— Fumaça! — gritou Silvestre. – Com certeza é o nosso acampamento.
Bhagat já os esperava, conforme havia prometido, com algumas aves assadas que conseguiu capturar fazendo uso da arapuca.
— Apreciem o banquete meus amigos.
— Estamos famintos! Que bom que a armadilha funcionou.
— Foi mais fácil do que eu esperava — disse Bhagat. — Devido a abundância de aves à beira do riacho, em algumas vezes que ela desarmou, nossa arapuca chegou a capturar três aves de uma só vez!
— E o pergaminho, vocês conseguiram?
— Está dentro desta cápsula. Temos que reunir todo o grupo para poder abri-la.
Destravadas as combinações, Jennifer se antecipou para a leitura do pergaminho:
“Queridos astronautas, se estão lendo este pergaminho sintam-se honrados, pois venceram a primeira fase do desafio adaptativo. No momento em que abriram a cápsula foi acionado um localizador que guiará o nosso helicóptero até vocês, a fim de conduzi-los até o local da próxima e última etapa. Portanto, vocês têm exatamente cinco horas para reunirem todas as ferramentas, armas e utensílios que produziram, juntamente com alimentos e água até a chegada da aeronave. Pois, tanto durante o voo como após o desembarque, nenhum alimento ou material lhes serão fornecidos. Quanto ao local escolhido para a realização da última etapa, vocês ficarão confinados em uma área de vinte quilômetros quadrados, sem qualquer possibilidade de contato com outros da espécie humana, pois foi estabelecido um acordo de evacuação total da área entre a nossa organização e o governo local de onde se realizará a prova. Assim, o perímetro escolhido permanecerá em completo isolamento até o encerramento da etapa. Qualquer um de vocês que ultrapassar os limites estabelecidos, independente dos motivos apresentados, será imediatamente desligado do programa. Dentro do perímetro determinado, vocês deverão escolher um local adequado para o estabelecimento de uma base permanente de ocupação. E durante um período de dois anos, o grupo deverá criar uma colônia autossustentável que inclua abrigos, produção e armazenamento de alimentos, uso de fontes de energia e água, ferramentas, equipamentos, vestuário, autogestão e meios de higiene e saúde”.
Após a leitura de Jennifer, Manolito, intempestivamente, se apodera da cápsula que continha o pergaminho e a arremessa com toda a sua força contra o solo:
— Malditos! Isso só pode ser uma brincadeira. Como podem querer que fiquemos em um lugar desconhecido por dois anos, e ainda construir uma “colônia autossustentável?!” — berrou Manolito inconformado.
O pergaminho, então, circulou de mão em mão pelo grupo, mas, ninguém, além de Manolio, quis se pronunciar a respeito. Ou não sabiam o que dizer, ou dividiam com ele o mesmo espanto. Aquele parecia ser o momento mais angustiante desde que chegaram ao parque.
— Alguém, por favor, diga alguma coisa! — provocou Manolito.
— Aquela cápsula que você arremessou, se ainda estiver inteira, dará um excelente cantil — disse Silvestre, na tentativa de amenizar o clima de tensão.
— Sim. Dará um excelente cantil — concordou Bhagat, sem ter mais o que acrescentar.
— E se desistirmos? — provocou Ichiro. — O que poderá nos acontecer?
p. 46— Provavelmente — respondeu Jennifer. — Caminharemos de volta até o portão de entrada do parque, e, depois, cada um de nós tentará uma carona para casa. Ou você acha que o tal helicóptero o levará até a casa de sua mamãe?
— Já que se sente tão esperta, senhorita Jennifer, o que sugere então? — desafiou Ichiro enfezado.
— Não sugiro nada!
— Olhem para cada um de nós — interrompeu Samira. — Chegamos a este parque há poucos dias e estamos completamente esfarrapados, fedorentos e amedrontados.
— Mas, vivos! — rebateu Bhagat.
— Pelo visto, já fez a sua escolha. Não é mesmo Sr. Bhagat? — perguntou Samira irritada.
— Eu escolho viver, senhorita Samira — rechaçou Bhagat.
— Que maravilha! Dois anos, sabe-se lá onde, construindo uma colônia feliz... Como vamos chamá-la? Mars Ville? — ironizou Samira.
