E lá estava Silvestre, poltrona de número 42-E, rente a janela, em um voo direto de Brasília para Zurique, cidade escolhida para sediar o primeiro encontro entre a equipe da Nova Marte e os demais candidatos nomeados para a última fase da seleção.
Em frente ao portão de desembarque, um homem calvo, extremamente alto e usando um estreito par de óculos escuros, o esperava segurando, a altura do peito, um cartaz com o nome Silvestre, impresso ao centro em tom de vermelho.
Silvestre se apresentou, e os dois seguiram para fora do aeroporto, onde um furgão na cor azul escuro o esperava. Dentro do furgão, apenas o motorista e o homem calvo que o recepcionara. Durante o trajeto, Sivestre encantou-se com a vista. Ele não cabia dentro de si. Ao atravessar uma das pontes sobre o rio Limmat, ele tentou quebrar o gelo:
— Essa cidade é demais! Vocês são daqui?
Nenhuma resposta. Sequer moveram suas cabeças.
— Será que o meu inglês está tão ruim assim?! — pensou Silvestre incomodado.
Após aproximadamente quarenta minutos de silêncio sepulcral, o furgão estaciona na porta de um velho sobrado, que se achava praticamente encoberto por um pequeno bosque, na Rua Orellistrasse, no bairro de Fluntern.
Com uma das mãos segurando a bagagem de Silvestre e a outra empurrando o velho portão, finalmente o calvo proferiu a sua mais longa frase desde que saíra do aeroporto: “Por aqui, senhor”.
p. 14Dentro do velho sobrado, uma senhora de meia idade, olhos profundamente azuis, e com a mesma aspiração que a do homem calvo em falar, conduziu Silvestre ao seu aposento. Em seguida, com um quase imperceptível sorriso de canto de boca disse: “daqui a quarenta minutos o senhor deverá se apresentar. Com sua licença”.
— Quarenta minutos... — pensou Silvestre. — Por que quarenta e não trinta, ou uma hora? Deixa pra lá, daqui quarenta minutos eu desço e pronto.
Mas Silvestre não trazia em sua bagagem nada que podia lhe informar as horas. Então se lembrou:
— Nossa! Isso aqui é Suíça, e eles adoram relógios! Neste caso, qualquer atraso pode significar uma grande pisada...
Silvestre, então, improvisou: Deitou-se na cama e contou até sessenta, quarenta vezes; só não se lembrou de descontar o tempo transcorrido entre o momento em que recebera a informação e o início de sua contagem.
Já no saguão, a mesma senhora o esperava.
— O senhor está dois minutos atrasados, Mr. Silvestre — repreendeu a senhora. — Por gentileza queira me acompanhar.
Em uma pequena saleta sem janelas um homem magro, aparentemente de origem indiana, o aguardava. Tratava-se de um dos candidatos que, assim como Silvestre, ainda não sabia nada sobre como seriam as próximas etapas da seleção. Após trocarem alguns breves olhares, Silvestre se arrisca primeiro:
— Olá, meu nome é Jonas, Jonas Silvestre, e o seu?
— Olá, me chamo Haresh Bhagat. Mas pode me chamar de Bhagat.
Bhagat e Silvestre conversaram por horas. Bhagat era um indiano de trinta e quatro anos, botânico, especialista em Agroecologia e com doutorado em Biodinâmica, nascido no vilarejo de Malana, em Himachal Pradesh.
p. 15Bhagat e Silvestre, assim, permaneceram naquele sobrado por quatro dias, tempo necessário para que fossem apresentados aos outros seis membros restantes que comporiam o grupo de finalistas: Helga Günther, enfermeira, trinta e oito anos, nascida em Bremerhaven, Bremen; Jennifer Williams, advogada, trinta e três anos, nascida em Roswell, Geórgia; Ichiro Kato, fisioterapeuta, trinta anos, nascido em Takamatsu, Kagawa; Manolito López, metalúrgico, trinta anos, nascido em Mérida, Iucatã; Mariano Flores, arqueólogo, trinta e nove anos, nascido em Bucaramanga, Santander; e Samira Saddi, trinta e um anos, professora de Matemática, nascida em Zahlé, vale do Begaa.
Reunido o grupo, todos os oito finalistas foram conduzidos para um pequeno auditório, no subsolo do velho sobrado. E lá ficaram aguardando as informações seguintes. Após alguns minutos de espera, aquele mesmo homem calvo anuncia:
— Por favor, senhores e senhoras, permaneçam em silêncio e prestem total atenção, pois, o presidente da Nova Marte, o Dr. Edward Banks, dirá a vocês para aonde serão mandados, e como deverão proceder.
