Após terem decidido abortar as ordens informadas no pergaminho, o grupo permaneceu à beira do rio. A belíssima vegetação ripária lhes proporcionava abrigo e frescor, e aquelas águas, de um azul profundo, lhes saciavam a sede e ainda lhes forneciam variadas qualidades de peixes. Contudo, e apesar daquele oásis, um intenso sentimento de vazio lhes atravessava a alma. Extremamente magros e enfraquecidos, cada um, ao seu modo, procurava disfarçar a desesperança e o medo do fracasso. Jennifer percorria com as mãos a nova e dolorosa geografia que sua pele ganhara devido à exposição ao sol. Bhagat fitava o horizonte num misto de contemplação e esperança de que, a qualquer momento, de dentro daquela paisagem savânica, pudesse lhe saltar aos olhos, as respostas àquela situação. Manter a fogueira acesa e garantir alimentos parecia ser agora o único plano que restara.
— Pessoal? Venham todos! — gritava Manolito do alto do barranco.
— O que há? — perguntou Samira assustada.
— Estou escutando ruídos de motor. Prestem atenção.
— Não escuto nada além da corrente do rio e do vento nas folhas — disse Helga.
— Pode ter sido algum avião passando ao longe — sugeriu Ichiro.
— Acho que posso verificar isso — disse Mariano.
Assim, Mariano se afastou do rio ganhando o barranco onde se achava Manolito. Lá, se colocou de costas, posicionou as mãos em forma de concha, colocando-as atrás dos ouvidos, criando uma forma concha acústica.
— Acho que ele tirou isso de algum filme de far West — comentou Samira.
— Façam silêncio! Não veem que ele está tentando escutar — bronqueou Helga.
— Acho que Manolito está certo! — gritou Mariano. — Parece ser mesmo ruídos de motor. Fiquem atentos que montarei guarda aqui com Manolito.
Não demorou muito para que Marinano e Manolito voltassem esbaforidos à beira do rio:
— Um caminhão! — gritavam os dois. — E está vindo em nossa direção!
— O que faremos?
— Vamos recepcioná-lo! — propôs Samira entusiasmada.
— Não! E se forem hostis? — advertiu Silvestre.
— Já sei o que faremos — disse Mariano. — Vamos nos esconder do outro lado do rio. De lá poderemos vê-los sem sermos notados.
p. 65Escalando um barranco que se elevava da outra margem do rio se esconderam entre a densa vegetação. O ronco do motor, cada vez mais próximo, os deixava apreensivos. Até que o veículo se deixou mostrar em toda a sua plenitude: tratava-se de um grande caminhão, do tipo militar, equipado com parabólicas e galões de combustível presos ao teto. Após parar a uma distância segura em relação à margem do rio, desceram três homens brancos acompanhados de um rapaz negro. Um deles seguia à frente segurando um aparelho, um tipo de sinalizador.
— É aqui — disse o homem que carregava o aparelho. — Traga os equipamentos.
Um dos homens voltou para dentro do caminhão, retornando depois em trajes de mergulho.
— Desça e o traga para mim — ordenou o primeiro homem ao mergulhador.
Enquanto o mergulhador era atentamente observado pelo primeiro homem e o rapaz, um terceiro, posicionado no teto do caminhão, rastreava todo o entorno olhando pela mira de seu rifle. Após vários mergulhos malogrados o homem-rã submerge:
— Finalmente! Essa belezinha estava se escondendo debaixo de uma pedra.
— Vejam! É a capsula que continha o pergaminho! — exclamou Bhagat.
— Sim! Ela deve ter caído no rio quando os pilotos do helicóptero me fizeram saltar — refletiu silvestre.
— Neste caso, aqueles homens devem estar a serviço do programa espacial — concluiu Bhagat.
— E para que aquele rifle? — perguntou Helga amedrontada.
— O que devemos fazer? Apresentar-nos?
— Ainda não — sugeriu Silvestre. — Vamos observá-los até que tenhamos a certeza de suas intenções.
Após acharem a cápsula, os homens analisaram cuidadosamente todo o acampamento: a fogueira, os instrumentos e os restos de peixe. Em seguida, e sem retirarem nada do lugar, filmaram demoradamente todo o cenário. Depois, um dos homens sacou de seu bolso uma pequena caderneta de anotações e começou a ler aos berros:
p. 66— Atenção senhores Bhagat, Mariano, Manolito, Ichiro e Silvestre; e senhoras Helga, Jennifer e Samira. Sabemos que estão nos observando. Por favor, apareçam para que possamos conversar. Somos da equipe do projeto Nova Marte e estamos aqui para gerarmos imagens de vocês.
— O que vocês acham? — perguntou Manolito.
— Pelo sotaque, posso afirmar que são americanos — concluiu Jennifer.
— E o rapaz negro com eles, não lhes diz nada? — perguntou Bhagat. — Só pode ser um guia local, não é mesmo? Neste caso, isso reforça a nossa hipótese de estarmos em alguma parte do continente Africano.
— O que temos a perder? — ponderou Samira. — Afinal, nossa fogueira, nossa armadilha para peixes e nossos instrumentos, tudo, absolutamente tudo está do lado de lá. Ficaremos aqui até anoitecer? Eles não estão com cara de que vão desistir.
Vendo que não havia outra saída, Jennifer tomou a frente:
— Olá, aqui é a Jennifer. Vamos atravessar o rio, tudo bem?
