Na manhã do dia seguinte, após aquela terrível batalha dentro da câmara fria, Mundico se dirigiu para o supermercado, assumiu suas tarefas e comportou-se exatamente como de costume: calado, compenetrado e solitário. Ao acessar seus pensamentos, percebi que a sua mente permanecia focalizada apenas no trabalho, nenhuma lembrança de sua terra natal, nenhuma angústia, nada. Absolutamente nada que remontasse seu passado em Mutamba. Minutos depois, percebi que a mulher que o contratara vinha em nossa direção. Parou bem diante de Mundico e o olhou dentro dos olhos. Os dois pareciam paralisados. Então, ela quebrou o silêncio:

— Sr. Raymundo? — gritou a mulher furiosa.
— Óia dona — interrompeu Mundico —, pode mi chamá de Mundico e num carece a sinhora ficá me oiano assim, cum esse zoião arregalado.
A interrupção de Mundico a enfureceu mais ainda.
— Senhor Mundico, não quero ver você nem mais um minuto dentro deste supermercado. Nunca mais. Suma de minha vista! Fora! — berrou a mulher.
Confuso, Mundico se dirigiu para o escritório do supermercado onde uma funcionária já o esperava. Em suas mãos, um envelope com os seguintes dizeres: “Acerto de demissão do Sr. Raymundo estoquista”. Que maravilha! Pensei. Finalmente Mundico estava de volta!
Assim, despejado do pequenino quarto que o supermercado lhe concedera e com uma modesta quantidade de dinheiro que recebera no acerto, conclui que não lhe restava outra opção senão voltar para Mutamba. Neste caso, também não me restava outra opção a não ser convencê-lo do retorno. Porém, antes que o São Bolon entrasse em cena para convencê-lo a voltar, lembrei-me do que Tepeu me dissera um dia: “Bolon, ninguém nesse mundo poderá evoluir sem antes compreender que o mundo é feito de escolhas. São elas que garantem a incomensurabilidade e a coexistência entre todos os elementos que compõe o universo”.
Então, não tive dúvidas. Aquela decisão caberia somente a Mundico e a ninguém mais. Seu cérebro já estava totalmente recuperado e sua mente livre do réptil, portanto, não fazia mais sentido continuar exercendo influência sobre o seu destino. Assim, me afastei alguns metros de Mundico enquanto o observava atravessar uma rua. Mesmo decidido a não mais influenciá-lo, ainda estava determinado a acompanhá-lo.
Mundico, então, caminhou mais algumas quadras até chegar a uma movimentada estação de ônibus. Minha esperança era a de que ele estivesse decidido a regressar para Mutamba. Porém, nenhuma decisão tomou. Apenas permaneceu por ali, entre a multidão, até sentar-se em um banco. Durante horas, Mundico ficou observando as pessoas no interior daquele terminal. Um fato, porém, despertou-lhe a atenção: um vendedor ambulante que puxava um carrinho de feira improvisado, abarrotado de balas, chicletes, isqueiros, cigarros, meias, mini-lanternas e outras bugigangas.
p. 74
— Olha a meia! — gritava o rapaz. — É pra acabá com o estoque! Cinco pares por dez real! Só hoje!
Passando em frente ao banco onde Mundico permanecia sentado, juntamente com mais três outras pessoas, o ambulante não perdeu a oportunidade; vendo Mundico com uma mala sobre as pernas foi tratando logo de abordá-lo:
— Aí, meu chegado, vai pegá o bonde? Que tal levá uma lembrança pros parente? Dá só uma olhada nessa meia — insistiu o ambulante. — Coisa fina. Passa a mão pra sentir o material. O sapato acaba e a meia fica cumpadi! Então, quantos pacote o chegado vai levá?
— Agora num vô querê nada não. Muito obrigado — agradeceu Mundico.
Mais que depressa, o ambulante seguiu em frente oferecendo seus produtos. Uma vez por outra conseguia efetuar uma venda. Atento, Mundico não perdia um só de seus movimentos. Já aproximava do final do dia e o terminal cada vez mais tumultuado. Pessoas se amontoavam nas portas dos ônibus, num empurra-empurra sem fim. O ambulante, mais que ligeiro, tratava de perambular entre as intermináveis filas, esgoelando sua frase de efeito: “é pra acabá com o estoque!”.
Já era noite, quando aquele ambulante, finalmente, sentou-se após todas aquelas horas de peleja. Mundico, então, olhou para o ambulante e o viu contando um espesso maço de notas que arrecadara com as vendas. Terminado o balanço do que havia vendido, o ambulante olhou para o lado e notou que Mundico ainda estava sentado no mesmo banco, desde que chegara naquele terminal.
— E aí chegado, perdeu o baú? — perguntou o ambulante.
— Num perdi nada não sinhô — respondeu Mundico.
— Tô falando do ônibus, ô Mané — ironizou o ambulante.
— Também num perdi nenhum ônibus não — respondeu Mundico.
— Já sei! — exclamou o ambulante. — Tu tá perdido em Sampa! Sei como é... Toda hora chega alguém como tu nesse terminal. Sempre a mesma história... Tava lascado lá no interior, daí alguém falô: “vai pra São Paulo, lá tu vai arrumá emprego, saí da miséria, bla, bla, bla, e coisa e tal”. É ou não é, meu chegado?
p. 75— Nada disso — respondeu Mundico. — Tô aqui causo que sufrí um acidente de moto ondi eu morava. Aí, fiquei internado num hospital, dispois fui trabaiá num supermercado e agora tô aqui.
— Ah! Então tu tá empregado?
— Não — respondeu Mundico. — Eu tava andano na rua e um moço me deu um endereço de um supermercado.
Hora que eu entrei lá, uma muié zoiuda oiô prá mim e me arrumô um imprego lá. Dispois, num sei porquê, essa mêma muié zoiuda mandô eu imbora, pareceno inté que eu era um bicho do mato!
— Tá de caô pra cima de mim?! Quem emprega alguém, assim, do nada?
— Poisé... — respondeu Mundico pensativo.
— Então, tu vai se mandá de volta?
— Não — respondeu Mundico. — Vô ficá aqui inté consegui dinhêro pra casá cum Mariscley.
— Ah! Eu sabia que tinha uma mina na parada. É sempre assim... — comentou o ambulante.
— Num tô intendeno nada do que o sinhô tá falano — disse Mundico.
— Deixa prá lá, mané. Tu é um presuntinho mesmo, tá sabendo? — continuou o ambulante a ironizar. — Mas, fala aí ô mané, que sotaque é esse? Tu vens de onde? Do norte?
— Não — respondeu Mundico. — Sô lá de Mutamba.
— Onde fica isso, doido? Na Bahia? Na China?
— Mutamba fica em Goiás — respondeu Mundico.
— Goiás? Ah... Tô ligado. Então? Se não vai voltar para essa tal Mutamba, pra onde vai doido? Não vem me dizer que vai morar aqui nesse terminal, vai? Porque essa área — continuou o ambulante —, já tem dono... E os cara são irado, tá sabendo? E um presuntinho novo no pedaço, como você, já era...
— O sinhô podia explicá mió essa história, causo que num tô intendeno nadinha — pediu Mundico.
— Tudo bem — disse o ambulante. — O caso é que este terminal é dominado por uns caras muito doido... Se eles te pegam aqui, meu chegado, vão te passá, valeu?
— Passá?! — perguntou Mundico.
— Tu é mané mesmo, hein? Passá, meu chegado, é matar, mandar prô inferno. Tá ligado?
— Cruiz credo! — exclamou Mundico. — Então num vô querê ficá aqui mais não!
— Péra aí ô mané. Tu tá durango, ou tem algum?
— Algum o quê? — perguntou Mundico.
— Money, grana, dinheiro! — respondeu o ambulante impaciente.
— Tenho só o acerto do supermercado — disse Mundico.
— Quanto? — perguntou o ambulante interessado.
— Juntano inté as mueda... — respondeu Mundico —, vai berá uns trêis mil real.
— Já é alguma coisa... — disse o ambulante. — Mas, o que tu tá pensando em fazer?
— Tava pensano em vendê essas coisa que ocê tá vendeno aqui no terminal de ônibus — disse Mundico.
— Tu tens algum parente aqui em Sampa, algum conhecido? — perguntou o ambulante.
— Tenho não, sinhô.
— Vâmo fazer o seguinte — sugeriu o ambulante —, segue comigo até o meu bairro, e lá a gente vê se rola uma goma pra tu. Valeu?
— Goma?! — perguntou Mundico.
— É malandro! Goma, um barraco pra tu morá. Agora vâmo nessa, que o nosso baú e aquele lá.
Assim, os dois entraram em um ônibus. Mundico carregando a sua mala, e o ambulante seu carrinho improvisado.
— Qual é o seu nome, ô goiano?
p. 76— Meu nome é Raymundo, mais lá na Mutamba, todo mundo me chama de Mundico.
— Prazer Mundico. Meu nome é Antero, mas, lá no Moinho, todos me chamam de Teroca.
— Prazer Seu Teroca, mais onde que é esse tal de Muinho?
— Moinho? É pra onde estamos indo, meu chegado, pra Favela do Moinho, debaixo do viaduto Orlando Murgel.

