O VERDE DE MINHA ROÇA VEM DE MARTE • ISBN: 978-65-86422-43-6
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Por um fio (de nylon)

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Após terem decidido abortar as ordens informadas no pergaminho, o grupo permaneceu à beira do rio. A belíssima vegetação ripária lhes proporcionava abrigo e frescor, e aquelas águas, de um azul profundo, lhes saciavam a sede e ainda lhes forneciam variadas qualidades de peixes. Contudo, e apesar daquele oásis, um intenso sentimento de vazio lhes atravessava a alma. Extremamente magros e enfraquecidos, cada um, ao seu modo, procurava disfarçar a desesperança e o medo do fracasso. Jennifer percorria com as mãos a nova e dolorosa geografia que sua pele ganhara devido à exposição ao sol. Bhagat fitava o horizonte num misto de contemplação e esperança de que, a qualquer momento, de dentro daquela paisagem savânica, pudesse lhe saltar aos olhos, as respostas àquela situação. Manter a fogueira acesa e garantir alimentos parecia ser agora o único plano que restara.

Assim, Mariano se afastou do rio ganhando o barranco onde se achava Manolito. Lá, se colocou de costas, posicionou as mãos em forma de concha, colocando-as atrás dos ouvidos, criando uma forma concha acústica.

Não demorou muito para que Marinano e Manolito voltassem esbaforidos à beira do rio:

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Escalando um barranco que se elevava da outra margem do rio se esconderam entre a densa vegetação. O ronco do motor, cada vez mais próximo, os deixava apreensivos. Até que o veículo se deixou mostrar em toda a sua plenitude: tratava-se de um grande caminhão, do tipo militar, equipado com parabólicas e galões de combustível presos ao teto. Após parar a uma distância segura em relação à margem do rio, desceram três homens brancos acompanhados de um rapaz negro. Um deles seguia à frente segurando um aparelho, um tipo de sinalizador.

Um dos homens voltou para dentro do caminhão, retornando depois em trajes de mergulho.

Enquanto o mergulhador era atentamente observado pelo primeiro homem e o rapaz, um terceiro, posicionado no teto do caminhão, rastreava todo o entorno olhando pela mira de seu rifle. Após vários mergulhos malogrados o homem-rã submerge:

Após acharem a cápsula, os homens analisaram cuidadosamente todo o acampamento: a fogueira, os instrumentos e os restos de peixe. Em seguida, e sem retirarem nada do lugar, filmaram demoradamente todo o cenário. Depois, um dos homens sacou de seu bolso uma pequena caderneta de anotações e começou a ler aos berros:

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Vendo que não havia outra saída, Jennifer tomou a frente:

Assim que se deixaram mostrar entre as folhagens o cinegrafista da equipe começou a registrar. Terminada a travessia, Jennifer deixou que sua sanha de advogada entrasse em ação:

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Nada, absolutamente nada, poderia descrever as expressões estampadas nos rostos daqueles astronautas. Era como olhar para algo que ainda não existisse. E num ataque de fúria Manolito grita para o líder do caminhão:

Mas, conforme havia advertido o líder, o desabafo de Manolito sequer foi ouvido. O cinegrafista e toda a equipe permaneceram no local do acampamento registrando tudo, desde o momento da retirada dos peixes de dentro da armadilha, o preparo, até o momento em que o grupo se organizou em volta da fogueira para dormir. Depois disso seguiram com o caminhão para além das dunas.

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Nos dias que se seguiram, ainda motivados pelas conjecturas de Samira e Helga quanto à possibilidade de tudo aquilo ser parte de um grande Reality Show internacional, o grupo se esforçou em mostrar ampla competência adaptativa: Bhagat, Mariano e Silvestre impuseram as mesmas estratégias de obtenção de alimentos utilizadas no Parque Nacional de Awash, o que rendeu a conquista de algumas variedades de castanhas, palmitos de palmeiras e até favos de mel encontrados dentro do tronco de uma árvore caída, que conseguiram retirar com o emprego de fumaça, produzida pela queima de uma mistura de palha de capim, folhas e fezes secas de roedores. A simples presença do cinegrafista os enchia de motivação. Ainda que visivelmente abatidos fisicamente, devido a todas as dificuldades impostas, pareciam se esforçar ao máximo no sentido de poderem passar aos prováveis telespectadores uma imagem vigorosa, digna de um verdadeiro herói de cinema.