— Tudo bem, senhorita. Podem vir, sem problemas — respondeu um dos homens.
Assim que se deixaram mostrar entre as folhagens o cinegrafista da equipe começou a registrar. Terminada a travessia, Jennifer deixou que sua sanha de advogada entrasse em ação:
— Muito bem, senhores, por que estão nos filmando? Qual a intenção de vocês aqui? Há medicamentos e suprimentos no caminhão? E se algo acontecer a um de nós haverá assistência médica? Por que não podemos saber onde estamos? E que palhaçada foi aquela de nos transportar como se fossemos um monte de estrume? Estão cientes de que podemos processar a Nova Marte em milhões de dólares?
— Já terminou, senhorita? — perguntou calmamente o líder.
— Sim — respondeu Jennifer com ar desafiador.
p. 67— Agora escutem todos vocês —, retomou o líder do caminhão. — Estamos aqui para uma única missão: registrar imagens de vocês. Não saberão nossos nomes nem tampouco o nome deste lugar. Não daremos nada a vocês. Absolutamente nada! Não lhes ajudaremos em nenhuma questão ligada à sua sobrevivência; também não lhes ofereceremos socorro caso alguém de vocês sofra um acidente ou contraia alguma doença. Devo também refrescar a memória de vocês lembrando-os de que assinaram um contrato cedendo todos os direitos de imagem à Nova Marte. Então, minha equipe não existe para os senhores, somos invisíveis e incomunicáveis. Estamos entendidos? Aqueles de vocês que porventura sentirem vontade de suicidar ou fazer greve de fome, sintam-se à vontade; não damos à mínima. Agora, movam-se! Continuem fazendo o que começaram.
Nada, absolutamente nada, poderia descrever as expressões estampadas nos rostos daqueles astronautas. Era como olhar para algo que ainda não existisse. E num ataque de fúria Manolito grita para o líder do caminhão:
— Olha aqui seu pau mandado, diga a seus superiores que não moveremos uma palha para construir a tal colônia sustentável. Estou me lixando para essa sua Nova Marte, e muito menos para você e sua equipe.
Mas, conforme havia advertido o líder, o desabafo de Manolito sequer foi ouvido. O cinegrafista e toda a equipe permaneceram no local do acampamento registrando tudo, desde o momento da retirada dos peixes de dentro da armadilha, o preparo, até o momento em que o grupo se organizou em volta da fogueira para dormir. Depois disso seguiram com o caminhão para além das dunas.
— Pessoal? Agora que foram embora, podemos falar. Digam-me, o que vocês acharam de toda aquela conversa do líder deles? — perguntou Ichiro.
— Sua fala parecia ser de um militar — disse Silvestre.
— Não é disso que eu estou falando, me refiro àquela conversa sobre não nos ajudarem em nada e de não ligarem à mínima caso nos aconteça algo de ruim.
— Eu prefiro pensar que estão tentando nos enganar, e que tudo não passa de um grande Reality Show em que a Nova Marte irá faturar milhares de dólares explorando nossas imagens — disse Samira.
— E se a Samira estiver certa — continuou Helga —, tudo acontece como em qualquer outro Reality Show de sobrevivência, ou seja, quando algum participante se fere, ou não encontra mais condições físicas para continuar, é imediatamente recolhido por uma equipe de apoio e levado para um lugar seguro.
p. 68Nos dias que se seguiram, ainda motivados pelas conjecturas de Samira e Helga quanto à possibilidade de tudo aquilo ser parte de um grande Reality Show internacional, o grupo se esforçou em mostrar ampla competência adaptativa: Bhagat, Mariano e Silvestre impuseram as mesmas estratégias de obtenção de alimentos utilizadas no Parque Nacional de Awash, o que rendeu a conquista de algumas variedades de castanhas, palmitos de palmeiras e até favos de mel encontrados dentro do tronco de uma árvore caída, que conseguiram retirar com o emprego de fumaça, produzida pela queima de uma mistura de palha de capim, folhas e fezes secas de roedores. A simples presença do cinegrafista os enchia de motivação. Ainda que visivelmente abatidos fisicamente, devido a todas as dificuldades impostas, pareciam se esforçar ao máximo no sentido de poderem passar aos prováveis telespectadores uma imagem vigorosa, digna de um verdadeiro herói de cinema.
Numa manhã, Ichiro alardeia a descoberta de uma grande árvore repleta de ninhos de pássaros. Imediatamente, Samira, Helga e Manolito se colocam a disposição para ajudá-lo na coleta dos desejados ovos. Atento a todas as manobras do grupo, o cinegrafista e seu auxiliar partiram no encalço. Após vencerem algumas dunas, atravessaram uma extensa vereda, até chegarem a uma espécie de floresta de árvores desfolhadas.
— É aqui — disse Ichiro apontando o dedo na direção de uma enorme árvore que parecia conter mais ninhos do que folhas.
— Como faremos? — perguntou Helga.
— Subirei na árvore e, à medida que eu for alcançando os ninhos, lançarei os ovos. Tudo o que vocês terão que fazer é se posicionarem para apará-los — planejou Ichiro entusiasmado.
Utilizando sua camisa, pelo menos o que sobrara dela, e uma galha emborcada, Manolito consegue improvisar uma espécie de coador para aparar os ovos. Ichiro, por sua vez, alcança as galhas inferiores da árvore e começa a visitar os ninhos:
— Estamos com sorte! — gritou Ichiro ostentando o primeiro ovo encontrado.
