— Alguém faz ideia sobre que lugar é este? — perguntou Jennifer.
— Não faço a mínima ideia. Só sei que é muito quente e que há areia por todos os lados— disse Ichiro.
— Será que estamos em algum ponto do Saara como sugeriu Manolito? — perguntou Helga.
— Pode ser senhorita. Mas, antes precisaremos fazer um reconhecimento do entorno para arriscarmos algum palpite.
— Se for mesmo o Saara, isso significa que estamos ferrados. Será o nosso fim! — exclamou Samira desesperada.
— Também não é assim pessoal. O Saara é gigante. Seu território possui quase dez milhões de quilômetros quadrados. Sabe o que isso significa? Significa que seu tamanho equivale a toda área da Europa, ou de muitos países gigantes como a Índia, Austrália, Estados Unidos e Brasil. O Saara também abriga inúmeros países como Mali, Mauritânia, Marrocos, Níger, Sudão, Tunísia e outros. Portanto, todo esse enorme território não é formado apenas de dunas de areia, há também uma grande variedade de domínios morfoclimáticos e fitogeográficos; incluindo aí uma diversidade étnica e faunística. Com um pouco sorte, podemos estar em algum ponto do Saara onde há boas condições de sobrevivência — tentou amenizar Bhagat.
Por aproximadamente duas horas, o grupo permaneceu no ponto exato onde foram despejados do contêiner. Com olhares atentos, fitavam o horizonte na esperança de enxergar alguma paisagem menos árida.
— Isso é desesperador — comentou Ichiro. — Se não pensarmos em algo rápido morreremos estorricados aqui neste lugar.
— Ichiro tem razão — disse Helga. — Se continuarmos aqui esperando por Silvestre, poderemos pagar com as nossas vidas. Além do mais, penso que os pilotos do helicóptero não iriam deixar que acontecesse algo de ruim a ele; afinal de contas isso seria um assassinato. Não acham?
— Quem poderia incriminar alguém neste fim de mundo, senhorita Helga? — questionou Manolito.
— Então, o que faremos?
— A minha sugestão — disse Mariano. — É a de que juntemos, entre todas as coisas que conseguimos retirar do contêiner, aquelas que forem vitais a nossa sobrevivência, como água, cereais, pedaços de couro, algumas ferramentas líticas e lanças. Depois, seguimos a declividade do relevo, a fim de encontrarmos um curso d’água.
p. 55Após improvisarem uma espécie de maca, usando partes dos couros do Oryx e da Píton, acomodaram sobre ela as coisas que julgaram mais importantes e deram início a caminhada.
— Vejam aquilo! — exclamou Mariano.
— Onde? Não vejo nada.
— À direita, aproximadamente a um quilometro de distância. Parece estar se movendo.
— Não parece estar se movendo — disse Helga. — Pode ser uma rocha ou um arbusto, qualquer coisa!
— Não, senhorita. Está se movendo sim.
— Como sabe que está se movendo?
— Estabeleci um ponto fixo como referência.
—Ah...
— Agora eu vejo também — concordou Ichiro. — E parece ser uma pessoa!
— Mas, como pode ser uma pessoa se no pergaminho estava escrito que a área estaria completamente isolada?
— Está parecendo ser o Silvestre! — exclamou Bhagat entusiasmado. — Vamos todos acenar e gritar para que ele nos perceba.
— Vejam! Ele está acenando para nós.
— E se não for o Silvestre? Podemos estar sendo atraídos para uma emboscada — advertiu Jennifer.
Após andarem mais uns trezentos metros, certificaram-se da presença de Silvestre.
— Meu Deus! O que aconteceu?
— Está ferido?
— Você pulou do helicóptero?
— Em que lugar eles deixaram você?
— O que conseguiu enxergar lá de cima?
— Diga alguma coisa, pelo amor de Deus!
— Calma pessoal, deixe o cara respirar, uma pergunta de cada vez! — repreendeu Manolito.
Mas Silvestre não disse uma só palavra. Preferiu ficar olhando para o rosto de cada um, esboçando um semblante de muita tranquilidade.
— Espere aí, que cara é essa?! — perguntou Ichiro encabulado. — Ficamos horas esperando por você sob esse sol escaldante, preocupadíssimos com o que poderia ter-lhe acontecido, e você não diz nada, e ainda fica com essa cara de domingo feliz?!
— Talvez ele esteja em estado de choque — disse Helga.
