Decidido e rápido, durante semanas, Mundico caminhou por aquela megalópole. Parecia não sentir fome, sono ou sede. Em determinados pontos da cidade, se encontrava com algumas pessoas que pareciam já estar à sua espera, porém, nada diziam durante tais encontros, apenas se olhavam fixamente e depois se dispersavam em meio à multidão. Não havia dúvidas de que estavam se comunicando, mas, do que estariam tratando?
Durante semanas, as mesmas cenas se repetiam, mudavam apenas os locais e as pessoas com quem Mundico estabelecia seus contatos. E foram tantos os encontros, pensei, que se todas aquelas pessoas forem como Mundico, haveria, só naquela cidade, um exército de abduzidos.
Eu podia acompanhar todos os seus movimentos, mas o reptiliano deixara a sua mente tão bloqueada que era impossível qualquer forma de comunicação, até mesmo a telepatia fora inútil. Vê-lo agir sem partilhar seus pensamentos fazia de mim o ser mais solitário de toda a galáxia.
Em um desses dias, Mundico entra em um grande supermercado, sobe pelas escadas rolantes, ganha o piso superior e entrega um bilhete a uma moça que parecia ocupar o cargo de secretária. Após um quarto de hora, uma mulher de meia idade se aproxima de Mundico e, por alguns instantes, os dois trocam entre si um daqueles costumeiros olhares. Parecia ser mais um encontro entre abduzidos, quando, inesperadamente, um dos funcionários do supermercado pediu a Mundico que o acompanhasse. Preencheram algumas fichas e fotos de Mundico foram tiradas. Em seguida, conduziram-no até um depósito onde lhe deram um uniforme e um cartão de identificação. Mas, por qual motivo aquela mulher teria lhe dado o emprego? Pensei.
Na semana que se seguiu a contratação, Mundico passou por uma série de treinamentos. Vez ou outra, quando algum colega de trabalho tentava puxar assunto, Mundico se limitava a responder apenas o necessário. Amizades não lhe interessavam. Notei, então, que embora o timbre de sua voz continuasse o mesmo, seu divertido sotaque camponês dera lugar ao modo frígido de falar daquele reptiliano que o abduzira. Solitário, passava o dia repondo mercadorias nas prateleiras e, durante a noite, se recolhia em um pequeníssimo dormitório distante algumas quadras daquele supermercado.
Após muito refletir, concluí que não haveria outra saída se não abandonar sua mente para encontrar, fora de seu corpo, um meio de livrá-lo daquela abdução. Por dias, tentei deixar o seu corpo, mas fora em vão. Todo esse tempo de convívio tornara a minha mente tão ligada à de Mundico, que era difícil abandoná-la. Foi então, que me lembrei das lições do mensageiro Ixpiyacoc, quando me ajudou na preparação de minha viagem astral, de Andrômeda até a órbita da Terra. A partir de então, durante as noites, quando Mundico se recolhia em seu quartinho, longe de toda aquela agitação do supermercado, passei a praticar os três passos de Ixpiyacoc: expulsar da mente todos os pensamentos que me ligassem a matéria; olhar para dentro da escuridão profunda; e buscar, no fundo da alma, a minha indissociável relação com todos os elementos que compõe o universo.
p. 64Já tinha perdido as contas de quantas noites havia passado praticando os passos de Ixpiyacoc, até que, numa dessas noites, experimentei o meu primeiro deslocamento: sobrevoei, dentro daquele pequeníssimo quarto, o próprio corpo de Mundico. Podia vê-lo em sua cama enquanto flutuava rente ao teto. Na noite seguinte, a mesma experiência se repetiu, porém, de uma maneira ainda mais empolgante: consegui me projetar para além do pequenino quarto e sobrevoei todo o quarteirão.
A cada noite, um voo mais distante, contudo, a menor interrupção no sono de Mundico já era o bastante para que eu retornasse ao seu corpo, mesmo contra a minha vontade. Tal fato apenas confirmava o quanto nossas mentes ainda estavam ligadas uma a outra.