— Lá vai!
p. 69O primeiro ovo lançado encontra com precisão o coador de Manolito. A cena se repete com relativa facilidade até que os ninhos visitados dão sinal de esgotamento. Compenetrado, o cinegrafista não perde uma só cena daquela manobra. Com grande esforço, Ichiro consegue chegar até a última copa da árvore, justamente onde se encontravam os maiores ninhos.
— Nossa mãe! Esses ovos são enormes! — fanfarreia Ichiro mostrando um enorme ovo de cor avermelhada.
— Não será um ovo de urubu? — questionou Samira.
— Deixe de bobagem... Urubus não constroem ninhos assim, e, mesmo que pudessem construí-los, este ninho não é suficientemente grande para suportar uma mamãe urubu e seus filhotes – esclareceu Ichiro sorridente.
Toda aquela operação parecia ser um sucesso total não fosse o fato de a equipe de solo testemunhar o corpo de Ichiro despencando da árvore atingindo o solo como um meteoro.
— Socorro! — chamou Samira em desespero.
— Vamos carregá-lo até aquela sombra — sugeriu Manolito.
— Não façam isso! — interviu Helga. — Ele não pode ser removido de qualquer maneira; pode ter sofrido uma lesão grave. Por isso precisaremos de uma equipe de socorristas imediatamente.
— Não ouviram o que a Helga disse? Acionem logo a equipe de socorro! — berrou Samira ao cinegrafista.
Mas para a surpresa de Samira, Helga e Manolito, o cinegrafista e seu auxiliar continuaram filmando a cena como se nada de grave houvesse acontecido. Sequer tentaram se comunicar com os outros homens do caminhão.
Indignada com toda aquela situação, Helga salta sobre o cinegrafista arrancando-lhe a câmera:
— Que tipo de monstro é você? Prefere deixar um ser humano morrer a perder a sua grande cena?!
Em reação à atitude de Helga, o auxiliar do cinegrafista se aproxima, segura forte a câmera com uma das mãos, e com a outra desfere um forte soco em seu rosto fazendo-lhe desvencilhar da câmera. Imediatamente, Manolito empunha uma pedra e parte na direção do agressor. Porém, ao ver-se diante da mira de uma pistola, ergue os braços deixando a pedra cair.
— Continuem de onde pararam — ordenou o homem com a pistola. — É como o chefe falou: somos invisíveis, não existimos para vocês.
Se afastando lentamente, o cinegrafista e seu auxiliar retomam as filmagens enquanto Manolito, Helga e Samira se desesperam.
— Corram! Chamem os outros! — disse Helga. — Ficarei com Ichiro. Porei algumas folhagens sobre o seu rosto para aliviar o calor.
Ao saberem do acontecido, o grupo ficou perplexo. Seguiram até o local do acidente e removeram Ichiro usando a mesma maca que utilizaram para o socorro de Jennifer.
— E agora, o que faremos? — perguntou Samira.
— Proponho que nos encontremos com o líder deles para exigir uma explicação e a remoção imediata de Ichiro para um hospital — disse Mariano.
— Isso é perda de tempo! — opinou Manolito. — Eu olhei bem dentro dos olhos daquele homem que me apontou a arma. Sabem o que eu vi? Morte. Vocês acham que o líder deles é diferente? Estão de brincadeira... Não se lembram do que ele mesmo nos disse?
p. 70— Acho que Manolito tem razão – disse Silvestre. — E a essa altura, o líder deles, certamente, já deve saber sobre o ocorrido. Se ele tivesse a menor intenção de nos ajudar já teria prestado socorro, não é mesmo?
— Neste caso, a única coisa que podemos fazer é buscar ajuda fora do perímetro estabelecido. O que acham? — perguntou Bhagat.
— Apoiado! Se quiserem posso partir agora mesmo — se prontificou Mariano.
— Irei com você — se dispôs Manolito. — Contudo, como já está próximo do anoitecer, sugiro que deixemos para partir amanhã com o nascer do sol.
Assim, ao alvorecer, Manolito e Mariano seguiram com o combinado. O plano que traçaram incluía seguir uns dez quilômetros rio abaixo e depois seguir rumo a oeste, direção de onde havia surgido do caminhão. À medida que desciam pelo rio também nutriam a esperança de poderem encontrar pescadores locais a fim de conseguirem socorro.
Acompanharam o serpenteio do rio até a uma distância que julgaram aproximar da marca dos dez quilômetros. Como nada viram ou ouviram que pudesse sugerir a presença humana, decidiram por em prática a segunda parte do plano, ou seja, seguir na direção oeste. Atravessaram, então, um extenso areal, depois, um campo coberto por gramíneas e arbustos, chegando a uma vereda povoada por grandes palmeiras. O sol castigava impiedosamente.
— Veja Mariano! Encontrei uma espécie de trilha cheia de pegadas e fezes.
— Parece ser de uma manada de búfalos — disse Mariano.
— O que acha de seguirmos esses rastros? — perguntou Manolito. — Talvez essa manada seja domesticada por algum grupo humano.
Após seguirem a trilha da suposta manada de búfalos, por aproximadamente uma hora, ouviram gritos ao longe:
— Escutou isso, Manolito? Está parecendo gritos; gritos de mulheres!