— Diga-me senhorita, por que então aceitou se inscrever para esta prova? Pensou que fosse apenas mais um daqueles programas televisivos do tipo Reality Show? — desafiou Bhagat.
— Claro que não! Tive os meus motivos, mas não vou compartilhá-los com nenhum de vocês.
— Parece que acabamos de produzir um interessante contrassenso — disse Silvestre. — Estamos apavorados diante do desafio de ter que passar dois anos em algum lugar qualquer do nosso planeta, e, no entanto, nenhum de nós mostrou-se preocupado com a ideia de ter que passar o resto da vida dentro de uma minúscula estação espacial, a uma distância média de 225 milhões de quilômetros da Terra. Vocês não acham isso, no mínimo, curioso?
— Neste caso, não temos uma terceira opção — concluiu Helga. — Ou enfrentamos o desafio, ou retornamos aos nossos medíocres lugares sociais.
— Queira me desculpar, senhorita Helga, mas, o que quis dizer com “medíocres lugares sociais”? — perguntou Mariano.
— É isso mesmo que está pensando, Sr. Mariano. Estou me referindo ao nosso insignificante lugar social – completou Helga.
— Não me sinto insignificante, senhorita — rebateu Mariano. — Alguém aqui se acha insignificante?
— Ótimo! Vejo que finalmente começamos a “rolar os dados...” — provocou Jennifer. — O que, verdadeiramente, nos trouxe até aqui? Fama? Dinheiro? Desilusão? Vamos! Quem vai atirar a primeira pedra?
— Não precisamos entrar nesse seu “joguinho da verdade” – contestou Samira.
— Mas não fui eu quem começou esse jogo. Não é mesmo Helga? — acusou Jennifer.
— Vamos deixar de hipocrisias — disse Helga. — Não estaríamos aqui se nos sentíssemos inteiramente realizados em nossas sociedades.
— Neste caso, podemos concluir que Marco Polo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, entre outros tantos grandes viajantes, eram somente pessoas malogradas, e que se sentiam “insignificantes” no âmbito de suas sociedades? — provocou Silvestre.
— Então é por isso que veio, Sr. Silvestre, quer entrar para história? Quem sabe até uma grande estátua em sua homenagem em alguma praça de seu país? — completou Helga.
— Não se trata disso, senhorita. Só estou tentando dizer que há pessoas cujas mentes não se pode confinar dentro de uma única, digamos, espacialidade. Talvez, todos nós aqui, cada um a sua maneira, reproduz tal ímpeto.
— Então, está tudo explicado! Todos nós partilhamos uma espécie de alma peregrina, e por isso estamos aqui — ironizou Jennifer.
p. 47— Estamos perdendo um precioso tempo com essa discussão, além de nos desgastarmos emocionalmente – ponderou Bhagat. — Tomarmos conhecimento dos motivos que levaram cada um de nós a entrar para esse programa não nos ajudará em nada. O que está, verdadeiramente, em jogo neste momento é tomarmos a decisão de continuar com a missão ou desistir de uma vez por todas. Em breve chegará o helicóptero.
— Bhagat está certo – disse Ichiro. — Vamos votar. Aqueles que estiverem a favor de abandonar a missão, por favor, se agachem. Aqueles que desejam seguir com a missão, por favor, mantenham-se de pé.
Permaneceram imóveis. Todos eles. Oito estátuas esfarrapadas, silenciosas e emagrecidas. E após alguns torturantes segundos, Manolito se emborca em direção ao solo, apanhando um dos utensílios que fabricara. Silvestre foi ao encontro da cápsula que continha o pergaminho, percorrendo com a mão cada centímetro de sua estrutura. Sem pronunciar uma só palavra, cada qual parecia saber exatamente o que deveria ser feito. Aos poucos, lanças, instrumentos líticos, sementes, feixes de capim, restos de aves e inhames assados, pedaços de couro, ossos e até parte das madeiras utilizadas na construção das cabanas foram sendo depositadas em um único monte.
— Perfeito! — exclamou Bhagat. — Vamos reunir todas as coisas que julgarmos essenciais a nossa sobrevivência, pois não sabemos o que nos aguarda nesse outro lugar.
