O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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O bicéfalo

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Estou escutando vozes! Quem está aí? Os sons me chegavam de forma lenta e incompreensível. Então, começo a enxergar algumas imagens disformes e embaçadas.

A possibilidade mais lógica, pensei, seria a de Mundico estar vivo e eu ainda ligado ao seu corpo, mas, por que não consigo captar nenhum de seus pensamentos?

Passei horas, talvez dias, vendo apenas um teto branco, e nele uma luz dependurada. Vez em quando, uma mulher, cujo rosto eu não conseguia enxergar com nitidez, se aproximava e pingava um tipo de líquido sobre os meus olhos, mas os pensamentos de Mundico ainda estavam ausentes de minha mente.

Todos os dias eram absolutamente iguais: uma enfermeira abria as janelas do quarto deixando a luz entrar; depois, substituía o frasco de soro; verificava a sonda urinária; fazia algumas anotações em uma prancheta e dizia: “Bom dia, Sr. Raymundo! Está um belo dia, não acha?”. Logo descobri que ainda estava em Mundico e que ele estava em um hospital.

Uma vez, a cada dois dias, o médico nos faz uma ligeira visita, vê o que diz a prancheta da enfermeira, depois nos dá dois tapinhas no ombro dizendo:

Num desses dias, que parecia ser igual aos demais, a enfermeira nos diz:

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Quem poderia ser? Pensei. Então, alguém se aproxima e, por alguns minutos, se mantém estático bem de frente a cama. Seu rosto me parecia familiar... Até que ele falou:

Era o primo Ranufo. Devido ao uso de barbas e de um boné que caía sobre a testa, quase não pude reconhecê-lo.

Neste momento, a enfermeira interrompeu Ranufo chamando pelo médico.

Então, decidi eu mesmo fazer um teste. Pensei em piscar duas vezes o olho direito de Mundico.

Esperei alguns segundos para me certificar se Mundico seria capaz de respondê-lo, mas ele não respondeu. Então, resolvi eu mesmo responder.

Vendo aquilo, o próprio médico resolveu fazer os testes.

Prontamente, fiz como o médico pediu.

Imediatamente, dedilhei o lençol que cobria a cama. O médico ficou pasmado.

Enquanto isso, o médico prosseguiu com os testes.

Mexi o pé direito.

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Respondi imediatamente movimentando os pés para frente e para trás.

Passado alguns minutos, o Diretor do hospital adentra o quarto.

Não apenas mexi os membros solicitados como também disse ao Dr. Giovanni:

Após escutarem a voz de Mundico, ficaram literalmente paralisados. Logo, outros médicos foram chamados para presenciar tal acontecimento. Fotos foram tiradas e fomos submetidos a vários exames radiográficos.

Embora eu pudesse, telepaticamente, provocar o restabelecimento da comunicação neural no cérebro de Mundico, coordenando, assim, seus movimentos, nenhum de seus pensamentos ainda havia me chegado. Mas, como o seu corpo ainda estava muito debilitado para fazer algo mais do que pequenos movimentos de membros e balbuciar palavras, decidi esperar sua reabilitação física antes de tentar uma comunicação com aquele cérebro já tão danificado.

Passei as três semanas seguintes limitando os impulsos de Mundico ao mínimo necessário, ou seja, fazendo estritamente aquilo que a equipe médica requeria. Na quarta semana já consegui coordenar o corpo de Mundico levando-o a pequenas incursões ao banheiro do quarto. Por conta dessa proeza, Dr. Giovanni mudou o regime alimentar de Mundico, oferecendo-lhe alimentos sólidos. Após alguns dias, a enfermeira decidiu levar-nos para pequenas caminhadas pelos corredores do hospital e também para breves banhos de sol. Contudo, me incomodava o fato de ainda não ter conseguido captar nenhum pensamento de Mundico. Sua mente ainda estava em estado letárgico.

