— Doutor? Veja! Ele abriu os olhos!
— Isso pode revelar um prognóstico positivo!
— Será que ele vai sair do coma, Doutor?
— Isso, só o tempo nos dirá.
Estou escutando vozes! Quem está aí? Os sons me chegavam de forma lenta e incompreensível. Então, começo a enxergar algumas imagens disformes e embaçadas.
A possibilidade mais lógica, pensei, seria a de Mundico estar vivo e eu ainda ligado ao seu corpo, mas, por que não consigo captar nenhum de seus pensamentos?
Passei horas, talvez dias, vendo apenas um teto branco, e nele uma luz dependurada. Vez em quando, uma mulher, cujo rosto eu não conseguia enxergar com nitidez, se aproximava e pingava um tipo de líquido sobre os meus olhos, mas os pensamentos de Mundico ainda estavam ausentes de minha mente.
Todos os dias eram absolutamente iguais: uma enfermeira abria as janelas do quarto deixando a luz entrar; depois, substituía o frasco de soro; verificava a sonda urinária; fazia algumas anotações em uma prancheta e dizia: “Bom dia, Sr. Raymundo! Está um belo dia, não acha?”. Logo descobri que ainda estava em Mundico e que ele estava em um hospital.
Uma vez, a cada dois dias, o médico nos faz uma ligeira visita, vê o que diz a prancheta da enfermeira, depois nos dá dois tapinhas no ombro dizendo:
— Tenha fé, Raymundo, você sairá dessa...
Num desses dias, que parecia ser igual aos demais, a enfermeira nos diz:
— Bom dia, Sr. Raymundo, você tem visita!
p. 49Quem poderia ser? Pensei. Então, alguém se aproxima e, por alguns minutos, se mantém estático bem de frente a cama. Seu rosto me parecia familiar... Até que ele falou:
— Que bão que ocê abriu os zói, primu! Quais todo mundo lá de Mutamba achava que ocê nunca mais ia acordá!
Era o primo Ranufo. Devido ao uso de barbas e de um boné que caía sobre a testa, quase não pude reconhecê-lo.
— Primu? Num sei se ocê tá mi ecuitano. Se tivé, ocê pisca um zoi prô modi eu sabê, tá bão? — prosseguiu Ranufo. — Nóis tudo achô que ocê ia morrê, causo que quano ocê trombô cum o caminhão, sua cabeça quebrô assim, bem em riba do cucurucu. Cê num vai creditá, mais sabe quem foi uma das primêra pessoa que apareceu dispois do acidente? A Mariscley! É... Primu, e ela ficô toda chorosa quano viu eles botá ocê dento da ambulança. Cê tava certo... A Mariscley rasta uma asa procê! Sua mãe, coitadinha, todo dia ela leva uma cabaça d’água prô pé da cruiz, modi pagá promessa procê ficá bão.
Neste momento, a enfermeira interrompeu Ranufo chamando pelo médico.
— Doutor?! Dr. Giovanni? Venha depressa!
— O que foi enfermeira? — perguntou o médico adentrando o quarto.
— O Raymundo está piscando os olhos em resposta às perguntas que o primo lhe faz — informou a enfermeira.
— Veja Doutor!
— Não vejo nada, enfermeira — disse o médico.
— Então, vamos pedir ao primo que lhe interrogue — sugeriu a enfermeira.
— Sr. Ranufo? — interviu o médico. — Por favor, poderia fazer algumas perguntas a Raymundo para vermos a sua reação?
— Craro, Dotô! — concordou Ranufo.
— Primu? Vô perguntá umas coisa procê. Se ocê tivé mintendeno, dá uma piscada pra gente vê.
— Ele não está piscando, enfermeira — comentou o médico. — Vocês têm certeza de que ele piscou para o primo?
— Sim, Doutor! — confirmou a enfermeira.
Então, decidi eu mesmo fazer um teste. Pensei em piscar duas vezes o olho direito de Mundico.
— Olha, Doutor! Ele piscou duas vezes o olho direito! — disse a enfermeira.
— Pode ser somente uma reação involuntária — disse o médico. — Por favor, Ranufo, faça-lhe outra pergunta.
— Primu? Cê gosta da Mariscley? Se ocê gosta, pisca o zoi isquêrdo.
