Levados por um ônibus de turismo, finalmente nossos candidatos a astronautas chegaram ao Parque Awash. A entrada principal do parque era bastante modesta: um portão de entrada e outro de saída, ao meio uma guarita revestida com pedras, uma placa com a mensagem em inglês “Welcome to the National Awash Park” e outra exibindo a imagem do imponente “guelengue-do-deserto”, o Oryx.
Em frente aquele portão, esperavam pelo grupo três pessoas: um guarda-parque trajando uma farda militar camuflada; um senhor de meia idade em vestes tipo safári, trazendo pendurada ao pescoço uma enorme câmera fotográfica; e um nativo da etnia Oromo, com uma farta cabeleira, vestindo seu tradicional traje composto de uma longa saia amarrada acima da linha da cintura, com motivos florais, nas cores amarelo, preto e vermelho, um longo xale envolvendo o pescoço caindo sobre os ombros, um bastão roliço medindo um pouco mais de um metro, e, preso a cintura, sua tradicional arma, a sinuosa e afiada espada Oromo com o punho feito de chifre de rinoceronte.
Então, o homem com a câmera fotográfica se apresentou:
— Olá pessoal, me chamo Max e fui encarregado de testemunhar a entrada de vocês aqui no parque, registrar esse momento tirando algumas fotos e apresentá-los ao nosso guia nativo que os conduzirá até o local de treinamento, conforme os informou o Sr. Tariku.
— Falando nisso — perguntou Mariano. — Onde está o Sr. Tariku, achamos que nos acompanharia até a chegada ao Parque Awash?
— Não se preocupem com o Sr. Tariku — disse Max. — Em breve ele estará com vocês. A partir de agora, ficarão muito bem acompanhados. Assim, lhes apresento o senhor Gudina, da etnia Oromo.
p. 28— Prazer, Sr. Gudina! — cumprimentou Ichiro.
— Desculpe-me Sr. Ichiro. Além da língua Oromo, o Sr. Gudina só conhece os dialetos das tribos vizinhas — disse Max.
— Meus parabéns! Sr. Max — ironizou Jennifer indignada. — Arranjou-nos um guia que só conhece os dialetos das tribos locais.
— Sinto muito, senhorita. Mas, contratar um guia local que não falasse a língua de vocês foi uma recomendação do Sr. Tariku. E por falar em Sr. Tariku — continuou Max —, já ia me esquecendo, queiram, por gentileza, retirar os seus sapatos, isso faz parte de uma das recomendações expressas de Tariku, não estão lembrados? Agora, por favor, deixem os seus calçados com o guarda-parque, juntem-se ali em frente ao portão de entrada e façam uma bela pose, pois preciso registrar esse momento.
Após tirar as fotos, aquele homem sequer se despediu do grupo. Foi logo entrando em seu jipe e partindo.
Descalços, e com apenas as roupas do corpo, cruzaram o portão de entrada do parque.
— E agora, quem aqui entre nós fala a língua Oromo? — perguntou Ichiro em tom irônico.
— Se isso foi alguma piada — disse Helga, franzindo as sobrancelhas. — Não vejo graça nenhuma!
Imediatamente, Gudina apontou o seu bastão em direção ao horizonte e pôs-se a andar.
— O que estamos esperando? — disse Mariano. — Vamos segui-lo!
Seguiram por um amplo descampado, salpicado de pequenos arbustos e alguns Oryx que os seguiam à distância.
p. 29— Vejam! — alertou Jennifer. — Aqueles veados chifrudos estão nos acompanhando!
— São Oryx, senhorita — corrigiu Bhagat. — E devem estar tão curiosos com a nossa presença quanto estamos com a deles. Por isso nos seguem.
— Não dá para pedir ao Sr. Gudina que ande mais devagar? Meus pés já não se aguentam mais! — reclamou Helga.
— Acho melhor acompanharmos o ritmo dele — ponderou Silvestre. — Não se recordam do que Tariku nos disse sobre os horários que devemos observar para nos mantermos em segurança dentro do parque? Talvez seja essa a razão da pressa de Gudina, nos levar para algum lugar seguro antes que escureça.
Todos se calaram aos argumentos de Silvestre.
— Será que esse sujeito não se cansa nunca?! — reclamou Samira.
O cair da tarde já se promulgava, quando Gudina parou junto a uma estreita trilha que parecia levar a um desfiladeiro. Assim que todos se aproximaram, Gudina apontou o seu bastão na direção da trilha reconduzindo o grupo. Exaustos e aos tropeços tomaram a direção indicada pelo guia. A pequena trilha se ramificava em dúzias de outras trilhas menores, sempre seguindo a declividade do terreno. Eram trilhas formadas pelo pisoteio de Oryx e outros quadrúpedes que buscavam o mesmo curso d’água.
E à medida que avançavam trilha abaixo, mais a vegetação se adensava. Até que chegaram a uma pequena vereda d’água margeada por altas touceiras de capins ressequidos e alguns arbustos intensamente verdes e espinhosos.
Gudina se abaixou sobre aquela estreitíssima calha hidrológica, apoiando seus joelhos e mãos sobre o terreno. Em seguida encostou seus lábios sobre o curso d’água e começou a sugar produzindo um forte ruído. A água estava barrenta devido ao incessante pisoteio. Suas margens arenosas exibiam centenas de diferentes marcas de pegadas e fezes deixadas por animais que disputavam diuturnamente aquele fio d’água. Aqueles sedentos astronautas não tiveram outra saída senão imitar a técnica de Gudina.
— My Goodness! — berrou Jennifer cuspindo a água que ainda estava em sua boca.
— O que aconteceu?! — correu Silvestre para ajudá-la.
— Acho que engoli um cocô de um daqueles veados!
— São Oryx, senhorita — relembrou Bhagat.
— Que diferença isso faz?! Veados, oryx, ou, seja lá o quê, cocô é cocô! — esbravejou Jennifer.
— Aconselho beber dessa água — disse Silvestre —, não possuímos cantis e não sabemos a que distância está o nosso próximo bebedouro.
— E se formos contaminados por essa água? — reclamou Ichiro.
— O que você prefere, contaminação ou morte por desidratação? — retrucou Silvestre.
— São duas péssimas opções — resmungou Helga.
Cruzando o veio d’água em direção à margem contrária, Gudina aponta o seu bastão adentrando a vegetação ripária.
— Cadê o cara? — perguntou Mariano.
— Você quis dizer, nosso guia? — interferiu Helga.
— Sim! Temos que alcançá-lo, já é quase noite! — alertou Silvestre.