Todos estavam muito ansiosos. Então, subitamente, surge por detrás de uma cortina um homem baixinho, de terno e sapatos brancos, ostentando sobre a cabeça um quepe estampado com a figura de um foguete espacial.
p. 16— Boa tarde, ladies and gentlemen. Sou o Dr. Edward Banks. É um prazer conhecê-los pessoalmente. Saibam que estão prestes a tomarem parte da mais audaciosa aventura da história humana. Entretanto, devo lembrá—los que apenas quatro entre vocês serão os astronautas escolhidos. Portanto, a partir de agora, vocês estão competindo entre si. Contudo, devo adverti-los de que o sucesso de cada um dependerá da capacidade de gerarem esforços integrados. Amanhã vocês tomarão um voo direto para Adis Abeba, Capital da Etiópia. De lá, seguirão para um dos lugares mais inóspitos deste planeta, o Triângulo de Afar. Em tal lugar ocorre o encontro de três placas tectônicas que, por capricho da natureza, se afastam entre si a um ritmo de dois centímetros a cada ano. E por conta dessa atividade geológica intensa surgem vulcões, fissuras e a formação de escarpas quase intransponíveis. O que vão fazer lá? Vão criar as próprias condições de sobrevivência. Pois, se lá, naquele mesmo lugar, nossos mais longínquos antepassados conseguiram se adaptar, como foi o caso da nossa querida Australopithecus Afarensis Lucy, vocês, homens do futuro, certamente conseguirão! E isso não é tudo — prosseguiu Dr. Banks —, essa será somente a primeira etapa do desafio. Se resistirem às condições de Afar, serão levados a outro lugar do planeta ainda mais incrível. Entretanto, esse segundo lugar, propositalmente, não será revelado a nenhum de vocês. É importante que vocês cheguem a esse outro local sem qualquer tipo de informação. Para tanto, vocês serão transportados dentro de uma aeronave adaptada de maneira a não permitir que vocês percebam absolutamente nada do que passa no seu exterior. Mas vocês não devem se preocupar com esse outro lugar agora; tentem se concentrar apenas na primeira etapa, ou seja, no Triângulo de Afar; um desafio de cada vez!
Tendo dito aquilo, Dr. Banks se retirou imediatamente, acompanhado de uma sorridente jovem ruiva em traje de vedete. O grupo permaneceu no local esboçando um misto de espanto e entusiasmo.
Após o jantar, Silvestre e Bhagat julgaram oportuno discutir as comparações que fizera Dr. Banks a respeito das capacidades adaptativas entre os contemporâneos de Lucy e os humanos atuais.
— Em minha opinião — pronunciou Bhagat. — Dado as circunstâncias do encontro, Dr. Banks fez aquela comparação somente com o intuito de nos deixar encorajados quanto ao nosso desafio adaptativo em Afar.
— Como assim, encorajados? O amigo está sugerindo que o próprio Dr. Banks nutre alguma dúvida quanto a nossa capacidade adaptativa?
— Quanto a isso não posso responder. Mas, se ele nos definiu como “homens do futuro”, em oposição aos Australopithecus Afarensis, obviamente que estava nos colocando em vantagem. Seja como for — prosseguiu Bhagat. — Comparações como essa, feitas de maneira apressada, e ainda sem um propósito científico, não servem de nada a não ser produzir ilusões.
— De que ilusões o amigo está se referindo?
p. 17— Não percebe? A ilusão de que uma população pode tornar—se mais bem adaptada que outra, somente pelo fato de possuir mais conhecimentos e tecnologias. Conheci o Vale do Rio Awash e posso lhe garantir que é um lugar inóspito, até mesmo para os povos que lá habitam. Portanto, precisaremos nos esforçar muito!
— Como assim Dr. Bhagat, você já conhece esse tal Triangulo de Afar?
— Sim. Quando estive na Etiópia, como membro de um programa de ajuda internacional, nossa equipe prestou assessoria a órgãos do governo local preocupados em ampliar as condições de adaptabilidade entre algumas populações que lá viviam sob condições extremas. Minha atuação foi breve, não andei muito por lá, praticamente sobrevoávamos o rio Awash para ver as condições das matas ciliares e a extensão das áreas devastadas durante uma grande seca que assolou a região. Do alto se via pessoas e animais tão ressecados quanto a terra em que pisavam, caminhando sem rumo sob um calor infernal de quase 50°C. Sem falar nas diversas vezes em que nos deparamos com cenas terríveis de leões famintos perseguindo nativos das tribos locais. Então, dávamos rasantes a fim de espantar as feras.