— Sim. E pelo jeito devem estar conduzindo os búfalos. Talvez seja um daqueles grupos étnicos da África em que as mulheres e as crianças se ocupam do pastoreio — lembrou Mariano.
— Veja! Não há mulheres. São somente crianças. Três crianças negras.
— Olha Mariano, um jipe! E está indo na direção das crianças. Agora o jipe parou ao lado delas e, pelo jeito, estão conversando.
— Com certeza são da mesma comunidade. Vamos até aonde nos possam ver.
Caminhando na direção do veículo, Mariano e Manolito se põem a gritar e agitar os braços. Imediatamente, o jipe se afasta das crianças. Quanto mais o jipe se aproximava, mais os dois gritavam por socorro e agitavam os braços. Então, de dentro do jipe, desce um homem branco trajando óculos escuros e um quepe tipo militar. Em seguida, se aproxima de Manolito:
— Bom dia senhores. Suponho que estejam perdidos.
Manolito entra em pânico:
— Desgraçado!
Tratava-se daquele homem da equipe de filmagem que lhe apontara a pistola.
— Algeme os dois — disse o motorista apontando um rifle.
Após algemá-los e colocá-los dentro do jipe, o homem do quepe desfere um golpe sobre a cabeça de Manolito deixando-o desacordado.
— Por que você o acertou? — perguntou o motorista em tom de censura.
p. 71— Você não ouviu? Ele me chamou de desgraçado — disse calmamente o agressor, balançando um palito de fósforo ainda aceso e expelindo a fumaça do cigarro pelas narinas.
O jipe seguia sacolejando por um interminável campo graminoso até que, ao perceber que Manolito recobrara a consciência, o motorista se pronunciou:
— Parece que vocês ainda não entenderam. Então, vou repetir pela última vez: Vocês têm uma missão a cumprir e nós temos a nossa. Vocês tentam sobreviver nesta droga de lugar, e nós filmamos vocês. Estamos entendidos?
— Isso que estão fazendo é um crime — reclamou Mariano. — Temos nossos direitos e o livre arbítrio para decidirmos se queremos, ou não, continuar com a missão.
— Neste caso, vou ter que explicar do meu jeito — disse o homem do quepe disparando um soco no rosto de Mariano. — Aqueles de vocês que conseguirem sair vivos daqui serão enviados para Marte dentro de um foguete. Não foram vocês mesmos que escolheram isso? Então, curtam a hospitalidade do lugar; cobaias. Haaahhahaha.
— Se somos meras cobaias — perguntou Mariano comprimindo o ferimento com uma das mãos. — Por que todo aquele processo de seleção, passagens áreas, divulgação na mídia internacional, etc. Não teria sido mais fácil vocês raptarem algumas pessoas por aí?
— Não é tão simples assim; há muito dinheiro por trás disso tudo, muito dinheiro! Sem falar na disputa pela corrida espacial, nos acordos entre fundos monetários internacionais, serviços de inteligência, de comunicação, forças armadas e muito mais. Tudo precisava parecer legal aos olhos do mundo. Por isso que todo o processo de seleção foi parar na mídia internacional. Por isso vocês, um grupo de pessoas de origens diversas e com diferentes habilidades; pessoas que se parecem com qualquer outra pessoa do dia-a-dia, cheia de emoções e comprometida com os desígnios do planeta. Depois que o mundo inteiro assistir às imagens de vocês, desde o primeiro encontro em Zurique até o embarque no foguete, vocês entrarão para a história como os desbravadores da última fronteira, o maior salto rumo à emancipação da raça humana; isso não é lindo? — disse o motorista encarando-os pelo retrovisor.
p. 72Após alguns quilômetros o jipe chega ao acampamento. Imediatamente, Manolito e Mariano são liberados de suas algemas para se juntarem ao restante do grupo. Nenhum deles pronunciou uma só palavra. Não havia nada o que dizer; a fuga resultara em captura, e Ichiro não resistira aos ferimentos. Bhagat e Silvestre tiveram que sepultá-lo ali mesmo próximo ao rio.
— Pobre Ichiro, tão jovem... Acho que ele aprovaria ser sepultado próximo ao rio; ele adorava peixe, não é mesmo? — disse Manolito tentando quebrar o gelo.
— E agora estamos aqui; num presídio no meio do nada, e ainda à mercê de uma equipe de mercenários assassinos — desabafou Helga enquanto examinava o ferimento na cabeça de Manolito.
Nesse exato momento surge por entre as árvores o líder da equipe de filmagem:
— Olá, pessoal. Em nome de toda a minha equipe, quero expressar os meus mais sinceros sentimentos pela terrível perda que sofreram.
— Como pode sentir alguma coisa se foram vocês mesmos que o deixaram morrer à míngua? O que teria custado a vocês terem removido Ichiro até o hospital mais próximo? Vamos, respondam! — repreendeu Helga.
— Deixe-me explicar, senhorita. Eu e minha equipe seguimos um protocolo militar. Por isso, peço-lhes desculpas se alguns deles se excederam quando a situação saiu do controle. O fato é que estamos sob duas ordens estritas: primeiro, de não interferir em qualquer tipo de acontecimento que diga respeito à sobrevivência de vocês neste lugar; e dois, devemos assegurar que permaneçam dentro das coordenadas geográficas estabelecidas, até que chegue o momento de serem removidos daqui com segurança.
