O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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No fim de tudo, o tudo

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Na manhã do dia seguinte, após aquela terrível batalha dentro da câmara fria, Mundico se dirigiu para o supermercado, assumiu suas tarefas e comportou-se exatamente como de costume: calado, compenetrado e solitário. Ao acessar seus pensamentos, percebi que a sua mente permanecia focalizada apenas no trabalho, nenhuma lembrança de sua terra natal, nenhuma angústia, nada. Absolutamente nada que remontasse seu passado em Mutamba. Minutos depois, percebi que a mulher que o contratara vinha em nossa direção. Parou bem diante de Mundico e o olhou dentro dos olhos. Os dois pareciam paralisados. Então, ela quebrou o silêncio:

— Sr. Raymundo? — gritou a mulher furiosa.

— Óia dona — interrompeu Mundico —, pode mi chamá de Mundico e num carece a sinhora ficá me oiano assim, cum esse zoião arregalado.

A interrupção de Mundico a enfureceu mais ainda.

— Senhor Mundico, não quero ver você nem mais um minuto dentro deste supermercado. Nunca mais. Suma de minha vista! Fora! — berrou a mulher.

Confuso, Mundico se dirigiu para o escritório do supermercado onde uma funcionária já o esperava. Em suas mãos, um envelope com os seguintes dizeres: “Acerto de demissão do Sr. Raymundo estoquista”. Que maravilha! Pensei. Finalmente Mundico estava de volta!

Assim, despejado do pequenino quarto que o supermercado lhe concedera e com uma modesta quantidade de dinheiro que recebera no acerto, conclui que não lhe restava outra opção senão voltar para Mutamba. Neste caso, também não me restava outra opção a não ser convencê-lo do retorno. Porém, antes que o São Bolon entrasse em cena para convencê-lo a voltar, lembrei-me do que Tepeu me dissera um dia: “Bolon, ninguém nesse mundo poderá evoluir sem antes compreender que o mundo é feito de escolhas. São elas que garantem a incomensurabilidade e a coexistência entre todos os elementos que compõe o universo”.

Então, não tive dúvidas. Aquela decisão caberia somente a Mundico e a ninguém mais. Seu cérebro já estava totalmente recuperado e sua mente livre do réptil, portanto, não fazia mais sentido continuar exercendo influência sobre o seu destino. Assim, me afastei alguns metros de Mundico enquanto o observava atravessar uma rua. Mesmo decidido a não mais influenciá-lo, ainda estava determinado a acompanhá-lo.

Mundico, então, caminhou mais algumas quadras até chegar a uma movimentada estação de ônibus. Minha esperança era a de que ele estivesse decidido a regressar para Mutamba. Porém, nenhuma decisão tomou. Apenas permaneceu por ali, entre a multidão, até sentar-se em um banco. Durante horas, Mundico ficou observando as pessoas no interior daquele terminal. Um fato, porém, despertou-lhe a atenção: um vendedor ambulante que puxava um carrinho de feira improvisado, abarrotado de balas, chicletes, isqueiros, cigarros, meias, mini-lanternas e outras bugigangas.

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Passando em frente ao banco onde Mundico permanecia sentado, juntamente com mais três outras pessoas, o ambulante não perdeu a oportunidade; vendo Mundico com uma mala sobre as pernas foi tratando logo de abordá-lo:

Mais que depressa, o ambulante seguiu em frente oferecendo seus produtos. Uma vez por outra conseguia efetuar uma venda. Atento, Mundico não perdia um só de seus movimentos. Já aproximava do final do dia e o terminal cada vez mais tumultuado. Pessoas se amontoavam nas portas dos ônibus, num empurra-empurra sem fim. O ambulante, mais que ligeiro, tratava de perambular entre as intermináveis filas, esgoelando sua frase de efeito: “é pra acabá com o estoque!”.

Já era noite, quando aquele ambulante, finalmente, sentou-se após todas aquelas horas de peleja. Mundico, então, olhou para o ambulante e o viu contando um espesso maço de notas que arrecadara com as vendas. Terminado o balanço do que havia vendido, o ambulante olhou para o lado e notou que Mundico ainda estava sentado no mesmo banco, desde que chegara naquele terminal.

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Hora que eu entrei lá, uma muié zoiuda oiô prá mim e me arrumô um imprego lá. Dispois, num sei porquê, essa mêma muié zoiuda mandô eu imbora, pareceno inté que eu era um bicho do mato!

Assim, os dois entraram em um ônibus. Mundico carregando a sua mala, e o ambulante seu carrinho improvisado.

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Segui o ônibus que conduzia Mundico até um segundo terminal. Em meio aquele tumulto, os vi saltarem do ônibus indo em direção a um guichê. A presença de milhares de pessoas me fez sentir confuso, as vibrações de Mundico já estavam fracas. Desesperado, atravessei dezenas de ônibus a sua procura, mas fora em vão. Aquela seria a última vez em que veria Mundico.

Solitário e confuso, passei dias e semanas vagando por dezenas de ônibus na esperança de encontrar Mundico. Minha mente estava em pânico, eu não conseguia parar de pensar em todos aqueles momentos que passamos juntos.

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Por fim, decidi permanecer dentro de um único ônibus, dia e noite. Desejava que ele nunca mais parasse de girar, como um daqueles satélites...

Então, numa noite, quando o ônibus já se dirigia para a garagem, minha alma se encheu de contentamento. No entanto, não havia ninguém naquele ônibus além de mim e do motorista. Algum tempo depois, após manobrarmos dentro da garagem, o motorista virou-se, me olhou com ternura e me disse assim:

Aquele Motorista era Tepeu.