Por mais ameaçador que pudesse parecer aquele quadro descrito por Bhagat, Silvestre se enchia de motivação. Sentia-se como um daqueles super-heróis de cinema prestes mudar o destino da humanidade.
— Deve ser mesmo um lugar inóspito — concordou Silvestre. — Mesmo assim, não vejo isso como um impedimento para nós. Com certeza, seremos os humanos mais adequados para colonizar Marte, você não acha?
— Isso é o que ainda teremos que provar, mais para nós mesmos do que para os organizadores do programa, já que serão as nossas cabeças, e não as deles, que estarão a prêmio. Por isso, Mr. Silvestre, como mesmo nos disse Dr. Banks, nosso sucesso dependerá de esforços integrados.
— Neste caso, será mesmo uma tarefa difícil — refletiu Silvestre. — Pois, sobrevivência, competição e cooperação são três coisas difíceis de conciliar, não é mesmo?
— Do ponto de vista comercial, eu diria que sim, mas, do ponto de vista ecológico, são três partes de uma mesma dinâmica essencial à manutenção da vida. Quando estivermos naquele vale, Mr Silvestre, só teremos alguma chance de sobrevivência se formos capazes de ver, a nós mesmos, não como coisas, ou seres, diferentes daquela paisagem. Mas, sim, como um ente a mais, acoplado e interdependente àquele ambiente. Há um autor de quem ou gosto muito, se chama Fritjof Capra. Em um de seus livros, ele nos coloca no interior de uma única dinâmica a qual denomina “a teia da vida”. É o mesmo que enxergar tudo que há em nosso planeta como sendo parte de uma única ecologia profunda. Se não pensarmos assim — concluiu Bhagat. — Seremos somente mais um pequenino grupo de humanos a desaparecer por se tornar mal adaptados.
p. 18No dia seguinte, já no aeroporto internacional de Bole, em Adis Abeba, nem mesmo as intermináveis nove horas de voo conseguiram arrefecer o entusiasmo daqueles candidatos a astronautas. E no portão de desembarque, um típico etíope os esperava. Tratava-se de um homem alto, magro e vestido com o traje tradicional de sua etnia: calças jodhpur, um xale reluzente sobre os ombros e uma longa camisa coberta por um envoltório branco de algodão macio, chamado de gabi.
— Bom dia, senhores! — cumprimentou o homem esboçando um largo sorriso. — Me chamo Tariku, e muito me honra a presença de vocês em meu país. A partir desse momento passo a integrar o grupo de vocês, nesta última etapa da seleção. Entretanto, como sou um nativo da região de Afar, mais especificamente um membro da etnia Adal, serei para vocês uma espécie de guia local. Pois bem, amanhã, pela madrugada, sairemos de Adis Abeba e seguiremos até o Parque Nacional de Awash, distante daqui aproximadamente três horas e meia.
— Então, Sr. TariKu — pronunciou Jennifer, a advogada. — Se é o guia desta missão, deve também saber o que vamos fazer nessa tal região de Afar, não é mesmo?
— Claro, senhorita — respondeu calmamente Tariku. — Esse será o nosso próximo passo antes de nos dirigirmos ao hotel. Por favor, queiram me acompanhar até o transporte. Almoçaremos no caminho, e em seguida faremos uma reunião para tratar dos detalhes sobre a nossa missão em Afar.
Ao contrário do que imaginavam, Tariku os conduziu para um bairro afastado, longe dos holofotes da mídia. Nada de repórteres, curiosos, ou qualquer emissora local. Era como se aquela parte da missão devesse permanecer em segredo. Assim, exatamente às quatorze horas, todo o grupo foi conduzido para dentro de uma espécie de porão, no interior de uma casa que ficava atrás de um velho depósito de material reciclável. Sentaram-se em torno de uma grande mesa oval. A luz fraca e amarelada que saia de uma luminária rebaixada sobre o centro da mesa lhes escondia os rostos, somente suas mãos ficavam a mostras.
p. 19— Neste exato momento — anunciou Tariku —, daremos início à última etapa de seleção para a Missão Nova Marte. É muito importante que registrem tudo o que eu disser!
