Mesmo aliviados com a retirada da equipe da Nova Marte da região, Bhagat, Mariano e Silvestre precisariam ainda enfrentar outra torturante questão, a de como recomeçar suas vidas após terem abandonado aquele projeto. Assim, e ainda sem nenhum plano em mente, os três ex-astronautas permaneceram, por horas, na porta da casa de Silvano, rodeados por um bando de crianças barulhentas e curiosas. Até que Bhagat, sentindo-se incomodado com aquela situação, sugeriu que retornassem à casa de D. Dita. A velha, sentada à beira do fogão, parecia já os esperar com um bule de café e algumas tapiocas:
— D. Dita, eu e meus amigos não temos palavras para expressar toda a nossa gratidão. Como podemos lhe retribuir? — perguntou Silvestre.
— Uma árvore não pode sabê qual é o pássaro que vai pousá nela, e nem a hora que vai pousá, não é mêmo? A presença docêis trêis alegra o coração dessa véia aqui. Ocêis são muito bem-vindo — respondeu D. Dita.
Silvestre traduziu para os amigos a metáfora usada pela D. Dita para fim de transmitir a satisfação que sentia em acolhê-los em sua casa.
— Isso que a nossa anfitriã acaba de nos dizer — refletiu Bhagat. — É um tipo de sensibilidade ecológica, uma dimensão do conhecimento de ecologia que não se alcança nas universidades. E sabem por quê? É simples! Porque D. Dita aprende sobre a vida no viver, ao contrário da maioria de nossos acadêmicos que aprende sobre a natureza tentando vê-la à distância, como se ela e todos os elementos que a compõe estivessem ali parados a espera de serem nomeados e classificados por uma mente que se encontra estrategicamente não apenas separada dela, mas qualificada para isso. No sistema de conhecimento de D. Dita não há separação entre aquele que aprende e aquilo que é aprendido, pois todas as coisas vivas também produzem conhecimento ao se interagir.
— Toda essa sabedoria nos ajuda a compreender melhor a razão de D. Dita e seus parentes terem se adaptado tão bem a essa região, mesmo levando uma vida tão simples como essa que levam — refletiu Silvestre.
— Concordo em parte com o amigo — interferiu Mariano.
— Como assim, em parte?
— Quanto ao fato de D. Dita e seus parentes serem bem adaptados a essa região, não há a menor dúvida. Porém, não se trata de uma forma simples de vida. Ao contrário, se ela, e os demais membros de sua comunidade conseguiram alcançar tal nível de adaptabilidade, isso se deve exatamente a um alto grau de complexidade e não de simplicidade.
— Talvez você tenha me entendido mal. Quando falei em vida simples, me referi à ideia de ausência de riqueza e luxo, essas coisas pelas quais as pessoas que vivem em grandes cidades tanto lutam para alcançar — argumentou Silvestre.
p. 91— Ah, sim! Nesse ponto você está certo. Entretanto, quando fiz alusão à complexidade, em oposição à simplicidade, também estava me referindo a um grande equívoco que a maioria das pessoas comete ao pensar que simplicidade é sinônimo de ausência de tecnologia, de sofisticação e até de capacidade intelectual. Tomemos como exemplo esta casa onde estamos agora — provocou Mariano.
— Como assim?
— Diga-me, como a maioria das pessoas, nascida e criada em grandes centros urbanos, veria uma casa como esta, incrustada num vale como este? — perguntou Mariano.
— Bem, penso que elas a veriam com sendo uma construção simples, pobre, sem engenhosidade, sem conforto, sem segurança, e assim por diante — respondeu Silvestre.
— Seguindo o mesmo raciocínio, o que essas mesmas pessoas diriam a respeito dos sujeitos que habitam casas como esta, em lugares como este?
— Ora, diriam que são sujeitos sofridos, doentes, carentes, sem formação e que, por uma série de razões, não conseguiram ultrapassar a linha da pobreza, tendo que viver assim, na mais completa miséria e distante da civilização.
— Exatamente! E por que essas pessoas tendem a pensar assim a respeito desse tipo de moradia e seus habitantes? — continuou Mariano.
— Penso que elas apenas reproduzem o que lhes é transmitido pelo senso comum, ou seja, moradia miserável em lugares miseráveis é igual a moradores miseráveis.
— Muito bem! Agora, o que acha de comprovarmos tal equívoco interrogando a própria D. Dita sobre a sua casa e sua vida?
