O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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Apenas um supermercado

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Decidido e rápido, durante semanas, Mundico caminhou por aquela megalópole. Parecia não sentir fome, sono ou sede. Em determinados pontos da cidade, se encontrava com algumas pessoas que pareciam já estar à sua espera, porém, nada diziam durante tais encontros, apenas se olhavam fixamente e depois se dispersavam em meio à multidão. Não havia dúvidas de que estavam se comunicando, mas, do que estariam tratando?

Durante semanas, as mesmas cenas se repetiam, mudavam apenas os locais e as pessoas com quem Mundico estabelecia seus contatos. E foram tantos os encontros, pensei, que se todas aquelas pessoas forem como Mundico, haveria, só naquela cidade, um exército de abduzidos.

Eu podia acompanhar todos os seus movimentos, mas o reptiliano deixara a sua mente tão bloqueada que era impossível qualquer forma de comunicação, até mesmo a telepatia fora inútil. Vê-lo agir sem partilhar seus pensamentos fazia de mim o ser mais solitário de toda a galáxia.

Em um desses dias, Mundico entra em um grande supermercado, sobe pelas escadas rolantes, ganha o piso superior e entrega um bilhete a uma moça que parecia ocupar o cargo de secretária. Após um quarto de hora, uma mulher de meia idade se aproxima de Mundico e, por alguns instantes, os dois trocam entre si um daqueles costumeiros olhares. Parecia ser mais um encontro entre abduzidos, quando, inesperadamente, um dos funcionários do supermercado pediu a Mundico que o acompanhasse. Preencheram algumas fichas e fotos de Mundico foram tiradas. Em seguida, conduziram-no até um depósito onde lhe deram um uniforme e um cartão de identificação. Mas, por qual motivo aquela mulher teria lhe dado o emprego? Pensei.

Na semana que se seguiu a contratação, Mundico passou por uma série de treinamentos. Vez ou outra, quando algum colega de trabalho tentava puxar assunto, Mundico se limitava a responder apenas o necessário. Amizades não lhe interessavam. Notei, então, que embora o timbre de sua voz continuasse o mesmo, seu divertido sotaque camponês dera lugar ao modo frígido de falar daquele reptiliano que o abduzira. Solitário, passava o dia repondo mercadorias nas prateleiras e, durante a noite, se recolhia em um pequeníssimo dormitório distante algumas quadras daquele supermercado.

Após muito refletir, concluí que não haveria outra saída se não abandonar sua mente para encontrar, fora de seu corpo, um meio de livrá-lo daquela abdução. Por dias, tentei deixar o seu corpo, mas fora em vão. Todo esse tempo de convívio tornara a minha mente tão ligada à de Mundico, que era difícil abandoná-la. Foi então, que me lembrei das lições do mensageiro Ixpiyacoc, quando me ajudou na preparação de minha viagem astral, de Andrômeda até a órbita da Terra. A partir de então, durante as noites, quando Mundico se recolhia em seu quartinho, longe de toda aquela agitação do supermercado, passei a praticar os três passos de Ixpiyacoc: expulsar da mente todos os pensamentos que me ligassem a matéria; olhar para dentro da escuridão profunda; e buscar, no fundo da alma, a minha indissociável relação com todos os elementos que compõe o universo.

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Já tinha perdido as contas de quantas noites havia passado praticando os passos de Ixpiyacoc, até que, numa dessas noites, experimentei o meu primeiro deslocamento: sobrevoei, dentro daquele pequeníssimo quarto, o próprio corpo de Mundico. Podia vê-lo em sua cama enquanto flutuava rente ao teto. Na noite seguinte, a mesma experiência se repetiu, porém, de uma maneira ainda mais empolgante: consegui me projetar para além do pequenino quarto e sobrevoei todo o quarteirão.

A cada noite, um voo mais distante, contudo, a menor interrupção no sono de Mundico já era o bastante para que eu retornasse ao seu corpo, mesmo contra a minha vontade. Tal fato apenas confirmava o quanto nossas mentes ainda estavam ligadas uma a outra.

Considerava aqueles deslocamentos noturnos uma importante conquista, mas me incomodava o fato de estarem sempre condicionados ao sono de Mundico. Foi quando me ocorreu uma nova ideia: tentar o deslocamento durante o dia, mesmo estando Mundico acordado.

