— Tô picano a mula! Quem quisé í pra cidade, vambora! — anunciou Mundico aos companheiros, após uma dura semana de trabalho.
— Intão vô pegá uma carona cum ocê — se antecipou Tiãozinho, um dos companheiros de Mundico.
Mundico continuava morando no alojamento da companhia, e com a economia que fizera conseguiu comprar uma motocicleta de segunda mão.
— Tiãozinho? Vamo pará na venda do Seu Zoín pruma partidinha de sinuca? — perguntou Mundico ao amigo.
— Vamo, uai! — aprovou Tiãozinho.
Após algumas léguas por uma estrada poeirenta, Mundico e Tiãozinho chegaram a tal venda.
— Tá bão Seu Zoín?
— Bão! — respondeu o dono da venda. Um homem moreno, de baixa estatura e completamente estrábico.
Com um grito, Zoín chama alguém para auxiliá-lo:
— Mariscley? Vem ligêro, minina! Vem atendê os freguêis.
De um dos cômodos de fundo do velho barracão surge uma moça de cabelos longos, olhos espertos e com um grande sorriso.
— O que ocêis vão querê? — perguntou a moça sorridente.
— Nóis queremo tomá uma cerveja e jogá umas partida de sinuca — respondeu Tiãozinho.
— As ficha tão dento daquela cuia e os taco eu vô panhá procêis — disse o Sr. Zoín.
— Mariscley? Traíz uma cerveja prôs rapaiz aqui — ordenou Zoín.
O chão da venda era de terra batida a nas paredes sem reboco, fotos de mulheres de biquíni disputavam o espaço com cartazes de times de futebol e um quadro de Nossa Senhora.
p. 38Sobre um longo e desgastado balcão de madeira, além de rolos de fumo, se enfileiravam garrafas de cachaça contendo raízes, sementes, frutos do campo e até serpentes. Sobre a empoeirada mesa de sinuca dormia o gato do Sr. Zoín, que fora abruptamente despertado com o barulho das bolas de bilhar rolando em sua direção.
Mariscley se aproxima trazendo uma garrafa de cerveja e dois copos.
— Brigado Mariscley! — agradeceu Mundico com ar de felicidade.
— Di nada! Qualqué coisa é só chamá — respondeu a moça.
Embalados pela cerveja, Mundico e Tiãozinho disputavam as partidas com grande entusiasmo. Mariscley, debruçada sobre o balcão, assistia ao jogo disfarçando um sorriso brejeiro. Mundico procurava manter um olho no jogo e outro em Mariscley. Esvaziava as garrafas, o mais rápido que podia, só para ter a moça por perto trazendo-lhe outra, outra e mais outra cerveja.
Ao perceber os olhares de Mundico e de Mariscley se cruzando entre uma cerveja e outra, Sr. Zoín, que além de dono da venda, também era o pai da moça, sentenciou:
— Mariscley?!
— Sinhô, meu pai!
— Cê já ajudô dimais da conta! Agora entra pra dento e vai caçá ôta coisa pra fazê. Dêxa que agora eu tomo conta desses dois.
Percebendo a irritação do Sr. Zoín, Tiãozinho sugeriu ao amigo:
— Intão, vambora, né Mundico?!
— Agora que tá ficano bão Tiãozinho! — respondeu Mundico relutante.
Amedrontado pelo semblante nada hospitaleiro do pai da moça, Tiãozinho toma a iniciativa:
— Intão, Seu Zoín, toma aqui os taco, foi bão dimais da conta, inté mais vê e anota as dispesa na nossa conta — puxando Mundico pelo braço, Tiãozinho conseguiu levá-lo até a motocicleta.
— Péra aí Tiãozinho, eu tenho que falá tchau pra Mariscley!
— Cê tá doido Mundico?! Seu Zoín tá uma onça...
Com muito custo, Tiãozinho convence Mundico a ir embora. Os dois saem acelerados em direção à cidade.
A estrada havia sido recentemente alargada e nivelada pela própria Eucaliptal, a fim de escoar a madeira produzida em seus campos de reflorestamento.
— Mundico, cê num acha que nóis tamo ino dipressa dimais?