— Boa ideia!
Assim, Silvestre começou o interrogatório:
— D. Dita, a senhora se importaria de nos contar algumas coisas sobre a sua vida aqui no povoado, e sobre a construção de sua casa?
— A memória da véia aqui tá meia afrôxada, mais ocêis pode preguntá o que quisé.
— A senhora considera a sua vida, aqui na comunidade, uma vida feliz?
— Muito feliz, meu fí; muito feliz. Graças a Deus não tenho nada que cramá dessa vida...
— E durante os momentos mais difíceis que passou aqui, alguma vez a senhora pensou em se mudar para uma cidade?
— Os momento mais difíci aqui pra nóis é quando as chuva atrasa. Mudá pra cidade eu nunca pensei nisso não sinhô, causo que aqui, quando tem arguma dificulidade as pessoa se junta pra resolvê; aí as difilculidade passa e fica a alegria. Então, mudá pra cidade nóis não carece não sinhô.
p. 92— E esta casa, a senhora pode nos contar sobre como se constrói uma casa igual a essa?
— Os moço qué construí uma casa igual a casa da véia aqui? Eu posso contá, só não posso ajudá, pruquê a véia não tem mais força nas perna e nos braço. Mais, se ocêis quisé, eu peço meus neto pra ajudá. Num instantin eles levanta uma casa prôceis, é só escoiê o lugá.
— Muito obrigado, D. Dita. Mas, só queremos que a senhora nos conte como se constrói uma casa igual a essa.
— Bão, nóis aqui no povoado, constrói as casa no ajutório. Quando alguém tá quereno casá, os parente se ajunta e levanta a casa. Quando termina é uma festança só; reza, canturia, as muié faiz aquele tanto assim de comida, é uma maravia! Só o sinhô veno, é bão dimais da conta!
— Deve ser mesmo um acontecimento muito bonito de se ver. Mas, D. Dita, a senhora poderia nos contar sobre como são feitas as paredes, o telhado, o piso e tudo o mais?
— Óia seu moço, a primêra coisa é í prôs mato móde escoiê os pau pra fazê os estêi, as vara pra fazê as parede e os cipó pra amarrá as vara uma nas ôta. Dispois, vai pras vereda buscá as fôia de buriti móde trançá o teiado da casa. Mas isso nóis não faiz em qualqué dia não, causo que é preciso esperá a lua certa, a lua minguante, móde as madêra e as fôia durá muitos ano, pra não carunchá, sabe? Óia, essa casa mêmo que ocêis tão, já deve de tê pra mais de trinta ano; lá uma vêiz ô ôta é preciso colocá mais arguma fôia de buriti, reforçá argun estêi ô barriá arguma parede. Bão, dispois, vem a fazeção do barro. Nessa hora, a casa já precisa tá preparada móde recebê o barro; toda as parede já tem que tá trançadinha com os cipó, o teiado já prontin, com as paia marrada, as janela e as porta já no lugá. Aí começa a maçá o barro. Enquanto maça o barro a turma que tá em roda vai ajudano na canturia, um se alembra de uma cantiga aqui, ôto se alembra de ôta cantiga aculá, e vai. Mas o fazedô do barro deve conhecê bem o jeito de prepará. A terra precisa sê bem muciça, sem pedra, e também é preciso colocá as mistura certa: capim picado, terra de furmiguêro e inté cocô de vaca móde ela ficá bem liguenta pras parede durá muitos ano. Enquanto o maçadô pisa o barro, a turma que tá im roda vai fazeno uns montin cum as mão e carcano nos buraco do trançado das parede, até enchê tudo quanto é buraco. Dispois, vai alisano cum as mão até ficá tudo lisin, bunito, dá inté gosto de vê. A mininada ajuda a alisá o barro, a buscá a merenda, essas coisêra mais miúda. Por último, fáiz o fogão e o chão.
p. 93O fogão é barriado. Só que, im antes mêmo do barro secá, nóis passa cinza nele pra ficá bunito. E, pra não rachá cum o fogo, nóis mistura rapadura no barro. O chão da casa precisa recebê uma terra saibrosa, dessas que acha nos barranco dos rio. Aí, fáiz o barro dessa terra saibrosa e espáia ele bem espaiadinho; mais, im antes de espaiá o barro, o chão precisa tá bem cascaiado e socado; aí dá uma moiadinha, assim, móde o barro acomodá em riba desse cascaio; dispois, cobre ele com fôia de bananêra e vai pisano em riba dessas fôia cum uma tába de madêra, assim, bem planinha, inté o chão ficá lisin, firme e brioso. É assim que nois fáiz aqui.