Considerava aqueles deslocamentos noturnos uma importante conquista, mas me incomodava o fato de estarem sempre condicionados ao sono de Mundico. Foi quando me ocorreu uma nova ideia: tentar o deslocamento durante o dia, mesmo estando Mundico acordado.
De início, por causa do ambiente agitado, era difícil concentrar-me; mas, com o tempo, quando atingi um nível apropriado de concentração, algo interessante aconteceu: comecei a enxergar, em torno dos corpos dos clientes, um invólucro esbranquiçado e luminescente, como uma sombra branca a revestí-los. Depois, percebi que aquelas sombras, ao se deslocarem de seus respectivos corpos, vagando por entre as seções do supermercado, continuavam a conservar suas aparências físicas. E quando se aproximavam de mim, era capaz de sentir a intensidade de suas vibrações.
Foi então que me lembrei dos ensinamentos de Tepeu sobre os estágios evolutivos entre os humanos. Como seus espíritos se encontram numa frequência vibratória muito superior a de seus corpos físicos, a comunicação direta entre matéria e espírito se torna impossível. Aquelas sombras, conhecidas como perispíritos, por serem capazes de vibrar nas duas frequências ao mesmo tempo, funcionam como pontes de ligação entre eles.
Embora os perispíritos sejam constituídos de uma espécie de semimatéria, ou seja, uma substância ectoplasmática, extremamente fluida e formada por elementos extraídos da própria atmosfera terrestre, não são detectáveis aos olhos físicos. Somente os espíritos os podem ver. E devido ao fato de eu me encontrar fora do corpo de Mundico, não apenas os via, mas também podia sentir suas vibrações.
p. 65Assim, passei o resto do dia observando o movimento dos perispíritos no interior do supermercado. Vez ou outra via Mundico passar por mim, sempre solitário e completamente concentrado em seu trabalho. Depois, me dei conta de que passava mais tempo fora do que dentro do corpo de Mundico, embora isso não desviasse a atenção do meu principal desafio: libertar a sua mente.
Na manhã seguinte, enquanto observava algumas donas de casa empurrando seus carrinhos lentamente pela seção de cosméticos, me intrigou o fato de alguns perispíritos se mostrarem inconformados ao vê-las comprando, enquanto que outros, ao contrário, se deleitavam ao assisti-las enchendo seus carrinhos.
No momento em que voltei a atenção para Mundico, notei que um homem vinha em sua direção e, em seguida, designou-lhe uma tarefa.
— Sr. Raimundo?
— Sim, Senhor? — respondeu Mundico prontamente.
— Quero que leve todas aquelas cartelas de ovos, que estão ali separadas, de volta para o depósito, pois já estão fora do prazo de validade.
— É pra já, Senhor — assentiu Mundico.
Quando Mundico terminou de transportar sua última carga, notei algo de muito estranho em seu comportamento. Segurando uma das cartelas de ovos, sentou-se de trás de uma pilha de caixas e começou a devorá-los, um a um, até não mais restar um só ovo. Foi então que me lembrei do que dissera o reptiliano sobre o processo de metamorfose pelo qual passavam os humanos, alguns meses depois de serem abduzidos: tornavam-se meio humanos e meio répteis. Isso também explicaria o fato de Mundico, todas as manhãs, se dirigir até o terraço do supermercado colocando-se sob o sol: era uma forma de regular a temperatura interna de seu corpo, agora meio réptil. Diante daquilo concluí que, apesar de todos os meus esforços, estava perdendo a batalha para o reptiliano.