— Dêxa de cê cagão Tiãozinho! Eu sei pilotá esse troço aqui.
Devido à quantidade de álcool ingerido, Mundico perdera o medo e quanto mais Tiãozinho pedia a ele que diminuísse a velocidade, mais rápido ele seguia.
— Mundico!!! — implorava Tiãozino. — Pelo amor de Deus, para essa bosta que eu quero decêêÊ!!
Mundico não dava a mínima para os apelos do amigo. Seu pensamento estava fixo na filha do Sr. Zoín.
— Sabe o que eu vô fazê Tiãozinho? Vô dexá ocê na cidade e vô vortá lá na venda só pra vê a Mariscley.
— Ocê pode fazê o que ocê quizé! — gritava Tiãozinho. — Mais primêro, dêxa eu descê daqui!!
Até que Tiãozinho soltou um grito desesperado:
— Óia o caminhão!!!
p. 39Quando Mundico percebeu a presença do caminhão, já era tarde demais. Colidimos violentamente contra aquela muralha de latas. Tiãozinho foi arremessado para além da cerca que acompanhava a estrada e Mundico chocou-se diretamente contra a fuselagem do caminhão.
Após o impacto não ouvi, enxerguei, ou senti coisa alguma, além de um frio cortante. Depois, uma terrível sensação de vazio me invadiu a alma. Só conseguia pensar que não podia pensar, era como ser uma pedra, só uma pedra...
Subitamente, minha mente é inundada por um turbilhão de rápidas lembranças da vida de Mundico: o caminhão do Seu Mixirico, Osório, primo Ranufo, tia Elvira, tio Zelito, o cachorro Linguira, o cavalo Tramela e sua mãe, Dona Maria, penteando-lhe o cabelo enquanto ele chorava.
Espere! Aquela lembrança pertencia à infância de Mundico! Como eu poderia me lembrar de uma cena anterior a minha chegada a este planeta?
Então, meus pensamentos entraram em pânico. Quem eu era afinal?! Apenas um jovem camponês imaginando ser Bolon Yokte K’uh, um viajante das estrelas? E todas aquelas lembranças que eu guardo de Andrômeda? E toda a minha formação?
E meus amigos de treinamento? E o grande líder Kukulkán e Mestre Tepeu? Por que não consigo abrir os olhos? Por que não escuto? Estou morto, ou louco?!
Ah! Uma luz! Estou vendo uma luz. Bem longe, uma pequenina luz de cor azulada no meio da escuridão. Mas, como posso enxergar uma luz e não ver a mim mesmo?
A luz então se aproxima, avoluma-se, e emite centelhas luminosas de infinitas cores. Belíssima!
— Oh! Poderoso Jaguar! Mensageiro viajante dos submundos noturnos e da galáxia. Não sou digno para estais diante de ti. Oh! Deus dos nove passos das transições dos tempos. Finalmente, o longo e último baktun encerrou o seu ciclo. Cumprirás, oh! Magnânimo, o seu destino sobre a terra. Abandonarás esse reino e peregrinarás sobre a superfície aonde conduzirás o destino dos homens durante a grande passagem.
— Mas quem é você e onde estamos? — perguntei à luz.
— Sou um nada diante de ti, oh! Supremo — respondeu-me prontamente, deixando-me mais confuso ainda.
Então, pensei, “se esta criatura luminescente está tão segura quanto ao que sou, é porque ela pode me ver. Assim, se ela descrever a minha forma, poderei saber o que sou, ou pelo menos, o que eu estou sendo para ela”. Imediatamente perguntei-lhe:
— Ser de luz, o que vês quando me olhas?
p. 40— Eu não o faço, oh! Deidade Suprema. Não sou digno de olhar-te — disse a luz.
— Então, como tens tanta certeza sobre mim, se não me olhas? — perguntei.
— Não o vejo, oh! Onipotente, somente o sinto.
Diante daquele embaraço, só me restava uma única alternativa: fazer uso do poder que aquele próprio ser acabara de me conferir.
— Ser de luz, ordeno-te que me contemples e me respondas: vês em mim uma forma humana?
— Sim, oh! Grande mestre. Pois, conduz em si a humanidade inteira.