Após Silvestre contar aos amigos, passo a passo, o processo de construção da casa, Mariano não hesitou em concluir:
— Viram por que eu quis usar o exemplo da casa? Quem, após ouvir isso, ousaria chamar essa casa de simples? Imagino que ninguém, não é mesmo? A conquista de cada material requerido depende da combinação de diferentes tipos de conhecimentos e práticas. Há, portanto, uma verdadeira teia de conhecimentos envolvidos em todo o processo. Vejam o exemplo de como preparam o barro, além de possuírem conhecimentos sobre os variados tipos de solo, sabem também o que agregar nele para atingir não somente a textura desejada, mas também, a resistência apropriada para cada tipo de uso. Também não é notável o conhecimento que desenvolveram a respeito das fases da lua e suas influencias sobre animais e plantas?
— E toda essa teia de conhecimentos — interferiu Silvestre. — Pode ainda nos revelar muito mais coisas, como, por exemplo, alguns importantes aspectos sociais. Refiro-me a forma como a comunidade se envolve na construção: Crianças, homens e mulheres, independente de fatores como gênero e idade, todos se tornam colaboradores iguais. Outro aspecto social interessante é que o motivo central do evento, a construção da casa, acaba ficando em segundo plano em relação aos acontecimentos acessórios como as cantorias, as danças, a produção das merendas, etc. É um tipo de reciprocidade natural.
p. 94— E notem vocês que até agora falamos somente daquilo que envolve a construção das casas desta comunidade — interveio Bhagat. — Imaginem, então, os demais sistemas de conhecimentos e práticas aplicados aos outros domínios de seu universo cultural, como, por exemplo, seus sistemas agroecológicos, de curas, suas benzeções, a produção de seus remédios a partir de plantas locais, seus artesanatos à base de capim dourado, suas crenças envolvendo misturas provenientes do catolicismo popular, das religiosidades afrodescendentes e indígenas. Tudo isso, meus amigos, e muito mais, faz parte da complexidade desta comunidade.
— É decepcionante quando vemos que, em todo o mundo capitalista, a maioria das pessoas não dá à mínima, ou simplesmente infantiliza, práticas e conhecimentos tão ricos como esses desenvolvidos aqui. — refletiu Mariano.
— Há um cientista social português — lembrou Silvestre. — Cujos pensamentos muito nos ajudam a refletir sobre o que acaba de dizer. Ele nos ensina que o mundo capitalista ocidental gerou um tipo de pensamento destinado a separar todas as coisas que a humanidade produz em duas partes apenas: a parte visível e a parte invisível. Assim, esse pensamento, que ele chama de “pensamento abissal”, é um tipo de pensamento que cria verdadeiros abismos entres as coisas, colocando de um lado todas as coisas que para ele pode ser considerado como visíveis, ou seja, importantes, verdadeiras e reais, como, por exemplo, sua ciência, seu direito, sua arte, suas crenças, sua filosofia, sua educação, etc. e, do outro lado, as coisas que ele considera invisíveis, ou seja, irrelevantes, falsas, irreais, como, por exemplo, os conhecimentos quilombolas e indígenas. São consideradas invisíveis somente por não compartilharem dos mesmos princípios que fundamentam as coisas pertencentes ao universo capitalista ocidental. Assim, de tão irrelevantes e inferiores que se tornam, aos olhos dos habitantes das grandes metrópoles ocidentais, os conhecimentos quilombolas e indígenas passam a inexistir para essas pessoas. E ao negarem a relevância desses conhecimentos, elas se tornam também incapazes de perceber neles a existência das mesmas coisas que há nos conhecimentos produzidos no mundo capitalista ocidental, ou seja, arte, ciência, filosofia, educação, religião e tudo mais; diferentes apenas nas maneiras como são produzidos e ensinados.