p. 66No outro dia, enquanto observava os clientes em suas compras, passou por mim uma mulher conduzindo seu carrinho, e, dentro dele, uma criançinha que parecia ser sua filha. Naquele exato momento, tive a impressão de que a tal criança me olhava sorrindo. Mas, como ela poderia notar a minha presença? Intrigado, continuei a segui-las. Porém, por mais que eu tentasse me esquivar da criança, o seu olhar continuava a me seguir. Já não havia dúvidas, ela podia me ver. Em seguida, a criança retirou, de dentro da bolsa de sua mãe, uma caneta e começou a rabiscar sobre a embalagem de um produto. Depois, sem que a sua mãe pudesse ver, a criança colocou o produto que rabiscara de volta à prateleira. Como já não me restavam muitas alternativas, decidi checar a tal embalagem. Quando li os rabiscos, fiquei atordoado, era uma mensagem para mim que dizia: “Caro amigo Bolon, encontre Edevaldo, o faxineiro da noite”. Imediatamente, após ter lido aquela mensagem, voltei a atenção para a criança, mas ela não mais me olhava, apenas chorava implorando a mãe que lhe comprasse algo, apontando o dedinho em direção ao produto desejado.
Naquela mesma noite, deixei Mundico em seu pequenino aposento e me desloquei para o supermercado, a fim de encontrar o tal faxineiro. Apesar de encerrado o expediente, ainda havia muitos funcionários trabalhando, alguns repondo mercadorias e outros se ocupando da limpeza. Imediatamente comecei a checá-los para saber qual deles era Edevaldo. Vaguei por horas, mas sem sucesso. Nem todos usavam crachás e nenhum deles havia pronunciado o seu nome. Pensando no que me ocorrera naquela manhã, decidi seguir cada um dos faxineiros na esperança de que o tal Edevaldo também pudesse me ver, tal como se dera com aquela criança.
Aproximei de cada um deles, mas nenhum sinal. Nem sequer sentiam arrepios com a minha presença. Mas eu não desisti; continuei a vagar entre os funcionários, até que um deles me chamou a atenção: passou lentamente por mim, arrastando uma vassoura e levando, dentro do bolso de seu jaleco, um pequeno rádio que entoava uma canção. Na medida em que me aproximava dele, percebi que a música proveniente de seu rádio se transformava em chiados. Embora a minha presença causasse interferências na transmissão da melodia, aquele faxineiro parecia não se incomodar com o fato. Então, após segui-lo por algumas seções, ele parou, retirou o rádio do bolso e o colocou no chão, junto à vassoura que levava consigo. Aquela sua ação não fizera, para mim, o menor sentido, até o momento em que ouvi o meu nome saindo de dentro daquele pequenino rádio.
— Bolon, o que faz aqui, tão longe de sua galáxia?
Olhei para o faxineiro, mas ele parecia estar dormindo, com o corpo escorado em sua vassoura.
p. 67— Tenho uma missão a cumprir neste planeta — respondi.
— Mas, o que este supermercado tem, exatamente, a ver com essa sua missão? — perguntou o rádio emitindo um som cristalino.
— Há uma pessoa trabalhando aqui e preciso livrar a sua mente de uma abdução — disse-lhe.
— Você disse abdução? — perguntou-me o rádio.
— Sim. Ele foi abduzido por um reptiliano.
— Então, meu caro amigo Bolon, você veio ao lugar certo! — exclamou o rádio.
— O que quer dizer com lugar certo?
— Os supermercados, Sr. Bolon, são os principais aliados dos reptilianos em suas conquistas sobre os humanos.
— Como pode ser isso, se são os próprios humanos que os constroem, a fim de suprir suas necessidades? — perguntei confuso.
— Ah, Sr. Bolon, vejo que ainda é novo neste ramo... — disse-me o rádio em tom irônico. — Felizmente, se tens a sua missão, também tenho a minha, e por isso devo ajudá-lo.
— E sobre os supermercados, o que têm eles a ver com os reptilianos? — perguntei.