— Neste caso — propôs Silvestre. — Descerei até o riacho para encher os chifres e a cápsula.
Passadas algumas horas, Mariano se deu conta de que já havia transcorrido mais de cinco horas desde a abertura da cápsula:
— Pessoal? Pelos meus cálculos o tal helicóptero já deveria ter pousado. Vocês não acham?
— Talvez seus cálculos não estejam tão certos, ou, se esqueceu de levar em conta o fuso horário — comentou Ichiro.
— Talvez devesse considerar também os possíveis danos ocorridos à cápsula quando Manolito, durante o seu ataque de fúria, a arremessou contra o solo, ou quando Silvestre teve a belíssima ideia de transformá-la em cantil, enchendo-a de água até a borda. Esqueceu-se de que ela possui o dispositivo para emissão de sinal ao helicóptero? Em outras palavras, Silvestre e Manolito ferraram a cápsula! — acusou Helga.
— Silvestre? Por favor, passe-me a cápsula para que eu possa analisá-la — pediu Manolito.
— O que entende de cápsulas de pergaminhos com rastreamento satélite? — continuou Helga.
— Quase nada, senhorita — respondeu Manolito. — Mas, como metalúrgico, posso afirmar que a parte inferior da cápsula é muito espessa e revestida por uma camada de aço super resistente. Eu diria apropriada para receber centenas de libras de pressão. Uma estrutura como essa, com certeza, não teria sido produzida com o simples propósito de proteger um pergaminho de papel. Você não acha?
— Escutem! — gritou Mariano.
— Não estamos escutando nada – disse Ichiro.
— Deve ser o estômago dele pensando em comida — ironizou Jennifer.
— Mariano está certo! Vejam lá adiante – gritou Silvestre.
— Ainda não vejo nada!
— Um pouco acima e a direita daquela árvore de copa arredondada.
— É verdade! Parece ser um helicóptero — disse Bhagat.
p. 48Em segundos, um enorme helicóptero se aproxima e começa a circular a área do acampamento numa espécie de voo de reconhecimento.
— Vamos nos agrupar naquele descampado para que o piloto possa estabelecer um lugar seguro para pousar. Aquele helicóptero produz um verdadeiro furação ao se aproximar do solo – advertiu Mariano.
Mariano estava certo. O enorme helicóptero, ao se aproximar do solo arenoso, provocou uma verdadeira tempestade de areia. Pedras e arbustos foram lançados a dezenas de metros. Enquanto as hélices ainda estavam em movimento, os astronautas permaneceram encolhidos e agarrados uns aos outros.
De dentro do helicóptero desceram três homens trajando macacões militares. Um deles segurava um megafone.
— Atenção pessoal! — informa o homem pelo megafone. — Vocês têm exatamente vinte minutos para embarcarem no helicóptero juntamente com os seus pertences.
Jennifer, então, percebendo que a tripulação era de americanos se aproximou do helicóptero:
— Olá rapazes, me chamo Jennifer, sou de Roswell, Geórgia, podem nos adiantar algo sobre o voo?
— Perdão, senhorita — disse um dos tripulantes. — Não estamos autorizados a dar qualquer tipo de informação. Nossas ordens são apenas para levá-los em segurança até as coordenadas indicadas.
— Ora rapazes, diga-nos pelo menos para aonde iremos — insistiu Jennifer.
— Se persistir com as perguntas, senhorita, seremos obrigados a pedir que se retire — advertiu um dos tripulantes deixando Jennifer desconcertada.
— Pelo menos poderiam mostrar educação ajudando-nos a por as coisas no helicóptero – resmungou Jennifer dando as costas ao conterrâneo.
— Acelerem! — gritou Mariano. — Esses caras não estão de brincadeira.
Apressados, subiram a enorme rampa do helicóptero carregando todos os apetrechos que conseguiram juntar. Em seguida, a rampa subiu trancando os astronautas dentro do helicóptero. Não se podia enxergar absolutamente nada dentro do compartimento, até que lâmpadas violetas se acenderam no assoalho indicando o local dos assentos e de um pequenino toalete.
p. 49— Um banheiro! — exclamou Samira. — Parece que não vejo um há anos...