— E a quem vocês pensam que interessa manter vivo esse tipo de pensamento? — interveio Bhagat. — Todos nós aqui sabemos, não é mesmo? Interessa a todos aqueles cuja forma de enriquecimento depende da necessidade de continuar separando as coisas do mundo nessas duas únicas categorias. Acontece, porém, que esse sistema de classificação não vê diferença entre coisas e seres humanos, ou seja, as pessoas consideradas inferiores, sejam pela cor de suas peles, ou mesmo por suas origens, são também colocadas naquele lado onde as coisas tornam-se invisíveis. Assim, pessoas pertencentes a comunidades quilombolas ou indígenas são transformadas em coisas irrelevantes. Sendo irrelevantes aos olhos da sociedade capitalista ocidental, irrelevantes também serão os destinos que se dão a elas, ou seja, se são exploradas, expulsas de seus territórios, ou até assassinadas, a maioria das pessoas que vive nas grandes metrópoles sequer tomará conhecimento, ou se interessará em tomar.
p. 95— É impressionante como o poder econômico assume tantas formas não é mesmo? Não apenas o poder de adquirir as coisas e de explorar as pessoas mais pobres, mas, também o poder de classificá-las. Veja, por exemplo, a forma como as pessoas da comunidade do Capim, somente por serem quilombolas, são socialmente classificadas. Não há nada, absolutamente nada que comprove a sua condição de inferioridade, tão brutalmente imposta pela sociedade capitalista. Portanto, trata-se de classificações arbitrárias cujo único fim é o de manter essas comunidades inferiorizadas, suscetíveis a todo o tipo de violência e exploração — refletiu Silvestre.
— Exatamente! — concordou Bhagat. — Quando olho para a comunidade do Capim só consigo ver riquezas e belezas. Ela só se tornará inferior quando, ela própria, aceitar tal condição.
— E quais as chances disso acontecer — perguntou Mariano.
— Bem, isso é difícil de dizer. Entre estarem expostos a discursos que os inferioriza e aceitarem tal condição há uma série de fatores que pode tanto ajudá-los a resistirem a autoinferiorização quanto acelerar esse processo. Contudo, quando comparo o contexto atual, em relação aquele de algumas décadas atrás, me sinto bastante otimista quanto à possibilidade de surgir entre eles um tipo de orgulho étnico — respondeu Silvestre.
— Mas, o que, especificamente, faz você se sentir otimista? — perguntou Mariano.
— Bem, este povo nunca conheceu outro discurso senão o de inferioridade. Estereótipos como negros, incapazes, preguiçosos, roceiros, atrasados e muitos outros, sempre os acompanharam. Pois é assim que sempre aconteceu, e ainda acontece, a todas as comunidades afrodescendentes no Brasil. Entretanto, no início dos anos 2000, devido alguns governantes bem-intencionados, e em amplo diálogo com as ciências humanas, várias ações afirmativas étnico-raciais e anti-discriminatórias foram implementadas. Com isso, essas comunidades remanescentes de quilombos passaram a ser protegidas por leis federais e consideradas parte do patrimônio cultural brasileiro. Veja que, atualmente, a comunidade do Capim está incluída na lista de atrativos turísticos para quem visita o Jalapão — refletiu Silvestre.
— Já entendi — interrompeu Mariano. — O fato de terem sido incluídos nessas políticas afirmativas fez com que essas comunidades remanescentes se tornassem imunes a autoinferiorização, não é mesmo?
— Sim e não. — respondeu Silvestre. — O desenvolvimento de um orgulho étnico, capaz de torná-los imunes a autoinferiorização, dependerá menos dos títulos a eles conferidos e mais de fatores internos desenvolvidos no âmbito da própria comunidade.
— Pode explicar isso melhor?
— Claro! Você se lembra do que Bhagat nos ensinou sobre grupos humanos poderem alcançar sucesso adaptativo semente quando atingirem níveis elevados de arraigamento ecológico?
— Sim. Me lembro, mas, o que isso tem a ver com a relação entre orgulho étnico e políticas afirmativas?
p. 96— É simples! De nada adianta essas populações serem reconhecidas como remanescentes de quilombos e até adquirirem direitos sobre seus territórios tradicionais, se não tiverem desenvolvido estratégias adaptativas e padrões de ação integrados capazes de torná-los resistentes tanto as pressões impostas pelo ecossistema onde vivem como aos variados níveis de estresses surgidos no âmbito das relações que estabelecem com a sociedade envolvente. Estou tentando lhe dizer que reconhecimentos e títulos por si só não bastam para que uma comunidade remanescente de quilombo desenvolva orgulho étnico e autonomia. Antes, é preciso que esteja ecologicamente arraigada. Do contrário, continuará vulnerável a toda ordem de infortúnios e inferiorização.