De início, por causa do ambiente agitado, era difícil concentrar-me; mas, com o tempo, quando atingi um nível apropriado de concentração, algo interessante aconteceu: comecei a enxergar, em torno dos corpos dos clientes, um invólucro esbranquiçado e luminescente, como uma sombra branca a revestí-los. Depois, percebi que aquelas sombras, ao se deslocarem de seus respectivos corpos, vagando por entre as seções do supermercado, continuavam a conservar suas aparências físicas. E quando se aproximavam de mim, era capaz de sentir a intensidade de suas vibrações.

Foi então que me lembrei dos ensinamentos de Tepeu sobre os estágios evolutivos entre os humanos. Como seus espíritos se encontram numa frequência vibratória muito superior a de seus corpos físicos, a comunicação direta entre matéria e espírito se torna impossível. Aquelas sombras, conhecidas como perispíritos, por serem capazes de vibrar nas duas frequências ao mesmo tempo, funcionam como pontes de ligação entre eles.

Embora os perispíritos sejam constituídos de uma espécie de semimatéria, ou seja, uma substância ectoplasmática, extremamente fluida e formada por elementos extraídos da própria atmosfera terrestre, não são detectáveis aos olhos físicos. Somente os espíritos os podem ver. E devido ao fato de eu me encontrar fora do corpo de Mundico, não apenas os via, mas também podia sentir suas vibrações.

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Assim, passei o resto do dia observando o movimento dos perispíritos no interior do supermercado. Vez ou outra via Mundico passar por mim, sempre solitário e completamente concentrado em seu trabalho. Depois, me dei conta de que passava mais tempo fora do que dentro do corpo de Mundico, embora isso não desviasse a atenção do meu principal desafio: libertar a sua mente.

Na manhã seguinte, enquanto observava algumas donas de casa empurrando seus carrinhos lentamente pela seção de cosméticos, me intrigou o fato de alguns perispíritos se mostrarem inconformados ao vê-las comprando, enquanto que outros, ao contrário, se deleitavam ao assisti-las enchendo seus carrinhos.

No momento em que voltei a atenção para Mundico, notei que um homem vinha em sua direção e, em seguida, designou-lhe uma tarefa.

Quando Mundico terminou de transportar sua última carga, notei algo de muito estranho em seu comportamento. Segurando uma das cartelas de ovos, sentou-se de trás de uma pilha de caixas e começou a devorá-los, um a um, até não mais restar um só ovo. Foi então que me lembrei do que dissera o reptiliano sobre o processo de metamorfose pelo qual passavam os humanos, alguns meses depois de serem abduzidos: tornavam-se meio humanos e meio répteis. Isso também explicaria o fato de Mundico, todas as manhãs, se dirigir até o terraço do supermercado colocando-se sob o sol: era uma forma de regular a temperatura interna de seu corpo, agora meio réptil. Diante daquilo concluí que, apesar de todos os meus esforços, estava perdendo a batalha para o reptiliano.

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No outro dia, enquanto observava os clientes em suas compras, passou por mim uma mulher conduzindo seu carrinho, e, dentro dele, uma criançinha que parecia ser sua filha. Naquele exato momento, tive a impressão de que a tal criança me olhava sorrindo. Mas, como ela poderia notar a minha presença? Intrigado, continuei a segui-las. Porém, por mais que eu tentasse me esquivar da criança, o seu olhar continuava a me seguir. Já não havia dúvidas, ela podia me ver. Em seguida, a criança retirou, de dentro da bolsa de sua mãe, uma caneta e começou a rabiscar sobre a embalagem de um produto. Depois, sem que a sua mãe pudesse ver, a criança colocou o produto que rabiscara de volta à prateleira. Como já não me restavam muitas alternativas, decidi checar a tal embalagem. Quando li os rabiscos, fiquei atordoado, era uma mensagem para mim que dizia: “Caro amigo Bolon, encontre Edevaldo, o faxineiro da noite”. Imediatamente, após ter lido aquela mensagem, voltei a atenção para a criança, mas ela não mais me olhava, apenas chorava implorando a mãe que lhe comprasse algo, apontando o dedinho em direção ao produto desejado.

Naquela mesma noite, deixei Mundico em seu pequenino aposento e me desloquei para o supermercado, a fim de encontrar o tal faxineiro. Apesar de encerrado o expediente, ainda havia muitos funcionários trabalhando, alguns repondo mercadorias e outros se ocupando da limpeza. Imediatamente comecei a checá-los para saber qual deles era Edevaldo. Vaguei por horas, mas sem sucesso. Nem todos usavam crachás e nenhum deles havia pronunciado o seu nome. Pensando no que me ocorrera naquela manhã, decidi seguir cada um dos faxineiros na esperança de que o tal Edevaldo também pudesse me ver, tal como se dera com aquela criança.