— O que vês sobre o meu corpo?
— O chapéu sagrado de Quetzal, vos ligando ao centro da galáxia.
Essa última resposta me deixou atônito. Não estaria aquele ser de luz enxergando sobre a minha cabeça apenas o chapéu de palha de Mundico? Se isso for verdade, continuo sendo o Mundico! Neste caso, este ser só está me confundindo com alguém de muita importância em seu mundo.
— Tens nome? — perguntei.
— Sim. Oh! Alteza dos nove passos. Chamo-me Ichik.
— Dizei-me, então, quem és tu em vosso mundo.
— Oh! Meu Lorde, apenas um agricultor das terras baixas de Copán.
— No atual estado em que se encontras, acha-te vivo ou morto?
— Oh! Nono Lorde do submundo, nem uma coisa nem outra, pois, sem a vida, a morte morre.
— Consegues descrever o seu mundo, Sr. Ichik?
— Naturalmente, meu Lorde.
Até aquele momento, pouco, ou nenhum sentido fizeram aquelas respostas. Talvez, pensei, com esta última, conseguirei saber se ainda estou, ou não, ligado à mente de Mundico; e se esse tal Ichik existe, ou se é apenas uma criação da mente delirante de Mundico. Assim, continuou Ichik:
— Meu lorde, meu mundo era perfeito antes de nossos deuses lançarem sobre nós terríveis castigos. Até os nossos reis perderam seus poderes, tornando-se simples mortais. Por isso, imploramos-lhe, oh! Mensageiro Jaguar, traga-nos uma nova era.
Aquela resposta também não proporcionara nenhum avanço. Então, já pouco esperançoso, decidi não mais lhe indagar sobre o seu mundo, mas sobre a sua vida particular.
p. 41— Sr. Ichik? Dizei-me agora, quais os maiores infortúnios que a vida causastes a ti?
— Senhor meu, vivi em um tempo de trevas e penúria. Nosso rei, o glorioso rei da cidade de Copán, Uaxaclajuun Ub’aah K’awiil, fora decapitado pelo então governador de Quirigua, o terrível K’ak’Tiliw Chan Yopaat. Nesse tempo, meu Lorde, eu ainda era um criança e morava em um vale destinado à agricultura. Lembro-me de quando os anciãos nos falavam sobre a riqueza e a fartura dos vales de Copán: colheitas fartas, água abundante e altíssimas colinas que circundavam nossos vales, todas recobertas pelas mais verdes florestas. Quando tornei-me adulto, o sofrimento e a morte já grassavam por toda a região de meus ancestrais. Os reis e os nobres viviam ocupados em conquistar reinos vizinhos por meio da guerra; quanto mais guerras provocavam, mais plantações eram requeridas para alimentar os seus exércitos. Se não bastassem as guerras, os nobres ordenavam a construção de imensos templos e palácios para glorificar os seus reis divinos, aumentando, assim, o sofrimento dos camponeses. O esplendor da cidade de Copán provocou o aumento de sua população. Como resultado, mais e mais pessoas tiveram que se mudar para as regiões dos vales e das encostas das colinas. As florestas das encostas foram sendo retiradas para suprir a crescente necessidade de plantações, construções de moradias e de templos. Com o tempo, os vales férteis já não produziam como antes, pois as encostas das colinas desmatadas erodiram, levando para os vales uma camada de terra infértil. Também, devido à retirada das florestas, o calor aumentou e as chuvas tiveram seus ritmos alterados. Por causa do empobrecimento dos solos e do aumento da população, problemas como disputas por terras férteis, abastecimento e doenças, provocaram uma grande instabilidade entre a população. Para piorar ainda mais a situação, toda a região foi assolada por intensos períodos de seca. Como os reis possuíam o poder para interceder junto aos deuses, tornavam-se cada vez mais exigentes, pois, em troca de promessas de chuvas e prosperidade, requeriam da população tudo o que precisavam para sustentar suas vidas opulentas.
