O VERDE DE MINHA ROÇA VEM DE MARTE • ISBN: 978-65-86422-43-6
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Um professor de contrato temporário

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Após mais um decepcionante dia de apresentação de currículos, o recém-desempregado professor de História, Jonas Silvestre, chega à sua residência, em Brazlândia, uma das muitas cidades satélites do entorno de Brasília (DF). O esperavam solenemente: uma última garrafa de refrigereco na geladeira, um pequeno cão vira-latas esfomeado, uma conta de condomínio grudada na porta da geladeira e um bilhete sobre a mesa da cozinha.

Por ordem de importância, acariciou o cão, abriu a garrafinha de refrigereco, olhou de rabo de olho a conta do condomínio vencida, deixando por último o conteúdo do bilhete. “Querido Jonas, nosso caso acaba aqui. Bem que tentamos, você sabe... Não quero que se sinta culpado; apesar de tudo foi divertido. Se lembra daquele dia quando deixamos o cabo da panela se incendiar e a vizinha do andar de baixo chamou o corpo de bombeiros? Aquilo foi hilário, não foi? Bom, preciso ir agora, pois tenho que chegar a rodoviária antes das duas. Se um dia precisar de mim, você sabe o número do meu celular. Você é uma pessoa brilhante, não desanime de seus sonhos e não se esqueça de alimentar o Rintintin. Estarei sempre torcendo por você. Ah! Já ia me esquecendo, não se preocupe com o aluguel deste mês, passei na imobiliária antes de vir para cá. Beijos, Karol”.

Um longo suspiro, a aterrissagem abrupta de seus calcanhares sobre a mesa e o som da queda livre do último gole do refrigereco pelo precipício de sua traqueia foram as únicas respostas que conseguiu dar àquele bilhete.

Enquanto seu cérebro de desempregado, e agora também de abandonado, dava milhares de voltas pelo o espaço e pelo tempo, decidiu, por impulso, ligar o laptop. Passando a vista pelo tsunami de informações algo lhe chamou a atenção. Seria uma brincadeira, ou uma provocação subliminar de alguma marca de bebidas? Não. Era real! Tudo aquilo que uma mente desempregada, abandonada e obcecada por assuntos ufológicos precisava naquele momento. Tratava-se de uma agência espacial selecionando interessados para uma viagem, só de ida, ao planeta vermelho.

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De professor desempregado a astronauta — pensou ele —, poderia ser a sua chance de ouro. Visitando, então, o site da tal agência certificou-se da real possibilidade: “O projeto Nova Marte está selecionando pessoas especiais como você para o mais ­­­­­importante salto rumo ao futuro de nossa civilização. Trata-se de uma viagem tripulada para o planeta vermelho com o intuito de instalar a primeira colônia humana fora da Terra. Pessoas de qualquer nacionalidade e área de conhecimento poderão se inscrever. A nossa expectativa é a de selecionar candidatos que demonstrem garra, habilidade para superação de obstáculos, capacidade de trabalhar em equipe e espírito de aventura”.

Os olhos do professor Silvestre brilharam. Dando um salto quase mortal de sua cadeira ganhou o parapeito da janela de seu minúsculo apartamento. Permaneceu lá por horas contemplando a estreita faixa de céu noturno, duramente conquistada entre os demais prédios vizinhos.

Nos dias que se seguiram, visitas ao site do projeto Nova Marte tornaram-se parte essencial do dia a dia de Silvestre, já que, se imaginar um astronauta passou a ter uma função terapêutica, principalmente quando uma apresentação de currículo não resultava em entrevista de emprego. Até que um dia, finalmente, foi convocado por um diretor de escola. Assim, durante a entrevista, Silvestre foi testado:

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Estava claro que o diretor estava criando uma situação limite para testar a capacidade de Silvestre. E aquela pergunta tirara o seu chão, pois, em seu modo de pensar, cooperação e competição seriam práticas inconciliáveis, portanto, impossível de, juntas, produzirem qualquer tipo de valor integrativo. Contudo, independente de seus pontos de vista, precisava agarrar aquela oportunidade com unhas e dentes. Silvestre sabia se tratar de uma escola particular frequentada por alunos pertencentes à classe média alta do DF, portanto, mantida por pais cujo desejo era o de que seus investimentos retornassem sob a forma de aprovação em vestibulares para cursos como medicina e engenharia, nas boas universidades públicas do País.

