O GIRO DE BOLON • ISBN: 978-65-86422-44-3
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Entrementes

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Mundico continuava morando no alojamento da companhia, e com a economia que fizera conseguiu comprar uma motocicleta de segunda mão.

Após algumas léguas por uma estrada poeirenta, Mundico e Tiãozinho chegaram a tal venda.

Com um grito, Zoín chama alguém para auxiliá-lo:

De um dos cômodos de fundo do velho barracão surge uma moça de cabelos longos, olhos espertos e com um grande sorriso.

O chão da venda era de terra batida a nas paredes sem reboco, fotos de mulheres de biquíni disputavam o espaço com cartazes de times de futebol e um quadro de Nossa Senhora.

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Sobre um longo e desgastado balcão de madeira, além de rolos de fumo, se enfileiravam garrafas de cachaça contendo raízes, sementes, frutos do campo e até serpentes. Sobre a empoeirada mesa de sinuca dormia o gato do Sr. Zoín, que fora abruptamente despertado com o barulho das bolas de bilhar rolando em sua direção.

Mariscley se aproxima trazendo uma garrafa de cerveja e dois copos.

Embalados pela cerveja, Mundico e Tiãozinho disputavam as partidas com grande entusiasmo. Mariscley, debruçada sobre o balcão, assistia ao jogo disfarçando um sorriso brejeiro. Mundico procurava manter um olho no jogo e outro em Mariscley. Esvaziava as garrafas, o mais rápido que podia, só para ter a moça por perto trazendo-lhe outra, outra e mais outra cerveja.

Ao perceber os olhares de Mundico e de Mariscley se cruzando entre uma cerveja e outra, Sr. Zoín, que além de dono da venda, também era o pai da moça, sentenciou:

Percebendo a irritação do Sr. Zoín, Tiãozinho sugeriu ao amigo:

Amedrontado pelo semblante nada hospitaleiro do pai da moça, Tiãozinho toma a iniciativa:

Com muito custo, Tiãozinho convence Mundico a ir embora. Os dois saem acelerados em direção à cidade.

A estrada havia sido recentemente alargada e nivelada pela própria Eucaliptal, a fim de escoar a madeira produzida em seus campos de reflorestamento.

Devido à quantidade de álcool ingerido, Mundico perdera o medo e quanto mais Tiãozinho pedia a ele que diminuísse a velocidade, mais rápido ele seguia.

Mundico não dava a mínima para os apelos do amigo. Seu pensamento estava fixo na filha do Sr. Zoín.

Até que Tiãozinho soltou um grito desesperado:

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Quando Mundico percebeu a presença do caminhão, já era tarde demais. Colidimos violentamente contra aquela muralha de latas. Tiãozinho foi arremessado para além da cerca que acompanhava a estrada e Mundico chocou-se diretamente contra a fuselagem do caminhão.

Após o impacto não ouvi, enxerguei, ou senti coisa alguma, além de um frio cortante. Depois, uma terrível sensação de vazio me invadiu a alma. Só conseguia pensar que não podia pensar, era como ser uma pedra, só uma pedra...

Subitamente, minha mente é inundada por um turbilhão de rápidas lembranças da vida de Mundico: o caminhão do Seu Mixirico, Osório, primo Ranufo, tia Elvira, tio Zelito, o cachorro Linguira, o cavalo Tramela e sua mãe, Dona Maria, penteando-lhe o cabelo enquanto ele chorava.

Espere! Aquela lembrança pertencia à infância de Mundico! Como eu poderia me lembrar de uma cena anterior a minha chegada a este planeta?

Então, meus pensamentos entraram em pânico. Quem eu era afinal?! Apenas um jovem camponês imaginando ser Bolon Yokte K’uh, um viajante das estrelas? E todas aquelas lembranças que eu guardo de Andrômeda? E toda a minha formação?

E meus amigos de treinamento? E o grande líder Kukulkán e Mestre Tepeu? Por que não consigo abrir os olhos? Por que não escuto? Estou morto, ou louco?!

Ah! Uma luz! Estou vendo uma luz. Bem longe, uma pequenina luz de cor azulada no meio da escuridão. Mas, como posso enxergar uma luz e não ver a mim mesmo?

A luz então se aproxima, avoluma-se, e emite centelhas luminosas de infinitas cores. Belíssima!

Então, pensei, “se esta criatura luminescente está tão segura quanto ao que sou, é porque ela pode me ver. Assim, se ela descrever a minha forma, poderei saber o que sou, ou pelo menos, o que eu estou sendo para ela”. Imediatamente perguntei-lhe:

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Diante daquele embaraço, só me restava uma única alternativa: fazer uso do poder que aquele próprio ser acabara de me conferir.

Essa última resposta me deixou atônito. Não estaria aquele ser de luz enxergando sobre a minha cabeça apenas o chapéu de palha de Mundico? Se isso for verdade, continuo sendo o Mundico! Neste caso, este ser só está me confundindo com alguém de muita importância em seu mundo.

Até aquele momento, pouco, ou nenhum sentido fizeram aquelas respostas. Talvez, pensei, com esta última, conseguirei saber se ainda estou, ou não, ligado à mente de Mundico; e se esse tal Ichik existe, ou se é apenas uma criação da mente delirante de Mundico. Assim, continuou Ichik:

Aquela resposta também não proporcionara nenhum avanço. Então, já pouco esperançoso, decidi não mais lhe indagar sobre o seu mundo, mas sobre a sua vida particular.