A recuperação física de Mundico estava sendo rápida. Os ferimentos cirúrgicos já estavam cicatrizados, e o Dr. Giovanni já comentava com a enfermeira sobre a sua alta.

Mundico soltou um berro durante a noite. Essa era a prova de que seu cérebro recomeçara a pensar.

A enfermeira entrou rapidamente no quarto.

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Durante horas, Mundico berrou o nome de Mariscley. Depois, começou a se debater e dizer frases desconexas. Em consequência, o médico de plantão teve que sedá-lo. Nos dias que se seguiram, Mundico continuou a apresentar graves distúrbios de consciência. Tal quadro causou grande decepção ao Dr. Giovanni e a toda sua equipe. O prognóstico de alta tornara-se, então, reservado.

Percebi que estava diante do meu primeiro grande dilema, desde que havia chegado a este planeta. Deveria intervir na mente de Mundico, ou deixá-lo naquele estado de confusão mental? Passei dias, talvez semanas, refletindo sobre qual caminho deveria tomar. Até que então, lembrei-me da frase do poeta: “Não há caminho. Faz-se o caminho ao andar”.

Assim, tentei o primeiro diálogo com a consciência de Mundico.

A repulsa foi a sua primeira reação. Mesmo assim, era animador o fato de ter podido restabelecer a comunicação entre a minha mente e a dele.

Naquele momento percebi que seria muito difícil fazê-lo entender. Apesar disso, continuar tentando era tudo o que me restara; eu só precisava encontrar o caminho certo. Compreendi, então, que se eu continuasse com a estratégia de tentar fazê-lo entender aquela realidade, a partir do meu próprio ponto de vista, corria o risco de receber em troca somente a sua repulsa. Neste caso, os médicos, certamente, apresentariam um diagnóstico de esquizofrenia, aconselhando que Mundico fosse devolvido a sua família para ser tratado como um “desmiolado”, ou encaminhado a um manicômio pelo resto de sua vida.

Depois de muito refletir, conclui que a melhor estratégia seria a de desafiá-lo a partir de seu próprio mundo. Então, voltei a minha atenção para dentro de seu universo cultural. Logo, encontrei no interior de seu imaginário social, uma série de elementos capazes de motivar sentimentos tanto de repulsa como de admiração, como por exemplo, vermes; assombrações; chupa-cabras; cobras, anjos da guarda; família; farofa de tatu; festa de S. Sebastião; Mariscley, e assim por diante. Em linhas gerais, os anjos da guarda eram os mais admirados. Assim, optei por metamorfosear-me em um anjo da guarda.

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Transcorrido o tempo, perguntei-lhe:

Transcorrido mais quinze minutos, voltei a perguntá-lo:

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Passamos horas repetindo as mesmas coisas um para o outro. Até que decidi desafiá-lo:

Assim, continuei insistindo naquela pergunta até que me cansei de obter sempre a mesma resposta.

Dito aquilo, Mundico silenciou-se. Então, aproveitei o seu silêncio para conectar-lhe ao mundo exterior.

Ajudando-o com a transmissão das sinapses, Mundico tocou a sua cabeça.

Felizmente, minha insistência abalara as convicções de Mundico. Era o sinal de que algumas “portas” de seu cérebro estavam se abrindo.

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Finalmente, as sinapses acionaram seus nervos oftálmicos. Por alguns minutos, Mundico olhou fixamente o frasco de soro sobre a sua cama. Logo, de seus olhos esbugalhados brotaram lágrimas. Depois, saltou da cama arrebentando o escalpe que lhe prendia ao soro, ganhou o corredor do hospital, e saiu atabalhoadamente gritando pelo nome da mãe.

Apesar de convalescente, foram necessários três enfermeiros para contê-lo e depois sedá-lo. Durante a noite, após ingerir algumas doses de medicamentos psiquiátricos, Mundico dobrou-se àquela realidade.

Eu não podia acreditar no que estava escutando, Mundico aceitara a ideia de que eu, realmente, era o seu Anjo da Guarda. Não me sentia tão feliz desde o dia de minha formatura em Andrômeda.