— Como assim, registrar se não há papéis e canetas sobre a mesa?! — indagou Jennifer com ar de repreensão.
— Caneta e papel nunca foram usados pelos contemporâneos de nossa antepassada Lucy, senhorita Jennifer.
Há poucos milênios, os humanos usavam apenas a ferramenta mais complexa de que se tem notícia para fazer anotações, o cérebro. E como pode notar — prosseguiu Tariku. — Nós, os humanos, ainda estamos aqui, não é uma maravilhosa prova de que eles venceram as adversidades?
Em meio aquela penumbra, o clima de insegurança era total. Então foi a vez de Helga:
— Por favor, Sr. Tariku, pode nos dizer afinal qual será a nossa missão no Parque Awash?
— Como o nosso líder, o Dr. Edward Banks, já lhes havia adiantado em Zurique, a missão no Parque Nacional de Awash tem um propósito central: provar a capacidade de resiliência e adaptação do grupo selecionado. Assim, a cooperação entre vocês será de capital importância para se tornarem bem adaptados às condições encontradas em Afar.
— Se estamos competindo, não seria um contrassenso de nossa parte cooperar? — rebateu Ichiro incomodado.
— Essa é uma questão que caberá somente ao grupo responder. Contudo, só obterão tal resposta, quando estiverem em Afar, logicamente — respondeu Tariku.
— E poderíamos saber qual será o tempo de nossa permanência em Afar? — perguntou Samira.
— O programa estipulou o tempo mínimo de um ano, podendo chegar a dois, caso necessário.
— Mas, isso não é tempo demais?! — questionou Samira apoiada por Helga, Jennifer e Manolito.
— Como pensam que serão as coisas lá em Marte? — perguntou Tariku em tom severo. — Lá, só terão a si mesmos e sem direito a retorno. A única opção será a busca contínua por sobrevivência e adaptação. Tenho recomendações expressas da organização para deixá—los cientes quanto aos desafios da missão.
— Se a organização da missão já tem tudo programado — interveio Mariano. — Nesse caso, presumo que já tenham concluído uma prospecção em Marte, e já podem nos dizer, por exemplo, onde e quais serão as condições do terreno e do clima que vamos encontrar quando descermos no planeta vermelho, não é mesmo?
— Saberão no momento oportuno — disse Tariku. — Sugiro que agora voltem suas atenções para o planeta Terra, mais especificamente, para as condições ambientais do Parque Awash, a nossa missão imediata.
Percebendo a ansiedade crescente entre o grupo, e o rumo que tomavam as perguntas, Tariku decidiu iniciar o detalhamento da missão no Parque Awash.
— Pois bem, inicialmente, queiram, por gentileza, depositar todos os seus pertences nestas sacolas plásticas. Isso inclui relógios, celulares, computadores, tablets, joias, ferramentas, e qualquer outro tipo de material que, porventura, estiverem portando. Entrarão no Parque Awash somente com as roupas que estiverem vestindo. Portanto, sugiro que improvisem seus abrigos na primeira oportunidade, pois nesta época do ano, apesar da temperatura chegar a mais de 40 °C durante o dia, a noite pode cair facilmente para a casa dos 10 °C.
p. 20Acostumada aos acampamentos de verão, nos parques do EUA, durante a sua juventude, Jennifer tentou advogar em nome do grupo:
— Vamos precisar de alimentos, kit de primeiros socorros, e material de higiene. Todos terão necessidades, não é mesmo? Cabelos e unhas crescem rápido, como faremos para cortá-los?
— Encontrar alternativas para suprir tais necessidades — respondeu Tariku. — Será uma excelente oportunidade para por a prova a capacidade de vocês em se adaptar ao ambiente do parque. Esse é o sentido da missão. Temos duas mãos, dois polegares oponíveis e cultura. Isso não é sensacional?!
— Neste ponto temos que concordar com Tariku — disse Manolito. — Possuímos todas as qualidades para nos tornarmos bem adaptados ao ambiente do parque. Basta que usemos nossas inteligências. Lembro-me do que a minha avó me contava sobre a sua infância em Iucatã, as pessoas de sua comunidade conseguiam suprir a maior parte de suas necessidades usando, com criatividade, as coisas que a natureza local podia ofertar.
— Isso mesmo! — exclamou Helga. — Devem existir centenas de ervas nativas com propriedades medicinais. Umas são repelentes, outras são antibióticas, cicatrizantes, e assim por diante.