— Não é nada disso que estão pensando — tranquilizou Silvestre. — Quando os pilotos notaram a minha presença no interior do contêiner, retornaram com o helicóptero e sobrevoaram um local simplesmente maravilhoso, com um belíssimo rio de águas cristalinas, margeado por uma rica vegetação e uma praia de areia branquinha. Depois, pairaram sobre o leito do rio, e, a uma altura de mais ou menos uns dez metros, me mandaram saltar. Vocês não fazem ideia...
p. 56— Será que não foi uma alucinação, uma miragem?
— Consegue nos levar até lá?
— Sim! Não é muito distante daqui.
— O que temos a perder? — perguntou Manolito. — Se ficarmos aqui sofreremos uma insolação fatal.
Assim, o grupo reiniciou a marcha, agora guiados por Silvestre. Tudo que conseguiam ver era uma longa declividade por uma duna de areia que parecia não ter fim.
— Silvestre? Você tem certeza de que estamos na direção certa? – perguntou Ichiro angustiado.
— Tenho sim. Após passarmos aquele afloramento de pedras à esquerda será possível enxergar a vegetação ao longo do rio.
— Aquelas pedras parecem estar do outro lado do mundo! – reclamou Samira.
— Pessoal, aguentem firme! Mais meia hora de caminhada, no máximo, estaremos lá – disse Silvestre, na tentativa de minimizar o sofrimento.
Circulando o tal afloramento de pedras, que parecia ter sido cuidadosamente despejado sobre as dunas, o grupo pôde então vislumbrar a vegetação ciliar que acompanhava o sinuoso curso d’água.
— Silvestre, foi Deus quem mandou você de volta! — agradeceu Samira caindo de joelhos sobre a areia escaldante.
— Vejam! Jennifer está desacordada! — gritou Mariano.
— Por favor, se afastem. Deixe-me vê-la — acorreu Helga. — Vamos precisar carregá-la até o rio. Coloquem-na sobre a maca.
— Isso mesmo. Vamos retirar as coisas da maca, amontoá-las sobre as pedras e depois voltamos para apanhá-las — sugeriu Manolito.
— Cubram o rosto dela com aquele pedaço de couro, para que o quadro não se agrave ainda mais — solicitou Helga.
— Não consigo andar nem mais um metro — reclamou Ichiro.
Agarrados à maca, e praticamente rastejando, o grupo conseguiu alcançar a beira do rio. Silvestre não perdeu tempo, foi logo se jogando naquele oásis de água azul.
— Pessoal, entrem logo! O que estão esperando?!
— Vamos mergulhar a Jennifer na água para hidratar o seu corpo — sugeriu Helga.
Lentamente, Jennifer foi recobrando os sentidos.
— O que está acontecendo?
— Você desmaiou devido à exposição ao sol. Agora está tudo bem. Silvestre nos guiou até este rio.
p. 57— Que água deliciosa!
— Será que podemos bebê-la? E se estiver contaminada?
— Ou bebemos, ou morreremos desidratados.
— Só o tempo nos dirá. Se estiver contaminada não demorará muito até que nossos organismos revelem algum tipo de intoxicação – concluiu Helga.
— Esse lugar é incrível! — exclamou Bhagat. — Rio cristalino, caudaloso e uma boa vegetação ripária. Proponho que organizemos um grupo de reconhecimento da área.
— Estamos muito fracos para sairmos andando por aí — protestou Ichiro.
— Mais uma razão para não perdermos tempo. Quanto mais rápido sabermos das condições do ambiente mais rápido conseguiremos buscar soluções para nos estabelecermos — replicou Mariano.
— E o que vocês propõem?
— Sugiro que eu, Manolito e Mariano façamos o reconhecimento da área. Enquanto isso, Silvestre e Ichiro voltam até às pedras para buscarem nossos pertences. Nesse meio tempo, Helga e Samira ficam cuidando de Jennifer — sugeriu Bhagat.
— E mais um detalhe — lembrou Mariano. — Um de vocês deve montar guarda em algum ponto mais elevado, para o caso de alguma fera se aproximar e se sentir ameaçada com a nossa presença.
— E o que faremos caso isso aconteça? Ameaçamos a fera com as nossas armas de brinquedo? — ironizou Helga.
— Isso mesmo! — aconselhou Mariano. — Mostrem as lanças, pulem e gritem bem alto, olhando bem dentro do olho da fera. Fazendo isso, talvez ela sinta mais medo de vocês do que vocês dela.