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E quando as promessas não se cumpriam, construíam mais templos em louvor aos deuses, e provocavam mais guerras para obtenção de escravos destinados ao sacrifício sagrado. Alguns reis, nem mais se pareciam humanos, tornaram-se tão bizarros que se alimentavam do sangue e das vísceras dos escravos sacrificados. A população faminta e doente não entendia por que os deuses ficaram ausentes. Por fim, os habitantes de Copán, por não acreditarem mais em seus reis, e por não encontrarem mais condições de sobrevivência foram, um a um, abandonando a região. Desde então, meu Lorde, vago pelas sombras ansiando o glorioso dia de seu retorno.

Após o Sr. Ichik ter me detalhado toda aquela sua infortunada trajetória de vida, tive dúvidas quanto à possibilidade de a mente de Mundico ter podido reproduzir todo aquele universo. Mas, se tudo aquilo não está na imaginação de Mundico, seria então, fruto da minha própria imaginação? Mas como solucionar esse mistério? Só há uma maneira de saber, pensei.

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Imediatamente, a luz foi lentamente se afastando, até desaparecer na escuridão. Isso me levou a crer que o Sr. Ichik não fazia parte, nem da minha imaginação e nem da de Mundico. Mas, se isso for verdade, onde realmente estou? Em alguma parte subterrânea da mente de Mundico, ou em algum tipo de universo paralelo? Como sairei daqui?

Algum tempo depois, notei que outra luz se aproximava. Seria o Sr. Ichik novamente? Então, seu brilho tornou-se intenso, embora menos colorido que da primeira vez.

Não conseguia compreender o que aquele outro ser de luz queria me dizer, embora nutrisse a esperança de que a sua presença poderia proporcionar-me algum entendimento sobre aquela estranha situação, já que as informações dadas pelo Sr. Ichik pouco me foram úteis. Então, perguntei-lhe:

Ele me chamou de Sr. Carnaval. Isso me fez lembrar o Sr. Ichik e toda aquela sua história de Jaguar das estrelas, meu Lorde etc. Mas, por que razão ele me perguntaria sobre como eu havia conseguido chegar neste lugar vestido de tal maneira? Isso só poderia significar que ele não apenas pode me ver como também sabe onde estamos. Então, comecei a interrogá-lo:

Ao contrário do melancólico Sr. Ichik, esse Sr. Eduardo parecia ser bastante animado. Assim, continuei com as perguntas:

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Naquele momento, percebi que estava diante de um ser ainda mais estranho.

O Sr. Eduardo parecia não conseguir me compreender. Então, resolvi explicar com mais detalhes:

Ele agora parecia mais estranho ainda. Contudo, aquela história de “estado de animação suspensa criogênica” poderia ser a chave para esclarecer todo esse drama; apenas tínhamos que melhorar a nossa forma de comunicação. Assim, tentei fazer-lhe outra pergunta:

Realmente, ele não queria mais se comunicar. Mas, eu não podia continuar ali, sem saber o que estava acontecendo. Foi então que tive outra ideia, tentar a telepatia. Embora Tepeu já tivesse me advertido sobre o fato de que os terráqueos ainda não haviam desenvolvido a comunicação telepática, pensei ser uma solução. Então, concentrei-me.

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Em seguida, relatei ao Sr. Eduardo o que passara em sua mente.

Aquela sua resposta parecia ser a minha oportunidade de acessar o seu mundo. Então, o provoquei:

Assim, ele pôs-se a contar.

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Como eu poderia saber se aquela história de Eduardo não seria apenas uma projeção da mente delirante de Mundico, a qual a minha ainda estava integrada?

A única maneira de saber, pensei, seria continuar explorando a memória de Eduardo por meio de perguntas.

No meu caso, minha capacidade avaliada qualificou-me para trabalhar no Ministério da Reciclagem, órgão do governo encarregado de reaproveitar praticamente todas as coisas que usamos para sobrevivermos em nosso planeta. Após dez anos trabalhando no setor de reciclagem de metais, fui transferido para a IUCWF, International Union for the Control of Water and Forests. Trata-se de um órgão internacional criado pelas seis corporações mais poderosas do mundo. Essas corporações possuem um poderoso exército e a sua principal atividade consiste em proteger e controlar os principais mananciais de água e reservas florestais que ainda restam em nosso planeta.

Interrompi aquela interessante parte da história de Eduardo para perguntar-lhe se possuía esposa e filhos. Precisava continuar fazendo-lhe perguntas, pois isso me proporcionaria certo controle sobre a ordenação de suas lembranças.

Aquela história de Eduardo, pensei, era muito bem estruturada para ser um delírio mental de Mundico. Mesmo assim, julguei útil continuar fazendo-lhe perguntas.

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Se Eduardo e sua história forem mesmo reais, concluí, tem a ver com a minha capacidade telepática. Aleatoriamente, conectei-me à mente de Eduardo despertando-o de seu sono criogênico. Mas, será que ele conserva as lembranças de todas as vezes que já esteve sob estado de animação suspensa? Então decidi perguntar-lhe.