— Além de nascentes de água limpa — disse Bhagat. — também poderemos encontrar muitas plantas comestíveis não convencionais.
— E com um pouco de esforço — concordou Mariano —, poderemos fazer um levantamento da área, e mapear as espécies existentes.
— Vocês captaram o espírito da missão! — comemorou Tariku. — Como vê senhorita Jennifer, muitas mãos são capazes de grandes feitos. Vocês acabaram de dar um grande passo rumo à ideia de que cooperação é o início de tudo na adaptação.
Ichiro e Jennifer ainda não haviam se convencido de que a cooperação entre o grupo seria uma das chaves adaptativas. Para os dois, a ideia de competir e ao mesmo tempo cooperar carregava uma contradição incontornável. Em algum momento — imaginavam eles — teriam que escolher entre uma coisa e outra.
— Muito bem — continuou Tariku. — Penso que ficou claro para todos que não levar nada para dentro do parque, a não ser a roupa do corpo, é uma das exigências da missão.
p. 21— E quando nossas roupas e sapatos se desgastarem. Algum helicóptero do programa lançará sobre o nosso acampamento outras vestes e calçados? — perguntou Ichiro.
— Não, Sr. Ichiro. Não haverá helicópteros lançando provisões sobre vocês. Inclusive, foi importante ter mencionado a palavra sapatos, pois também não entrarão calçados no parque.
— Como sobreviveremos descalços naquele lugar?! — esbravejou Jennifer. — E quanto à segunda etapa do desafio? Haverá realmente outro lugar para aonde seremos levados, e completamente às escuras? Não acha que soltar pessoas em lugares desconhecidos, sem antes oferecer informações, pode levá-las a morte?
— Exatamente como eu já havia comentado anteriormente, Srtª Jennifer — disse Tariku calmamente. — Todos esses inconvenientes são oportunidades para por a prova a capacidade de vocês em se adaptar a ambientes inóspitos e desconhecidos. Por exemplo, nós, humanos, já possuímos significativos dados geofísicos sobre Marte, no entanto, nunca estivemos lá para nos colocar a prova. Consegue entender agora a importância de, numa segunda etapa do desafio, chegarem a um lugar desconhecido? Mas, como mesmo disse o Sr. Banks, vocês agora devem voltar todas as suas atenções somente para o Parque Awash. E falando em parque — continuou Tariku. — Ainda não me perguntaram nada sobre ele!
— Queira nos desculpar, Sr. Tariku — disse Bhagat. —
Por favor, informe—nos sobre o ambiente do parque.
— Pois bem, o Parque Nacional de Awash está distante 225 km a leste de Adis Abeba pela a autoestrada Dire Dawa rumo à cidade de Awash. Sairemos às 5 da manhã, impreterivelmente. A cidade de Awash está a cerca de 10 km do parque. Nela, se encontra a sede do Centro de Gerenciamento Remoto (CGR) da missão Nova Marte junto ao Parque Awash. Na CGR deixarão todos os seus pertences. Da cidade seguiremos até a entrada do parque. Dentro do parque, um guia da etnia Oromo os acompanhará até o local de treinamento (LT), local este que deverá ser a moradia de vocês antes de deixarem o nosso planeta.
— Sei lá! — respondeu Ichiro. — Acho que é o jeito que ele encontrou para dizer “até seguirem para Marte”.
Ouvindo os comentários entre Ichiro e Jennifer, Tariku os advertiu olhando fixamente para os dois:
— Senhores, podemos continuar a descrição sobre o ambiente do parque?
— Queira nos desculpar — disse Ichiro envergonhado.
— O Parque Awash possui altitude média de 800 m a 1000 m acima do nível do mar. Caso necessitem, as coordenadas do parque são: Latitude 8°55’12” N; e Longitude 40°02’33.65” E. O parque possui vários lagos e é cortado pelo Vale do Rio Awash, este que dá nome ao parque. Esse é o rio mais importante da Etiópia, com cerca de 1200 km de extensão, desaguando no Lago Abbe, na Depressão de Afar, fronteira com o Djibouti, sem chegar no mar. Na fronteira sul do parque o desfiladeiro do rio Awash forma belas cachoeiras. Um ótimo lugar para se viver, não acham?
