Dois dias após recebermos a alta do hospital, tomamos um ônibus rumo a Mutamba. Apesar das fortes dores de cabeça, da persistente insônia e de uma incontornável ansiedade, Mundico se sentia feliz, pois, além de poder rever sua família, acreditava ter conseguido um anjo da guarda a tiracolo, ou seja, eu. Minha maior preocupação, no entanto, era justamente a de descobrir uma maneira segura de fazer-lhe compreender quem realmente eu era sem que sofresse um choque; uma vez que a sua consciência ainda estava em fase de reconstrução. Assim, por precaução, preferi deixar tal questão para depois do reencontro tão desejado.
Ainda não havia amanhecido quando o ônibus fez mais uma de suas paradas em um posto de combustível. Mundico, como não conseguia dormir, avisou-me que precisaria descer:
— São Bolon?
— Sim, Mundico?
— Preciso dá uma chegadinha no banhêro módi disafogá.
Embora o cérebro de Mundico já estivesse praticamente recuperado, com autonomia, inclusive, para prescindir do auxílio de minha mente, preferi ser cauteloso e manter a conexão.
Mundico se posicionou diante do espelho, lavou o rosto e ficou examinando a superfície de sua cabeça, de um lado a outro atravessada por suturas. Porém, próximo a porta, a presença de um enorme teiú lhe desviou a atenção:
— Diacho de tiú, quais me matô de susto! Pensei inté que ocê era uma cobra! Óia só tiú, ocê tá é cum sorte de aparecê pra eu aqui na istrada, causo que, se fosse lá em Mutamba, ocê já era... Ia direto pra panela.
Se afastando do banheiro, Mundico notou que o tal réptil parecia lhe seguir.
— Uai, tiú! Cê tá seguindo eu, ou nois dois tamo ino pro memo rumo?
Apressando o passo, Mundico seguiu em direção ao ônibus, mas o teiú continuou a acompanhá-lo. Já próximo à porta de entrada do ônibus, o lagarto se posicionou bem diante de Mundico e começou a balançar sua longa cauda, como um cãozinho que acabara de encontrar o seu dono.
p. 60— Sai da minha frente, seu tiú metido a besta! — desafiou Mundico. — Daqui a pôco os passagêro do ônibus vai pensá que ocê tá viajano comigo. Caça logo um rumo, se não eu vô tê que te dá uma bicuda.
Quanto mais Mundico informava ao lagarto de sua repulsa, mais perto ele se aproximava. Logo, devido à altura do tom de voz de Mundico, a cena se tornou pública. Alguns passageiros curiosos assistiam o diálogo entre Mundico e o teiú. Então, como o lagarto continuava imóvel, um dos passageiros se pronunciou em defesa do animal:
— Olha só, seu moço, estamos de olho em você, portanto, vê se não vai machucar o pobre do teiú.
— Num vô machucá ele não. Mais se ocê achô ele bunitin, então, leva ele procê! — disse Mundico enfezado.
Outro passageiro, menos preocupado com a saúde do lagarto esbravejou:
— Joga esse bicho no mato! Preciso chegar logo em casa.
Foi então que percebi algo de diferente naquele teiú: seus olhos começaram a brilhar, apresentando tonalidades que variavam entre o azul, o vermelho, o amarelo e o verde. O brilho era tão intenso que seria possível vê-lo a quilômetros de distância. Contudo, notei que ninguém, além de mim, percebera as luzes que emanavam dos olhos do lagarto.
Quando o feixe de luz que emanava dos olhos do lagarto se dissipou, eu já estava dentro do ônibus em movimento. Então, concluí que estive desacordado por um bom espaço de tempo. Não conseguia me recordar do momento em que Mundico retornara ao ônibus, nem tampouco do que havia acontecido com o tal teiú.
O sol já estava alto quando me dei conta de que, desde o episódio do teiú, Mundico não mais se comunicara comigo. Ao contrário, dormia profundamente. Todavia, considerando o seu estado de recuperação, decidi não perturbá-lo com minhas cismas, embora estranhasse o fato de não ter captado nenhum de seus sonhos enquanto dormia. Era como se nossas mentes estivessem desconectadas.