Abrindo a vegetação com ajuda de um galho, Silvestre tomou a dianteira conduzindo o grupo por uma trilha de capins amassados que Gudina acabara de fazer.
“Gudina! Gudina!” Gritavam apavorados temendo a aproximação da noite. Mas, assim que a trilha ganhou o descampado, enxergaram Gudina com a sua sinuosa espada Oromo desferindo golpes sobre as moitas de capins ressecados e os amontoando em feixes sobre o solo.
p. 30— O que ele está fazendo? — perguntou Ichiro.
— Por que motivo algumas espécies de pássaros e mamíferos juntam capins, folhas e gravetos secos? — perguntou Bhagat?
— Para fazerem ninhos! — exclamou Ichiro.
— Neste caso, presumo que o Sr. Godina esteja preparando o seu ninho — disse Bhagat.
Gudina apontava para os feixes que amontoava e fazia gestos pedindo que o grupo se aproximasse. Em seguida, foi apanhando e entregando um feixe para cada membro da equipe. Quando cada um deles se achou abraçado com uma enorme touceira de capim, Gudina apontou novamente o bastão informando a direção a seguir. Depois de caminharem aproximadamente um quilômetro morro acima, Gudina parou embaixo de uma enorme árvore que esbanjava uma frondosa copa em forma de sino. Rente ao seu tronco, Gudina depositou seu feixe espalhando-o em forma de esteira, mostrando aos demais o que deveriam fazer com seus respectivos feixes. Imediatamente, se afastou da árvore caminhando rápido na direção do descampado. Minutos depois retornou trazendo alguns galhos secos depositando-os próximo à árvore. Silvestre, Bhagat e os outros entenderam o recado.
Em poucos minutos conseguiram juntar uma quantidade de madeira suficiente para uma grande pira. Gudina, então, se aproximou do amontoado de galhos escolhendo alguns para servir como base para fogueira. De dentro de um pequeno embornal que trazia prezo a sua saia, Gudina retirou uma mistura de plumas com folhas secas trituradas e duas pequenas pedras escuras. Acomodou a mistura sob os galhos e começou a bater uma pedra contra a outra. Logo, pequeninas faíscas surgidas do atrito das pedras atingiram àquela mistura. Gudina assoprou compassadamente fazendo surgir uma pequena chama que incendiou o restante da base.
Exaustos, os astronautas adormeceram amparados tanto pelas labaredas da fogueira como pelos olhares vigilantes de Gudina.
Mal raiou o dia e aquela generosa árvore que lhes albergara também os despertou. Pois os pássaros, seus hóspedes do andar de cima, tinham hora marcada para tagarelarem. Misturados aos feixes de capim, e a uma temperatura de 10 ºC, os astronautas relutavam em se levantar.
— Alguém viu Gudina? — perguntou Ichiro.
— Não!
— E agora?!
— Vamos nos acalmar — disse Bhagat. — Afinal, ele tem a missão de nos levar até o local de treinamento. Não se lembram?
— E se ele, durante a noite, se levantou para fazer um “pipizinho” e alguma fera o devorou? — perguntou Jennifer.
— Tá de brincadeira... — discordou Mariano. — O cara nasceu e foi criado neste lugar.
— Talvez ele tenha desistido da missão. Vocês sabem como são os selvagens... — comentou Helga.
— O que quer dizer com selvagem? — questionou Silvestre. — Devo lembrá-la de que não estamos mais no século dezesseis, e que esse tal selvagem a quem você se refere, com certeza, possui mais sabedoria do que possa imaginar.
— Discutir o suposto desaparecimento de Gudina não vai nos ajudar em nada! — advertiu Mariano. — Proponho estabelecermos um determinado tempo de espera; caso ele não retorne, seguiremos em frente.
— Em frente, mas, para qual direção? — questionou Manolito.
p. 31— Não se recordam do que nos disse Tariku? — perguntou Mariano. — De que deveremos chegar a uma nascente de água termal, a Wuha Fil, e que lá encontraremos um marco com um mapa, e que de lá deveremos seguir para o vulcão, a fim de encontrar o tal pergaminho?
— E haverá placas nos informando a direção dessa tal nascente? — ironizou Manolito.
Enquanto discutiam, Gudina reaparece trazendo dentro de seu longo xale o café da manhã, uma boa porção de cereal nativo.
Ele, então, espalha o cereal sobre o xale e coloca uma porção em sua boca informando ao grupo de que aquilo se tratava de um alimento.
— Vejam, é Teffé! — Bhagat conhecia a gramínea e seus minúsculos grãos avermelhados. — Podem comer! São sementes ricas em proteínas, cálcio e ferro. São predominantes do planalto etíope, principalmente de altitudes elevadas.
— Você conhece essa planta, Bhagat? — indagou Silvestre.
— Sim, é um cereal nativo das terras altas do planalto etíope, e é muito apreciado nesta região. Com ele se prepara a injira, uma espécie de pão. É muito bom saber que temos esta planta por aqui. Contudo, se quisermos coletá-la, teremos que fazer o mesmo que fez nosso anfitrião, subir até o alto daquele morro, pois, essa planta se desenvolve somente em terrenos de altitudes elevadas. Estamos com sorte!
Famintos, e sem alternativa, os astronautas comeram todas aquelas sementes trazidas por Gudina, até o último grão. Terminada a refeição, Gudina apontou o seu inseparável bastão em direção às montanhas, informando que deveriam partir. Jennifer e Helga começaram a juntar os capins que lhes serviram de agasalho temendo não os encontrar adiante. Vendo aquilo, Gudina balançou a cabeça num gesto de negação espalhando os capins com os pés.
— O que pensa que está fazendo?! — protestou Jennifer. — Isso que está chutando é a nossa cama!
— Ele só está tentando nos dizer que não há necessidade de levarmos esses capins. Além de nos prejudicar durante a caminhada, capins secos são abundantes nesta época do ano, podemos encontrá-los em qualquer ponto deste parque — explicou Bhagat.
Seguiram, então, por uma extensa planície recoberta de gramíneas e arbustos retorcidos. Enquanto caminhavam eram seguidos à distância por um bando de gazelas. A certa altura começaram a enxergar, distante deles aproximadamente uns dez quilômetros, uma imponente montanha.
— Devemos estar no meio da porção norte do Parque Awash — disse Mariano. — E aquela montanha, com certeza, é o nosso Vulcão Fantale. Será uma bela escalada de 2007m.
O calor era causticante e o grupo estava exausto. Gudina apontou novamente o seu cajado, desta vez na direção de uma pequena faixa de floresta baixa, distante uns quinhentos metros em declividade.