Esperei alguns segundos para me certificar se Mundico seria capaz de respondê-lo, mas ele não respondeu. Então, resolvi eu mesmo responder.
— Óia gente! Mundico piscô o zoi isquêrdo!
Vendo aquilo, o próprio médico resolveu fazer os testes.
— Raymundo? Se puder, pisque o seu olho esquerdo uma vez, e depois, pisque o seu olho direito duas vezes.
Prontamente, fiz como o médico pediu.
— Isso é bom! — disse o médico, prosseguindo com os testes. — Agora, Raymundo, se puder, mexa os dedos da mão direita.
Imediatamente, dedilhei o lençol que cobria a cama. O médico ficou pasmado.
— Enfermeira, por favor, mande chamar o nosso diretor.
Enquanto isso, o médico prosseguiu com os testes.
— Raymundo, por favor, mexa lentamente o seu pé direito.
Mexi o pé direito.
— Agora, os dois pés de uma única vez.
p. 50Respondi imediatamente movimentando os pés para frente e para trás.
Passado alguns minutos, o Diretor do hospital adentra o quarto.
— Aqui estou senhores. Em que posso ajudá-los?
— É sobre este paciente — respondeu o Dr. Giovanni.
— O que tem o paciente, Dr. Giovanni? — perguntou o Diretor.
— É que estamos diante de um incrível quadro de recuperação, Senhor Diretor, e gostaríamos que o senhor presenciasse — respondeu Dr. Giovanni continuando a explicação. — Este paciente deu entrada em nosso hospital com um quadro de TCE, traumatismo cranioencefálico, com fratura exposta e perda significativa de massa encefálica. Imediatamente o submetemos a uma lobotomia seguida de uma cranioplastia, para reconstruir parte do crânio que fora esmagado. A questão, Sr. Diretor — prosseguiu o Dr. Giovanni —, é que as regiões específicas do córtex de Raymundo que foram lesadas, teoricamente, não possibilitariam que ele recuperasse tais movimentos, ainda mais de forma tão rápida, pois a cirurgia foi realizada há apenas duas semanas.
— É realmente inacreditável! Poderia me mostrar algumas reações do paciente, Dr. Giovanni? — solicitou o Diretor.
— Evidentemente — se prontificou o Dr. Giovanni.
— Sr. Raymundo, poderia mexer seu pé direito e sua mão esquerda?
Não apenas mexi os membros solicitados como também disse ao Dr. Giovanni:
— É um prazer colaborar com vocês.
Após escutarem a voz de Mundico, ficaram literalmente paralisados. Logo, outros médicos foram chamados para presenciar tal acontecimento. Fotos foram tiradas e fomos submetidos a vários exames radiográficos.
Embora eu pudesse, telepaticamente, provocar o restabelecimento da comunicação neural no cérebro de Mundico, coordenando, assim, seus movimentos, nenhum de seus pensamentos ainda havia me chegado. Mas, como o seu corpo ainda estava muito debilitado para fazer algo mais do que pequenos movimentos de membros e balbuciar palavras, decidi esperar sua reabilitação física antes de tentar uma comunicação com aquele cérebro já tão danificado.
Passei as três semanas seguintes limitando os impulsos de Mundico ao mínimo necessário, ou seja, fazendo estritamente aquilo que a equipe médica requeria. Na quarta semana já consegui coordenar o corpo de Mundico levando-o a pequenas incursões ao banheiro do quarto. Por conta dessa proeza, Dr. Giovanni mudou o regime alimentar de Mundico, oferecendo-lhe alimentos sólidos. Após alguns dias, a enfermeira decidiu levar-nos para pequenas caminhadas pelos corredores do hospital e também para breves banhos de sol. Contudo, me incomodava o fato de ainda não ter conseguido captar nenhum pensamento de Mundico. Sua mente ainda estava em estado letárgico.
A recuperação física de Mundico estava sendo rápida. Os ferimentos cirúrgicos já estavam cicatrizados, e o Dr. Giovanni já comentava com a enfermeira sobre a sua alta.
— MARISCLEY!!!! Cadê ocê?!!!
Mundico soltou um berro durante a noite. Essa era a prova de que seu cérebro recomeçara a pensar.
A enfermeira entrou rapidamente no quarto.
