo onde nasci em Himachal Pradesh, para estudar em Nova Delhi. Era muito jovem e sonhava um dia poder voltar e ajudar meu povo a vencer algumas de suas dificuldades. Contudo, os anos foram passando, e eu cada vez mais envolvido com os assuntos da universidade, nunca me permiti voltar. Recentemente, já aos trinta e dois anos, consegui reunir forças e voltei. Ao entrar em Malana me senti desolado ao ver aquela milenar cultura em tão acelerado processo de desestruturação, devido à invasão de centenas de turistas estrangeiros atraídos por propagandas que acenavam para uma oportunidade única: a de conhecerem culturas “exóticas” em lugares “remotos” do mundo. No caso específico de Malana, tratava-se da oportunidade de visitarem “uma cultura perdida do Himalaia” onde se produz o exótico “Malana Crean”, um produto da cultura local feito a partir da Cannabis Plants, que cresce livremente pelos vales do Parvati.
— Por que então não volta para a sua Malana e tenta melhorar as coisas por lá? Não era esse o seu sonho?! — insistiu Mariano.
— Talvez o amigo Mariano esteja certo, mas, acontece que neste exato momento, me vejo diante de outra Malana, a comunidade do Capim. Igualmente frequentada por turistas vindos de todas as partes, e ávidos por conhecerem “a centenária cultura quilombola, perdida nos confins do Jalapão”, onde se produz o não menos suigeneris artesanato Capim Dourado. Porém, diferentemente daquela Malana que um dia deixei, essa outra está aqui, bem na minha frente.
Mariano parecia não ter mais argumentos, somente olhou nos olhos de Bhagat, lhe desejando sucesso. E antes mesmo de dirigir a palavra a Silvestre, este se adiantou dizendo:
— Também vou ficar. Afinal, este é o meu país e Bhagat ainda não domina o português.
— Então fizeram a escolha... — disse Mariano com a voz embargada. — Não insistirei mais que voltem para os locais de onde vieram. Sinto que nos tornamos irmãos, e, por isso, me preocupo com o bem-estar de vocês. Essa experiência mudou para sempre a vida de cada um de nós, e acreditem, estaremos sempre juntos, não importa quão longe estivermos um do outro. Vocês têm os meus contatos; caso precisem de alguma coisa, por favor, não hesitem em me chamar.
Naquele momento, Onésio se aproxima dos três e pergunta:
— Cumé que vai sê? Quem doceis vai vortá com nóis pro quilombo?
— Eu e Bhagat — respondeu Silvestre. — Isso é, se o pessoal do quilombo aceitar que a gente volte com eles neste caminhão.
p. 107Ouvindo aquela conversa, a mesma senhora que pedira ajuda com o saco de compras interveio:
— Discurpa interrompê a prosa docêis, mas, nóis, lá do quilombo, nunca dexemo de acoiê as pessoa na nossa comunidade não. Se os dois moço aí quisé vortá mais nóis pro quilombo será muito bem-vindo sim sinhô.
— É tudo o que queremos neste momento, minha senhora — agradeceu Silvestre. — Mas, e se o restante da comunidade não nos aceitar?
— Não carece preocupá não, se a véia aqui tá dizendo é proquê é assim e pronto. É só ocêis subi no caminhão e esperá pelos ôto.
Da porta da pensão de D. Fia o vereador gritava acenando com o chapéu:
>— Ocêis treis aí, vem ô não? Não gosto de pegá essa estrada dispois que escurece.
Em silêncio os três se deram num longo abraço. Em seguida, Mariano atravessou a rua a passos lentos, disfarçando as lágrimas que insistiam brotar de seus olhos. E assim que ganhou a calçada, se virou gritando:
— Eu voltarei para vê-los! É uma promessa!
Vendo aquela cena, Onésio se pronunciou:
— O que é que ocêis dois tem na cabeça, ficaram doidos? O que vão ficá fazendo lá no Capim? Lá não tem nada prôceis!
Decididos, Bhagat e Silvestres voltaram para o quilombo. Só que dessa vez, não mais na boleia, ao lado de Onésio, mas, na carroceria do caminhão junto aos membros da comunidade. Ao chegarem, muitos da comunidade foram recepcionar o caminhão. E assim que puseram os pés no chão, Silvestre e Bhagat viram que Dona Dita se aproximava vagarosamente, sustentando seu frágil corpo com ajuda de sua bengala:
— O coração da véia aqui tava apertadin, querendo falá quarqué coisa. Agora eu já sei o que era, são esses dois moço que o vento do mundo tocô de vorta prá cá.