Tomando todo o cuidado necessário para não ser notado, Silvestre se aproximou o máximo que pôde das crianças. Por alguns minutos permaneceu ali, amoitado, pensando na melhor estratégia de abordagem. Foi, então, que se lembrou da época em que lecionava para crianças. Assim, encheu-se de coragem e entrou em cena:
— Aí pessoal, posso jogar também?
As crianças ficaram imóveis e mudas olhando aquele adulto esfarrapado, barbudo, desnutrido e recém-surgido do nada. Desconcertado, Silvestre insistiu:
— Posso ser o goleiro! O que acham?
— Pode! — gritou uma das crianças esboçando grande surpresa e alegria.
Mas, uma delas, a que parecia ser a mais velha, aproximou-se de Silvestre, com ar de desconfiado, e foi logo perguntando:
— Não é o sinhô que tá perdido?
— Sim. Mas, como sabe que estou perdido? — perguntou Silvestre encabulado.
— Meu pai topô com os hôme do jipe, e eles falô prô meu pai que tava caçando trêis home que tava perdido.
Silvestre empalideceu-se. Não apenas pelas informações contidas na resposta da criança, mas, principalmente, pelo o seu sotaque.
— Onde estamos?
— Na casa do meu pai — respondeu a criança de pronto.
— Sim, na casa de seu pai, mas, eu quero saber em que país estamos — concertou Silvestre.
— Que país? Brasil! Vem dizê que o sinhô não sabe?! — ironizou.
— E o Estado, qual é o nome deste Estado?
— Essa até a Jacira sabe — interferiu outra criança que escutava a conversa apontando o dedo na direção da mais nova.
— Aqui é o Tocantins! — disse o menino achando graça da ignorância de Silvestre.
Ouvindo aquilo, Silvestre não se conteve dando um forte abraço no menino.
— E essa região, como ela é chamada?
— Jalapão. Aqui é o Jalapão. Mas o sinhô não sabe de nada mesmo, né? — censurou a criança.
class="dialogo"— O sinhô é turista?
— Sim. Eu e mais dois amigos — completou Silvestre.
— Então, cadê os ôtos dois?
— Estão logo ali. Esperem aqui que vou lá chamá-los.
Não se cabendo de alegria, Silvestre retorna ao ponto em que deixara Bhagat e Mariano.
— Vocês não vão acreditar no que eu tenho a dizer! E se eu estiver sonhando, por favor, me acordem.
— Conta logo!
— Estamos no Brasil! Bem no centro dele!
— Agora tudo começa a fazer sentindo... — refletiu Bhagat. — As intermináveis horas de voo dentro do container, o clima tropical do tipo quente semiúmido, a vegetação savânica, o relevo com grandes áreas de planícies graminosas, a presença de populações afrodescendentes. Todas essas coincidências me fizeram acreditar que ainda estávamos em algum lugar da África. Para falar a verdade, o único detalhe que me deixava confuso era a ausência de alguns animais da fauna africana. Mas, não é impressionante a semelhança deste lugar com certas regiões da África?
— O que vamos fazer agora? — perguntou Mariano.
— De toda forma, ainda não estamos totalmente seguros aqui, pois, segundo o que as crianças me disseram, aqueles desgraçados estão fazendo buscas por toda a região, espalhando a notícia de que somos três turistas perdidos — advertiu Silvestre.
p. 82— Neste caso, só nos restam duas opções: fugir para uma região distante onde os caras do jipe não exerçam mais nenhuma influência, ou tentar ganhar a confiança dos pais dessas crianças, para que possam nos ajudar – concluiu Mariano.
— Estamos muito debilitados para irmos tão longe e, ao mesmo tempo, conseguir alimentos — raciocinou Silvestre.
— Concordo. Mas, o que diremos aos pais das crianças sobre nós? — perguntou Mariano.
— Pela minha experiência, se tentarmos explicar a eles que nos tornamos parte de um programa espacial, que fomos transferidos da África para cá, que decidimos abandonar o programa porque vimos que a coisa toda não passa de um engodo, etc. Vou logo avisando, não vai dar certo — advertiu Silvestre.
— Concordo com Silvestre. Se dissermos toda a verdade poderão se assustar com essa nossa história e se sentirem ameaçados – disse Bhagat.
— Nesse caso, teremos que inventar uma história capaz de convencê-los. Proponho que Silvestre, agora que está na condição de nativo, pense na melhor opção — sentenciou Mariano.