— Isso é muito animador...
— Já ia me esquecendo — completou Manolito. — Sugiro que reúnam todo o cereal que sobrou e tentem fazer uma fogueira, pois não dispomos de muito tempo até o sol se pôr.
Seguindo o plano, Manolito, Mariano e Bhagat iniciaram a caminhada de reconhecimento tendo como referência o curso do rio.
— Estão vendo aquela elevação com uma grande árvore? — perguntou Mariano. — Acho que se conseguirmos chegar até lá e subirmos na árvore teremos uma visão ampliada da região.
Assim alcançaram a árvore.
— Como vamos alcançar os galhos?
p. 58— Faremos uma escada humana. Eu subo nos ombros de Mariano e sustento Bhagat sobre os meus, para que ele, assim, alcance aquele primeiro galho. Combinado?
Mesmo fadigados e famintos, Mariano e Manolito conseguiram suportar Bhagat possibilitando-lhe alcançar o primeiro galho da imensa árvore.
— Suba com cuidado Bhagat — advertiu Manolito preocupado.
— O que vê daí de cima? — perguntou Mariano ansioso.
— Calma! Vamos dar tempo a ele — repreendeu Manolito.
Com as pernas enganchadas em um dos galhos, Bhagat se manteve imóvel fitando o horizonte.
— Pronto. Já posso descer.
— Então?!
— Ainda é cedo para tirarmos alguma conclusão. Contudo, algumas evidências me fazem arriscar um palpite — disse Bhagat cauteloso.
— Ainda estamos na África? — se adiantou Mariano.
— Bem, eu não avistei nenhum animal que compõe a megafauna africana, ou seja, nenhum mamífero herbívoro de grande porte, como o elefante, a zebra, o gnu, o antílope, nada parecido.
— Talvez a presença de felinos nas redondezas tenha afugentado esses herbívoros — sugeriu Manolito.
— Pode ser...
— Mas então, qual é o seu palpite? — perguntou Manolito.
— Bem, percebi a presença de alguns urubus, mas isso não é um indicador seguro, a menos que eles estivessem muito próximos a ponto de conseguirmos identificar a quais subespécies pertencem. Ainda assim, ornitologia nunca foi o meu forte.
— E qual é o seu “forte”, então? — insistiu Manolito.
— Biologia botânica, meu amigo. Entretanto, ecologia sempre foi a minha grande paixão. E com base em meus conhecimentos — continuou Bhagat. — Arriscaria o palpite de que ainda estamos em algum ponto da África.
— Como assim?! Por que, então, nos transportariam por tantas horas se ainda estamos na África? — perguntou Mariano.
— Talvez para nos deixarem confusos — disse Manolito
— É como eu já havia dito, o continente africano é gigante. Podemos estar em qualquer parte dele — afirmou Bhagat.
— O que faz pensar assim? — perguntou Manolito.
— Bem, com base em algumas evidências fitofisionômicas.
— Pode nos explicar melhor?
p. 59— Estou falando de um conjunto de características ou particularidades que uma vegetação apresenta em seus ecossistemas específicos. Do alto da árvore foi possível verificar que estamos em uma formação savânica. As savanas são encontradas em regiões tropicais e subtropicais. Essas formações apresentam grande variedade fisionômica onde se podem encontrar, intercalados, campos graminosos, espécies arbustivas, herbácias e formações florestais, como essa que acompanha o curso deste rio.
— Então, estamos em uma savana africana, e, agora, só nos resta saber em qual país da África, não é mesmo? — concluiu Mariano.
— Não é simples assim, meu amigo.
— Como assim?! Não foi você mesmo quem acabou de dizer que estamos em uma savana, etc e etc.? — perguntou Mariano confuso.
— O fato é que os ecossistemas de savana ocorrem em mais de 30 países, e cobrem uma extensão de aproximadamente 20 milhões de quilômetros quadrados. As savanas estão distribuídas geograficamente tanto na África como na América do Sul, na Oceania, na Ásia. Fatores combinados, por exemplo, clima, onde predominam duas estações distintas, uma chuvosa e outra seca; solos, suas qualidades físico-químicas e biológicas, ou seja, níveis de acidez, pobreza de nutrientes, baixos níveis de fósforo, etc.; ocorrência do fogo; ação do homem e o pastejo de herbívoros. Juntos, esses fatores determinam as formas fisionômicas de cada savana.