— Bem, Sr. Bolon, já perambulo por eles há anos e, com o tempo, cheguei à conclusão de que um supermercado é o melhor lugar para mentes perversas exercerem suas más influências. Nele, devido à enorme variedade de produtos, sempre dentro de embalagens atraentes e ao alcance das mãos, as pessoas se sentem compelidas a comprar e a comprar, cada vez mais, na esperança de que, ao consumir aquele tal produto, se pareça com aquilo, ou conquiste aquilo que seu rótulo lhe diz. Assim, ao comer ou beber determinados produtos, as pessoas têm a esperança de se tornarem mais bonitas, mais esbeltas, mais jovens e, por conseguinte, mais desejadas. Mas o que elas não sabem, Sr. Bolon, é que beleza e juventude são atributos que não dependem do que se consome, mas sim, do que se pensa. Além do mais, quanto mais se acredita no que as embalagens dizem, mais dependentes de seus produtos se tornam.
— Mas ainda estou confuso, Sr. Rádio. Que mal há no fato de as pessoas compararem tais produtos? Isso não as deixa felizes?
— Sr. Bolon, são tantos os males que você nem faz ideia... Mas, vou começar lhe falando sobre o problema das ilusões.
— Ilusões?! — perguntei.
p. 68— Sim, Bolon, ilusão. Quanto mais os humanos se iludirem em relação ao mundo que produzem, mais desprotegidos estarão diante das coisas imprevisíveis da vida como é o caso das doenças. Preste atenção: dentro de um supermercado, os impecáveis rótulos colados nas embalagens produzem a ilusão de que se está comprando algo sempre natural, fresco, nutritivo e, acima de tudo, produzido a partir de conhecimentos cientificamente testados e aprovados. Neste sentido, o consumidor se nutre mais dos rótulos do que dos conteúdos aos quais estes se referem. Por exemplo, quando se compra um produto cuja embalagem esboça as imagens de um belíssimo pêssego e de uma linda jovem o colhendo em uma fazenda, aquele sabor não advém de um pêssego verdadeiro, mas sim de um produto sintético, quimicamente elaborado. Ao consumir um inocente refresco de pêssego, o consumidor estará, na verdade, ingerindo poderosos agentes químicos como corantes, aromatizantes, conservantes, antioxidantes, estabilizantes e acidulantes. O fato é que tais agentes químicos aparecem nos rótulos de forma disfarçada, ou seja, sempre representados por códigos que não fazem sentido algum para o consumidor. Desse modo, ao ler o rótulo de um produto qualquer, o consumidor poderá encontrar os seguintes dizeres: “este produto contém CI, F, EP, ET, H, D, P, e A”. No entanto, o que ele não sabe é que essas inocentes letras se referem a corantes artificiais, flavorizantes, estabilizantes, acidulantes, conservantes, edulcorantes e tantos outros agentes causadores de doenças cancerígenas.
— Mas, Sr. Rádio, como os humanos podem se iludir, assim, tão facilmente?
— Na verdade, Sr. Bolon, o consumo de produtos industrializados já está tão naturalizado no comportamento das pessoas que elas jamais questionariam, por exemplo, o fato de uma fruta, que naturalmente se degradaria dentro de poucos dias após ser colhida, se conservar durante meses dentro de uma embalagem sem apodrecer, e ainda manter o seu sabor e sua aparência. Mas, para disfarçar tanto a ausência da condição natural dos alimentos quanto a enorme adição de produtos químicos em suas composições, os supermercados se utilizam de imagens e de outros recursos de marketing, tão bem elaborados, que acabam provocando, nas pessoas que moram em grandes cidades, a ilusão de que a natureza não é algo distante e inacessível. Ao contrário, ela pode ser encontrada dentro do supermercado, em todas as suas seções e prateleiras.
— Mas, Sr. Rádio, os humanos não possuem a liberdade para comprar somente aquilo de que realmente necessitam?
— Em tese, sim, Sr. Bolon. Mas, ao acompanhá-los durante as compras, percebi que entre a enorme variedade de produtos que colocavam dentro de seus carrinhos, apenas uma pequena parcela deles é realmente essencial à sua sobrevivência. A maior parte não possuía uma finalidade específica. As pessoas os compravam simplesmente porque os viam nas prateleiras.