— Bem, eu não me considero um nativo, já que Brasília, onde moro, encontra-se a mais de oitocentos quilômetros de distância daqui. Contudo, acho que tenho um plano. É o seguinte: Como os pais das crianças já foram informados, pelo pessoal do jipe, da existência de três homens perdidos nas proximidades, o melhor a fazermos será sustentar essa ideia, mas acrescentando um enredo que nos favoreça.
— Que enredo?
— Estava pensando em dizer a eles que somos, de fato, três turistas perdidos. Porém, perdidos exatamente por estarmos fugindo dos próprios homens do jipe que mentem em querer nos reconduzir ao grupo, quando, na verdade, querem nos sequestrar. Pois, sabem que o nosso amigo indiano é um multimilionário excêntrico numa viagem de turismo pelo misterioso Jalapão.
— E o que faz você pensar que essa sua versão será mais convincente do que a deles? — questionou Mariano.
— Disso eu não posso saber. Mas, temos pelo menos dois pontos a nosso favor.
— Quais?
— Bem, em primeiro lugar, esses moradores já estão habituados com a constante presença de turistas estrangeiros na região, desde que o Jalapão, com seus milhares de quilômetros de belezas naturais, tornou-se oficialmente um importante destino turístico. E como vocês são estrangeiros, ficará mais fácil convencê-los dessa nossa história.
O segundo ponto é que, na minha condição de nativo e de educador, preciso dar um crédito a mim mesmo quanto a minha capacidade de persuasão.
— É um plano interessante — concordou Mariano.
Assim, Silvestre conduziu Mariano e Bhagat até as crianças para que elas os conhecessem. As crianças se divertiram muito com as maneiras de falar dos dois, principalmente quando Bhagat cantou para elas em híndi, uma das línguas faladas em seu país. Enquanto se divertiam com as estranhezas daqueles turistas, algumas crianças trouxeram como presente bananas e alguns pedaços de rapadura; o que as deixou ainda mais impressionadas devido à velocidade com que devoraram tais iguarias. As brincadeiras só cessaram quando se ouviu os latidos dos cães que acompanhavam os pais das crianças enquanto voltavam de suas roças.
p. 83— O pai tá chegando! — noticiou uma delas.
O momento do encontro foi de grande tensão, pois, sabiam se tratar de uma cartada decisiva. Silvestre se esmerou na oratória, a fim de convencê-los da veracidade de sua história. A parte mais delicada foi a de persuadi-los a não contarem nada ao pessoal do jipe, caso os reencontrassem novamente. Para isso, Silvestre os amedrontou alegando se tratar de uma quadrilha internacional especializada em sequestros e atos de terrorismo. Convencidos de que Silvestre falara a verdade, os campesinos lhes ofereceram abrigo.
— Ocêis não repara nas acomodação, é casa de pobre. Mas vô ajeitá um cantin prôceis passá a noite, e um franguin prôceis matá a fome. Amanhã vô levá ocêis pro povoado do Capim, que fica a quatro légua daqui. Lá ocêis vão ficá mais bem protegido — disse o Sr. Justino, pai de uma das crianças.
— Muito obrigado, Sr. Justino. Eu e meus amigos nem sabemos como lhe agradecer – disse Silvestre abraçando o anfitrião.
— O que foi que o dono da casa disse? — perguntou Mariano ansioso.
— Podem relaxar agora. O Sr. Justino vai nos abrigar em sua casa, por esta noite, e amanhã, ao alvorecer, nos conduzirá a um povoado chamado Capim.
— Silvestre, você foi brilhante! — comemorou Bhagat.
— Mas, não se esqueça de que, de agora em diante, você é um turista indiano “podre de rico”, como dizem aqui em meu país.
— Fique tranquilo, vou me lembrar disso — assegurou Bhagat.
Enquanto D. Zeferina, esposa de Justino, caprichava na produção de uma panelada de arroz com galinha, o anfitrião armava três redes na varanda de sua pequena casa de paredes de taipa e forrada com folhas de buriti. A pequena chama que saltava da velha lamparina iluminava os semblantes curiosos das crianças que insistiam em rodear aqueles turistas, na esperança de os escutarem falar em suas estranhas línguas. Após se fartarem com o banquete, Bhagat, como forma de agradecimento, entoou uma longa cantiga em sânscrito. Acabada a cantoria, D. Zeferina cuidou para que as crianças se recolhessem.
Assim que amanheceu, Zeferina não quis perder tempo. Antes mesmo que os turistas acordassem, ela já havia preparado toda a matula necessária à viagem: cuscuz, ovos cozidos e pedaços de rapadura. Justino também já estava todo paramentado para a ocasião: um velho facão preso à cintura, cabaça d’água a tiracolo, chapéu de palha e seus dois inseparáveis amigos caninos. Da casa vizinha, veio outro casal e lhes ofereceu alguns pares de chinelos, roupas usadas e uma porção de farinha.
p. 84— É tudo que nóis pode oferecê prôceis. Mas é de coração — disse D. Ednalda e seu marido, S. Benidito.