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Tentei responder-lhe.

Naquele mesmo instante, a enfermeira do turno da manhã adentra o quarto. Como de costume, faz sempre os mesmos comentários.

A enfermeira ficou boquiaberta. Depois, se refez, deixou o café da manhã sobre a cama, e se retirou do quarto.

Alguns instantes depois, a enfermeira retorna ao quarto acompanhada do médico de plantão.

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Era realmente incrível o que estava acontecendo. A mente de Mundico, de alguma maneira, se interconectou à minha. Ele reproduz meus pensamentos e, ao mesmo tempo, acessa fragmentos de memória em seu hipocampo cerebral. Assim, passei o resto do dia conversando com Mundico. Ele me contava interessantes histórias de sua juventude em Mutamba. Pena que eu não podia contar-lhe sobre a minha juventude em Andrômeda. Talvez, um dia, ele esteja preparado para ouvir-me contar.

Animado com o relatório que o plantonista deixara com a enfermeira, Dr. Giovanni nos visitou bem mais cedo que de costume.

Mais uma vez, a última parte da resposta de Mundico fora de livre arbítrio.

A semana que se seguiu foi bem movimentada, Mundico foi submetido a diversos exames radiográficos, tomou banho de sol e conversou com psiquiatras. Certa noite, perambulando pelos corredores do hospital, Mundico entrou em uma pequena sala onde alguns médicos se encontravam para um “cafezinho”, enquanto cumpriam seus horários de plantão. Como Mundico já era um paciente bastante conhecido por toda a equipe, os médicos o convidaram para entrar. Mundico entrou, aceitou uma xícara de café, agradeceu, e sentou-se junto a eles. Um dos médicos, na tentativa de “quebrar o gelo” daquele enfadonho plantão, aproveitou a presença de Mundico e dirigiu-lhe um questionamento em tom de anedota:

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Os médicos presentes não se aguentaram de tanto rir da piada que o colega fizera a Mundico. Ouvindo atentamente a pergunta, Mundico se levantou e respondeu-lhe:

É uma equação muito facinha, óia só, dá um pedaço de papel aí que vô mostrá procêis.

Assim, Mundico começou a rabiscar sobre uma folha de papel que um dos médicos lhe dera:

Após terminar, disse aos médicos:

Diante daquilo, os médicos se emudeceram e, um a um, foram deixando a pequenina sala do café. No dia seguinte, como resposta àquela equação, os médicos sugeriram mais uma bateria de exames a qual Mundico precisou passar. Contudo, após esgotarem todas as hipóteses, concluíram que Mundico, durante o pós-operatório, devido a um processo natural de reestruturação da memória, algo que lera no passado ou ouvira de um programa de televisão, transformou-se num tipo de lembrança cristalizada que aflora em circunstâncias específicas da vida, da mesma maneira como ocorre com os traumas de infância.

Porém, o que aqueles médicos não sabiam, e nem podiam saber, é que partes específicas do cérebro de Mundico haviam se conectado a minha mente por meio de uma ponte telepática. Assim, em face de uma situação extrema, ou mesmo durante o sono, sua mente era capaz de acessar meu hipocampo cerebral em busca de soluções para problemas, como no caso daquela equação.

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Os dias transcorreram sem maiores novidades. Mundico não apresentava nenhum sinal de debilidade física ou mental. Ao contrário, sentia-se forte e procurava gastar a maior parte do seu tempo no pátio externo do hospital. Como os médicos já não viam mais razões para continuar mantendo Mundico internado, finalmente, resolveram lhe dar a tão sonhada alta.

Estávamos ansiosos para, finalmente, seguirmos o nosso caminho. Então, abraçamos, carinhosamente, o Dr. Giovanni, e também a enfermeira Suely.

Após ouvir Mundico, a enfermeira coçou a cabeça, olhou para o Dr. Giovanni, e os dois caíram na gargalhada.