— Sr. Raymundo? Por favor, se acalme. Foi só um pesadelo.
p. 51Durante horas, Mundico berrou o nome de Mariscley. Depois, começou a se debater e dizer frases desconexas. Em consequência, o médico de plantão teve que sedá-lo. Nos dias que se seguiram, Mundico continuou a apresentar graves distúrbios de consciência. Tal quadro causou grande decepção ao Dr. Giovanni e a toda sua equipe. O prognóstico de alta tornara-se, então, reservado.
Percebi que estava diante do meu primeiro grande dilema, desde que havia chegado a este planeta. Deveria intervir na mente de Mundico, ou deixá-lo naquele estado de confusão mental? Passei dias, talvez semanas, refletindo sobre qual caminho deveria tomar. Até que então, lembrei-me da frase do poeta: “Não há caminho. Faz-se o caminho ao andar”.
Assim, tentei o primeiro diálogo com a consciência de Mundico.
— Mundico? Consegue me ouvir?
— Diacho! Sai da minha cabeça lumbriga brába! Num quero iscuitá ocê.
A repulsa foi a sua primeira reação. Mesmo assim, era animador o fato de ter podido restabelecer a comunicação entre a minha mente e a dele.
— Mundico? — perguntei. — Você se lembra de quando foi buscar o cavalo Tramela e me escutou pela primeira vez?
— O pai falô que essas vóiz dento da cabeça da gente é verme. Vô pedi pra ele ôta garrafada e ocê vai se lascá!
— E se eu lhe disser que estou dentro de sua cabeça para ajudá-lo? — insisti.
— Si ocê quisé, seu verme, pode continuá falano à vontade, mais eu num vô dá uvido procê.
Naquele momento percebi que seria muito difícil fazê-lo entender. Apesar disso, continuar tentando era tudo o que me restara; eu só precisava encontrar o caminho certo. Compreendi, então, que se eu continuasse com a estratégia de tentar fazê-lo entender aquela realidade, a partir do meu próprio ponto de vista, corria o risco de receber em troca somente a sua repulsa. Neste caso, os médicos, certamente, apresentariam um diagnóstico de esquizofrenia, aconselhando que Mundico fosse devolvido a sua família para ser tratado como um “desmiolado”, ou encaminhado a um manicômio pelo resto de sua vida.
Depois de muito refletir, conclui que a melhor estratégia seria a de desafiá-lo a partir de seu próprio mundo. Então, voltei a minha atenção para dentro de seu universo cultural. Logo, encontrei no interior de seu imaginário social, uma série de elementos capazes de motivar sentimentos tanto de repulsa como de admiração, como por exemplo, vermes; assombrações; chupa-cabras; cobras, anjos da guarda; família; farofa de tatu; festa de S. Sebastião; Mariscley, e assim por diante. Em linhas gerais, os anjos da guarda eram os mais admirados. Assim, optei por metamorfosear-me em um anjo da guarda.
— Mundico? Já ouvistes falar em Anjo da Guarda?
— Craro, Seu Verme! São os anjo que protege nóis contra as coisa rúin. Quano a gente sai pro mato, a mãe sempre fala pra nóis num isquecê de pedi a proteção dos Anjo da Guarda.
— Pois então, Mundico. Eu sou o seu anjo da guarda — afirmei.
p. 52— Vai mintí prá lá, ô, coisa rúin! Cê acha que eu vô caí nessa?! Só me fartava essa... Lumbriga querê virá anjo!
— Então, vamos fazer uma aposta? — propus a ele.
— Aposta?! — perguntou-me surpreso.
— Sim, Mundico, uma aposta.
— Apostá o quê? Cumé que um verme pode pagá uma aposta? — indagou-me em tom irônico.
— Muito simples, Mundico. Se eu perder, saio de sua cabeça para sempre, mas, se eu ganhar, você aceitará o fato de que sou o seu anjo da guarda, e que pensará junto comigo, antes de fazer qualquer coisa nessa sua vida. Combinado?
— Tá bão! — concordou Mundico.
— Primeiro — disse a ele —, você precisa me dizer exatamente onde está agora.
— Isso é muito fáci de respondê, Seu Verme. Tô na istrada, vortano pra venda do Seu Zoín, modi vê a Mariscley.
— E se eu lhe disser que você não está em estrada alguma, e sim em um quarto de hospital se recuperando de um grave acidente de motocicleta?