— Olha gente! É água limpa! Quem chegar por último é a mulher do padre — gritou Manolito entusiasmado.
Com a precisão de um samurai, Gudina salta sobre Manolito e o imobiliza impedindo-o de chegar até a água.
— O que tem esse cara, ficou louco?! Eu só estava brincando quando falei em mulher do padre — protestou Manolito assustado.
p. 32— Ele só salvou a sua vida. Olhe o tamanho daquele crocodilo que o esperava próximo à margem — disse Silvestre apontando na direção do enorme réptil.
Manolito ficou paralisado.
— Nossa! Essa foi por pouco...
— Pessoal? Que isso nos sirva de lição. Aqui não é como em um zoológico. Não estamos apenas próximos aos animais, mas, juntos a eles! Devemos prestar atenção a cada movimento e a cada som a nossa volta. Do contrário, não sobrarão muitos de nós para contar essa história — advertiu Silvestre.
Dito aquilo, o grupo se aproximou devagar e silencioso daquele generoso regato.
— Essa água está quente! — observou Helga.
— Isso é bom! — comemorou Mariano. — É sinal de que encontramos o curso de água termal Wuha Fil, portanto, devemos estar próximos do nosso local de treinamento.
— Mas, como beberemos essa água quente? Estou morrendo de sede! — protestou Jennifer.
— Ela nos hidratará do mesmo modo que uma água fria — aliviou Helga.
Após saciarem a sede, Gudina os reconduziu a jornada.
— Estão vendo aquilo pessoal? — alertou Mariano.
— Onde? Não vemos nada!
— Lá adiante; à direita daquela árvore florida.
— Agora vejo — disse Ichiro. — E a julgar pelo reflexo deve ser algo metálico.
Ao se aproximarem do artefato viram que se tratava de um pequeno poste de aço com uma ponta cilíndrica.
— Só pode ser um marco, ou algo assim — sugeriu Mariano.
— Claro! Só pode ser o marco mencionado por Tariku. Vamos ver o que tem dentro — propôs Ichiro.
Ao destorcerem o cilindro acharam um pequeno mapa pouco detalhado, contendo apenas a localização do Vulcão Fantale, e, no verso, uma descrição sucinta: “Saudações futuros astronautas. As missões de vocês estão gravadas em um pergaminho de couro próximo ao mirante do Vulcão Fantale. Caminhem 500 passos na cota altimétrica do Mirante, em direção ao sol nascente. Dentro de uma gruta, entre duas pedras, encontrarão o pergaminho. Boa sorte!”.
p. 33— O mapa informa apenas que devemos nos dirigir até o Vulcão Fantale — comentou Samira. — Mas não mostra as distâncias, e nem os caminhos para se chegar até lá. O que faremos?
— O que acham de perguntarmos a Gudina? — sugeriu Ichiro.
— Como fará isso Sr. Ichiro, por meio de mímica? — questionou Jennifer.
— Eu estava pensando em desenhos. Além de ser uma forma universal de comunicação, também é uma das mais antigas desenvolvidas pelo homem; pergunte ao nosso amigo Mariano.
— De fato — concordou Mariano. — Centenas de cavernas pelo mundo conservam registros irrefutáveis do que Ichiro acaba de afirmar.
— Falando em Gudina, alguém de vocês sabe onde ele está agora? — perguntou Samira incomodada.
— Relaxe, ele deve ter ido buscar o nosso almoço — tranquilizou Jennifer.
— Eu não teria tanta certeza disso, senhorita — alertou Bhagat. — Não se recorda de que a sua missão era unicamente a de nos guiar até aqui?
— Mas, ele nem se despediu! — argumentou Jennifer.
— Despedir-se de quem, se ele sequer sabe os nossos nomes? — disse Mariano.
— A minha sugestão — prosseguiu Mariano. — É a de não mais perdermos tempo esperando por Gudina; vamos procurar um ponto alto para tentar avistar novamente o Fantale. Ele é o monte mais alto, medindo algo em torno de dois mil metros. Com sorte, poderemos até avistar alguma fonte de fumaça brotando de seu cume.
Depois de vários sobe-e-desce, Mariano, Bhagat e Silvestre conseguiram avistar outra montanha.
p. 34— Aquele sim, deve ser o Fantale. Reparem que o seu formato é bem diferente daquela montanha que vimos antes de chegarmos à fonte termal. Além de mais alta, seu cume é menos pontiagudo — comentou Mariano.
— Devemos estar a aproximadamente uns vinte quilômetros de distância — informou Bhagat.
— Caso não avistemos outra montanha, ainda maior, não temos outra escolha senão irmos até aquela e descobrir se ela é, ou não, o Fantale — sentenciou Silvestre.
— Mas, ir até a borda de um vulcão é loucura! — exclamou Helga.
— Não há perigo senhorita — disse Mariano. — A última vez que esse vulcão entrou em erupção foi em 1820. Embora esteja semi-ativo, se iniciar uma erupção saberemos com semanas antecedência.
— De toda forma — aconselhou Silvestre. — É sempre bom ficar atento, pois no século XIII a cidade de Abyssinian foi completamente destruída por este vulcão, e sem aviso prévio.
— E como faremos para chegar até o topo do vulcão? — indagou Helga.
— Teremos que nos organizar e dividir o grupo — disse Bhagat. — Será mais seguro e mais rápido que apenas alguns de nós escalemos o Fantale.
— E se realmente estivermos sendo observados à distância, como nos informou Tariku, provavelmente, aqueles que chegarem ao topo do vulcão serão mais bem avaliados. Não é mesmo? — ponderou Jennifer.
— Desculpe-me, senhorita Jennifer, mas terei que discordar de você — disse Bhagat. — Trata-se de uma operação muito perigosa para por em risco todo o grupo. Além do que, isso demandaria mais suprimentos e mais tempo para nos prepararmos. E quanto ao fato de estarmos sendo monitorados e avaliados, penso que essa deve ser a menor de nossas preocupações no momento, pois, se não nos integrarmos nem o pergaminho conseguiremos encontrar.
— Bhagat está certo! — aprovou Manolito. — Nossa maior preocupação agora é a de saber como faremos para encontrar o pergaminho. Por isso, precisamos montar um acampamento, e arranjar suprimentos para a nossa jornada até o vulcão.
— Bem pensado! — exclamou Bhagat. — Devemos primeiro nos estabelecer neste local.
— O problema é que para fazer cabanas, e outros apetrechos, precisaremos primeiro produzir ferramentas. E para se produzir boas ferramentas será preciso encontrar rochas duras, como o sílex, o basalto e a obsidiana. E esses tipos de rocha, certamente serão encontrados nas proximidades do vulcão. E não se trata só de ferramentas, também precisaremos confeccionar armas como lanças de madeira e perfuradores feitos de ossos — advertiu Mariano.