— E que história foi aquela de sermos cobaias humanas, e que o resto do mundo só saberá de nossa existência pelas imagens geradas pelo programa? — perguntou Mariano.
— Por favor, não deem atenção a tudo o que esses rapazes lhes disserem; na maioria das vezes, só estão tentando intimidá-los — amenizou o líder.
p. 73— Ah é?! Então, o que você me diz sobre os socos que Manolito, Helga e Mariano receberam desses seus “rapazes”? — retrucou Samira.
— Quanto aos socos, eu considerei ações desnecessárias e relatarei tais acontecimentos aos meus superiores.
— E quantos fatos mais pretende relatar? — provocou Silvestre.
— Mais nenhum, espero. Desde que vocês se mantenham ocupados apenas com a sobrevivência do grupo; nada de fugas ou ações que representem riscos ao cumprimento de minha missão — sentenciou o líder.
— Você disse que seremos removidos daqui com segurança. Quando será isso? Para aonde vão nos levar? E o mais importante, quando chegarmos a esse lugar, nossos direitos serão assegurados, quero dizer, poderemos escolher entre ficar na Terra ou embarcar para Marte? — disparou Jennifer.
— Senhorita, é como eu já havia lhe dito, a relação de minha equipe com o seu grupo deve se limitar àquelas duas ordens apenas. Contudo, devo dizer-lhe que, aqueles de vocês que sobreviver a esta etapa irão, com segurança, para uma estação espacial experimental. Quanto à data da remoção, isso pode acontecer dentro de dias, semanas, meses, ou até anos. Não sou eu quem vai decidir isso. Apenas recebo ordens. Quando chegar o momento de removê-los, eu os removerei. Agora, quanto a questão de poderem exercer o livre arbítrio que possuem sobre vossos destinos; não vejo nenhum problema, por uma simples razão: há milhares de pessoas pelo mundo recebendo imagens de vocês, e, neste caso, vão especular sobre o destino que tomaram após terem cumprido as etapas. E para encerrar, há centenas de outros candidatos que, assim como vocês, se esforçarão para entrarem para esse programa. E quanto mais pessoas passarem pelo o que estão passando, mais o programa espacial conquistará a opinião mundial e se reforçará.
— Já que falou em opinião pública, me responda, como os telespectadores reagirão à morte de Ichiro? — continuou Jennifer.
— Ora, senhorita Jennifer, como uma boa americana e advogada, já deveria saber, as pessoas anseiam por heróis, não é mesmo? Provavelmente, muito em breve veremos Ichiro ressurgindo em algum seriado de TV.
Imediatamente após ter respondido às perguntas de Jennifer, o líder da equipe deu as costas ao grupo não deixando chance para mais questionamentos. Aquela situação colocou o grupo diante de mais uma daquelas encruzilhadas na qual teriam que escolher uma direção.
— Está tudo muito claro! — se antecipou Samira. — Não estão vendo?! A coisa toda não passa de um grande Big Brother aeroespacial, ou chame do que quiserem, pois, para mim é a mesma coisa. Irão movimentar bilhões de dólares, atraindo investidores do mundo inteiro, às custas de pseudos-astronautas como nós.
— Pode ser... — refletiu Silvestre. — Mas, o que aquele homem nos disse em relação a morte de Ichiro não me convenceu nem um pouco. Se tornarem público o que aconteceu a ele haverá milhares de pessoas protestando pelo mundo todo.
— Não se trata de um Big Brother comum — argumentou Helga. class="dialogo" — Não se lembram do que o motorista do jipe disse a Manolito e a Mariano? Quer repetir o que ouviu Mariano?
p. 74— Sim. Ele nos disse que havia muito dinheiro envolvido em toda a operação, e que não era só isso, governos, forças armadas, corrida espacial, mídias, fundos monetários internacionais e muito mais coisas estariam envolvidas.
— Tudo bem, mas, isso não responde a questão que levantei sobre a repercussão negativa que poderá gerar a morte de Ichiro — insistiu Silvestre.
— Acho que aquele homem estava certo — disse Manolito. — Quanto mais parecer real melhor. E não se trata apenas da invenção de mais um herói dedicado à espécie humana. Pensem no mundo em que estamos vivendo, quantos conflitos armados estão acontecendo em nosso planeta neste exato momento? Por que os filmes do gênero ação e violência são sempre os campeões de bilheteria? Isso sem falar nos UFCs da vida que lotam estádios e tornam-se entretenimentos de família. E os games eletrônicos que entretêm nossas crianças, certamente não tratam de preservação ambiental ou de altruísmo, são jogos que reforçam a cultura da violência e da intolerância, não é mesmo? O mundo respira violência; o que ocorreu com Ichiro é exatamente o que dá qualidade ao programa, ou seja, um jogo mortal.
— Não creio que entre a população mundial prevaleça tal tendência à violência, Sr. Manolito. Pode ser que esteja pensando somente a partir do mundo ocidental — argumentou Bhagat.
— O mundo inteiro está ocidentalizado — replicou Jennifer.