— Nem sabemos como retribuir o que estão fazendo por nós. Nunca vamos nos esquecer de todos vocês — agradeceu Silvestre emocionado.
Apressado, Justino convoca os turistas para a partida:
— Vâmo embora ligêro pessoal!
Aquela convocação apressada não era por capricho de Justino. Embora a distância de quatro léguas, aproximadamente vinte quilômetros, não representasse algo tão difícil para os ex-astronautas - ainda mais agora alimentados e calçados, Justino sabia que o trajeto até a Comunidade do Capim não seria somente por relevo de chapadões, também reservava grandes dificuldades devido à presença de extensas dunas de areia e profundos cânions. Então, partiram por um trieiro que descia dos fundos de sua casa em direção a uma pequena vereda d’água. As crianças em algazarra os acompanharam até a uma distância que Justino julgou segura, em seguida ordenou que voltassem para junto de suas mães.
Após andarem por aproximadamente duas horas, Mariano comenta esbaforido após vencerem a terceira duna de areia:
— Agora sei por que Justino tinha tanta pressa em partir...
Bhagat, apesar de fatigado, não se cansava de contemplar a exuberante paisagem local. Já Silvestre, tentava, em vão, acompanhar os passos do incansável Justino. Embira e Pelado, seus dois cachorros, entravam e saíam velozmente de dentro da campina no encalço de alguns animais que conseguiam farejar pelo caminho. Na medida em que iam vencendo os desafios impostos pelo percurso, o medo de serem novamente capturados pelo pessoal da Nova Marte ia deixando de existir, pois, sabiam que veículo algum poderia transpor alguns dos cânions que já haviam deixado para trás. E mesmo que eles os seguissem a pé já não mais os alcançaria àquela altura do trajeto.
— Ocêis tão vendo aquele morro mais alto aculá? — perguntou Justino aos turistas apontando o dedo para uma gigantesca formação rochosa cujo cume era extremamente plano. — Poisé, quando nóis tivé lá na cacunda dele vai dá pra vê a comunidade. Aí, é só descambá pra acabá de chegá.
p. 85O morro está “logo ali”, dizia Justino, repetidas vezes, na esperança de amenizar a angústia dos três. Sua preocupação, porém, era menos com o percurso até o morro e mais com a difícil tarefa de transpô-lo, pois, além de seu acentuado grau de inclinação, também havia, ao longo de toda a sua superfície, a presença de uma infinidade de pequenas rochas soltas. Assim, temendo que escorregassem caso tentassem usá-las como ponto de apoio, Justino, cuidou de ensiná-los a vencer os riscos usando as próprias características do morro:
— Não precisa brigá com o morro, dêxa ele ajudá ocêis — disse Justino quando chegaram ao sopé da montanha rochosa.
Assim, Justino compartilhou alguns de seus conhecimentos. Os ensinou, por exemplo, que não deveriam confiar nas pedras para apoiarem seus corpos, no momento de mudarem o passo, pois elas poderiam rolar jogando-os morro abaixo. Ao contrário das pedras, informou que as pequeninas moitas de capins que brotavam entre elas, apesar da aparente fragilidade, eram muito mais confiáveis, pois eram capazes de sustentar todo o peso de seus corpos. Igualmente, disse a eles que não deveriam confiar nas galhas dos arbustos para se sustentarem, pois eram extremamente quebradiças. Prosseguindo com os ensinamentos, sugeriu que caminhassem morro acima substituindo o traçado perpendicular por outro em zigue-zague, conforme faz o gado como forma de estabelecer uma boa relação entre o grau de inclinação do terreno e seus pesos corporais, ou seja, perde-se na distância percorrida para ganhar na diminuição do esforço desprendido.
E depois de dezenas de breves paradas, a fim de recobrirem o fôlego, alcançaram o topo da serra.
— Não falei prôceis? Óia lá a comunidade, bem ali ó.
Exatamente como dissera Justino, lá estava a comunidade. Pouco mais de trinta casas, a maioria delas de paredes barreadas, cobertas com folhas de palmeiras. Vistas do alto pareciam com cupinzeiros espalhados sobre a campina.
p. 86— “Na descida todo santo ajuda”! — disse Silvestre fazendo uso de uma expressão popular para transmitir seu entusiasmo.