— Então, podemos estar em qualquer um desses continentes, é isso?
— Tecnicamente sim. A menos que nos certifiquemos da presença da megafauna africana. Por enquanto — continuou Bhagat. – Meu palpite é o de que estamos dentro de uma formação savânica conhecida como Miombo.
— Miombo?!
— Isso mesmo. Trata-se de uma formação savânica, com fisionomias variadas e árvores que deixam cair suas folhas durante as estações de seca. O Miombo ocorre na África Central e do Sul, mais especificamente em Angola, Congo, Zâmbia, Malauí, Zimbábue, Moçambique, Namíbia, Botsuana e África do Sul.
— E essas gigantescas dunas de areia, isso não é um indicativo de que estamos no Saara? — continuou Manolito.
— Talvez. Mas, se estivermos no Saara, devido à ocorrência dessas características fitofisionômicas, incluindo a presença deste rio, certamente, estamos na região do Sahel.
— Sahel?!
— Exato. Trata-se de uma zona de transição entre a ecozona paleoártica e a ecozona afro-tropical, ou seja, entre a aridez do Saara e a fértil da savana sudanesa (no sentido norte-sul).
— Melhor voltarmos – sentenciou Manolito desapontado.
Para retornarem, preferiram seguir o curso do rio, dentro da mata ciliar.
— Vejam aquilo!
— Onde?
— Ali naquele buraco. Uma serpente! Pode ser a nossa única chance do dia para arranjarmos uma fonte de proteína.
— Manolito? Você vai puxá-la para fora do buraco; quando ela estiver fora eu e Bhagat a atingimos na cabeça.
Pronto. Estou puxando. Ajam rápido! Não quero ser picado aqui neste fim de mundo.
— Puxe Manolito!
— Está muito pesada!
— Não é uma cobra! — exclamou Mariano. — É um lagarto enorme. Vou ajudá-lo com a cauda e Bhagat assume com a pedra.
p. 60Apesar de o lagarto ter lutado bravamente pela vida, Bhagat concluiu o plano esmagando o seu crânio com uma enorme pedra.
— Ele deve medir aproximadamente um metro e meio.
— Maravilha! Isso vai alimentar todo o nosso grupo.
— Então, Bhagat, você diria que esse lagartão faz parte da megafauna africana? — indagou Manolito.
— Pode ser. Mas, lagartos como este também ocorrem na maior parte das formações savânicas pelo mundo.
Tudo dera certo naquele primeiro dia; se fartaram com o churrasco de lagarto, se hidrataram nas generosas águas do rio e adormeceram sobre a fina areia branca junto à fogueira.
— Bom dia pessoal! Hoje teremos um dia cheio — anunciou Manolito.
— Cheio de que? — resmungou Helga.
— Estava pensando, o que vocês acham de construirmos uma armadilha para peixes — propôs Manolito entusiasmado. — Estive observando o rio por horas, e pude ver muito movimento de peixes.
— Aprovo a ideia da armadilha — disse Helga. — Só de pensar em ter que comer outro lagarto....
— Muito bem, quem ajudará Manolito com a armadilha? — perguntou Silvestre.
— Eu ajudo — se ofereceu Ichiro.
— Neste caso, podem contar também comigo — disse Silvestre.
— E os demais, o que farão? — perguntou Samira.
— Os demais podem começar a pôr o plano em andamento — lembrou Manolito.
— Plano?! Temos um? — perguntou Ichiro e tom sarcástico.
— Não se recorda do que estava escrito no pergaminho, ou prefere que eu desenhe para você? — censurou Manolito.
— Não precisa — retrucou Ichiro. — Segundo o que diz o pergaminho, deveremos escolher um local adequado para o estabelecimento de uma base permanente de ocupação, a fim de montarmos uma espécie de colônia sustentável, e blá-blá-blá. Então, mãos à obra! Por onde começaremos, pela construção do prédio da prefeitura? — continuou a ironizar.
— Aí, pessoal, já que entramos no assunto, sugiro que conversemos, com muita seriedade, a respeito desses planos informados no pergaminho — disse Helga.
— Todos de acordo?
— A minha ideia — se adiantou Samira. — É a de começarmos pela seguinte pergunta: quais são as nossas chances de realizarmos esse plano com sucesso?
— Posso responder primeiro? — perguntou Mariano.
p. 61— Tenha bondade, Sr. Mariano. Somos todos ouvidos — disse Jennifer.