— Como assim, Sr. Rádio? Comprar algo sem uma finalidade específica?
p. 69— Bem, após analisar seus comportamentos durante as compras, compreendi que por detrás daquele estranho ato de “comprar, só por comprar”, havia muito mais coisas... Não se trata de uma inocente atração sentida pelo cliente diante da simples presença do produto, nem tampouco de um ato instintivo orientado pela necessidade de suprir carências nutricionais. O que há de fato, Sr. Bolon, é um poderoso mecanismo de indução do comportamento humano, cuidadosamente elaborado pelas grandes indústrias voltadas para a produção de artigos de consumo rápido. Tais indústrias despejam sobre a sociedade enormes quantidades de propagandas cujas mensagens vão muito além de simples informações sobre a composição dos produtos que pretendem vender. Elas carregam informações que relacionam o uso dos produtos a determinados valores sociais que as pessoas almejam alcançar no interior das sociedades onde vivem. Nesse sentido, as mensagens contidas nessas propagandas possuem o poder de fazer com que as pessoas se sintam constrangidas, caso não sejam vistas usando determinados produtos em lugares públicos, principalmente em lugares onde, supostamente, outras pessoas estarão usando tais produtos. Assim, tais mensagens, transmitidas por canais de TVs, rádios, jornais e em outros meios de comunicação, invadem a mente das pessoas, independente de estarem, ou não, prestando atenção a elas. É como se estivessem sendo, constantemente, hipnotizadas.
— Agora sei porquê algumas clientes deixavam seus perispíritos tão inconformados. Eles as viam comprando dezenas de produtos, mesmo não necessitando deles.
— Exatamente, Sr. Bolon! Ao ver o produto na prateleira, a mente da cliente, involuntariamente, relaciona tal produto com a mensagem transmitida em sua propaganda. Na maioria dos casos, ela nem sequer recorda da propaganda. Tal mensagem, simplesmente penetrou a sua mente devido às inúmeras vezes que a ouviu, ou viu, no seu dia a dia. Neste caso, o ato de apanhar o produto na prateleira e colocá-lo no carrinho não correspondeu a uma necessidade consciente, mas a um tipo de necessidade artificialmente provocada por meio de poderosos mecanismos de indução da mente humana. Agora, Sr. Bolon, quando observar uma pessoa empurrando um carrinho abarrotado de produtos, saberás que, apesar de ela se sentir responsável pelos seus atos, poderá estar sendo vítima de poderosas estratégias de marketing cuja finalidade é a de despertar nas pessoas o desejo de consumir, sem, no entanto, refletir sobre o que se está consumindo, e por quê.
— Tudo o que dissestes, Sr. Rádio, foi de grande importância para eu compreender melhor o comportamento social dos terráqueos. Contudo, responda-me: em que sentido os supermercados se tornaram aliados dos reptilianos?
— Bem, os reptilianos desenvolveram avançadas tecnologias e poderosos conhecimentos sobre a genética e a mente dos humanos, tornando-se, como você sabe, capazes de abduzi-los. Contudo, isso não possibilitou aos reptilianos dominarem o planeta.
p. 70— Mas, o que os impedem de fazê-lo, já que possuem todos esses poderes? — perguntei.
— Os reptilianos, Sr. Bolon, enfrentam dois grandes obstáculos na sua marcha contra os humanos: primeiro, se constituem de uma pequeníssima população, se comparado aos quase oito bilhões de humanos; segundo, os humanos por eles abduzidos, como é o caso de seu amigo Mundico, após a fase final de metamorfose, passam a ter uma existência muito curta, apenas alguns poucos meses de vida, pois seus organismos se tornam incompatíveis com a genética réptil e entram em colapso.
— Compreendi. Mas, e quanto aos supermercados? — insisti.