Tentando conciliar o que para ele parecia ser inconciliável, Silvestre respondeu embaraçado:

Traçando rápidos rabiscos sobre um bloco de rascunhos, o diretor olhou para Silvestre, coçou a parte inferior de sua farta bochecha e disse:

Ansioso, Silvestre conferia centenas de vezes por dia a caixa de entrada de seu e-mail. Até que numa tarde de sexta-feira a resposta tão esperada chegou: “Prezado professor Jonas Silvestre, agradecemos por ter escolhido a nossa escola, e informamos que a sua avaliação lhe garantiu a segunda colocação geral em nossa seleção. Entretanto, como só há uma vaga para a disciplina de História, a sua contratação somente estará assegurada no caso de desistência por parte do primeiro colocado. Obrigado, Dir. Feliciano”.

Por aproximadamente trinta minutos, Silvestre permaneceu imóvel diante da tela de seu laptop, até que lentamente seus dedos recomeçaram a se mover sobre o teclado. E de maneira quase involuntária acessou o site do projeto Nova Marte abrindo a tela de inscrição para seleção de novos astronautas.

As férias letivas já estavam quase no fim e nem sinal de alguma outra convocação para entrevista, o que significava para Silvestre que a maior parte das escolas particulares já havia preenchido suas vagas ociosas. Também nenhum edital aberto para concurso público em alguma universidade. Realmente, os horizontes profissionais não estavam nada promissores naqueles dias para um recém—doutor em História, de trinta e dois anos de idade.

O jeito, então — pensou ele —, seria apelar para uma vaga de professor temporário em alguma escola da rede pública de ensino do DF.

E depois de várias idas e vindas à Secretaria de Educação, Silvestre, finalmente, conseguiu uma vaga numa escola pública da RA Samambaia.

Apesar dos quarenta e cinco quilômetros de distância entre a sua residência em Brazlândia e a escola do Setor Samambaia, Silvestre sentiu-se mais aliviado, afinal de contas, aquele contrato temporário representava a garantiria de sua subsistência, o aluguel do apartamento e a ração do Rintintin.

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Assim, ônibus lotados, livros didáticos, intermináveis reuniões pedagógicas e milhares de provas para corrigir passaram a preencher o microcosmo de Silvestre.

Para ele, cada dia vivido como professor temporário era como assistir a um mesmo filme milhares de vezes. Até que um dia, uma mensagem inesperada invade a sua caixa de mensagem sob o título Projeto Nova Marte. Imediatamente, Silvestre abre o conteúdo: “Parabéns! Sr. Jonas Silvestre, do Brazil, DF. Você foi selecionado para a primeira fase do nosso processo de seleção. Agora, siga as instruções abaixo. Você deverá enviar-nos uma carta de motivação, seu currículo e um vídeo, com duração de um minuto, justificando por que acha que deve estar entre os primeiros humanos a colonizar Marte. O prazo para o envio dos dados requeridos é de doze horas, a contar do momento de sua confirmação”.

Já passava das três da madrugada quando o vizinho do apartamento ao lado bate à porta de Silvestre esbravejando: “Aí, não sei que tipo de droga você está usando, mas, se eu ouvir mais uma vez você dizer ‘eu quero ir para marte’, juro que vou mandar você pra lá rapidinho, mas, sem os dentes. Tá me ouvindo?!” Na manhã seguinte, Silvestre chega atrasado à escola, devido à gravação de seu longa metragem de um minuto.

Apesar do aparente cansaço, seu humor já não era mais aquele de um professor temporário tentando se equilibrar no interior de um ônibus lotado. Seus alunos receberam um bom dia sonoro e uma atividade nada convencional:

Naquela mesma semana, Silvestre criou, na área de trabalho de seu laptop, uma nova pasta contendo inúmeros arquivos com informações sobre o planeta vermelho, incluindo documentários oficiais da NASA e outros produzidos pelo History Channel.

E numa manhã de segunda, durante o intervalo, na sala dos professores, ouviu-se um grito: “Puta que pariu!” Era Silvestre constatando pelo computador da escola uma nova mensagem a ele enviada pelo programa espacial Nova Marte: “Parabéns! Sr. Jonas Silvestre, do Brazil, DF. Você foi selecionado para a segunda fase do nosso processo de seleção. Agora, siga as instruções abaixo: “Envie-nos um atestado médico com as informações sobre o seu estado geral de saúde, conforme modelo requerido nesta seção; em seguida, após a análise do atestado, você receberá um arquivo contendo conteúdos que lhe ajudarão durante a entrevista que fará, online, coordenada por um de nossos diretores de equipe. Nesta segunda fase, nosso foco recairá sobre suas capacidades mentais”. Após ler aquilo, como um raio, Silvestre deixou a sala dos professores rumo a coordenação:

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Naquele exato momento, a sirene da escola foi acionada convocando os professores a retomarem suas atividades. Desarmada pela circunstância, a coordenadora sentenciou:

Naquela semana, Silvestre precisou se esforçar. Lecionou, fez os exames médicos e ainda participou de um chat online com o Dr. Herzog, um dos médicos membro da equipe responsável pela avaliação dos candidatos ao projeto Nova Marte.