— Pois bem, eu diria que temos zero de chances.
— Poderia explicar melhor?
— Raciocinem comigo — iniciou Mariano. — Se estivermos mesmo em algum local da África, como pensa Bhagat, a única forma de nos mantermos vivos será a de reproduzirmos um padrão de sobrevivência do tipo caçador e coletor. Neste caso, a construção de uma base permanente de ocupação seria uma grande perda de tempo, já que caçadores e coletores precisam se deslocar constantemente.
— Mas somos um grupo de pessoas com muitas habilidades. Talvez consigamos reverter esta situação — ponderou Helga.
— Já que falou em habilidades — prosseguiu Mariano. — Proponho que reflitam sobre a longa história adaptativa humana, que se iniciou exatamente no continente africano, há pelo menos dois milhões de anos antes do presente.
— Mas, o que tem a ver esse passado distante da África com o nosso dilema atual? — interrompeu Jennifer impaciente.
— Senhorita Jennifer, as condições ambientais em regiões biogeográficas como essa, onde nos encontramos agora, sempre foram marcadas por variações climáticas de diferentes graus de intensidade e duração, com ocorrências tanto de glaciações como de elevação de temperatura. E foi exatamente dentro desse cenário de oscilação climática que os primeiros grupos humanos começaram a escrever sua longa história adaptativa, ou, se preferir, seu longo processo de desenvolvimento de habilidades.
— Tudo bem, mas e daí?
— Daí que os grupos humanos que atravessaram todo o pleistoceno e depois o holoceno se tornaram tão complexos como os próprios ecossistemas de savanas. Em outras palavras, enquanto sobreviviam às constantes variações climáticas e alterações ecológicas foram produzindo sistemas complexos adaptativos como sistemas de crenças, arte, linguagem falada e simbólica, organização sociopolítica, etc. Toda essa sofisticação cultural foi se reproduzindo, geração após geração, pela conservação de práticas, capazes de mantê-los integrados e mutualmente colaborativos, como sistemas de coleta seletiva, construção de abrigos e agasalhos, domesticação de plantas e animais, agricultura e arquitetura, desenvolvimento de conhecimentos sobre astronomia, marcadores de tempo, sistemas de contagem, entre outros.
— Espere um pouco — interrompeu Manolito. — O amigo está querendo nos dizer que não temos chances porque as habilidades que possuímos em nada nos ajudaria a sobreviver neste lugar, é isso?
— Não é bem assim — continuou Mariano. — Até podemos sobreviver neste lugar, mas, jamais conseguiremos nos estabelecer como uma colônia, por uma simples razão: não fazemos parte da história adaptativa deste lugar. E ainda que pudéssemos vagar por aí, para além do perímetro que nos fora imposto, encontraríamos tremendas dificuldades para estabelecermos qualquer tipo interação com os outros grupos locais da região, uma vez que sempre seríamos vistos como invasores em seus territórios.
— Mas, não teria sido, justamente por causa desses possíveis estranhamentos, que a agência espacial optou por nos manter afastados de qualquer possibilidade de contato com outros grupos locais? — observou Jennifer.
p. 62— Pode ser — concordou Mariano. — Mas há uma questão central: um acampamento permanente, em plena savana tropical africana, não poderia alcançar sucesso adaptativo sem a ocorrência da diversificação e especialização da produção em termos de agricultura e da criação de animais domésticos. E até onde eu sei, sementes selecionadas e matrizes para reprodução não se conseguem de uma noite para o dia. E na nossa situação atual, ou seja, partindo da estaca zero, só conseguiríamos tais coisas por meio de intercâmbios culturais, isso se houvesse entre nós alguém que dominasse algumas das línguas faladas entre os grupos étnicos locais. Só para vocês terem uma ideia, devido às chuvas nas savanas africanas serem sazonais e inconstantes, os diversos grupos humanos precisaram estabelecer sofisticados sistemas de produção que combinassem agricultura com nomadismo sazonal. Porém, tais sistemas de produção só funcionam com base em intrincadas relações interculturais. Dito de outra forma, as diversas culturas locais, para manterem a si e seus rebanhos a salvo, estabelecem complexos sistemas de intercâmbios adequados à obtenção de acesso à água e a pastagens naturais, geralmente ocupados por outros grupos étnicos. E tais intercâmbios envolvem desde a troca de carne por cereais, até alianças por meio de casamentos arranjados, sistemas de divisão de rebanho entre parentes, guerras, rituais, e muitas outras tradições que se mantêm há dezenas de gerações. Compreendem agora o eu quis dizer com fazer parte de uma história adaptativa local?