— Com o tempo, os reptilianos descobriram que a mais poderosa arma contra os humanos são os próprios humanos, ou seja, os maus hábitos que desenvolvem socialmente.
— Ah! Sr. Rádio, agora tudo faz sentido... O comportamento alimentar entre os humanos se transformou em uma ação autodestrutiva!
— Isso mesmo, Sr. Bolon! Você conseguiu entender. Seus hábitos alimentares representam a maior ameaça à sobrevivência de sua espécie. Ao se comportarem assim, além de comprometerem sua saúde, devido à enorme quantidade de produtos químicos que ingerem, comprometem também suas economias, gastando mais do que permitem seus rendimentos e, por fim, comprometem a própria capacidade do planeta em repor suas fontes vitais de energia, pois a produção desenfreada de produtos industrializados agride todos os sistemas existentes na Terra. Se continuarem neste ritmo de consumo, dentro de poucos anos, a sociedade humana entrará em colapso total. Desabastecimento, fome, violência, doenças e guerras grassarão de uma maneira jamais vista.
— Pensando bem, Sr. Rádio, Mundico representa um pequeno problema, se comparado a esse quadro autodestrutivo que acabara de descrever-me.
— Engano seu, Bolon. Só se começa uma caminhada dando o primeiro passo.
— Como assim, Sr. Rádio?
— Em breve saberás. Mas agora, procure se concentrar apenas no salvamento de Mundico.
— Mas como poderei salvá-lo se sua mente está impenetrável?
— Bolon, acalma-te a alma e responda-me: além de adotar uma dieta reptiliana, que outro hábito estranho notou em Mundico?
— Bem, todas as manhãs, ele se expõe ao sol, a fim de regular a temperatura de seu corpo.
— Muito bem, Sr. Bolon! Neste caso, o que você acha que aconteceria a Mundico, agora que ele é um quase réptil, caso sua temperatura abaixasse bruscamente e ficasse impedido de se reaquecer sob o sol?
— Mundico morreria?
— Ele não, mas o réptil que agora vive em seu corpo, talvez.
— Mas como poderíamos submetê-lo a tal situação?
— Tenho um plano, Sr. Bolon.
— Então, Sr. Rádio, por favor, conte-me.
— O plano é o seguinte: amanhã, quando o expediente estiver quase se encerrando, Edevaldo me levará em seu bolso, e se posicionará ao lado da porta de entrada da câmara frigorífica. Depois, chamarei por Mundico até ele vir ao nosso encontro. Nesse momento do plano, você entra em ação.
— Como poderei tomar parte no plano?
p. 71— Você, Sr. Bolon, com sua capacidade telepática, entrará na mente de Edevaldo e fará com que ele entre no interior da Câmara, deixando-me lá dentro momentos antes de Mundico se aproximar da porta. Quando Mundico já estiver no interior da câmara, continuarei chamando por ele, a fim de deixá-lo confuso. Nesse momento, enquanto Mundico tenta encontrar a pessoa que o chama, Edevaldo aparece e tranca a câmara pelo lado de fora. Assim, trancado por algumas horas dentro daquela câmara fria, o réptil perecerá.
— É um excelente plano, Sr. Rádio, mas, e quanto a você?
— Não se preocupe comigo, Sr. Bolon. Não te recordas? Também tenho uma missão. É possível que nossos caminhos se cruzem novamente por esse universo.
Assim, no outro dia, alguns minutos antes que Mundico marcasse o seu ponto de encerramento do expediente, Edevaldo se dirigiu para o lugar combinado. Imitando a voz do gerente, Sr. Rádio chamou por Mundico:
— Sr. Raymundo? Por favor, compareça à câmara fria com urgência.