— Armas ou ferramentas? — indagou Jeniffer.
— Armas também, senhorita Jennifer. Como pensa enfrentar animais ferozes e ainda conseguir proteína animal? — desafiou Mariano.
— E posso saber como faremos tais ferramentas e armas, Sr. Mariano? — insistiu Jeniffer.
p. 35— Na arqueologia, senhorita Jennifer, estudamos sobre confecção de artefatos líticos e instrumentos diversos feitos a partir de ossos, madeira e argila. Temos que construir ferramentas e armas. Não há outra saída, se quisermos sobreviver neste lugar. Exatamente onde estamos agora, nossos antepassados usavam basicamente duas técnicas para trabalhar a pedra: o lascamento e o picoteamento. Se eles conseguiram, nós também conseguiremos. Assim, precisaremos produzir lanças grandes de madeira, com ponta de osso ou de pedra pontiaguda, como também machados, perfuradores, raspadores e facas. Só precisaremos tomar algumas precauções. Para obter o lascamento ideal é melhor bater uma pedra sobre a outra, sem usar a mão como apoio, a fim de evitar cortes e acidentes. Para isso, usaremos os batedores ou percutores, rochas tipo seixos arredondados de rio, que poderão ser utilizados como martelos para lascar ou picotear outras rochas. A rocha obsidiana é uma rocha ígnea, endurecida da lava do vulcão, constituída quase integralmente de sílica, um tipo de vidro vulcânico. O sílex é uma rocha sedimentar com muito quartzo, excessivamente dura e, por isso, apropriada para fazer objetos cortantes e perfurantes. Já o basalto é uma rocha ígnea, rica em silicatos de magnésio, ferro e abundante em áreas próximas a vulcões. É uma rocha de granulação fina, escura, muito dura, portanto, também apropriada para fazer ferramentas. É bom frisar aos senhores que essas rochas nem sempre são fáceis de serem encontradas; às vezes surgem em praias de rios, depois de terem sido arrastadas formando seixos. Com um pouco de sorte, encontraremos rochas já elaboradas pela natureza em forma de ferramentas. Fiquem atentos, pois precisaremos saber identificar essas rochas, e, caso encontrem ossos pelo chão isso será importante, pois, com eles, poderemos produzir outros instrumentos.
— Foi uma excelente aula de arqueologia, Sr. Mariano — disse Helga. — Mas, estamos com fome! Não acha que deveríamos procurar comida, antes de montar a nossa oficina lítica?
— Talvez Helga tenha razão — concordou Silvestre. — Sem nos alimentarmos, não conseguiremos produzir equipamentos.
— Precisamos manter a serenidade — advertiu Bhagat. — Posso assegurar que somos inteiramente capazes de encontrar alimentos neste lugar. Estamos numa parte alta do parque, com árvores, água e uma grande diversidade de aves. Não notaram a algazarra delas, hoje pela manhã? Podemos coletar ovos e até fazer armadilhas para apanhá-las. Com sorte, também poderemos encontrar algumas árvores denominadas Moringa. Quando sobrevoei esse parque, há alguns anos, vi várias delas. O projeto foi um sucesso, após uma grande seca ocorrida aqui há algumas décadas, foram lançadas sementes e mudas dessa árvore. Com o tempo, ela passou a ser uma importante fonte alimentar para as populações locais, pois é muito resistente e nutritiva. Foi trazida de regiões semiáridas do meu país, a Índia, e não encontrou dificuldades em se reproduzir nesta região.
— Li um artigo sobre essa espécie durante a faculdade —lembrou Helga. — Ela parece ser realmente muito versátil na produção de nutrientes.
p. 36— Isso mesmo! senhorita Helga — prosseguiu Bhagat entusiasmado. — A cada 100 gramas de suas folhas maduras há aproximadamente 23 mil UI de vitamina A, o maior teor dentre os vegetais comestíveis. O brócolis, por exemplo, tem 5 mil UI e a cenoura 3,7 mil. Suas folhas esbanjam proteína, são 27% de proteínas, o equivalente a carne do boi. Também são ricas em cálcio, ferro, zinco, fósforo, selênio e outras vitaminas. Possui sete vezes mais vitamina C que a laranja; quatro vezes mais cálcio que o leite, três vezes mais potássio que a banana e mais ferro que o espinafre. É um presente indiano para o mundo!
— Muito bem pessoal — pediu Silvestre a atenção. — Já deve ser quase meio-dia. Portanto, tenho uma sugestão a fazer. Vamos nos dividir em quatro duplas. Todos tentarão encontrar as seguintes coisas: alimentos; madeira para produzir fogo; feixes de capim para proteção contra o frio da noite e os materiais para confecção de armas e ferramentas, conforme nos instruiu Mariano. O que acham?
— Apoiado! — todos concordaram.
— E como dividiremos as duplas — perguntou Ichiro.
— Que tal por habilidade? — sugeriu Silvestre.
— Que tal por afinidade? — sugeriu Jennifer.
— Mas, que tipo de afinidade já poderíamos ter desenvolvido entre nós em tão pouco tempo de convívio? — questionou Bhagat.
— Do tipo empatia, Sr. Bhagat. Desde que se encontram pela primeira vez, as pessoas tendem a se sintonizar melhor com umas do que com outras. É como se fosse uma energia, uma “cola”, sei lá... Entendem o que eu digo? De acordo com isso, penso que a empatia gera afinidade, e a afinidade cooperação. Assim, se formarmos duplas por afinidade seremos mais produtivos; o que acham?
— Concordo com Jennifer. Vejam, por exemplo, o caso do esporte; quanto maior a afinidade entre os atletas de uma mesma equipe, maiores serão as possibilidades de entrosarem suas capacidades técnicas e táticas. Foi assim que a seleção de futebol da Alemanha conseguiu golear a do Brasil na última copa. Não se recordam?! — concluiu Helga dirigindo seu olhar para Silvestre.
— Estava demorando... — resmungou Silvestre incomodado.
— Então, como será? Ficaremos aqui teorizando sobre a troca de “energias” entre pessoas desconhecidas, ou nos organizaremos para tentar sobreviver? — interveio Manolito.
— Ok. Quem achar que as duplas devem ser separadas por critério de afinidade, por favor, levante a mão — encaminhou Bhagat.
Foram cinco votos a favor da proposta de Jennifer e três votos contra. Assim, Helga e Manolito; Ichiro e Jennifer; Samira e Mariano; e Silvestre e Bhagat formaram as duplas.