Todos estavam atentos àquela refinada descrição.
p. 22No parque — continuou Tariku. — Prevalece o clima de estepe, de pouca pluviosidade, com média anual de 516 mm. Dezembro é o mês mais seco, com 6 mm de precipitação. Agosto é o mês com maior precipitação, média de 127 mm. O clima é classificado como BSh: Árido, de Estepes, seco e quente, apresentando temperatura média anual de 26.4 °C. Julho é o mês mais quente, a temperatura média é de 30.0 °C; e dezembro apresenta a temperatura média mais baixa, de 22,7 °C. Mas não se iludam com médias! A temperatura no parque pode chegar a 42 °C, ou mais, durante o dia, e a noite as temperaturas podem variar entre 10 °C e 22 °C. Nosso verão é seco e frio. Já o nosso inverno chove um pouco mais e é muito quente. Em compensação, terão um céu limpo à noite, as estrelas poderão ser vistas com nitidez, um céu sem qualquer interferência da poluição visual das cidades. Estrelas poderão ser seus relógios e bússolas.
— Sr. Tariku — manifestou Mariano levantando uma das mãos. — Agora, depois de todas essas caracterizações, faz todo o sentido porque escolheram esse local, e porque escolheram o senhor como o nosso instrutor. Poderia nos dizer qual a sua formação?
— Sim, Sr. Mariano, com prazer. Sou geólogo, especialista em prospecção de petróleo e mineração de diamantes. Mas estou aqui pelos meus conhecimentos tradicionais, suponho. Nasci nessa região, e vivi até os 20 anos numa aldeia da etnia Adal. Quando já estiverem dentro do parque — retomou Tariku. — A maior preocupação de vocês deverá ser a de conseguirem chegar até o local de treinamento, ainda durante o dia, pois, ao cair da tarde, os animais se tornam um perigo à sobrevivência humana, é a partir desse horário que parte da fauna carnívora costuma caçar para se alimentar. Passado esse horário, deverão temer somente a madrugada.
— Bichos? Como assim? Em Marte não teremos animais por perto. Por que, então, escolheram um lugar tão perigoso para o treinamento? — disse Jennifer apavorada.
— Conforme disse há pouco, senhorita Jeniffer, nossa missão já se iniciou. Esse treinamento é diferente daqueles usados para “astronautas convencionais”. Somos colonizadores de um novo mundo! Essa missão contará com a assessoria completa por parte da Nasa , o que inclui monitoramento por satélites em tempo integral. Em troca, forneceremos informações detalhadas a ela, desde o primeiro momento em que pisarem dentro dos limites da área de treinamento, até a vida de vocês em Marte.
— E as condições dentro da área delimitada para o treinamento, quais são as condições de sobrevivência existentes? — perguntou Samira.
— Ótima pergunta Samira! — disse Tariku. — O Parque Awash é grande e rico o suficiente para prover alimentos. Tem 756 Km² de floresta de acácia, vegetações arbustivas tipo Savana, palmeiras, pastagens e uma mata ciliar na margem do rio Awash. Os habitats do parque são típicos de regiões áridas e quentes. O parque possui centenas de espécies animais, 46 espécies de mamíferos, entre eles: Hipopótamos; Javalis; Babuínos; Colobus; Gazelas; Leões; Leopardos; Chitas; Hienas; Crocodilos; Chacais; Zebra; Antilopes; Tartarugas gigantes e Óryx. Além de 400 espécies de aves: Aavestruzes, Osprey, Ibis, Abutres, etc.
p. 23— E se não conseguirmos caçar esses animais, como vamos nos alimentar? — continuou Samira.
— Muitos seres humanos, como deve saber Srtª. Samira, viveram, e ainda vivem bem, sem carne. Alimentar—se vai muito além de comer carne. Arqueólogos tem descoberto que até alguns gladiadores romanos eram vegetarianos. Não é mesmo senhor Mariano?
— Sim — respondeu Mariano. — As pesquisas feitas em arenas romanas, na França, sugerem que não havia criação de animais para sustentar os gladiadores. Sem falar nos vegetarianos atuais e muitos povos que consideram os animais seres sagrados. Além do mais, o alto consumo de carne entre os humanos tornou-se um hábito alimentar somente a partir dos últimos cinquenta anos.
— Há alguns anos, quando fazíamos pesquisas nessa região, em razão de uma extrema estiagem que deixou um grande rastro de destruição — lembrou Bhagat. — Nosso grupo de pesquisa indicou a árvore Moringa para reflorestar e servir de alimento, suas folhas são comestíveis e muito ricas em proteínas.