— Consegue ver alguma coisa Mariano? — perguntou Silvestre.
— Não dá para se ver nada do lado de fora. Vamos circular todo o compartimento até acharmos alguma abertura, uma fresta, um orifício que seja, qualquer coisa que nos permita enxergar o lado de fora – sugeriu Mariano.
— Então? Alguma abertura?
— Nada. Parece que estamos dentro de uma espécie de contêiner; propositalmente preparado para não permitir acesso ao lado de fora — concluiu Manolito.
— Inútil continuarmos procurando— alertou Ichiro. — Não se lembram do que o Sr. Banks nos disse durante a reunião em Zurique, de que seríamos transportados dentro de uma aeronave adaptada de forma a não termos acesso a qualquer tipo de informação?
— Bem lembrado, Ichiro. Mas, e agora? — perguntou Mariano.
— Acho que posso ajudar com algumas informações — disse Manolito.
— Como? Informando-nos sobre qual a espessura do metal que reveste este contêiner? — provocou Helga.
— Não, senhorita. Informando que este helicóptero possui uma autonomia de voou de no máximo 1800 km. Assim, mesmo que ele tenha se reabastecido em Afar, deveremos pousar em algum lugar para um novo reabastecimento, caso o trajeto previsto ultrapasse essa distância. Em minha opinião, devemos estar a, no máximo, três horas do próximo local de pouso.
— Como pode saber disso? — perguntou Ichiro.
— Antes de ser metalúrgico, servi a força aérea de meu país durante oito anos. Por motivos de família não consegui prosseguir com a carreira militar. Mesmo assim, continuei aficionado em tudo que diz respeito à aviação. Assim — prosseguiu Manolito —, posso afirmar que estamos voando em um helicóptero Sikorsky CH-53E SuperStallion, fabricado nos EUA. Seu comprimento é de 30 metros, e sua altura é de aproximadamente 8, 5 metros; velocidade de cruzeiro, 278 Km/h; capacidade de carga de 18 toneladas; tripulação, 5 pessoas e 37 passageiros. E esse é um dos meus favoritos!
— Impressionante! — disse Bhagat.
— Aí, pessoal? Acabo de sair do toalete — informou Samira. — A notícia boa é que há um vaso sanitário. Agora, a notícia ruim é que não há água sequer para lavar as mãos. Isso significa que teremos que racionar ao máximo a água que trouxemos. E então? Descobriram algo?
— Sim — respondeu Jennifer. — Estamos voando em um helicóptero Sikorsky CH-53E SuperStallion.
— E isso é bom?
Ninguém respondeu.
Após pouco mais de duas horas o helicóptero começou a se inclinar sinalizando o início de um procedimento de pouso.
— Manolito estava certo! Acho que estamos pousando.
O helicóptero, então, pousou no Aeroporto Internacional Bole-Adis Abeba, Etiópia. Luzes mais fortes se acenderam deixando todo o interior do contêiner iluminado.
— Aff! Finalmente vão nos tirar de dentro desta lata de sardinha — desabafou Samira.
— Atenção pessoal de dentro do contêiner! — gritou um dos tripulantes usando o megafone: — Permaneçam sentados e com seus cintos afivelados, para conclusão do procedimento da entrega.
— Entrega?! O que esse mal-educado quis dizer com entrega? — indagou Jennifer.
Em seguida o contêiner foi içado e puxado para fora do helicóptero.
p. 50— Para aonde estão nos levando? Ei, vocês aí de fora! — berrou Jennifer. — Sou uma cidadã americana, pago meus impostos e exijo uma explicação. Quando tudo isso acabar vou processar cada um de vocês!
Enquanto Jennifer gritava, Ichiro tentava chamar a atenção batendo um dos utensílios de pedra contra a estrutura do contêiner. Mas seus apelos foram em vão. O contêiner foi erguido por um guindaste e inserido dentro de um enorme avião de carga.
— Por favor, tentem se acalmar! — pediu Bhagat. — Não adianta resistir a isso. Não percebem? Somos apenas uma encomenda a ser entregue em algum lugar.
Logo, a iluminação interna do contêiner foi reduzida àquelas pequenas luzes violetas no assoalho.