— Pessoal? — pediu Bhagat a atenção. — Todas as duplas deverão retornar a este lugar ao entardecer, independente de ter, ou não, alcançado sucesso na coleta. Todos estão de acordo?
— E como não possuímos relógios — completou Mariano. — Deveremos ficar atentos à relação tempo gasto e distância percorrida durante nossos deslocamentos. Se agora, devido à posição em que se encontra o sol, julgamos que seja meio-dia, neste caso, vamos tentar distribuir as horas que nos restam em duas horas para prospecção e duas horas para o retorno. Se agirmos assim, mesmo que errarmos na contagem do tempo presumido, ainda conseguiremos chegar aqui com claridade.
p. 37Sob o sol de Afar, as duplas se separaram. Helga e Manolito, por terem se distanciado do curso d’água, começaram a ficar desidratados fazendo com que a busca pela água lhes desviasse a atenção do objetivo central. Por fim, exaustos e desidratados, voltaram ao ponto de início trazendo apenas alguns pedaços de madeira seca que encontraram pelo caminho. Ichiro e Jennifer, por sua vez, ao escolherem se orientar pela busca de arbustos verdes que, supostamente, lhes dariam frutos comestíveis, voltaram ao ponto de partida trazendo várias galhas de uma mesma espécie de planta, carregadas de pequenos frutos maduros com aparência de um melão em miniatura, e alguns feixes de capim seco. Já a dupla Samira e Mariano, apesar do infortúnio de terem sido atacados por maribondos, enquanto tentavam colher alguns ovos, usaram o peso de seus corpos para desfolhar algumas palmeiras. Depois, amarraram as folhas umas as outras tecendo uma grande esteira em forma de canoa. Dentro dela, depositaram algumas rochas escolhidas por Mariano, alguns ninhos contendo ovos, galhos e feixes de capim seco. Silvestre e Bhagat foram os últimos a regressar, e escolheram se orientar pelas atitudes de Gudina. Assim, a primeira decisão que tomaram foi a de encontrar o local onde ele teria colhido as sementes de Teffé, pois, além da certeza de sua presença nas proximidades, sabiam também que, caso nenhuma das duplas conseguisse encontrar outra forma de alimento, aquele cereal manteria o grupo a salvo por mais algum tempo. Deste modo, fizeram o caminho de volta até o primeiro acampamento e, de lá, seguiram até a sua parte mais elevada. Ao encontrarem o cereal, retiraram suas blusas transformando-as em sacolas. Uma vez lotadas, encontraram uma vara comprida e dependuraram as blusas em cada uma de suas extremidades. Equilibrada sobre os ombros, aquela vara poderia, facilmente, suportar pesos e ainda ser transportada ao longo de terrenos acidentados. Durante o caminho de volta avistaram uma árvore com dezenas de urubus, o que poderia ser o indício de algum grande mamífero abatido. Ao se aproximarem, constataram que se tratava de um Oryx possivelmente abatido por felinos. Com um pouco de esforço conseguiram dependurar na vara aquelas partes da carcaça que julgaram importantes, ou seja, parte da cabeça com os enormes chifres, e uma considerável extensão de couro contendo ainda camadas de carne em decomposição. Atravessando o riacho de água termal, perceberam a presença de um belo exemplar de Píton Sebae, dormindo tranquilamente entre as rochas. A dupla não hesitou em abater a serpente, antes mesmo que ela percebesse a sua presença. Em seguida, a dependuraram na vara. Porém, ao incorporarem o peso do Píton ao restante das coisas tornou-se impraticável seguir com aquela vara sobre os ombros até o destino. Assim, decidiram que Bhagat buscaria ajuda enquanto Silvestre permaneceria próximo ao riacho protegendo as importantes conquistas. Duas horas depois, Bhagat retorna na companhia de Manolito e Samira. Ainda distantes do acampamento puderam enxergar a fumaça que subia da fogueira que Mariano conseguira acender.
p. 38Chegando ao acampamento foram recepcionados por Helga:
— Ichiro e Jennifer não estão bem! Apresentam vômitos e fortes dores no estômago.
— O que comeram? — perguntou Bhagat.
— Comemos aquelas frutas que trouxemos. E o gosto nem é tão ruim assim — disse Ichiro.
Depois de examinar cuidadosamente os frutos e as folhas, concluiu Bhagat:
— Vocês ingeriram um fruto da família Solanaceae, vulgarmente conhecida como Maçã de Sodoma.
— Vamos morrer? — perguntou Jennifer em pânico.
— Não há motivo para alarme. A Solanum Incanum é um vegetal muito utilizado no tratamento de doenças como diabetes, obesidade e colesterol. Apenas indigesto e até toxico, dependendo da quantidade ingerida. Portanto, presumo que logo ficarão bem.
— Eu também conheço esta planta — disse silvestre. — Na região onde moro há uma planta arbustiva, também da família Solanum cujos frutos apresentam características morfológicas semelhantes. Seu nome vulgar é lobeira ou fruta de lobo. Esses animais se alimentam deles para eliminarem vermes.
Até que caiu a noite e o grupo se reuniu em volta da fogueira.
— Então, senhorita Jennifer e Sr. Ichiro, já estão se sentindo melhor? — perguntou Bhagat.
— Sim. Estamos. Obrigado por nos ter tranquilizado — agradeceu Ichiro.
Acomodando uma laje de pedra sobre a fogueira, Mariano conseguiu uma espécie de chapa quente. Em seguida, depositou sobre ela as sementes de Teffé, alguns ovos e pedaços da Píton que conseguiu destroçar usando um cortador que fizera a partir do lascamento de rocha.
— Animem-se! — exclamou Silvestre. — Esse é o nosso primeiro banquete em Afar. Imaginem, então, quando estivermos mais bem adaptados.
— Concordo com Silvestre — disse Samira. — Hoje provamos para nós mesmos que somos capazes de sobreviver sem auxílio de um guia local.
— E amanhã? — perguntou Manolito. — Qual será a estratégia?
— Sugiro repetir a operação de coleta de alimentos e de materiais para produção de instrumentos e abrigo — disse Mariano.
— Seguiremos com as mesmas duplas? — perguntou Helga.
p. 39A pergunta de Helga silenciou o grupo. Ninguém disse uma só palavra, até que Manolito quebrou o silêncio:
— Tudo bem. Deixe que eu atire a primeira pedra. Olhem para as coisas que estão sendo assadas, olhem para aquela carcaça de Oryx, para o couro do Píton, para o fogão improvisado, para o cortador de pedra lascada, para a fogueira; sem falar da análise sobre a fruta que intoxicou Jeniffer e Ichiro. É isso mesmo que estão pensando. Todas essas proezas trazem as assinaturas de Mariano, Bhagat e Silvestre. Agora, quero que me respondam, eles conseguiram esses feitos porque possuíam algum tipo de afinidade entre si, ou isso tem a ver com habilidades?