Aproximei de cada um deles, mas nenhum sinal. Nem sequer sentiam arrepios com a minha presença. Mas eu não desisti; continuei a vagar entre os funcionários, até que um deles me chamou a atenção: passou lentamente por mim, arrastando uma vassoura e levando, dentro do bolso de seu jaleco, um pequeno rádio que entoava uma canção. Na medida em que me aproximava dele, percebi que a música proveniente de seu rádio se transformava em chiados. Embora a minha presença causasse interferências na transmissão da melodia, aquele faxineiro parecia não se incomodar com o fato. Então, após segui-lo por algumas seções, ele parou, retirou o rádio do bolso e o colocou no chão, junto à vassoura que levava consigo. Aquela sua ação não fizera, para mim, o menor sentido, até o momento em que ouvi o meu nome saindo de dentro daquele pequenino rádio.

Olhei para o faxineiro, mas ele parecia estar dormindo, com o corpo escorado em sua vassoura.

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Assim, no outro dia, alguns minutos antes que Mundico marcasse o seu ponto de encerramento do expediente, Edevaldo se dirigiu para o lugar combinado. Imitando a voz do gerente, Sr. Rádio chamou por Mundico:

Após alguns poucos chamados, Mundico caminhou em direção a câmara. Naquele exato momento, concentrei-me nas vibrações de Edevaldo. Sua mente estava tão aberta à minha que parecia me esperar. Então, pedi a ele que me auxiliasse com o terrível drama de Mundico. Ele consentiu e deixou que eu o guiasse até o interior da câmara. Lá, pedi a ele que escondesse o Sr. Rádio, para que Mundico não pudesse encontrá-lo. Em seguida, conduzi Edevaldo para fora da câmara.

Assim que Mundico se dirigiu para o fundo da câmara, implorei a Edevaldo que trancasse a porta pelo lado de fora. Pronto! Mundico e o réptil estavam fechados. Rapidamente, devido à mutação que sofrera em seu sistema sensorial, Mundico encontra o rádio que Edevaldo escondera. Depois, segurando-o com uma das mãos, o escuta dizer: “Querido ouvinte, obrigado pela audiência. É sempre um enorme prazer tê-lo em nossa companhia. Você é a razão de nosso sucesso. Fique com Deus, um beijo no coração e até amanhã”. Num acesso de fúria, Mundico esmaga o pequenino rádio contra a parede gelada da câmara. Em seguida, começa a esmurrar a porta gritando:

Felizmente, o plano do Senhor Rádio não deixara escapar um só detalhe. Era noite de quarta feira. Exatamente o dia em que não há expediente noturno no supermercado. Só estava o vigilante, porém, distante da câmara o suficiente para que seus ouvidos não pudessem ouvir os berros de Mundico. Mundico berrou por socorro e esmurrou a porta, até perder a voz e ficar com as mãos ensanguentadas. Devido à baixíssima temperatura da câmara, seu corpo tremia e sua respiração acelerava. Logo, além dos tremores, Mundico começou a apresentar espasmos musculares e sua pele ganhou uma tonalidade levemente arroxeada. Era o começo de uma hipotermia. Algum tempo depois, torna-se sonolento e, com uma fala atrapalhada, começa a balbuciar frases desconexas:

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Porém, em meio aquela sua aparente confusão mental, a última frase me pareceu familiar. “Tiú dos inferno”, pensei, não parece nada com o estilo do reptiliano. Então, minha alma novamente se encheu de esperanças. Depois, nada mais disse. Sua aparência era de prostração. Com a frequência cardíaca diminuída e em estado de quase inconsciência, conclui que não me restava escolha, mesmo correndo o risco de o reptiliano ainda habitar a sua mente, precisava comunicar Edevaldo para que viesse abrir a porta antes que seus órgãos vitais começassem a falhar levando-o a óbito.

Concentrei-me em Edevaldo rogando-lhe por seu auxílio. Imediatamente, a porta da câmara se abre deixando entrar a claridade. Desfalecido e com os músculos enrijecidos, Mundico é arrastado por Edevaldo até o interior do banheiro masculino. Lá, o colocamos debaixo do chuveiro, deixando que a água morna lhe aquecesse, a fim de que pudesse recobrar a consciência.

Após duas horas sob a ducha, a cor de sua pele e seu ritmo cardíaco já pareciam normalizados. Contudo, sua consciência ainda não despertara. Então, num gesto abrupto, ainda deitado sobre o ladrilho do banheiro, Mundico se joga na direção de Edevaldo, agarra seus sapatos e solta um berro:

— Expediente encerrado!!!