— Aí vô dizê que ocê, além de verme, é doido! Tá veno só? Pronto! Ganhei a aposta! Agora, cê pode picá a mula! Some da minha cabeça pra sempre, ô lumbrigão!
— Não é tão simples assim — disse a ele. — Deixe-me perguntar-lhe de outra maneira. Do ponto em que você se encontra, quanto tempo levará até a venda do Sr. Zoín?
— Bão, se eu apertá o pé, daqui uns quinze minutin eu chego lá.
— Então, Mundico, vamos esperar esses quinze minutos, daí você me diz se já chegou, ou não, na venda do Sr. Zoín.
Transcorrido o tempo, perguntei-lhe:
— Já chegastes à venda?
— Ainda não, Seu Verme. Ocê num isperô dá os quinze minuto!
— Tudo bem! Mas, me diga uma coisa: o que vê agora?
— Eu agora tô chegano na curva do mata-burro da fazenda do finado Chico.
Transcorrido mais quinze minutos, voltei a perguntá-lo:
— E agora, Mundico? Já chegastes à venda?
— Ainda não! — respondeu-me.
p. 53— Então, diga-me: em que parte da estrada estais agora?
— Tô chegano na curva do mata-burro da fazenda do finado Chico.
Passamos horas repetindo as mesmas coisas um para o outro. Até que decidi desafiá-lo:
— Jamais chegarás à venda do Sr. Zoín. Sabe por que Mundico? Você não está sobre a sua moto, você está sobre uma cama de hospital.
— Ocê tá tentano me dêxá doido, seu Verme. Craro que eu tô chegano na venda do Seu Zoín!
— Então, tente passar a curva do mata-burro e me diga o que há do outro lado.
— Tá bão — concordou.
— Já passou a curva?
— Ainda não — respondeu-me.
— Já passou a curva?
— Ainda não.
Assim, continuei insistindo naquela pergunta até que me cansei de obter sempre a mesma resposta.
— Se você ainda não está na venda do Sr. Zoín — disse a ele —, é porque você, como eu venho tentando lhe dizer, só pode estar em outro lugar.
Dito aquilo, Mundico silenciou-se. Então, aproveitei o seu silêncio para conectar-lhe ao mundo exterior.
— Mundico? Você poderia passar a mão sobre a sua cabeça?
— Pra quê? O vento tá muito forte, num dá pra pentiá o cabelo.
— Não há problema — disse a ele. — Só quero que você toque o seu cabelo.
— Tá bão — concordou Mundico.
Ajudando-o com a transmissão das sinapses, Mundico tocou a sua cabeça.
— Nossa!!! Cruiz Credo Ave Maria!!! Cadê o meu cabelo?!
— Foi raspado — respondi. — Os médicos precisaram raspar o seu cabelo para um procedimento cirúrgico. Você sofreu um grave acidente e teve várias fraturas no crânio. Por essa razão, você não consegue se lembrar do que está após o mata-burro, pois não chegastes até lá. O acidente foi exatamente na curva anterior a ele. Pense Mundico, só o tempo que levei para contar-lhe o que aconteceu, já seria suficiente para que você passasse a curva, não acha? Então, faça você mesmo o teste — sugeri. — Diga-me novamente em que parte da estrada se encontra agora.
— Bão, eu agora tô chegano na curva do mata-burro da fazenda do finado Chico.
— O que eu lhe pedi para fazer enquanto se aproximava da curva?
— Ocê me pediu pra eu passá a mão na cabeça e me falô que eu tinha sofrido um acidente, bem na curva do mata-burro.
— E agora? — perguntei-lhe. — Estais em que ponto da estrada?
— Tô chegano na curva do mata-burro da fazenda do finado Chico.
— Então, dizei-me: Enquanto aproximavas da curva, contou-me sobre o que eu lhe havia pedido para fazer, ou seja, que passasse a mão sobre a cabeça. Correto?
— Correto — concordou Mundico.
— Por que, então, até agora, não passastes a curva do mata-burro?
— Num sei — respondeu Mundico confuso.
Felizmente, minha insistência abalara as convicções de Mundico. Era o sinal de que algumas “portas” de seu cérebro estavam se abrindo.
— Agora, Mundico, passe as duas mãos sobre a sua cabeça e diga-me o que sente.
p. 54— Sinto a minha cabeça sem cabelo e cheia de espín. Tá inté pareceno uma roça de toco.