— Não penso assim — continuou Bhagat. — Há centenas de outros povos com suas culturas cujos valores vão exatamente na contramão de toda essa “cultura da violência”. Pois, da mesma forma que, como bem disse Manolito, está acontecendo, neste exato momento, inúmeros conflitos armados pelo mundo, também, neste exato momento, posso lhe assegurar, está acontecendo, por todo o mundo, inúmeras práticas de resistência às formas desumanas de ocidentalização, como o racismo, o genocídio, a misoginia, o ecocídio, a exploração de minorias e de trabalhadores de baixa renda. E tais práticas de resistência podem ser vistas sob a forma de alternativas agroecológicas, artísticas e de revalorização dos saberes tradicionais.
— Não sei se este é o melhor momento, e lugar, para começarmos um debate filosófico – interferiu Samira.
— A amiga está enganada — discordou Mariano. — Se estamos sendo usados como parte de um gigantesco projeto, digamos, neoliberal, por essa mesma razão é que precisamos pensar sobre qual o nosso lugar nele.
— Por que não pensou nisso antes de entrar para o programa? — desafiou Helga.
— Pensei sim. Pensei em um monte de coisas... Mas, agora vejo de outra maneira. Somente quando se vive uma situação é que se consegue compreendê-la de maneira mais ampla — rebateu Mariano.
— Ah, é? E no que está pensando agora, Sr. Mariano? — provocou Samira.
— Estou pensando que por trás de toda essa corrida espacial, embalada pela grande mídia internacional, e sustentada por ideias como a de evolução tecnológica para fins de obtenção de conhecimentos e de superação dos dilemas da humanidade, só pode haver uma coisa, sempre a mesma coisa: o enriquecimento de poucos em detrimento de muitos.
p. 75— Mas que diferença isso faz agora? — rebateu Jennifer. — Nada mudou, sempre fomos, e seremos, parte de grandes projetos elaborados pelo sistema capitalista. Desde o momento em que deixamos nossas casas pela manhã, estamos alimentando, invariavelmente, projetos que visam apenas o nosso dinheiro. Por mais que você pense que possui o domínio sobre o que quer comprar e quando comprar, você estará sempre rodando em círculos; tentando construir uma imagem para si, uma imagem que seja aceita por algum grupo social ao qual você pensa pertencer. Mas, no fim, nem a imagem que pensa estar carregando, nem tampouco o grupo social que julga fazer parte, existem de fato; são somente ilusões criadas pelo capitalismo. O círculo que nos aprisiona consiste em produzir bens de consumo associados a determinadas imagens sociais. Assim, você os consome na esperança de que, ao usá-los, fará, ou continuará fazendo parte daquele grupo social cujas imagens só encontram materialidade no uso de tais produtos, ou seja, nesse mundo, você é uma ilusão autorregulada.
— Sábias palavras, Jennifer. Então, pessoal? Vamos lutar contra o sistema ou simplesmente tentar tirar algum proveito dele? — provocou Samira em apoio aos argumentos de Jennifer.
— Estamos, todos nós, em média dez quilos mais magros, desnutridos, quase nus e muito suscetíveis a doenças. Que proveito pensa estar tirando desta situação, senhorita Samira? — censurou Mariano.
— Ora, senhor Mariano — interferiu Jennifer. — Se sobrevivermos a esta etapa, como mesmo disse o líder deles, seremos alvo de especulação de toda a mídia internacional. Seremos assediados pela grande mídia, nossas imagens valerão ouro! Acha isso pouco?!
— Vejo que estamos divididos entre aqueles que pretendem continuar fazendo parte desse jogo, e aqueles que já não estão mais tão seguros quanto a isso. É isso mesmo que estou pensando? Bem, se eu estiver enganado, por favor, me corrijam — provocou Manolito.
— Penso que você está certo, Manolito. Mas como não posso falar pelos outros, falarei por mim — disse Silvestre. — Não se trata de não saber mais o que quero, mas, de saber o que não quero.
— Pode ser mais objetivo?
p. 76— Vou tentar — prosseguiu Silvestre. — Quando me inscrevi para o programa eu só pensava em uma maneira de escapar daquela vida que estava levando. Um professor, recém-doutor, recém-desempregado e recém-abandonado pela companheira. Eu só queria me livrar daquele Silvestre colecionador de malogros. Mas, agora, está tudo muito claro para mim. Enquanto discutiam comecei a me perguntar: quantas pessoas espalhadas por este planeta não estão como eu agora, com fome, fraco, esfarrapado e sem esperanças? Depois, comecei a me lembrar de tudo o que havia lido sobre a corrida espacial. Sabem quanto custa para mandar um satélite do tipo Falcon Heavy para o espaço? A bagatela de noventa milhões de dólares. Isso mesmo! Sabem o que isso significa? Que o lançamento desse satélite equivale ao ganho diário de 50 milhões de pessoas pelo mundo que tentam sobreviver com míseros 1,90 dólares por dia, ou seja, pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. E essas pessoas existem de verdade! Passamos por elas em nosso dia-a-dia, só que as ignoramos, ou então as julgamos como sendo um problema para o Estado resolver. Segundo diz a mídia, uma missão tripulada para Marte custaria para os cofres da NASA algo em torno de trinta e cinco bilhões de dólares. Fico pensando quantas questões socioambientais pelo mundo não poderiam ser solucionadas com esses trinta e cinco bilhões de dólares; quantas famílias de camponeses não deixariam de migrar para os grandes centros urbanos. Mas todas essas cifras são só trocados se comparadas aos três trilhões de dólares que serão gastos nas próximas décadas com a indústria espacial. Esse montante é de enlouquecer, não é mesmo? Já pensaram como seria o mundo se uma cifra dessa pudesse ser revertida em programas de educação, moradia, saúde e transporte em países em desenvolvimento? Por isso, pensando em todas essas coisas, que resolvi não querer mais tomar parte dessa verdadeira indústria de injustiça socioambiental.