E quando as promessas não se cumpriam, construíam mais templos em louvor aos deuses, e provocavam mais guerras para obtenção de escravos destinados ao sacrifício sagrado. Alguns reis, nem mais se pareciam humanos, tornaram-se tão bizarros que se alimentavam do sangue e das vísceras dos escravos sacrificados. A população faminta e doente não entendia por que os deuses ficaram ausentes. Por fim, os habitantes de Copán, por não acreditarem mais em seus reis, e por não encontrarem mais condições de sobrevivência foram, um a um, abandonando a região. Desde então, meu Lorde, vago pelas sombras ansiando o glorioso dia de seu retorno.
Após o Sr. Ichik ter me detalhado toda aquela sua infortunada trajetória de vida, tive dúvidas quanto à possibilidade de a mente de Mundico ter podido reproduzir todo aquele universo. Mas, se tudo aquilo não está na imaginação de Mundico, seria então, fruto da minha própria imaginação? Mas como solucionar esse mistério? Só há uma maneira de saber, pensei.
p. 42— Sr. Ichik? — chamei-o.
— Sim, Meu Lorde.
— Ordeno-te que sigas o teu caminho.
— É uma honra servi-lo, oh! Caminhante das estrelas.
Imediatamente, a luz foi lentamente se afastando, até desaparecer na escuridão. Isso me levou a crer que o Sr. Ichik não fazia parte, nem da minha imaginação e nem da de Mundico. Mas, se isso for verdade, onde realmente estou? Em alguma parte subterrânea da mente de Mundico, ou em algum tipo de universo paralelo? Como sairei daqui?
Algum tempo depois, notei que outra luz se aproximava. Seria o Sr. Ichik novamente? Então, seu brilho tornou-se intenso, embora menos colorido que da primeira vez.
— Cara!!! Você é muito engraçado! — disse-me esta outra luz. — Acho que já vi você em algum lugar... Talvez numa embalagem de refrigerante, ou em algum desfile de carnaval. Bom, isso agora não importa. Só me responda uma coisa, como conseguiu vir parar aqui vestido assim?
Não conseguia compreender o que aquele outro ser de luz queria me dizer, embora nutrisse a esperança de que a sua presença poderia proporcionar-me algum entendimento sobre aquela estranha situação, já que as informações dadas pelo Sr. Ichik pouco me foram úteis. Então, perguntei-lhe:
— Você, meu caro ser de luz, és também de Copán?
— Não, Sr. Carnaval, sou de São Paulo — respondeu-me.
Ele me chamou de Sr. Carnaval. Isso me fez lembrar o Sr. Ichik e toda aquela sua história de Jaguar das estrelas, meu Lorde etc. Mas, por que razão ele me perguntaria sobre como eu havia conseguido chegar neste lugar vestido de tal maneira? Isso só poderia significar que ele não apenas pode me ver como também sabe onde estamos. Então, comecei a interrogá-lo:
— Tens nome, Sr. Luz?
— Sim, me chamo Eduardo.
— É um prazer conhecê-lo, Sr. Eduardo. Chamo-me Bolon Yokte K’uh.
— Seu nome também é muito engraçado! — disse-me. — Devo chamá-lo de Sr. Bolon, ou de Sr. Ku? Penso que o primeiro nome soa melhor, não acha? Ha ha ha ha!
Ao contrário do melancólico Sr. Ichik, esse Sr. Eduardo parecia ser bastante animado. Assim, continuei com as perguntas:
— Sr. Eduardo? Estais vivo ou morto?
p. 43— Ah! Essa não! Cê tá zoando com a minha cara, num tá? Tudo bem... Eu também zoei com o seu nome, portanto, estamos quites.
Naquele momento, percebi que estava diante de um ser ainda mais estranho.
— E você, Sr. Bolon, também é de São Paulo?
— Não. Venho da constelação de Andrômeda, distante de seu planeta cerca de 2,54 milhões de anos-luz. Sou membro do CEPEIA — Centro de Pesquisas Intergalácticas de Andrômeda, e fui designado pelo grande mestre Kukulkán.
— Ah! Não, Sr. Bolon, pô! Por favor! A brincadeira já acabou. Se continuar me zoando, vou continuar te chamando de Sr. Ku. Agora, sem sacanagem, de onde você é?