— Agora, quero que sintas o cheiro do lugar, e me diga o que sente.
— Tá um chêro muito forte de desinfetante misturado cum arcol.
— Muito bom, Mundico! Agora, quero que me diga quais os sons que consegue escutar.
— Tô iscuitano barúi de buzina de carro, um montão de buzina.
— Responda-me, Mundico: esses barulhos de buzina, esses cheiros e sua cabeça raspada, combinam com a curva do mata-burro?
— De jeito nenhum! — exclamou Mundico.
— É porque não estais em estrada alguma! — insisti. — Estais em um hospital!
— Mais num pode! — relutou Mundico.
— Então, sugeri que deixasse de pensar na estrada e tentasse se concentrar somente nos objetos que havia em seu entorno.
Finalmente, as sinapses acionaram seus nervos oftálmicos. Por alguns minutos, Mundico olhou fixamente o frasco de soro sobre a sua cama. Logo, de seus olhos esbugalhados brotaram lágrimas. Depois, saltou da cama arrebentando o escalpe que lhe prendia ao soro, ganhou o corredor do hospital, e saiu atabalhoadamente gritando pelo nome da mãe.
Apesar de convalescente, foram necessários três enfermeiros para contê-lo e depois sedá-lo. Durante a noite, após ingerir algumas doses de medicamentos psiquiátricos, Mundico dobrou-se àquela realidade.
— Seu Anjo da Guarda? Cê ainda tá na minha cabeça?
Eu não podia acreditar no que estava escutando, Mundico aceitara a ideia de que eu, realmente, era o seu Anjo da Guarda. Não me sentia tão feliz desde o dia de minha formatura em Andrômeda.
— Sim, Mundico! Estarei sempre com você — respondi.
— Intão, Seu Anjo, quero pedi um favor, do fundo do meu coração.
— Pode pedir, Mundico.
— Quero que o sinhô me ajude a vortá pra Mutamba.
— Será um longo caminho — adverti. — Mas para que isso aconteça, você deverá seguir todas as minhas orientações.
p. 55— Pode dêxá, meu anjo da guarda. Vô fazê tudo o que o sinhô mandá. Se o sinhô quisé, posso inté rezá umas Ave Maria. É só mandá.
— Não Mundico — respondi. — Não tem que se preocupar com rezas.
— Mais que tipo de anjo é o sinhô, que num gosta de reza?! — Perguntou-me confuso.
Tentei responder-lhe.
— Mais importante que as rezas, Mundico, são suas boas ações e intenções. Essas sim são as verdadeiras rezas que os anjos gostam de escutar!
— Ah, Bão! Nesse caso o sinhô tá certo. A mãe sempre falô pra eu praticá boas ação, respeitá os mais véi, essas coisa que o sinhô tá inté cansado de iscuitá, num é memo seu Anjo? Me adisculpa perguntá, seu anjo, mais qual é o seu nome?
— Pode me chamar de Bolon.
— Ingraçado... Nunca uvi falá de nenhum São Bolon!
— No céu, Mundico, há uma legião de anjos. Não dá para saber o nome de todos. Concorda?
— O sinhô tá certo. Inté acho que já tô incomodano o Anjo cum tanta pergunta, num é mesmo?
— Não mesmo — respondi. — Sinta-se a vontade para me perguntar sobre qualquer coisa.
Naquele mesmo instante, a enfermeira do turno da manhã adentra o quarto. Como de costume, faz sempre os mesmos comentários.
— Bom dia, Sr. Raymundo! Está um belo dia, não acha?
— Agora, Mundico, vamos fazer um teste — disse a ele. — Vou pensar e você vai responder à enfermeira exatamente como eu pensei. Entendeu?
— Entendi — respondeu Mundico.
— Bom dia tamém, infermêra. O São Bolon disse que a sinhora tá muito bonita hoje.
A enfermeira ficou boquiaberta. Depois, se refez, deixou o café da manhã sobre a cama, e se retirou do quarto.
— São Bolon? O que o sinhô achô, fiz tudo direitin?
— Você foi genial, Mundico! — eu não podia decepcioná-lo naquele momento. — Você só não deveria ter dito o meu nome a ela. Você viu como ela ficou assustada?