— Estamos novamente em movimento — alertou Mariano.
Enquanto o avião decolava, Manolito permanecia com uma de suas orelhas coladas junto à estrutura do contêiner.
— E agora, Sr. Manolito, tem algo a nos informar? — perguntou Helga.
— Infelizmente, senhorita Helga, ainda não. Apenas que ouço o barulho de muitos motores.
— E o que isso lhe diz?
— Bem, uma aeronave com capacidade para receber um contêiner desta dimensão, e se a minha audição não estiver me iludindo, estamos dentro de uma aeronave quadrimotora, do tipo Boeing, com autonomia para cruzar o Atlântico. Mas, isso não se pode afirmar. Podemos estar voando rumo à Ásia, ou mesmo para algum outro ponto do continente africano, por exemplo, o Saara que se localiza ao norte da África.
— Estou com muita fome — reclamou Samira. — Vocês não acham isso no mínimo hilário, estamos dentro de um Boeing que custa uma verdadeira fortuna, sem contar o altíssimo custo de toda essa operação, e, no entanto, temos para comer apenas cereais nativos, tubérculos e alguns pedaços de pássaros assados sem tempero algum?
— Estão apenas testando os nossos limites — comentou Ichiro.
— Se me permitem — sugeriu Bhagat. — Enquanto essas luzes de chão estiverem acesas, aproveitarei par dividir o nosso estoque de alimentos em oito porções iguais. Cada um de nós fará uso de sua porção, sempre levando em conta que este voo poderá ser extremamente demorado, e que o lugar para aonde estão nos levando poderá exigir de nós muito esforço e inteligência até conseguirmos meios de sobrevivência. E quanto à água que trouxemos, como não temos recipientes o bastante para dividi-la entre nós, teremos que usá-la com muita parcimônia.
Devido ao fato de estarem completamente isolados dentro do contêiner, não conseguiam calcular o tempo transcorrido desde que deixaram o aeroporto Bole-Adis Abeba.
— Pessoal? Helga já está há bastante tempo dentro do toalete, não seria melhor perguntarmos a ela se está tudo bem? — sugeriu Ichiro.
— Deixe que eu verifique — se ofereceu Samira.
— Helga? Está tudo bem aí dentro? Pode me escutar? — gritava Samira esmurrando a porta do toalete.
Helga não respondia aos chamados de Samira.
— Por favor, façam completo silêncio que estou tentando ouvir algum som.
— Pessoal? Ela está chorando! — constatou Samira.
— Estou enlouquecendo! — berrava Helga em prantos dentro do toalete.
— Saia daí de dentro para que possamos conversar melhor — implorou Samira.
p. 51Não demorou muito, Helga deixou o toalete, e se jogou nos braços de Samira se desabando em choro.
— Deixe que ela chore — disse Mariano. — Isso vai ajudá-la a suportar o momento.
— Não tem do que se envergonhar Helga, não está nada fácil para mim também — disse Ichiro compadecido.
— Não consigo parar de pensar sobre há quanto tempo estamos voando. Estou entrando em pânico! — compartilhou Jennifer.
— Minha sensação é a de que já estamos viajando há dias dentro desta lata voadora — disse Helga tentando controlar os soluços.
— Pelos meus cálculos, já estamos voando há pelo menos oito horas — disse Silvestre.
— Como pode saber disso? — perguntou Ichiro.
— Estive observando uma touceira de capim que arranquei e trouxe para dentro do contêiner — respondeu Silvestre.
— E o que isso tem a ver com a sua noção de tempo transcorrido? — insistiu Ichiro.
— Quando criança eu ajudava meu pai a cortar touceiras de capim para tratar do gado, no sítio onde morávamos. Normalmente, os capins, depois de cortados, se mantinham viçosos durante praticamente um dia antes de murcharem por completo. Por isso, observando o grau de murchamento dessa touceira, calculo que estamos voando há pelo menos oito horas — explicou Silvestre.
— Interessante...
— Sei de uma técnica que pode nos ajudar a suportar este momento – disse Bhagat. — Vamos dar as mãos e gritar, gritar muito, o mais alto que pudermos.