O Sr. Eduardo parecia não conseguir me compreender. Então, resolvi explicar com mais detalhes:
— Sou mesmo da constelação de Andrômeda, Sr. Eduardo. Estou aqui para uma missão, embora ainda não saiba qual. Atualmente, estou habitando a mente de um jovem camponês chamado Mundico, que acabara de sofrer um grave acidente de moto.
— Tudo bem, Sr. Ku. Já sei o que está acontecendo. Você não deveria estar aqui, mas como você é um poltergeist e está a fim de fantasmagorizar alguém, resolveu pegar no meu pé enquanto estou em meu estado de animação suspensa criogênica.
Ele agora parecia mais estranho ainda. Contudo, aquela história de “estado de animação suspensa criogênica” poderia ser a chave para esclarecer todo esse drama; apenas tínhamos que melhorar a nossa forma de comunicação. Assim, tentei fazer-lhe outra pergunta:
— Sr. Eduardo? Por favor... — mas antes que eu pudesse concluir a pergunta, ele interviu enfezado:
— Sr. Ku, você já está me enchendo o saco! Saia do meu pé! Vá invadir outra praia, tá! O que quer que eu faça pra você me deixar em paz, hein?! Quer que eu reze? Porque acender uma vela, você sabe, neste lugar, não dá!
Realmente, ele não queria mais se comunicar. Mas, eu não podia continuar ali, sem saber o que estava acontecendo. Foi então que tive outra ideia, tentar a telepatia. Embora Tepeu já tivesse me advertido sobre o fato de que os terráqueos ainda não haviam desenvolvido a comunicação telepática, pensei ser uma solução. Então, concentrei-me.
— Nossa! Caraca!!! Sr. Ku? Acabei de ter um sonho irado! Sonhei que você estava caminhando por um deserto e sobre você havia quatro luas. Então, de uma das luas saíram várias esferas luminosas. Uma delas pairou sobre a sua cabeça, lançou um raio luminoso e você simplesmente se desintegrou!
— Não foi um sonho, Sr. Eduardo. Propositalmente, implantei em sua mente um acontecimento de minha vida.
— Tá brincando...Você quer que eu entre nessa? — duvidou Eduardo em tom irônico.
— Então, Sr. Eduardo — propus um teste —, vou, mais uma vez, projetar em sua mente uma passagem de minha vida, e, antes que você me diga algo, revelarei o que você viu.
— Tá valendo! — concordou Eduardo.
p. 44Em seguida, relatei ao Sr. Eduardo o que passara em sua mente.
— Incrível, Sr. Bolon! Foi exatamente isso que eu vi! Você estava em cima de uma montanha rochosa, formando um círculo com mais oito de sua gente. Depois, vocês se deram as mãos e, das extremidades de seus corpos, feixes de luzes começaram a surgir!
— O que você viu, Sr. Eduardo — expliquei a ele —, é algo tão comum entre minha gente, quanto o ato de vocês terráqueos caminharem. Acoplamos nossos corpos físicos, interconectamos nossas energias cósmicas e nos tornamos seres de luz. Diferente de vocês, que caminham separados, nos agrupamos em emaranhados de energia e nos comunicamos telepaticamente enquanto deslocamos pelo universo.
— Nesse caso — concluiu Eduardo surpreso —, se você não é um poltergeist, então você é um extraterrestre!
— Essa sua definição — tentei esclarecer —, não deve ser aplicada nem a mim e nem a qualquer outro ser visitante que vocês, rotineiramente, denominam extraterrestres. Prefiro dizer que somos como aquele primo em segundo grau, que mora distante e que, vez em quando, chega para uma visita.
— Pensando bem — continuou Eduardo —, como posso ter a certeza de que você não é um poltergeist se passando por um ET, quer dizer, por aquele “primo distante”?
— Há muitas maneiras de saber — respondi. — Mas como posso também ter a certeza de que você não é um poltergeist se passando por um ser cheio de dúvidas?
— Bem... — respondeu Eduardo. — Sei exatamente o que sou e porquê estou aqui.
Aquela sua resposta parecia ser a minha oportunidade de acessar o seu mundo. Então, o provoquei:
— Neste caso, Sr. Eduardo, não acha justo que também me conte sobre você e seu mundo?