— Num tô intendeno, São Bolon. O sinhô num acabô de falá pra eu respondê a infermêra cum os seus pensamento?
— Sim, Mundico, mas você não pode dizer às pessoas que sou eu quem está pensando para você falar. As pessoas podem pensar que você está louco. Compreendeu?
— Ah! Agora intendi. Tudo que o sinhô pensá dento da minha cabeça, eu vô falá pras pessoa de um jeito que elas vai pensá que sô eu que tá falando.
— Isso mesmo, Mundico! Você entendeu tudo direitinho.
Alguns instantes depois, a enfermeira retorna ao quarto acompanhada do médico de plantão.
— Doutor Goulart, poderia observar o paciente Raymundo?
— Sim, enfermeira. O que está havendo com o ele?
— Disse a ele que estava um belo dia e ele me respondeu com muita lucidez.
— Bem, vamos ver — disse o médico sugerindo à enfermeira que fizesse outra pergunta ao paciente.
A enfermeira franziu a testa e perguntou:
— Sr. Raymundo, o café da manhã estava bom?
— Tava bão dimais da conta! A senhora é muito gentil, mais eu queria mêmo era uma farofinha de tatu.
p. 56— Muito obrigada, Sr. Raymundo! Eu entendo o seu desejo, mas, em hospitais, não pode haver pratos exóticos no cardápio — disse a enfermeira disfarçando um sorriso.
— Qual é a sua opinião, Dr. Goulart? — perguntou a enfermeira ao médico.
— Achei realmente incrível, enfermeira. Principalmente em se tratando de um paciente com um quadro tão grave de perda de consciência. Vou relatar isso ao Dr. Giovanni — acrescentou Dr. Goulart.
— E agora, São Bolon, cumé que eu fui? — perguntou-me Mundico.
— Você se saiu muito bem, Mundico! Foi exatamente como havíamos planejado. Mas, e aquela história de farofa de tatu? Eu não pensei aquilo!
— Se o sinhô pensô, ou num pensô, eu num sei, mais quano a infermêra falô em cumida, eu me alembrei na mêma hora da farofinha de tatu.
Era realmente incrível o que estava acontecendo. A mente de Mundico, de alguma maneira, se interconectou à minha. Ele reproduz meus pensamentos e, ao mesmo tempo, acessa fragmentos de memória em seu hipocampo cerebral. Assim, passei o resto do dia conversando com Mundico. Ele me contava interessantes histórias de sua juventude em Mutamba. Pena que eu não podia contar-lhe sobre a minha juventude em Andrômeda. Talvez, um dia, ele esteja preparado para ouvir-me contar.
Animado com o relatório que o plantonista deixara com a enfermeira, Dr. Giovanni nos visitou bem mais cedo que de costume.
— Boa noite, Sr. Raymundo! Recebi ótimas notícias sobre você, é verdade?
— É isso mêmo que o dotô uviu. Eu já tô é bão, e doido pra vortá pra Mutamba. Tô numa vontade danada de vê minha mãe, e jogá sinuca na venda do Seu Zoín.
— Sr. Raymundo, é inacreditável vê-lo assim, tão lúcido!
Mais uma vez, a última parte da resposta de Mundico fora de livre arbítrio.
— Quano é que o sinhô vai liberá eu pra í imbora? — perguntamos ao Dr. Giovavanni.
— Tenha calma, Sr. Raymundo. Precisaremos submetê-lo a mais alguns exames, até termos a certeza de que essa sua belíssima lucidez seja algo, realmente, consolidado. Bem, agora vou deixá-lo descansar. Fique com Deus e até amanhã.
— Inté manhã, dotô — respondeu Mundico.
A semana que se seguiu foi bem movimentada, Mundico foi submetido a diversos exames radiográficos, tomou banho de sol e conversou com psiquiatras. Certa noite, perambulando pelos corredores do hospital, Mundico entrou em uma pequena sala onde alguns médicos se encontravam para um “cafezinho”, enquanto cumpriam seus horários de plantão. Como Mundico já era um paciente bastante conhecido por toda a equipe, os médicos o convidaram para entrar. Mundico entrou, aceitou uma xícara de café, agradeceu, e sentou-se junto a eles. Um dos médicos, na tentativa de “quebrar o gelo” daquele enfadonho plantão, aproveitou a presença de Mundico e dirigiu-lhe um questionamento em tom de anedota:
p. 57— Raymundo? Estávamos a pouco discutindo sobre o brilho das estrelas e chegamos à conclusão de que elas, para economizar luz, se apagam durante o dia e voltam a se acender durante a noite. Sendo você, Raymundo, um morador do sertão, onde o céu é tão estrelado, o que você acha disso?