Após alguns poucos chamados, Mundico caminhou em direção a câmara. Naquele exato momento, concentrei-me nas vibrações de Edevaldo. Sua mente estava tão aberta à minha que parecia me esperar. Então, pedi a ele que me auxiliasse com o terrível drama de Mundico. Ele consentiu e deixou que eu o guiasse até o interior da câmara. Lá, pedi a ele que escondesse o Sr. Rádio, para que Mundico não pudesse encontrá-lo. Em seguida, conduzi Edevaldo para fora da câmara.
— Sr. Raymundo? — gritava Sr. Rádio imitando a voz do gerente. — Me ajude a retirar para fora da câmara essas caixas de frangos.
— Sim Senhor, Seu Juvenal. Já estou indo, mas, onde o Sr. está? Não consigo vê-lo — disse Mundico.
— Estou aqui nos fundos. Acho que a lâmpada queimou — disse o Sr. Rádio.
— Aguente firme, Seu Juvenal. Já estou chegando — tranqüilizou Mundico.
Assim que Mundico se dirigiu para o fundo da câmara, implorei a Edevaldo que trancasse a porta pelo lado de fora. Pronto! Mundico e o réptil estavam fechados. Rapidamente, devido à mutação que sofrera em seu sistema sensorial, Mundico encontra o rádio que Edevaldo escondera. Depois, segurando-o com uma das mãos, o escuta dizer: “Querido ouvinte, obrigado pela audiência. É sempre um enorme prazer tê-lo em nossa companhia. Você é a razão de nosso sucesso. Fique com Deus, um beijo no coração e até amanhã”. Num acesso de fúria, Mundico esmaga o pequenino rádio contra a parede gelada da câmara. Em seguida, começa a esmurrar a porta gritando:
— Senhor Juvenal? Abra a porta da câmara fria! Sou eu, Raymundo. Estou preso aqui dentro!
Felizmente, o plano do Senhor Rádio não deixara escapar um só detalhe. Era noite de quarta feira. Exatamente o dia em que não há expediente noturno no supermercado. Só estava o vigilante, porém, distante da câmara o suficiente para que seus ouvidos não pudessem ouvir os berros de Mundico. Mundico berrou por socorro e esmurrou a porta, até perder a voz e ficar com as mãos ensanguentadas. Devido à baixíssima temperatura da câmara, seu corpo tremia e sua respiração acelerava. Logo, além dos tremores, Mundico começou a apresentar espasmos musculares e sua pele ganhou uma tonalidade levemente arroxeada. Era o começo de uma hipotermia. Algum tempo depois, torna-se sonolento e, com uma fala atrapalhada, começa a balbuciar frases desconexas:
p. 72— Infiltrados na CIA! Coca-cola é isso aí. Tragam-me ovos! Humanos desgraçados! Sol! Comprem! Tiú dos inferno!
Porém, em meio aquela sua aparente confusão mental, a última frase me pareceu familiar. “Tiú dos inferno”, pensei, não parece nada com o estilo do reptiliano. Então, minha alma novamente se encheu de esperanças. Depois, nada mais disse. Sua aparência era de prostração. Com a frequência cardíaca diminuída e em estado de quase inconsciência, conclui que não me restava escolha, mesmo correndo o risco de o reptiliano ainda habitar a sua mente, precisava comunicar Edevaldo para que viesse abrir a porta antes que seus órgãos vitais começassem a falhar levando-o a óbito.
Concentrei-me em Edevaldo rogando-lhe por seu auxílio. Imediatamente, a porta da câmara se abre deixando entrar a claridade. Desfalecido e com os músculos enrijecidos, Mundico é arrastado por Edevaldo até o interior do banheiro masculino. Lá, o colocamos debaixo do chuveiro, deixando que a água morna lhe aquecesse, a fim de que pudesse recobrar a consciência.
Após duas horas sob a ducha, a cor de sua pele e seu ritmo cardíaco já pareciam normalizados. Contudo, sua consciência ainda não despertara. Então, num gesto abrupto, ainda deitado sobre o ladrilho do banheiro, Mundico se joga na direção de Edevaldo, agarra seus sapatos e solta um berro:
— Expediente encerrado!!!