Numa manhã, Ichiro alardeia a descoberta de uma grande árvore repleta de ninhos de pássaros. Imediatamente, Samira, Helga e Manolito se colocam a disposição para ajudá-lo na coleta dos desejados ovos. Atento a todas as manobras do grupo, o cinegrafista e seu auxiliar partiram no encalço. Após vencerem algumas dunas, atravessaram uma extensa vereda, até chegarem a uma espécie de floresta de árvores desfolhadas.

Utilizando sua camisa, pelo menos o que sobrara dela, e uma galha emborcada, Manolito consegue improvisar uma espécie de coador para aparar os ovos. Ichiro, por sua vez, alcança as galhas inferiores da árvore e começa a visitar os ninhos:

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O primeiro ovo lançado encontra com precisão o coador de Manolito. A cena se repete com relativa facilidade até que os ninhos visitados dão sinal de esgotamento. Compenetrado, o cinegrafista não perde uma só cena daquela manobra. Com grande esforço, Ichiro consegue chegar até a última copa da árvore, justamente onde se encontravam os maiores ninhos.

Toda aquela operação parecia ser um sucesso total não fosse o fato de a equipe de solo testemunhar o corpo de Ichiro despencando da árvore atingindo o solo como um meteoro.

Mas para a surpresa de Samira, Helga e Manolito, o cinegrafista e seu auxiliar continuaram filmando a cena como se nada de grave houvesse acontecido. Sequer tentaram se comunicar com os outros homens do caminhão.

Indignada com toda aquela situação, Helga salta sobre o cinegrafista arrancando-lhe a câmera:

Em reação à atitude de Helga, o auxiliar do cinegrafista se aproxima, segura forte a câmera com uma das mãos, e com a outra desfere um forte soco em seu rosto fazendo-lhe desvencilhar da câmera. Imediatamente, Manolito empunha uma pedra e parte na direção do agressor. Porém, ao ver-se diante da mira de uma pistola, ergue os braços deixando a pedra cair.

Se afastando lentamente, o cinegrafista e seu auxiliar retomam as filmagens enquanto Manolito, Helga e Samira se desesperam.

Ao saberem do acontecido, o grupo ficou perplexo. Seguiram até o local do acidente e removeram Ichiro usando a mesma maca que utilizaram para o socorro de Jennifer.

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Assim, ao alvorecer, Manolito e Mariano seguiram com o combinado. O plano que traçaram incluía seguir uns dez quilômetros rio abaixo e depois seguir rumo a oeste, direção de onde havia surgido do caminhão. À medida que desciam pelo rio também nutriam a esperança de poderem encontrar pescadores locais a fim de conseguirem socorro.

Acompanharam o serpenteio do rio até a uma distância que julgaram aproximar da marca dos dez quilômetros. Como nada viram ou ouviram que pudesse sugerir a presença humana, decidiram por em prática a segunda parte do plano, ou seja, seguir na direção oeste. Atravessaram, então, um extenso areal, depois, um campo coberto por gramíneas e arbustos, chegando a uma vereda povoada por grandes palmeiras. O sol castigava impiedosamente.

Após seguirem a trilha da suposta manada de búfalos, por aproximadamente uma hora, ouviram gritos ao longe:

Caminhando na direção do veículo, Mariano e Manolito se põem a gritar e agitar os braços. Imediatamente, o jipe se afasta das crianças. Quanto mais o jipe se aproximava, mais os dois gritavam por socorro e agitavam os braços. Então, de dentro do jipe, desce um homem branco trajando óculos escuros e um quepe tipo militar. Em seguida, se aproxima de Manolito:

Manolito entra em pânico:

Tratava-se daquele homem da equipe de filmagem que lhe apontara a pistola.

Após algemá-los e colocá-los dentro do jipe, o homem do quepe desfere um golpe sobre a cabeça de Manolito deixando-o desacordado.

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O jipe seguia sacolejando por um interminável campo graminoso até que, ao perceber que Manolito recobrara a consciência, o motorista se pronunciou:

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Após alguns quilômetros o jipe chega ao acampamento. Imediatamente, Manolito e Mariano são liberados de suas algemas para se juntarem ao restante do grupo. Nenhum deles pronunciou uma só palavra. Não havia nada o que dizer; a fuga resultara em captura, e Ichiro não resistira aos ferimentos. Bhagat e Silvestre tiveram que sepultá-lo ali mesmo próximo ao rio.

Nesse exato momento surge por entre as árvores o líder da equipe de filmagem:

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Imediatamente após ter respondido às perguntas de Jennifer, o líder da equipe deu as costas ao grupo não deixando chance para mais questionamentos. Aquela situação colocou o grupo diante de mais uma daquelas encruzilhadas na qual teriam que escolher uma direção.