— Parece-me, então, que a questão está encerrada. Silvestre, Bhagat e Mariano não querem mais seguir adiante com o programa. O que vão fazer? Organizar um novo plano de fuga? — provocou Manolito.
Nenhum dos três quis responder à provocação de Manolito, preferiram continuar participando das operações de busca de alimentos com o restante do grupo.
Nos dias que se seguiram ninguém mais voltou a falar sobre as opções de cada um quanto à permanência no programa. Todos se mantinham ocupados com a nutrição, enquanto os cinegrafistas realizavam suas tomadas.
Mas numa manhã, Bhagat convoca Mariano e Silvestre para uma conversa em separado. Decidiram, então, conversar dentro do rio, pois pareceria um encontro casual para um banho como os vários que realizavam durante o dia.
— Escutem-me — iniciou Bhagat. — Tenho um plano. Prestem atenção: estive observando a dinâmica da equipe de filmagem, eles pegam o jipe a cada cinco dias e vão para algum lugar, distante daqui algumas horas, a fim de buscar suprimentos. Da próxima vez que partirem, exatamente daqui a quatro dias, deixaremos o acampamento ao alvorecer.
p. 77— E como faremos isso com segurança? — perguntou Silvestre preocupado.
— Será simples: a partir de hoje, prepararemos alguns peixes e coletaremos alguns palmitos; somente o necessário para um dia ou dois. Depois, esconderemos esses suprimentos, mais duas lanças e um cortador, na segunda curva do rio, logo abaixo do acampamento. Nossa fuga será pelo rio. Seguindo o seu leito estaremos em vantagem sobre eles, caso percebam a nossa ausência, pois, Mariano já conhece pelo menos dez quilômetros de seu percurso. Rio abaixo seremos também quase imperceptíveis, não deixaremos pegadas, e os eventuais ruídos que provocarmos se confundirão com o barulho das corredeiras. Afora isso, também estaremos hidratados, protegidos contra algum eventual ataque de feras e camuflados entre a vegetação ripária. Outra vantagem importante de seguirmos rio abaixo é a de percorrermos distâncias muito superiores aquelas que conseguiríamos percorrer caso fossemos caminhando pela savana no mesmo espaço de tempo.
— E os outros? Contamos a eles? — perguntou Silvestre.
— Melhor não — advertiu Mariano. — Eles podem por todo o nosso plano a perder. Devemos agir com toda a cautela, como se nada estivesse acontecendo. Infelizmente não podemos mais confiar em nenhum deles, estão muito influenciados com a possibilidade de se tornarem celebridades internacionais...
— Daqui por diante — sugeriu Bhagat. — Não é aconselhável que nos vejam andando juntos. Vamos nos espalhar para buscarmos os suprimentos. Caso percebam que estão sendo filmados, entrem no jogo deles, deixem que pensem que estão empenhados em sobreviver à etapa. Procurem também não evitar a aproximação com o restante do grupo, não podemos levantar suspeitas; lembrem-se de que Jennifer, Samira, Helga e Manolito, além de astutos são muito inteligentes, portanto, sempre que possível os acompanhe nas tarefas de busca e preparação de alimentos.
Mariano e Silvestre seguiram à risca o plano de Bhagat. E na manhã combinada os três se lançaram rio abaixo. O medo os acompanhava a cada curva, mas estavam determinados. As dificuldades foram imensas: enfrentaram quedas d’água, passaram por debaixo de troncos, se esfolaram em pedras e até pernoitaram sobre um barranco sem a costumeira proteção da fogueira, pois temiam que fossem avistados por algum sistema de rastreamento. Ao raiar do dia, após aquela interminável noite gelada e escura, comeram seus últimos pedaços de palmitos e continuaram a descida do rio. A fome e o cansaço roubavam-lhes a esperança, e em seus rostos já estampava o desespero. Agarrado a um tronco flutuante, Silvestre mantinha seu olhar fixo nas margens do rio. De quando em vez, Mariano escalava algum barranco na esperança de enxergar algum nativo ou comunidade. Após um longo trecho de afloramento de rochas, o rio revelou um extenso remanso sombreado. Foi então que Silvestre notou um longo fio de nylon que descia do alto do barranco até o centro do remanso.
— Estão vendo aquilo?! — gritou Silvestre.
— Onde?
— Lá no barranco. É um fio de nylon e parece bem esticado!
p. 78Os três se encheram novamente de esperanças. Então, se aproximaram do fio e começaram a suspendê-lo. O fio parecia estar preso ao fundo do leito. Mas logo notaram pequenos solavancos tencionando o fio em direção ao centro do remanso:
— Quando seguro o fio sinto pequenos puxões — disse Mariano.
— Isso pode ser o efeito da corrente do rio sobre o ponto onde o fio se acha preso — sugeriu Bhagat.
Então, seguiram para a margem e decidiram recolher o fio.
— Está pesado, talvez esteja preso a alguma pedra ou tronco.
— Agora, parece que se soltou um pouco. Vamos puxá-lo com cuidado para não romper, esse fio poderá nos ser de muita utilidade — advertiu Mariano.
— Está vindo. É bastante pesado.