Os médicos presentes não se aguentaram de tanto rir da piada que o colega fizera a Mundico. Ouvindo atentamente a pergunta, Mundico se levantou e respondeu-lhe:
— Dotô, num quero istragá a sua concrusão e dos seus colega, mais ocêis tá teno só uma ilusão de ótica. Na verdade, dotô, as istrela num pricisa se apagá durante o dia pra economizá lúiz, causo que as superfice delas é capáiz de irradiá luz e calor o tempo todo, pro causa das rearção nuclear que faíz elas produzi energia térmica. Tudo isso, Dotô, é muito fáci de indendê: As istrela consegue absorvê toda a radiação que chega nelas, causo que elas são um tipo de gáis cum uma temperatura e pressão tão arta que num dêxa os fótons do núcleo e da camada radioativa iscapá. Intão, dotô, as lúiz das istrela vem da própria radiação delas. Ôta coisa, dotô, num fica percupado não porque ocêis já tem uma equação que exprica esse fenômio.
É uma equação muito facinha, óia só, dá um pedaço de papel aí que vô mostrá procêis.
Assim, Mundico começou a rabiscar sobre uma folha de papel que um dos médicos lhe dera:
— W= σ T4, onde σ tem o valor de 5,6697 x10-8 W/m2K4.m.
Após terminar, disse aos médicos:
— Pronto. Num falei procêis que era facin!
Diante daquilo, os médicos se emudeceram e, um a um, foram deixando a pequenina sala do café. No dia seguinte, como resposta àquela equação, os médicos sugeriram mais uma bateria de exames a qual Mundico precisou passar. Contudo, após esgotarem todas as hipóteses, concluíram que Mundico, durante o pós-operatório, devido a um processo natural de reestruturação da memória, algo que lera no passado ou ouvira de um programa de televisão, transformou-se num tipo de lembrança cristalizada que aflora em circunstâncias específicas da vida, da mesma maneira como ocorre com os traumas de infância.
Porém, o que aqueles médicos não sabiam, e nem podiam saber, é que partes específicas do cérebro de Mundico haviam se conectado a minha mente por meio de uma ponte telepática. Assim, em face de uma situação extrema, ou mesmo durante o sono, sua mente era capaz de acessar meu hipocampo cerebral em busca de soluções para problemas, como no caso daquela equação.
p. 58Os dias transcorreram sem maiores novidades. Mundico não apresentava nenhum sinal de debilidade física ou mental. Ao contrário, sentia-se forte e procurava gastar a maior parte do seu tempo no pátio externo do hospital. Como os médicos já não viam mais razões para continuar mantendo Mundico internado, finalmente, resolveram lhe dar a tão sonhada alta.
— Raymundo? Chegou a hora de nos despedirmos — prosseguiu Dr. Giovanni. — Quero que saiba que você foi um dos casos mais incríveis de recuperação que esse hospital já presenciou. Em nome de toda a equipe desta ala, quero apertar a sua mão e dizer que estaremos torcendo pelo seu sucesso. Neste envelope, há uma série de papéis que você deve encaminhar ao departamento pessoal da empresa onde você trabalha. Neles, você verá que tomei o cuidado de recomendar certas limitações funcionais, devido à gravidade de seu acidente. No mais, você poderá levar uma vida normal, como qualquer pessoa que conhece.
Estávamos ansiosos para, finalmente, seguirmos o nosso caminho. Então, abraçamos, carinhosamente, o Dr. Giovanni, e também a enfermeira Suely.
— Sô muito grato por tudo. Nunca vô isquecê o que ocêis fizero por mim — disse Mundico emocionado.
— Agora que está deixando o hospital — perguntou a enfermeira —, qual é a primeira coisa que pretende fazer?
— Quero revê minha gente lá de Mutamba, e dispois vô tentá estabelecê contato cum as pessoa de Andrômeda.
Após ouvir Mundico, a enfermeira coçou a cabeça, olhou para o Dr. Giovanni, e os dois caíram na gargalhada.