— Acho que já vi isso em um desses programas de autoajuda — lembrou Mariano.
— Querem tentar? — insistiu Bhagat.
— Por mim, tudo bem. Acho que pior do que já está não vai ficar — comentou Helga.
Assim, começaram a gritar. Foram vários minutos de berros e mais berros, até ficarem roucos.
— Não sei quanto a vocês, mas me sinto bem melhor — disse Ichiro.
Minutos depois, as luzes de teto se acendem.
— Será que foi devido a nossa gritaria? — perguntou Silvestre.
Então, o homem do megafone começou a falar:
— Atenção pessoal? Dentro de alguns minutos pousaremos. Mantenham-se em seus acentos e com os cintos afivelados.
— Graças a Deus! — berrou Samira de mãos postas erguendo os braços.
Após pousarem, no momento exato em que o contêiner começa a ser retirado do avião, o hino americano é executado no mais alto volume.
p. 52— Por que não nos deixam sair? — grita Manolito. — Por que executam esse hino com um volume tão alto? Estão tentando nos enlouquecer?
— Quem sabe estamos na América, e esse hino seja parte de uma cerimônia de recepção? — comentou Helga.
— Pouco provável — disse Mariano.
Depois de alguns minutos, o contêiner começa a se movimentar.
— Vejam? Estamos em movimento.
— Esperem. Estamos subindo! — notou Mariano.
— Subindo como?
Em seguida o hino foi silenciado.
— Graças a Deus! Meus tímpanos já estavam para estourar – agradeceu Silvestre.
— Escutem! Não percebem esse barulho? — alertou Manolito. — Estamos sendo içados por um helicóptero!
— Para aonde vão nos levar?
— Sintam! Estamos em pleno voo.
— Desgraçados! — berrou Samira.
— Agora sei o porquê daquele hino — disse Ichiro. — Foi uma estratégia para que não percebêssemos qualquer outro tipo de som vindo do exterior do contêiner. Não querem que saibamos qual o país onde cumpriremos a última etapa do desafio.
— Penso que você acertou na mosca! — comentou Bhagat.
— Seja como for — disse Manolito. — Deveremos pousar dentro de pouco tempo, pois os helicópteros não dispõem de muita autonomia de voo.
— Querem gritar novamente? — perguntou Bhagat.
Ninguém se pronunciou.
Não demorou muito até que o helicóptero começasse a voar em círculos.
— O contêiner está instável e com movimentos pendulares. Estamos pousando. Se segurem! — avisou Manolito.
Abruptamente, o contêiner toca o solo.
— Estão todos bem? — perguntou Manolito preocupado.
Imediatamente, a porta do contêiner se destrava deixando entrar a claridade. Içado pelos cabos, o contêiner balançava devido o deslocamento de ar provocado pelas hélices do helicóptero. Acostumados a penumbra, não conseguiam enfrentar a luz que provinha do exterior. E para tornar o momento ainda mais desesperador, um dos pilotos do helicóptero desce de rapel até ao teto do contêiner e grita pelo megafone:
p. 53— Deixem imediatamente o contêiner, juntamente com os seus pertences. Decolaremos em três minutos.
— Não há mais tempo! — berrava Manolito em desespero. — Desçam e arrastem com vocês tudo para fora do contêiner.
Silvestre ainda estava dentro do contêiner, arremessando para fora tudo o que conseguia achar pela frente, quando o helicóptero começou a subir.
— Salte Silvestre! — gritava Bhagat.
— Não vejo a cápsula! — informava Silvestre.
— Esqueça a capsula e salte!
Tarde demais. O helicóptero se deslocou em velocidade fazendo com que Silvestre fosse empurrado para o fundo do contêiner. Enquanto isso, o restante do grupo tentava se defender dos redemoinhos de areia provocados pela força das hélices.
— Mantenham seus olhos fechados — advertia Helga.
— Todos estão bem? Alguém de vocês viu Silvestre saltar do helicóptero? — perguntou Bhagat.
— Não. Silvestre não conseguiu saltar — informou Mariano.
— Nesse caso, sugiro que fiquemos neste ponto por algum tempo para o caso de os pilotos decidirem trazer Silvestre de volta — sugeriu Manolito.