Segui o ônibus que conduzia Mundico até um segundo terminal. Em meio aquele tumulto, os vi saltarem do ônibus indo em direção a um guichê. A presença de milhares de pessoas me fez sentir confuso, as vibrações de Mundico já estavam fracas. Desesperado, atravessei dezenas de ônibus a sua procura, mas fora em vão. Aquela seria a última vez em que veria Mundico.
Solitário e confuso, passei dias e semanas vagando por dezenas de ônibus na esperança de encontrar Mundico. Minha mente estava em pânico, eu não conseguia parar de pensar em todos aqueles momentos que passamos juntos.

Por fim, decidi permanecer dentro de um único ônibus, dia e noite. Desejava que ele nunca mais parasse de girar, como um daqueles satélites...
Então, numa noite, quando o ônibus já se dirigia para a garagem, minha alma se encheu de contentamento. No entanto, não havia ninguém naquele ônibus além de mim e do motorista. Algum tempo depois, após manobrarmos dentro da garagem, o motorista virou-se, me olhou com ternura e me disse assim:

— O vento que transporta a semente, não sabe aonde ela vai cair nem tampouco se vai germinar. Mas, ainda assim, a transporta. Agora, Bolon, depois dos caminhos que percorrestes, responda-me: Fostes neste planeta vento ou semente?
Aquele Motorista era Tepeu.