— Talvez por sorte — desafiou Ichiro. — Qualquer outra dupla que tivesse escolhido o mesmo caminho teria encontrado as mesmas coisas, não é mesmo?
— Não penso assim, Sr. Ichiro — contestou Silvestre. — Prefiro pensar que o próprio ato de escolher um caminho, e não outro, já indica habilidades. Além disso, de nada adianta encontrar determinadas coisas pelo caminho se não se sabe o que são, para que servem e como utilizá-las.
— Não acho que sejamos incapazes, Sr. Silvestre — se defendeu Helga incomodada. — Até onde eu sei, todos aqui são bem formados e qualificados. Do contrário não teríamos chegado a esta última etapa, não é mesmo?
— Não estou duvidando da capacidade de nenhum dos presentes, senhorita Helga. Inclusive, concordo com você quanto ao fato de todos aqui serem bem formados e qualificados. O que estou pondo em questão são os tipos de conhecimentos que estão circulando entre nós.
— Aonde quer chegar, Sr. Silvestre? Somos um grupo variado, portanto, com conhecimentos variados. E isso não é bom? — continuou Helga.
— De um modo geral, sim. Mas, se concordar que os conhecimentos servem para dar respostas às mais variadas situações que surgem em nosso dia a dia, verá que cada circunstância da vida pede um tipo de conhecimento adequado. Assim, podemos afirmar que há circunstâncias que pedem apenas informações, por exemplo, endereços, preços e descrições em rótulos de produtos. Outras pedem conteúdos mentais sob a forma de teorias, isso geralmente ocorre quando temos que relacionar diferentes elementos para se compreender um determinado fenômeno, por exemplo, o existencialismo dos séculos XIX e XX. E outras que requerem conhecimentos sob a forma de habilidades. Acontece que a maior parte das circunstâncias que estamos enfrentando neste parque pedem conhecimentos desse último tipo. Entretanto, estes só podem ser alcançados a partir de experiências práticas. Em outras palavras, senhorita Helga, enquanto informações e teorias são construções processadas e transmitidas unicamente no âmbito da mente, ou seja, representações; habilidades são como ações no mundo, frutos de relações complexas que envolvem não apenas as nossas mentes, mas também o nosso corpo e o meio ambiente onde ele se encontra acoplado. Penso, sinceramente, que todos aqui estão diante de uma oportunidade única para transformarem seus conhecimentos representacionais em habilidades atuadas no mundo. Sem querer diminuir a importância dos conhecimentos que possuem, acredito que eu, Bhagat e Mariano, devido às circunstâncias em que estivemos submetidos, em nossos locais de existência, acabamos desenvolvendo, ao longo de nossas vidas, uma significativa quantidade de habilidades adequada às situações como essas que estamos enfrentando agora.
Depois das ponderações de Silvestre, o grupo trocou olhares em silêncio, até que Manolito interferiu novamente:
p. 40— Sou obrigado a concordar com isso. As experiências que Bhagat, Mariano e Silvestre viveram em seus países de origem, certamente, os dotaram de habilidades adequadas à superação de obstáculos como os que temos encontrado aqui. Portanto, proponho que Mariano lidere a produção de ferramentas e armas, Bhagat a coleta de alimentos e Silvestre a produção de abrigos.
— Vejo que o amigo Manolito também possui uma habilidade, a de se impor. Não é mesmo, Sr. Manolito? — provocou Jennifer.
— Eu não diria impor, senhorita Jennifer — rebateu Manolito. — Coordenar, seria talvez o termo mais adequado. Acontece que tenho gerenciado turmas de metalúrgicos em uma das áreas mais tensas do México. Acho que tal experiência me tornou hábil em controlar tensões e organizar equipes de trabalhos. Somente isso.
Não houve resistência à proposta de Manolito. Ao amanhecer, Silvestre, Manolito e Jennifer se ocuparam da produção do acampamento. Para isso, precisaram da habilidade de Mariano na produção de machadinhas para que pudessem cortar madeiras e folhas de palmeiras. Bhagat, Samira e Helga seguiram o curso do riacho a procura de alimentos. Mariano e Ichiro continuaram na produção de ferramentas e utensílios. Ao final do dia o grupo conseguiu produzir duas cabanas suspensas e recobertas com folhas de palmeiras, bastante madeira seca para fogueira, cortadores, lanças de madeira e até alguns protetores para os pés feitos a partir do couro daquela carcaça de Oryx. Também coletaram cereal de Teffé e alguns tubérculos do tipo Inhame, rico em carboidrato, que encontraram à beira de um alagado. Mas, Bhagat ainda nutria a esperança de encontrar a sua árvore das vitaminas, a Moringa.
— Agora que adiantamos a construção do acampamento e dos utensílios, precisamos planejar a jornada até o vulcão Fantale — comentou Manolito.
— Isso Mesmo! Vamos escutar o nosso manenger — ironizou Jennifer.
— Essa sua atitude não nos ajuda em nada, senhorita Jennifer — criticou Helga. — Manolito está certo. Se não acharmos logo o tal pergaminho, tudo que fizemos até agora poderá parecer uma grande perda de tempo.
— Em parte, temos que concordar com Helga. Porém, tudo o que fizemos até aqui já pode ser considerado como um excelente ganho em termos de aprendizado prático, não é mesmo? — comentou Silvestre.
— Devemos estar a vinte quilômetros do vulcão - lembrou Mariano. — Numa marcha acelerada alcançaremos o cume em seis, ou oito horas. O que significa que teremos que pernoitar por lá, e retornar no outro dia. Proponho que amanhã nos dediquemos à busca de provisões para a jornada.
— Amanhã ampliaremos a nossa área de busca de alimentos — disse Bhagat. — A ocorrência do cereal nativo Teffé é um forte indício da presença de parentes do milheto, do arroz africano, e do sorgo, todos originários dessa região e muito ricos em carboidratos. Agora entendo por que os organizadores desta etapa escolheram delimitar esta área para o treinamento, eles sabiam da ocorrência desses cereais. Coletando quantidades maiores e secando sobre as pedras teremos alimentos para muitos dias. E dentro de pouquíssimo tempo nossos organismos já estarão completamente adaptados a esses cereais. Os humanos possuem grande capacidade adaptativa, não somente a variedades de ambientes e climas, mas também a uma enorme variedade de alimentos. O que não significa que podemos sair por aí comendo tudo quanto é fruto que acharmos pela frente, conforme Jennifer e Ichiro já puderam constatar.
p. 41— E quanto à água? O que faremos se não encontrarmos água durante a jornada ao vulcão? — perguntou Ichiro preocupado.