Ao aproximarem do sopé da montanha, Justino começou a gritar, a fim de chamar a atenção dos moradores da comunidade. Imediatamente, alguns deles, percebendo a aproximação de Justino, responderam com vibrantes berros onomatopaicos. O grupo foi recebido com grande alegria. Crianças, mulheres, anciãos, todos queriam abraçar Justino. Alguns o chamavam de primo, outros de tio, compadre; a impressão era a de que todos os moradores possuíam algum grau de parentesco com ele. Até mesmo os cachorros da comunidade pareciam já conhecer Imbira e Pelado.
— São seus parentes? — perguntou Silvestre.
— Aqui no Capim todo mundo é parente. Tudo é primo um do ôto — respondeu Justino.
— Como assim, todos são primos? O senhor está dizendo que o povoado inteiro é formado por uma única família?
— Isso mêmo meu fí. Desde o tempo dos antigo que é assim. Lá uma vez ô ôtra alguém daqui do Capim arrumava um casamento com arguma ôta pessoa de fora. Minha mãe mêmo casô com o meu pai, que era o fí mais véi duma tia dela. E minha vó, por parte de mãe, era prima do meu vô. Inté a minha muié, a Zeferina, é fia de uma tia minha, que, incrusive, mora aqui, bem naquela casa aculá.
— ‘Agora entendo a razão dos casamentos endogâmicos’ — pensou Silvestre. — Então, o Capim é uma comunidade quilombola?
— É esse mêmo o nome que o moço tá falano – interveio Osório, líder da comunidade. — As pessoa que vem lá da cidade chama aqui de Quilombo do Capim. Mas foi só de uns ano pra cá que aqui começô a chamá de quilombo. Antes era só Capim, Povoado do Capim. Foi só dispois que veio o pessoal da universidade, dispois que eles fizero uns estudo aqui, tal e coisa; nóis se reunimo com as autoridade da capital e aceitemo a condição de quilombo. Dispois é que fomo intendê mió esse negócio de quilombo, é porque os parente nosso, os mais antigo, chegô aqui pelos escravo fugido e foi ficano, viveno por aí. Tem parente nosso espaiado por tudo quanto é banda nesse Jalapão.
— E por que é chamado de Povoado do Capim? De onde vem esse nome?
— Esse nome vem do tempo dos antigo também. Pra aculá, tem um veredão que brota um tipo de capim que chega lumiá de tanto que bria. É mêmo que vê um ôro! Desse capim, o povo da comunidade fáiz colar, pucêra, chapéu, abano, cesto, de tudo quanto há. Me alembro da minha vó fazeno essas coisa tudo. Agora, de uns tempo pra cá, quais todo mundo da comunidade tá invorvido na fazeção dessas coisa, pra móde vendê pros turista que vem visitá o Jalapão.
— Nossa! Isso é muito interessante — comentou Silvestre.
p. 87Justino contou a Osório o que ocorrera com os três turistas pedindo a ele que os escondessem no povoado até se sentirem seguros para retornarem aos seus lugares de origem. Osório acatou o pedido de Justino e os conduziu até a casa de dona Dita, viúva de seu irmão mais velho. A casa de Dita seguia o padrão das demais casas do povoado, paredes de taipa, coberta de folhas de palmeiras e chão batido. A viúva já os esperava do lado de fora, sentada em um banco de madeira, fumando seu velho cachimbo. Convidando-os a entrar, ela mostrou o quarto onde ficariam alojados. Nele, havia duas redes, presas a dois esteios de madeira que sustentavam o telhado, e ao lado de uma pequena janela de paus roliços, um colchão de capim sobre um estrado feito de varas, apoiado sobre quatro estacas em forquilhas fincadas no chão. Em seguida, D. Dita os levou até a sua cozinha. O fogão era feito a partir de pedras chatas sobrepostas, revestidas com uma combinação de argila e cinza, todo ele sustentado por uma estrutura de madeira semelhante a que sustentava o colchão de capim.
As paredes da cozinha estavam completamente enegrecidas pelo picumã, resultado da ação da fuligem produzida pela queima da lenha. Sobre o fogão, uma lamparina de latão iluminava dois pequenos caldeirões de ferro.
— Se ocêis quisé banhá antes de escurecê, no fundo da casa tem um triêro que vai dá no poço — indicou D. Dita.
Seguindo o conselho da anfitriã, partiram em direção ao poço.
— Poço! A dona Dita chama isso de poço?! — exclamou Silvestre.
Devido à singela denominação, Silvestre imaginou que encontraria algo como uma pequena cacimba incrustada no solo arenoso. Mas, ao chegarem, ficaram boquiabertos com a beleza do lugar. Um lindo riacho que descia das encostas da serra cujas águas, de tão cristalina, criava a sensação de se estar flutuando sobre o seu leito.
p. 88— É um grande privilégio poder conhecer um lugar como esse numa época de tanto ecocídio — refletiu Bhagat.
