O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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Uma viagem só de volta

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Dois dias após recebermos a alta do hospital, tomamos um ônibus rumo a Mutamba. Apesar das fortes dores de cabeça, da persistente insônia e de uma incontornável ansiedade, Mundico se sentia feliz, pois, além de poder rever sua família, acreditava ter conseguido um anjo da guarda a tiracolo, ou seja, eu. Minha maior preocupação, no entanto, era justamente a de descobrir uma maneira segura de fazer-lhe compreender quem realmente eu era sem que sofresse um choque; uma vez que a sua consciência ainda estava em fase de reconstrução. Assim, por precaução, preferi deixar tal questão para depois do reencontro tão desejado.

Ainda não havia amanhecido quando o ônibus fez mais uma de suas paradas em um posto de combustível. Mundico, como não conseguia dormir, avisou-me que precisaria descer:

Embora o cérebro de Mundico já estivesse praticamente recuperado, com autonomia, inclusive, para prescindir do auxílio de minha mente, preferi ser cauteloso e manter a conexão.

Mundico se posicionou diante do espelho, lavou o rosto e ficou examinando a superfície de sua cabeça, de um lado a outro atravessada por suturas. Porém, próximo a porta, a presença de um enorme teiú lhe desviou a atenção:

Se afastando do banheiro, Mundico notou que o tal réptil parecia lhe seguir.

Apressando o passo, Mundico seguiu em direção ao ônibus, mas o teiú continuou a acompanhá-lo. Já próximo à porta de entrada do ônibus, o lagarto se posicionou bem diante de Mundico e começou a balançar sua longa cauda, como um cãozinho que acabara de encontrar o seu dono.

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Quanto mais Mundico informava ao lagarto de sua repulsa, mais perto ele se aproximava. Logo, devido à altura do tom de voz de Mundico, a cena se tornou pública. Alguns passageiros curiosos assistiam o diálogo entre Mundico e o teiú. Então, como o lagarto continuava imóvel, um dos passageiros se pronunciou em defesa do animal:

Outro passageiro, menos preocupado com a saúde do lagarto esbravejou:

Foi então que percebi algo de diferente naquele teiú: seus olhos começaram a brilhar, apresentando tonalidades que variavam entre o azul, o vermelho, o amarelo e o verde. O brilho era tão intenso que seria possível vê-lo a quilômetros de distância. Contudo, notei que ninguém, além de mim, percebera as luzes que emanavam dos olhos do lagarto.

Quando o feixe de luz que emanava dos olhos do lagarto se dissipou, eu já estava dentro do ônibus em movimento. Então, concluí que estive desacordado por um bom espaço de tempo. Não conseguia me recordar do momento em que Mundico retornara ao ônibus, nem tampouco do que havia acontecido com o tal teiú.

O sol já estava alto quando me dei conta de que, desde o episódio do teiú, Mundico não mais se comunicara comigo. Ao contrário, dormia profundamente. Todavia, considerando o seu estado de recuperação, decidi não perturbá-lo com minhas cismas, embora estranhasse o fato de não ter captado nenhum de seus sonhos enquanto dormia. Era como se nossas mentes estivessem desconectadas.

Algumas horas depois, o ônibus alcançou o seu destino final. Os passageiros retiravam suas bagagens e desciam apressados. Porém, Mundico não expressara nenhum sentimento aparente. Era como se aquele lugar não representasse absolutamente nada em sua vida. Então, desceu do ônibus, caminhou alguns poucos metros, parou próximo a um banco e lá permaneceu estático. Também notei que não havia retirado a sua mala de dentro do ônibus. A minha dedução era a de que Mundico estaria passando por um lapso de memória, tal como lhe ocorrera no hospital durante a sua saída do coma. Minha única alternativa, pensei, seria a de, mais uma vez, intervir na sua mente até que recobrasse a memória. Porém, sua mente parecia bloqueada. Por várias vezes tentei acessá-la, mas, sem nenhum sucesso. Então, lancei mão da última alternativa que me restava, a telepatia. Passei a percorrer as profundezas de sua mente e, quando já me escapavam as esperanças, obtive uma comunicação:

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Por fim, tornaram-se uma limitada casta de reis semideuses, em vez de se multiplicarem até não sobrar mais nenhum humano puro. Como resultado, os poucos híbridos que restaram tiveram que pagar um alto preço, o exílio.

Esconderam-se nos intramundos do planeta para se reestruturarem. Durante séculos se desenvolveram, se aprimoraram, tornando-se uma espécie ainda mais superior. Embora capazes de desenvolver tecnologias avançadas, como aeronaves imperceptíveis aos sentidos humanos, nossa principal evolução, como pode ver, foi a nossa capacidade de invadir e dominar mentes. Há centenas de nós habitando mentes nos mais diferentes setores da vida humana.

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Vi que estava diante do meu maior desafio neste planeta, pois todas as tentativas que fiz para quebrar o estado de dormência em que se encontrava a mente de Mundico foram inúteis. O reptiliano o dominava com total autonomia.

Em seguida, o reptiliano conduziu Mundico para dentro de um ônibus cujo destino era a cidade de São Paulo.