— E para nos alimentarmos de vegetais — salientou Helga. — Precisaremos de uma dieta balanceada e rica em proteína também. Assim, caso não consigamos obter sucesso na caça, poderemos pescar e colher ovos. Um só ovo de avestruz seria suficiente para fazer uma omelete para todo o grupo!
— De fato! — concordou Tariku. — Mas o difícil será depois correr por quilômetros da mamãe avestruz. Recordo-me, quando ainda era criança, na minha aldeia, um parente meu foi morto por um avestruz enquanto colhia seus ovos. Uma bicada letal, bem no centro de sua cabeça. Mas, como dizem por aí, “um dia é da caça...” As etnias locais sempre se utilizaram de ovos de avestruzes para comporem suas dietas. Contudo, é importante não se esquecerem de que a maioria das aves é muito ativa durante a madrugada e ao entardecer. Nesse caso, colher ovos de avestruzes nesses horários poderá ser fatal. Outro detalhe importante: poderão obter proteção contra insetos e certos animais se encontrarem a árvore de incenso místico chamada Arabicae Gum. O local de treinamento fica próximo a uma nascente de água termal, a Wuha Fil, em língua amárico — prosseguiu Tariku. — Essa fonte fica no lado norte do parque, na parte superior do Vale Kudu, escondida por entre bosques de palmeiras. Lá, encontrarão um marco contendo um mapa que determinará o perímetro onde deverão permanecer. A partir da fonte Wuha Fil, terão várias missões especiais. A primeira delas será a de se deslocarem até o cume do Vulcão Fantale, a uma altitude de 2.007 m., onde, depois de caminharem ao redor do cone cheio de fumarolas, encontrarão um marco onde se acha depositado um pergaminho contendo todos os passos que deverão seguir durante a missão.
p. 24— Vulcão fumarolante? Que loucura! Seremos obrigados a ir até o cume de um vulcão, e ainda sem sapatos?! — desafiou Jennifer.
— Nada aqui é obrigatório, senhorita Jennifer, absolutamente nada! — advertiu Tariku. — Somente aqueles que manifestarem interesse em ir, e forem, naturalmente, indicados pelo restante grupo, irão até o vulcão. Os demais ficarão na base do acampamento se preparando para outras missões. Porém, lembrem—se de que, se não encontrarem o pergaminho, não haverá outras missões. Agora, um detalhe muito importante: se algo acontecer a qualquer um do grupo, isso não significa que a missão será interrompida ou abortada. Trata—se de um caminho sem volta, essa missão só acaba quando não restar mais nenhum de vocês.
— Essa última frase sim, foi macabra! — segredou Ichiro a Jennifer.
— Agora que eu já disse a vocês tudo o que precisavam saber a respeito do Parque Awash, me escutem com atenção: amanhã, sejam pontuais! Tomaremos café às quatro horas da madrugada, e partiremos às cinco. Uma vez dentro do parque, não poderão mais andar sozinhos, somente em grupo. Existem animais ferozes, como leões, leopardos, crocodilos e hipopótamos. Também estarão impossibilitados de sair da área delimitada, conforme determinou o comando da missão. Ficarão isolados do restante do mundo, mas o mundo todo poderá vê—los, quando quiser, por meio de imagens transmitidas por câmeras em drones e satélites.
— Mas isso parece até um programa de Reality Show, um Big Brother! — exclamou Manolito.
— Em certo sentido sim — concordou Tariku. — Como pensa que uma missão a Marte tripulada e privada, conseguirá angariar recursos para tão audaciosa aventura? Portanto, sorriam, todos serão filmados, aqui na Terra como em Marte! Entenderam tudo o que eu disse meus amigos astronautas? — finalizou Tariku se retirando do porão.
— Entendemos! — responderam em uníssono e amedrontados.
As revelações de Tariku geraram um efeito avassalador sobre o ânimo da equipe. Apavorados, permaneceram sentados. Trocavam olhares mudos na esperança de que algo os resgatasse daquele naufrágio coletivo. Enquanto Jennifer tentava esconder algumas lágrimas insistentes, Ichiro arrastava os pés sobre o piso formando figuras imaginárias. Bhagat, com o olhar fixo na linha do horizonte, balbuciava algumas palavras em sânscrito. Os demais, cada um ao seu modo, tentavam driblar a indignação e o medo.
p. 25— Vamos todos morrer! — berrou Ichiro quebrando o silêncio.