Algumas horas depois, o ônibus alcançou o seu destino final. Os passageiros retiravam suas bagagens e desciam apressados. Porém, Mundico não expressara nenhum sentimento aparente. Era como se aquele lugar não representasse absolutamente nada em sua vida. Então, desceu do ônibus, caminhou alguns poucos metros, parou próximo a um banco e lá permaneceu estático. Também notei que não havia retirado a sua mala de dentro do ônibus. A minha dedução era a de que Mundico estaria passando por um lapso de memória, tal como lhe ocorrera no hospital durante a sua saída do coma. Minha única alternativa, pensei, seria a de, mais uma vez, intervir na sua mente até que recobrasse a memória. Porém, sua mente parecia bloqueada. Por várias vezes tentei acessá-la, mas, sem nenhum sucesso. Então, lancei mão da última alternativa que me restava, a telepatia. Passei a percorrer as profundezas de sua mente e, quando já me escapavam as esperanças, obtive uma comunicação:
— Já não há mais nenhum Mundico nesta mente enferma, Sr. Bolon Yokte K’uh.
— Quem é você? — perguntei.
— Por quê te importa saber? — respondeu-me.
p. 61— Me importa, pois estou auxiliando este ser na condução de seu caminho — disse-lhe.
— Para nós, Sr. Bolon, você, assim como os outros viajantes, não passam de intrusos. Por isso, ordeno-lhe que abandones a mente deste humano.
— Não o farei, pois acompanho este humano desde a sua juventude.
— Sr. Bolon, vivemos neste planeta há trezentos e cinquenta milhões de anos antes de sua chegada. Estamos em todos os lugares e assumimos variadas formas, conforme pôde me ver pela primeira vez naquele posto de combustível.
— Então você era aquele teiú?
— Apenas momentaneamente — respondeu-me.
— Mas o que vocês são afinal?
— Se queres mesmo saber, Sr. Bolon, lhe direi. Alguns humanos que tiveram a sorte de nos conhecer nos batizaram de reptilianos. Isso, devido a nossa ancestral estrutura réptil. Exatamente por causa dessa nossa estrutura, Sr. Bolon, que atualmente, apesar de todos os males que os humanos causam ao meio ambiente, cerca de oito mil espécies de répteis ainda habitam este planeta. Em outras palavras, a grande capacidade adaptativa de nossa espécie permite-nos sobreviver às condições sob as quais a maioria das outras espécies jamais sobreviveria. Habitamos tanto a superfície deste planeta como seus intramundos. Num passado não muito recuado, antes de os humanos se alastrarem pelo planeta, com suas cidades densamente povoadas, alguns de nossa espécie se misturaram aos humanos, dando origem a uma super-raça de híbridos. Contudo, esses híbridos, apesar de terem se tornado criaturas infinitivamente superiores aos humanos, fizeram escolhas erradas, o que lhes impediu de substituir a inferior raça humana.
— Podeis dizer-me, Sr. Reptiliano, que escolhas erradas foram essas? — perguntei.
— Sim, Sr. Bolon. Ao se hibridizarem, um dos piores vícios entre os humanos, a ganância, prevaleceu. Assim, os primeiros híbridos, devido a sua superioridade, escolheram ser tratados como deuses, ditando ordens, provocando guerras, ordenando a construção de grandes templos, e pomposas cerimônias que envolviam o sacrifício de vidas humanas.
Por fim, tornaram-se uma limitada casta de reis semideuses, em vez de se multiplicarem até não sobrar mais nenhum humano puro. Como resultado, os poucos híbridos que restaram tiveram que pagar um alto preço, o exílio.
Esconderam-se nos intramundos do planeta para se reestruturarem. Durante séculos se desenvolveram, se aprimoraram, tornando-se uma espécie ainda mais superior. Embora capazes de desenvolver tecnologias avançadas, como aeronaves imperceptíveis aos sentidos humanos, nossa principal evolução, como pode ver, foi a nossa capacidade de invadir e dominar mentes. Há centenas de nós habitando mentes nos mais diferentes setores da vida humana.