— Devemos concordar com Mariano — disse Bhagat. — Invariavelmente, sempre que nos deparamos com situações de sucesso adaptativo entre grupos humanos tradicionais em seus ecossistemas locais, seja nesta parte do mundo, como em qualquer outra parte, estaremos diante de comunidades que conseguiram atingir altos níveis de arraigamento ecológico.
— Mas, o que nos impede de também atingirmos tais níveis? — insistiu Manolito.
— Muitas coisas — concluiu Bhagat. — Não se alcança tal condição, como bem disse Mariano, de uma noite para o dia. O arraigamento ecológico é um conjunto de estratégias adaptativas, historicamente construídas em situações de enfrentamentos recorrentes às perturbações do meio. Com o tempo, e se essas interações permanecerem congruentes, tais estratégias se consolidam numa verdadeira constelação de padrões de ação, integrados e combinados entre si. Tais padrões podem ser vistos sob as mais diversas formas, podendo variar desde o controle sobre o entorno (conhecimento das condições edafoclimáticas e fitofisionômicas do ambiente), passando pela produção de intricados sistemas cosmológicos e cosmogônicos, chegando até o estabelecimento de políticas de convívio com as populações envolventes.
— Mas, se essas populações locais estão tão bem arraigadas ecologicamente, como você mesmo disse, por que, então, assistimos pelos noticiários tanta miséria, doença e desnutrição na África? — desafiou Helga.
p. 63— Mesmo que uma dada comunidade tenha alcançado e mantido níveis elevados de arraigamento ecológico, isso não lhe garante sucesso adaptativo permanente. Esses sistemas socioecológicos tradicionais sempre foram atingidos, em menor ou maior grau, por guerras, oscilações climáticas abruptas e doenças. Veja, por exemplo, o que ocorreu na África oriental, nos inícios do século vinte, quando uma terrível epidemia provocada pela tripanossomíase, a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé, causou perdas e devastações terríveis às populações e aos rebanhos bovinos; isso sem contar o carbúnculo hemático que ainda hoje representa uma grande ameaça. Contudo, eu diria que esses nossos parentes remotos colecionaram muito mais sucessos adaptativos do que fracassos, durante esses últimos dois milhões de anos. Do contrário, não estaríamos aqui para contar essa história, não é mesmo? Agora, quanto ao que assistimos nos noticiários — concluiu Bhagat. — Podemos dizer que é o resultado de incontáveis formas de interações desfavoráveis porque vêm sofrendo as populações nativas da África, desde que algumas nações europeias, que se autodenominaram “civilizadas”, iniciaram suas práticas insanas de exploração econômica sobre esse continente. Mas essa história todos vocês já conhecem, não é mesmo? Escravidão, colonização, genocídio, exploração de reservas minerais, apartheid, guerras fabricadas, etc. e etc.
— Pessoal? E se esse tal Edward Banks e sua equipe, mesmo antes de nos impor tal desafio, já sabiam de tudo isso que Mariano e Bhagat acabaram de nos dizer? — questionou Samira.
— Se já sabiam, por que então nos imporia tal desafio? — completou Manolito.
— Sinceramente, não faço ideia — disse Mariano. — Talvez fosse para nos confundir, ou até mesmo para testar nossas capacidades de resolução de problemas, sabe-se lá...
— O que faremos, então? Abandonamos as ordens contidas no pergaminho? — perguntou Ichiro.
— Querem saber a minha opinião? — se adiantou Silvestre. — Devemos abandonar completamente essa ideia insana de colônia sustentável.
— Concordo com Silvestre — disse Samira. — Mas, há um plano B?
— O plano B — interferiu Mariano. — Se iniciará no exato momento em que dermos as costas ao pergaminho. O plano será sobreviver a todo custo fazendo exatamente igual a tudo o que fizemos no Parque Awash. Simples assim!
— E as consequências disso? — perguntou Ichiro.
— Quanto a isso, teremos que pagar para ver — sentenciou Bhagat. — Contudo, se estamos em um desafio adaptativo, penso que deveremos ser avaliados, sobretudo, pela nossa capacidade de tomarmos decisões acertadas, ou seja, decisões que possibilitem a sobrevivência de todos os membros do grupo.