— Perfeito! — cumprimentou Bhagat. — E quando os membros de uma dada comunidade criam as condições ideais para a construção de uma autoimagem positiva, o contato sistemático com pessoas provenientes de outros lugares tende a reforçar ainda mais essa autoimagem.
Enquanto refletiam sobre a comunidade do Capim, roncos de motor invadem o recinto. Bhagat, Mariano e Silvestre se empalideceram temendo se tratar do caminhão da equipe de filmagem. Imediatamente, Osório adentra a casa:
— Boa tarde, pessoal; sua bênça D. Dita.
— Deus te abençoe meu fí.
— Tô aqui móde avisá os trêis moço que o caminhão que invém lá das bandas do Formiga parô aqui pra dexá umas incomenda, e dispois vai seguí prô Vilarejo. E de lá, ele vai pra Palmas. Essa é a hora docêis achá o rumo de volta.
Eu inté já pedi prô seu Onésio, o dono do caminhão, levá ocêis, e ele aceitô.
Os ex-astronautas se sentiram aliviados. No entanto, a presença daquele caminhão os despertou para o fato de que, até aquele momento, ainda não haviam pensado sobre o que fariam de suas vidas após terem abandonado a missão.
— O caminhão partirá logo? — perguntou Silvestre.
— Não. Ainda vai demorá. Onésio vai esperá os turista chegá. Ocêis pode ficá sossegado.
— Então, amigos, chegou a nossa hora. A decisão de voltar está em nossas mãos — disse Silvestre.
— Queira me desculpar, mas, da forma como falou, me pareceu que o amigo não está tão seguro sobre ter que deixar esse lugar. Estou correto? — questionou Mariano.
— Pra dizer a verdade, me deu um frio na barriga quando me dei conta de que precisaria voltar — respondeu Silvestre.
— E o amigo Bhagat, o que pensa sobre deixar este lugar e voltar para a Índia? — provocou Mariano.
— Bem, já que me perguntou, me sinto como alguém que, ao acabar de morrer de forma acidental, chega ao outro lado da vida, mas, lhe é concedido uma nova oportunidade para retornar a terra e realizar algo que não pudera fazer — disse Bhagat.
— Deixe-me ver se entendi. Se sente como alguém que carrega uma dívida existencial. É isso?
— Em certo sentido sim. Ter ingressado na missão Nova Marte foi como ter escolhido desistir da vida na Terra; um tipo de suicídio entende? E ter conseguido sobreviver a todas aquelas situações, tanto na África como aqui no Brasil, parece representar uma nova oportunidade, um tipo de ressuscitamento.
p. 97— Neste caso, voltar para a Índia e recomeçar de onde parou também não poderia representar essa nova oportunidade?
— Não creio. Ao deixar a Índia, encerrei todas as minhas atividades profissionais e doei os poucos bens que possuía. Não há mais nada lá para mim além de doces lembranças.
— E você Silvestre, também se sente como Bhagat? — continuou Mariano.
— Bem, ao contrário de vocês, estou no meu país. Contudo, também não possuo mais nada em Brasília além de meus registros pessoais. E depois de tudo o que passamos nesta missão sobrou um grande vazio. Sinto-me realmente como se estivesse em Marte. A Terra que deixei para trás, pelo menos aquela em que um dia acreditei, já não existe mais...
— E quanto a você Mariano, o que nos tem a dizer? — perguntou Silvestre.
— Quando penso em tudo isso, me vem um monte de sentimentos ruins. Sinto-me ludibriado, traído e até mesmo envergonhado por ter me deixado levar por toda essa farsa — desabafou Mariano.
— E quanto ao seu regresso para Colômbia?
— Se regresso ao meu país tenho como recomeçar de onde parei, já que sou sócio na empresa de Arqueologia onde trabalhava. Penso, entretanto, que a esta altura, meu sócio já tenha colocado na parede de sua sala algum recorte de jornal onde se pode ver estampado: “Arqueólogo colombiano desaparecido durante uma missão a Marte”. Hilário, não acham?
Enquanto refletiam sobre o regresso às suas cidades de origem, escutam outro ronco de motor. Mariano, Bhagat e Silvestre deixam, então, a casa de D. Dita e correm em direção ao veículo, temendo perderem a carona de Onésio.