— Vejam! Estou vendo alguma coisa. Está parecendo ser um pedaço de madeira.
— Nada disso, é uma tartaruga! — alardeou Silvestre.
A tartaruga devia pesar algo em torno de cinco quilos e estava presa ao fio por um anzol que lhe atravessava a mandíbula. Depois de algum tempo de peleja conseguiram retirar o anzol da boca do quelônio.
— O que vamos fazer, devolvemos a tartaruga ao rio? — perguntou Mariano.
— Nem pensar! — exclamou Silvestre. — Essa tartaruga vai virar um banquete. Vamos levá-la conosco.
— Concordo com Silvestre — disse Bhagat. — Sua carne vai nos render uma boa dose de proteína. Contudo, mais importante do que termos achado essa tartaruga será encontrar quem armou o fio com o anzol que a fisgou. Alguma isca estava neste anzol para atraí-la. Neste caso, deve haver um pescador.
E esse pescador pode residir em algum lugar não muito longe daqui. O que acham de tentar seguir o seu rastro?
— Da última vez em que tentei seguir os rastros de uma suposta manada de búfalos, terminei esbofeteado e algemado — lembrou Mariano.
Após muito refletirem sobre se deveriam, ou não, tentar seguir as pegadas do suposto pescador, decidiram que sim. Afinal, não havia melhor opção. Continuar a descer aquele rio poderia ser muito perigoso, considerando o grau de desnutrição em que se encontravam. E aquela tartaruga fisgada era uma forte evidência da presença de moradores nas proximidades. Assim, Mariano tomou a frente examinando todo o entorno do local onde o fio de pesca fora amarrado. E não demorou muito para descobrir pegadas humanas:
— Encontrei pegadas humanas indo naquela direção. São de alguém descalço e adulto, a julgar pelo tamanho da pegada — concluiu Mariano.
p. 79As pegadas seguiam sobre uma vereda de solo úmido e de cor acinzentada. Logo, perceberam que o suposto pescador não estava só, havia pegadas de um pequeno quadrúpede, certamente um cão, que o acompanhava de perto. Continuaram a seguir os rastros até ganharem um campo coberto por gramínias e pequenos arbustos de troncos tortuosos cujas cascas e folhas eram exageradamente grossas. Até aonde suas vistas podiam alcançar, a paisagem combinava algumas montanhas com nichos de florestas salpicados entre extensos campos como aquele onde estavam. As pegadas, devido à dureza das gramínias, já não se deixavam ver com tanta facilidade. Foi então que Bhagat pensou ter escutado vozes humanas:
— Pessoal? Tive a impressão de ter escutado vozes.
Valendo-se da mesma técnica de curvar as mãos em forma de concha posicionando-as detrás das orelhas para ampliar a capacidade auditiva, Mariano pediu silêncio. Virava-se lentamente, de um lado para o outro, até que ficou estático.
— O que foi que ouviu — perguntou Silvestre angustiado.
— Os ouvidos de Bhagat não o enganou. São, de fato, vozes humanas e vêm daquela direção — disse Mariano apontando o dedo.
Imediatamente seguiram na direção indicada por Mariano. Após uns vinte minutos de caminhada, Bhagat solta um berro:
— Duas crianças! Eu vejo duas crianças!
Lá estavam elas, duas crianças negras correndo sobre o descampado.
— Vamos até lá — disse Silvestre entusiasmado.
— Espere um pouco. Da última vez que vimos duas crianças, o jipe do pessoal da filmagem parou para conversar com elas — advertiu Mariano.
— Mas devemos estar muito além do perímetro determinado — amenizou Bhagat.
p. 80— Sabemos disso, mas precisamos agir com cautela — insistiu Mariano. — Sugiro que fiquem aqui. Enquanto isso, tentarei me aproximar ao máximo das crianças sem que elas me percebam.
Acatando a ideia, Bhagat e Silvestre esperaram. Passado algum tempo Mariano retorna:
— Senhores, consegui chegar muito próximo das crianças. Sabem o que vi além delas? Duas casas de morada!
— Contem-nos dos detalhes — pediu Bhagat.
— Bem, as casas possuem um pé direito baixo, são cobertas por folhas de palmeiras e revestidas de barro.
— E quanto às crianças? — perguntou Silvestre.
— As crianças falavam entre si, mas não pude entender uma só palavra, parecia com um desses dialetos tribais.
— Será que vão nos entender? Como será que vão reagir à nossa presença? Precisamos pensar em um plano de aproximação — sugeriu Silvestre.
Assim, decidiram fazer o mesmo que fizera Mariano, aproximar ao máximo sem serem notados, a fim de estudarem a situação. A uma distância segura, se esconderam entre a vegetação permanecendo estáticos, apenas olhando atentamente a todos os movimentos. Logo, as crianças recomeçaram as brincadeiras. Só que desta vez, não eram mais somente aquelas duas crianças, havia mais quatro com elas e traziam uma bola de futebol. Silvestre quase enlouquece ao escutar uma das crianças gritar “chuta a bola!”.
— Não posso acreditar, estão falando em português!
— Com certeza, devemos estar na África, em alguma ex-colônia portuguesa, talvez Moçambique ou Guiné-Bissau. — refletiu Bhagat.
— Vamos pedir a Silvestre que se aproxime das crianças, a fim de estabelecer o primeiro contato — sugeriu Mariano.