— E por quê escolheram um caminho tão invasivo? — perguntei.
— Não subestimes a minha inteligência, Sr. Bolon. Achas realmente que somos mais invasivos do que os humanos que destroem o seu único habitat? Sabes por que ainda os deixamos viver, Sr. Bolon? É porque sabemos que continuaremos a habitar este planeta mesmo depois que eles se autodestruírem com suas estúpidas disputas de ordem material.
— Sr. Bolon, ainda que estejas só de passagem por este pequenino planeta, dizei-me: o que há nele de mais importante?
p. 62— A vida! — respondi com segurança.
— Muito boa resposta! meu caro viajante das estrelas. Mas, o que permite a vida viver?
— Fluxos de energia, Sr. reptiliano.
— Vejo que aprende rápido, Sr. Bolon. Mas, os infelizes humanos parecem não saber disso, pois, já conseguiram poluir quase a totalidade de sua principal fonte de energia, a ÁGUA! Tornaram-se tão estúpidos a ponto de darem mais atenção aos seus deuses imaginários do que a água que lhes garante a vida. Percebes, agora, Sr. Bolon, por que nós, os reptilianos, não precisamos mais criar estratégias para destruir os humanos? Eles mesmos já cuidam disso para nós, e ainda sem pedir nada em troca! Muahahahahaha.
— Dizei-me, Sr. Reptiliano, por quê escolhestes a mente de Mundico e não a de outro humano?
— Por nenhum motivo em especial. Apenas porque, à época, ele possuía a idade e as condições físicas adequadas ao nosso padrão de abdução.
— Você disse à época?! Então a abdução não se dera naquele posto de combustível?
— Sim e não, Sr. Bolon. Deixe-me explicar desde o início: recordas daquela caçada de tatu, quando o jovem Mundico sofreu aquele interessante ferimento em sua nuca, mantendo-se desacordado por dias?
— Então eram vocês... Os mesmos a quem os camponeses denominam “Chupa-Cabras”.
— Por favor, Sr. Bolon, não ofenda a nossa classe. Não nos agrada esse ridículo apelido, embora não dispensamos as vísceras de uma boa cabra gordinha... Mas, permita-me que continue a explicação. O processo de abdução requer alguns cuidados: Primeiro, localizamos as pessoas que, conforme eu disse antes, ofereçam as condições físicas e mentais necessárias; depois, implantamos em seus corpos algumas enzimas que garantirão a nossa sobrevivência enquanto estivermos neles albergados, já que não ocupamos o corpo humano apenas psiquicamente, como fazem vocês intergalácticos. Com o tempo, desenvolvemos em seus corpos um hibridismo físico que se manifesta depois de alguns meses de incubação. Por último, rastreamos o humano implantado até que chegue o momento adequado para a abdução, no caso de seu amigo Mundico, o esperamos naquele posto de combustível. Simples assim, Sr. Bolon.
— E quanto à última fase, quando se consuma o processo de hibridismo? — perguntei.
— Vejo que você ainda está preocupado com a integridade física de Mundico. Não se preocupe, pois, ele se tornará um ser bem mais aprimorado.
— Como assim, aprimorado? Ele será como um de vocês?
— Não, Sr. Bolon, ele não chegará ao nível de nossa, com todo respeito aos demais seres, nossa perfeição. Mundico desenvolverá algumas capacidades características aos répteis, como o mimetismo, metabolismo mais complexo, visão e audição superior e, acima de tudo, uma moral coletiva, coisa que entre os humanos não mais existe desde o final do pleistoceno.
Vi que estava diante do meu maior desafio neste planeta, pois todas as tentativas que fiz para quebrar o estado de dormência em que se encontrava a mente de Mundico foram inúteis. O reptiliano o dominava com total autonomia.
— Então, Sr. Bolon, foi bom conversar com você, mas preciso reconduzir esse humano para sua nova missão; bem mais importante, tenho certeza, do que a que vocês planejavam.
Em seguida, o reptiliano conduziu Mundico para dentro de um ônibus cujo destino era a cidade de São Paulo.