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Nenhum dos três quis responder à provocação de Manolito, preferiram continuar participando das operações de busca de alimentos com o restante do grupo.

Nos dias que se seguiram ninguém mais voltou a falar sobre as opções de cada um quanto à permanência no programa. Todos se mantinham ocupados com a nutrição, enquanto os cinegrafistas realizavam suas tomadas.

Mas numa manhã, Bhagat convoca Mariano e Silvestre para uma conversa em separado. Decidiram, então, conversar dentro do rio, pois pareceria um encontro casual para um banho como os vários que realizavam durante o dia.

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Mariano e Silvestre seguiram à risca o plano de Bhagat. E na manhã combinada os três se lançaram rio abaixo. O medo os acompanhava a cada curva, mas estavam determinados. As dificuldades foram imensas: enfrentaram quedas d’água, passaram por debaixo de troncos, se esfolaram em pedras e até pernoitaram sobre um barranco sem a costumeira proteção da fogueira, pois temiam que fossem avistados por algum sistema de rastreamento. Ao raiar do dia, após aquela interminável noite gelada e escura, comeram seus últimos pedaços de palmitos e continuaram a descida do rio. A fome e o cansaço roubavam-lhes a esperança, e em seus rostos já estampava o desespero. Agarrado a um tronco flutuante, Silvestre mantinha seu olhar fixo nas margens do rio. De quando em vez, Mariano escalava algum barranco na esperança de enxergar algum nativo ou comunidade. Após um longo trecho de afloramento de rochas, o rio revelou um extenso remanso sombreado. Foi então que Silvestre notou um longo fio de nylon que descia do alto do barranco até o centro do remanso.

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Os três se encheram novamente de esperanças. Então, se aproximaram do fio e começaram a suspendê-lo. O fio parecia estar preso ao fundo do leito. Mas logo notaram pequenos solavancos tencionando o fio em direção ao centro do remanso:

Então, seguiram para a margem e decidiram recolher o fio.

A tartaruga devia pesar algo em torno de cinco quilos e estava presa ao fio por um anzol que lhe atravessava a mandíbula. Depois de algum tempo de peleja conseguiram retirar o anzol da boca do quelônio.

E esse pescador pode residir em algum lugar não muito longe daqui. O que acham de tentar seguir o seu rastro?

Após muito refletirem sobre se deveriam, ou não, tentar seguir as pegadas do suposto pescador, decidiram que sim. Afinal, não havia melhor opção. Continuar a descer aquele rio poderia ser muito perigoso, considerando o grau de desnutrição em que se encontravam. E aquela tartaruga fisgada era uma forte evidência da presença de moradores nas proximidades. Assim, Mariano tomou a frente examinando todo o entorno do local onde o fio de pesca fora amarrado. E não demorou muito para descobrir pegadas humanas:

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As pegadas seguiam sobre uma vereda de solo úmido e de cor acinzentada. Logo, perceberam que o suposto pescador não estava só, havia pegadas de um pequeno quadrúpede, certamente um cão, que o acompanhava de perto. Continuaram a seguir os rastros até ganharem um campo coberto por gramínias e pequenos arbustos de troncos tortuosos cujas cascas e folhas eram exageradamente grossas. Até aonde suas vistas podiam alcançar, a paisagem combinava algumas montanhas com nichos de florestas salpicados entre extensos campos como aquele onde estavam. As pegadas, devido à dureza das gramínias, já não se deixavam ver com tanta facilidade. Foi então que Bhagat pensou ter escutado vozes humanas:

Valendo-se da mesma técnica de curvar as mãos em forma de concha posicionando-as detrás das orelhas para ampliar a capacidade auditiva, Mariano pediu silêncio. Virava-se lentamente, de um lado para o outro, até que ficou estático.

Imediatamente seguiram na direção indicada por Mariano. Após uns vinte minutos de caminhada, Bhagat solta um berro:

Lá estavam elas, duas crianças negras correndo sobre o descampado.

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Acatando a ideia, Bhagat e Silvestre esperaram. Passado algum tempo Mariano retorna:

Assim, decidiram fazer o mesmo que fizera Mariano, aproximar ao máximo sem serem notados, a fim de estudarem a situação. A uma distância segura, se esconderam entre a vegetação permanecendo estáticos, apenas olhando atentamente a todos os movimentos. Logo, as crianças recomeçaram as brincadeiras. Só que desta vez, não eram mais somente aquelas duas crianças, havia mais quatro com elas e traziam uma bola de futebol. Silvestre quase enlouquece ao escutar uma das crianças gritar “chuta a bola!”.