Mas, enquanto se deliciavam naquelas águas, um helicóptero passou rápido sobrevoando o povoado.
— Desgraçados! — disparou Silvestre levantando os braços e cerrando os punhos.
— Não é um helicóptero do tipo que nos transportou até aqui — tranqüilizou Mariano.
Por precaução, voltaram acelerados para dentro da casa de D. Dita.
— E agora, o que vamos fazer? — perguntou Mariano.
— Vamos nos acalmar e esperar. Ainda que sejam eles, já é quase noite; é improvável que pousem aqui no povoado para nos procurar — disse Bhagat fazendo uso de sua costumeira calma.
No dia seguinte, logo ao amanhecer, Justino chega à casa de Dita:
— Tia Dita? Sua bença.
— Deus te abençôi meu fí. Já vai? Fica mais uns dia com nóis!
— Ia fazê muito gosto ficá, tia Dita. O caso é que preciso vortá pra cuidá das criança e da Zeferina. Quero aproveitá pra despedí dos turista.
Percebendo a presença de Justino, os três se apresentaram à entrada da casa.
— Bom dia pra nóis tudo— cumprimentou Justino.
— Bom dia, S. Justino. Já está voltando pra casa? — perguntou Silvestre.
— Já, seu moço; e quero chegá lá antes de escurecê. E ocêis, agora que tão fora de perigo, pode decidí o rumo que vão tomá. Se quisé í pra Palmas, o primo Osório pode arrumá um carro pra levá ocêis. Lá, ocêis vai encontrá todo tipo de ricurso pra levá ôceis de vorta pra casa dôceis.
— Como assim, fora de perigo? — perguntou Silvestre.
— É que o minino mais véi do primo Osório, o Sinvaldo, contô que tava trabaiano de guia pro pessoal do jipe e do caminhão de filmage. E ônte, ele foi dispensado do serviço causo que eles tudo fôro embora, caíro no mundo.
— Como assim, caíram no mundo? Foram embora da região?
p. 89— É isso mêmo que o Sinvaldo contô. Se ocêis quisé sabê da boca dele, pode procurá, ele mora lá naquela casa onde tá aquela bicicreta vermêia na porta.
Sem perder tempo, Silvestre se despediu de Justino dando-lhe um carinhoso abraço. Mariano e Bhagat seguraram a sua mão pronunciando em dueto um confuso muito obrigado.
Assim que pôs os olhos em Sinvaldo, Mariano lembrou-se da fisionomia do rapaz quando o viu pela primeira vez na companhia dos homens da equipe de filmagem.
Sinvaldo, assim como alguns outros moradores daquele quilombo, já estava habituado ao trabalho de guia local para turistas em visita ao Jalapão. Entretanto, a equipe da Nova Marte o escolhera por possuir razoável domínio da língua inglesa. Questionado por Silvestre, Sinvaldo contou que o líder da equipe do caminhão recebera um comunicado informando que a missão havia chegado ao fim e que deveriam retornar imediatamente. Assim, chamaram um helicóptero para recolher três mulheres e um homem. Ao ser questionado sobre a suposta existência de três outras pessoas que também deveriam ter embarcado naquele helicóptero, mas que não haviam sido localizadas, Sinvaldo disse ter ouvido o líder comunicar pelo rádio que três membros do grupo haviam desertado, e que após vários dias de buscas foram dados como desparecidos.
— Isso que acabou de nos contar é maravilhoso! — exclamou Silvestre. — Mas, estou curioso, você aprendeu inglês com os turistas estrangeiros que visitam o Jalapão?
— Não sinhô. Eu morei uns ano com um casal de ingleses que se mudaram aqui prô Jalapão. Eles até me levava pra estudá numa escola do município aqui perto.
— E por que não mora com eles?
— Dispois que o Sr. Anderson morreu, a esposa dele, a D. Emily, ficou muito doente e teve que voltá para a Inglaterra.
— Que pena.
— Você saberia nos dizer a que horas o helicóptero partiu com as três mulheres e o homem? — perguntou Silvestre, a fim de se certificar.
— A hora certinha eu não sei não sinhô, mas foi lá pela boquinha da noite, umas seis e meia, por aí — disse Sinvaldo.
— Realmente; foi pouco antes das seis horas de ontem que o helicóptero fez aquele sobrevoo. Neste caso, não restam mais dúvidas de que foram mesmo embora — concluiu Silvestre.