— Não se preocupe, o organismo humano pode suportar até alguns dias sem ingerir água, antes de iniciar a falência de seus órgãos vitais — tentou tranquilizar Helga.
— Isso é muito animador — comentou Ichiro.
— Como podemos ver daqui, para chegarmos até o vulcão será preciso atravessar aquele vale, que parece ser muito acidentado. Mas, do ponto de vista geofísico — explicou Mariano. — Apesar de o relevo oferecer dificuldades para nossa locomoção, isso aumenta, sobremaneira, as nossas chances de encontrar pequenos cursos d’água que se encaminham para o desfiladeiro central. Além do mais, também podemos enxergar daqui alguns pequenos pontos de vegetação esverdeada ao longo do vale, outro forte indício da presença de água.
— E à medida que formos familiarizando com o entorno, — continuou Mariano. — Poderemos encontrar argila e confeccionar potes e outros vasilhames que nos auxiliarão no transporte de água e no cozimento de alimentos. Mas, agora, teremos que nos concentrar no vulcão, ou seja, como improvisar para chegar até lá e retornar com segurança.
— Acabei de ter uma ideia! — exclamou Silvestre. — Ainda temos os dois enormes chifres do Oryx!
— E o que isso tem a ver? — perguntou Ichiro.
— E que acabo de me lembrar de que os tropeiros que conduziam o gado pelo sertão do Brasil usavam um tipo de cantil feito a partir do chifre de boi, preso a uma corda. Quando atravessavam um riacho, mergulhavam o chifre na água e o suspendiam pela corda, assim, nem precisavam descer de seus cavalos para coletarem água.
— Ótima ideia, Silvestre! — captou Mariano. — Apesar de mais finos que os chifres dos bois, são longos. Penso que cada um desses chifres conseguirá armazenar pelo menos um litro de água. Assim, poderemos partir daqui com eles cheios e reabastecê-los a cada curso d’água que encontrarmos pelo caminho. Vamos arrancá-los da carcaça e esquentá-los ao fogo para retirar o que resta neles de gordura e carne. Depois, vamos lavá-los utilizando cascalho do rio. Para tampá-los faremos rolhas de madeira.
Na manhã seguinte, ao contrário dos outros dias, não foram os pássaros que despertaram os astronautas, mas, o grito de Ichiro ecoando pelos céus de Afar.
— Ahhhh! — acidentalmente, ele deixou que seus pés tocassem as brasas da fogueira.
— O que houve?!
— Meus pés!
— Deixe-me ver isto — aproximou Helga.
— Não é nada grave, é só uma queimadura de primeiro grau.
— O que devo fazer enfermeira.
— Considerando a falta de recursos, mergulhe seus pés no riacho, deixe-os hidratar por algum tempo, depois, rasgue uma tira de pano de sua camisa, enxágue bem, envolva os locais feridos e reze para não pegar uma infecção.
— Já que vai passar um tempo junto ao riacho — disse Manolito. — Poderia levar os chifres de Oryx para lavá-los? Eles, praticamente, passaram a noite no meio das brasas da fogueira; tudo o que havia dentro deles foi derretido.
— Acho que sim. Mas, como o farei?
p. 42— Introduza dentro deles uma parte de cascalho e uma parte de água. Depois, balance quantas vezes puder, dispensando o conteúdo. Repita a operação até que o interior de cada um dos chifres fique completamente limpo.
— Entendi.
Manolito parecia ter incorporado a ideia de gerenciar as operações do grupo. Foi um dia de muito trabalho: secaram sementes, assaram tubérculos, produziram ferramentas e até uma armadilha para capturar aves, que fez Silvestre a partir de gravetos roliços e folhas de palmeira.
— Veja pessoal! Construí uma arapuca.
— O que é uma arapuca — perguntou Helga.
— É um tipo de armadilha muito usada por todo interior do Brasil. Depois de montadas, as armamos próximo às nascentes d’água com um pouco de cereal dentro. Quando a ave entra para se alimentar, a haste desarma deixando a estrutura cair sobre ela enjaulando-a.
— Quem ficará responsável por armá-la enquanto estivermos no vulcão? — perguntou Manolito.
— Podem deixar por minha conta — disse Bhagat. — Quando retornarem do vulcão serão recepcionados com um delicioso banquete de aves assadas.
— Com certeza, vamos cobrar isso de você Bhagat.
O dia mal havia clareado e a equipe composta por Mariano, Silvestre e Manolito partiu rumo ao vulcão Fantale. Portavam lanças de madeira com pontas afiadas, alguns cortadores em rocha lascada e os dois chifres de Oryx cheios de água. Às costas, embrulhadas no que restavam de suas camisas, levavam um pouco de sementes de Teffé secas e alguns tubérculos assados. E para vencer a longa distância improvisaram sandálias feitas a partir de tiras de couro retiradas do Píton. Também arrastavam um generoso pedaço do couro do Oryx para lhes servir de proteção contra o sol.
— Já estamos caminhando há aproximadamente três horas. Precisamos encontrar uma elevação para checar a nossa direção — sugeriu Manolito.
Abandonaram o curso do riacho ganhando um pequeno morro. De lá, puderam avistar o topo do Fantale, e constatar que haviam se desviado da rota programada, indo mais ao sul, quando deveriam seguir a sudoeste.
p. 43— Precisamos nos redirecionar — informou Mariano. — Cruzaremos esse campo aberto até aquela lagoa próximo ao morro mais baixo. Até lá imagino ser uns cinco quilômetros. Chegando lá faremos uma parada para repormos as nossas forças, antes de iniciarmos a subida.
Pouco depois estavam no meio de um vale, coberto por gramíneas típicas e uma vegetação arbustiva. Mais ao fundo, zebras e antílopes desfilavam lentamente sob o sol implacável de Afar.
— Tiramos a sorte grande! — exclamou Silvestre.
— O que vê? — perguntou Mariano.
— Lá adiante!
— Onde?!
— Entre aqueles capins secos.
— Não vejo nada!
— Ah! Agora sim. Avestruzes!
— E onde há avestruzes, há ovos de avestruzes! — exclamou Silvestre entusiasmado.
— Como vamos fazer? — perguntou Manolito.