— Que morrer que nada! — desafiou Manolito. — Vocês acham que um programa tão bem estruturado e com divulgação para toda mídia internacional iria permitir que algum de nós morresse nesse inferno e, ainda, ao vivo?!
E os milhões de dólares que estarão em jogo quando nossas imagens viralizarem pelo mundo?
— Alguém aqui, por acaso, se lembra de tudo o que assinou naquele casarão em Zurique? — provocou Jennifer. — Eu posso apostar que não. Todos nós estávamos inebriados por aquele clima de super finalistas e blá, blá, blá; não é mesmo?
— Talvez a Jennifer tenha razão — comentou Helga. — Estamos nesta missão por nossa conta e risco. Se algum de nós, ou todos nós, desaparecermos no triângulo de Afar, os únicos a se incomodarem serão nossos parentes. Para a “grande mídia internacional” não passaremos de um bando de malucos alternativos que escolheu ir para um lugar o qual nunca deveriam ter ido.
— E quando aquele tal Dr. Banks — acrescentou Samira —, nos informou que iríamos “para um dos lugares mais inóspito desse planeta”, ele não nos avisou que seríamos soltos lá como um bando de indigentes, sem equipamentos, suprimentos e qualquer tipo de comunicação.
— O que acham que devemos fazer? — perguntou Silvestre. — Desistir de tudo e voltar para as nossas casas com os nossos rabos entre as pernas? E o nosso ideal de sermos os primeiros humanos a colonizar Marte? E o que temos a perder a essa altura do campeonato? Já se esqueceram também de que a nossa viagem para Marte não contempla passagem de volta? E se o que nos espera em Marte seja pior do que vamos encontrar em Afar?
— Acho que Silvestre está sendo sensato — defendeu Bhagat. — Além do mais, devemos considerar que não estaremos completamente desaparelhados como pensa Samira. Vocês se esqueceram de Tariku, o nosso guia? Por que vocês acham que a organização do programa o colocou junto a nós? Ele pode ser a chave para a nossa sobrevivência!
— Nesse ponto Bhagat está certo — afiançou Mariano. — Afinal, também devemos levar em conta que não somente dezenas de outras etnias conseguem sobreviver no Triângulo do Afar, mas também outras espécies de humanos que lá viveram há mais 3,2 milhões de anos atrás, como, por exemplo, os Australopithecus afarensis, os Ardipithecus ramidus, os Ardipithecus kadabba e os Australopithecus garhi. Por isso, — continuou Mariano. — Precisamos pensar no que disse o Dr. Banks: “somos homens do futuro”, e se esses caras da pré—história conseguiram, é porque vamos conseguir também!
— E então? — perguntou Silvestre. — Como vai ser?
Os argumentos de Silvestre, Bhagat e Mariano conseguiram, não apenas convencer o restante do grupo, mas também reascender os ânimos.
E no dia seguinte, antes mesmo que o ardente sol da Etiópia lançasse seus primeiros raios, conforme programara Tariku, um velho micro-ônibus fretado já os esperava em frente ao hotel.
Conforme o dia clareava, a incrível paisagem local, atravessada pela famosa via expressa trans—africana Addis Ababa — Aadama, revelou-se ao grupo.
p. 26— Olha gente! — gritou Helga. — Aquele bando de veados correndo à nossa direita.
— Com todo respeito, Srtª Helga — corrigiu Bhagat. — Aquilo são Oryx, um tipo de bovídeo da fauna local, do mesmo grupo dos antílopes e que chega pesar até trezentos quilos.
— Obrigado pela aula, Sr. Bhagat — ironizou Helga. — Onde aprendeu isso?
— Ontem à noite, no hotel, andei pesquisando sobre a fauna local.
Uma vasta vegetação de Savana, já em parte ressequida, podia ser vista até a linha do horizonte, onde uma imponente cadeia de montanhas sobrelevava.
— Essa paisagem me fez recordar de minha terra natal — comentou Silvestre.
— Você é natural da África? — perguntou Jennifer.
— Não — respondeu Silvestre. — É que a região onde nasci, no Estado de Goiás, Brasil, é muito parecida com esta daqui, seus aspectos fitofisionômicos, clima, solo e a ocorrência de fogo guardam grandes semelhanças com a Savana africana. Cerca de 80% a 90% do Brasil Central é caracterizado como vegetação savânica, enquanto o restante é ocupado pelas formações florestais e campestres.
— Então, sinta-se em casa — ironizou Jennifer.
— Vejam senhores! A cidade de Awash.