Dentro da escola, devido ao acúmulo de obrigações e ao excesso de turmas, Silvestre se esforçava para que o programa espacial não lhe roubasse toda a sua atenção. Mas era inútil, sua mente não se desprendia, nem por um só segundo, daquele programa. E para agravar ainda mais, todas as vezes que cruzava com a coordenadora pelos corredores da escola, ela insistia em ironizá-lo assoviando a música tema de um seriado americano intitulado Arquivo X.

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No dia seguinte, ainda dentro do ônibus, Silvestre resolve checar um aviso de mensagem em seu celular:

Por um momento, Silvestre pensou em ligar para alguns parentes e amigos, a fim de espalhar a “boa nova”. Contudo, preferiu manter a cautela, pois, já se considerava um recordista em fracassos. Ainda assim, para manter sua autoconfiança, sempre que surgia uma oportunidade, durante uma roda de conversas com os amigos, Silvestre dava um jeito de desviar o assunto para o processo de seleção do projeto Nova Marte. Assim, sempre fingindo um ar de desinteressado, perguntava aos amigos sobre o que pensavam a respeito de como seria o perfil daqueles candidatos selecionados para a penúltima fase do projeto Nova Marte, na esperança de ouvir como resposta opiniões do tipo “é... o cara que chega nesta fase deve ser fodástico!” E quando sozinho, em seu apartamento, fazia o mesmo questionamento para o seu fiel amigo Rintintin.

Dias depois, deu-se o início da terceira fase da seleção. Foram cinco dias seguidos de exaustivas entrevistas envolvendo vários especialistas, a maioria deles psicólogos e ex-militares.

Embora soubesse que aquela façanha de nada serviria ao seu currículo acadêmico, no fundo, Silvestre se sentia orgulhoso em ver o seu nome estampado no site da agência espacial Nova Marte como um dos finalistas da terceira fase da seleção. Pois, para ele, aquilo lhe renderia muita admiração por parte de seus amigos e parentes.

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E Silvestre já não se aguentava mais de tanta ansiedade, pois já se passara quase três meses desde que fizera aquelas entrevistas, e ainda nenhuma mensagem da Nova Marte. Então, decepcionado, Silvestre desabafou:

Àquela altura, Silvestre já perdera as esperanças. Seu problema agora seria o de esquecer aquele projeto e seguir com a sua vida de professor de contrato temporário.

Até que, durante uma enfadonha noite de domingo, uma mensagem lhe salta aos olhos: “Prezado professor Jonas Silvestre, o programa espacial Nova Marte, em nome de seu idealizador, o Dr. Edward Banks, tem a honra de informar que você foi qualificado para a última fase de nossa seleção. Em breve lhe será enviado um contrato e os dados de suas passagens aéreas. Você, juntamente com os demais candidatos selecionados, deverão se reunir com a nossa equipe em Zurique, a fim de se inteirarem das regras a serem cumpridas durante a etapa adaptativa. Assim que recebermos o contrato com a sua assinatura, você estará não somente à disposição de nosso programa, em tempo integral, como também terá cedido, em favor da Nova Marte, todos os direitos de exploração de imagens geradas durante o seu treinamento. Importante: caso você seja, durante a etapa adaptativa, considerado, inadequado para a missão, será imediatamente desligado do programa sem nenhum direito a ressarcimentos financeiros, seja por tempo de trabalho ou por danos físicos ocorridos durante o treinamento. Atenciosamente, Drª Mia Moore”.

Na manhã de segunda, Silvestre nem foi à escola. Saiu de casa cantarolando e tomou um ônibus rumo a Taguatinga.

No dia seguinte, já na escola, foi chamado à coordenação para explicar a sua ausência do dia anterior.

No momento em que Silvestre ergueu a mão até a cabeça para enfatizar o seu esquecimento, deixou mostrar, por baixo da manga de sua camiseta, um pedaço de plástico filme que lhe envolvia o ombro direito.

Tarde demais, Silvestre estava prestes a revelar a coordenadora o motivo da sua ausência.

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Então, subindo a manga da camiseta, Silvestre expôs a tatuagem que fizera no dia anterior: uma imponente representação de um OVINI.