— Vamos deixar nossas coisas aqui. Rastejamos até os seus ninhos, somente com as lanças para o caso de sermos percebidos. Depois, voltamos com os ovos — arquitetou Silvestre.
Depois de muito esfolarem suas barrigas rastejando contra aquele solo pedregoso e quente, finalmente, os astronautas encontraram um ninho de avestruz.
— Nossa! Vejam quantos ovos! Cada um apanha o seu.
— Combinado!
Apanharam os ovos. Cada qual pesando mais de um quilo. Mas, no caminho de volta, foram surpreendidos pela mamãe avestruz.
— Corram! — gritou Manolito.
— Correr é um erro, essas aves são muito ligeiras. É melhor ficarmos e afugentá-la com nossas lanças — sugeriu Silvestre.
Segurando os ovos com uma das mãos e empunhando as lanças com a outra os três bravos astronautas enfrentaram aquela gigantesca galinha raivosa da ordem dos Struthioniformes. Com as asas abertas e rápidos rodopios a avestruz tentava golpear seus adversários.
— Cuidado com o chute dela — gritava Mariano. — Suas garras podem estripar um leão.
— Ela bicou minhas costas — reclamou Silvestre.
A obstinada ave não esmorecia. Quanto mais se sentia ameaçada mais furiosa ficava.
— É melhor largarmos os ovos, talvez assim desista de nos atacar — sugeriu Manolito.
Deixaram os ovos no chão, mas, ainda assim, ela continuou a avançar. Após muitas varadas, bicadas, gritos e rodopios, a ave, finalmente, recuou. Exaustos, e sem ovos, os três retornaram até o ponto onde haviam deixado o restante de suas coisas.
— Aquilo foi terrível! - desabafou Manolito.
— Pelo menos foi um avestruz, imaginem se fosse um leão... — tentou aliviar Silvestre.
— Veja seu braço, está sangrando! — disse Mariano a Manolito.
— Felizmente não foi profundo. Foi só um chute de raspão.
—Vamos olhar o lado bom da coisa — disse Mariano.
— Ainda estamos vivos? — perguntou Silvestre.
— Não. Agora sabemos onde buscar ovos de avestruz.
— Quem sabe outro dia...
— Vamos sair do campo aberto — sugeriu Mariano. — Melhor caminharmos dentro da vegetação arbustiva para não sermos surpreendidos por outro avestruz, ou algo pior!
Após transporem aquela vegetação, avistaram um imenso lago rodeado por capinzais e palmeiras.
— Que maravilha! Hora de matar a sede e encher os chifres — disse Manolito entusiasmado.
— Esperem! — gritou Mariano. — Não estão sentindo esse cheiro?
— Que cheiro?
— Cheiro de sais e enxofre.
— Agora que falou, acho que sinto também.
p. 44— É melhor não bebermos dessa água - disse Mariano. — Ela deve ser sulforosa e salgada. Isso é comum nas proximidades de vulcões. As cinzas e as rochas são dissolvidas pela chuva, concentrando os sais nas partes mais baixas e nos lagos. Precisamos encontrar uma nascente de água doce. O lado bom disso é que deve haver salinas nas proximidades. Amanhã, quando estivermos voltando, poderemos procurar sal.
— Você estava certo, meu amigo, é intragável! — confirmou Silvestre ao provar da água.
Assim, resolveram seguir um pequenino curso d’água que desaguava no lago. E em menos de cem metros morro acima, encontraram uma nascente de água fresca, além de um ninho de pássaros repleto de ovos.
— Agora sim! — exclamou Manolito. — Este lugar é um verdadeiro oásis.
Porém, um som peculiar lhes chamou a atenção. Foi quando olharam para a outra margem da nascente, debaixo de uma árvore.
— Vocês estão vendo aquilo?! — perguntou Silvestre em pânico.
Eram dois filhotes de leões comendo os restos de uma caça.
— Fiquem em silêncio! — Implorou Mariano. — Vamos encher os chifres e sair daqui sem que nos percebam. Os pais desses filhotes podem estar por perto.
Apavorados com a possibilidade de serem surpreendidos por leões, se lançaram morro acima por entre a vegetação arbustiva. Subiram mais de mil e duzentos metros da vertente inclinada do vulcão, até chegarem ao topo. A longa aclividade do terreno, a dureza do solo vulcânico e o calor intenso quase os consumiram. Exauridos, se jogaram ao chão. A caldeira do vulcão tinha aproximadamente cinco quilômetros de diâmetro cuja cúpula apresentava paredes em escarpas de até quinhentos metros de altura, marcadas por enormes sulcos abertos pelo fluxo das lavas. Se esforçando para não se entregar ao cansaço, Manolito tenta encorajar os dois amigos:
— Não dispomos de tempo. Precisamos encontrar o pergaminho e nos abrigar antes que chegue à noite. Se não encontrarmos um abrigo teremos enormes problemas, pois, nessa altitude, a temperatura durante a noite pode cair muito.
Seguindo as orientações do mapa, caminharam quinhentos passos na cota altimétrica do Mirante, em direção ao sol nascente.
— Vejam!
— O quê?
— Aquela cavidade.
— Qual? Há dezenas de cavidades!
— Aquela maior, com um pequeno arbusto à direita — apontou Manolito.
— A boca é muito estreita.
— Tente você Mariano. Além de ser o mais magro entre nós, também é o que mais entende de rochas — sentenciou Manolito.
— Tudo bem.
Mariano se enfiou buraco adentro até desaparecer por completo. Passado alguns minutos, seus pés brotaram para fora da cavidade.
— Me puxem!
— O que ele disse
— Disse para puxá-lo.
A indicação no mapa era verdadeira. Mariano encontrou um cilindro metálico, medindo aproximadamente quarenta centímetros de comprimento por três polegadas de diâmetro.
— Abra logo! Vamos ver o que há dentro.
— Não consigo abri-lo. Parece blindado
— Deixe-me tentar.
— A tampa deve ser em rosca.
— Então desenrosque!
Manolito desenroscou a tampa e encontrou um tipo de segredo como aqueles para cofres de parede. E na base da tampa uma informação: “Este artefato só poderá ser aberto na presença de todos os membros do grupo. Para destravar as combinações, informe a data de nascimento de cada um dos participantes”.
— O que faremos agora? — perguntou Mariano.
— Ainda temos um chifre d’água, alguns pedaços de inhame e um punhado de Teffé — contabilizou Silvestre. — Proponho que procuremos um lugar seguro para passar a noite e retornamos com o cilindro ao alvorecer.
Descendo pelas escarpas da cúpula do vulcão, encontraram dezenas de cavidades formadas pela erupção, e que serviram de abrigo térmico contra o frio da noite.