— Acho justo — respondeu Eduardo. — Até porque, isso me ajudará a passar o tempo, já que você interrompeu o meu sono criogênico.
Assim, ele pôs-se a contar.
— Bem, como disse-lhe antes, moro em São Paulo. Na verdade, divido um pequeno apartamento com mais sete pessoas. Minha família veio da zona rural do Brasil, mais especificamente do Centro-Oeste. Até onde eu sei, meu bisavô chegou a São Paulo, por volta de 2021, fugindo de uma grande onda de desemprego, pois toda a região onde ele morava se convertera em campos de monoculturas agroindustriais, principalmente de soja, cana-de-açúcar e eucalipto. Era um sistema de plantação que ocupava vastíssimas extensões de terras, mas que utilizava um número muito resumido de mão de obra. Assim, toda a família de meu bisavô, assim como de milhares de outras famílias que viviam nessas regiões, viram-se obrigadas a migrar para alguma cidade grande. Na escola, aprendemos que entre os anos de 2000 a 2025, ocorreu a maior onda de migração campo-cidade, desde a primeira grande frente migratória ocorrida a partir da primeira metade do século XX. Outra coisa que eu sei sobre o meu bisavô é que ele não veio diretamente para a cidade de São Paulo. Antes, ele passou vários anos trabalhando numa gigantesca obra do governo que desviou os leitos de dois rios para suprir a demanda de água da grande São Paulo. À época, a cidade passava por uma série de colapsos devido às secas prolongadas e às ondas de violência. Eu não os conheci, pois morreram muito antes de 2151, ano em que nasci.
p. 45Como eu poderia saber se aquela história de Eduardo não seria apenas uma projeção da mente delirante de Mundico, a qual a minha ainda estava integrada?
A única maneira de saber, pensei, seria continuar explorando a memória de Eduardo por meio de perguntas.
— Até agora, Sr Eduardo, você me contou uma história muito interessante sobre o seu bisavô. Mas, quanto a você? — perguntei a ele. — Por que não me conta sobre a sua história?
— Bem, Sr. Bolon, não sei se a minha história é tão interessante quanto à de meu bisavô. Mas, se quer mesmo ouvi-la, contarei a você — prosseguiu Eduardo. — Passei os primeiros anos de minha vida na favela Caixa d’Água, no bairro Cangaíba, Zona Leste de São Paulo. Assim que completei seis anos de idade, fui conduzido para um centro de formação destinado à crianças pertencentes a famílias de baixa renda. Geralmente, permanecemos nestes centros até completarmos dezoito anos. Na medida em que vamos desenvolvendo nossas capacidades, somos avaliados e designados a setores produtivos.
No meu caso, minha capacidade avaliada qualificou-me para trabalhar no Ministério da Reciclagem, órgão do governo encarregado de reaproveitar praticamente todas as coisas que usamos para sobrevivermos em nosso planeta. Após dez anos trabalhando no setor de reciclagem de metais, fui transferido para a IUCWF, International Union for the Control of Water and Forests. Trata-se de um órgão internacional criado pelas seis corporações mais poderosas do mundo. Essas corporações possuem um poderoso exército e a sua principal atividade consiste em proteger e controlar os principais mananciais de água e reservas florestais que ainda restam em nosso planeta.
Interrompi aquela interessante parte da história de Eduardo para perguntar-lhe se possuía esposa e filhos. Precisava continuar fazendo-lhe perguntas, pois isso me proporcionaria certo controle sobre a ordenação de suas lembranças.
— Desculpe-me por interrompê-lo, mas, possui esposa e filhos?
— Não, Sr. Bolon. São poucas as pessoas que possuem tal privilégio. Como havia lhe dito, passamos doze anos de nossas vidas sendo capacitados e avaliados. Em uma das etapas de avaliação somos qualificados, ou não, para gerar filhos. Aqueles não qualificados, como eu, são imediatamente esterilizados. É uma das maneiras de controlar a superpopulação do planeta. Nosso país resistiu a tal controle de natalidade devido, principalmente, às questões religiosas. Depois, se viu obrigado a aderir a tal programa temendo uma intervenção armada por parte do ICPC, International Center for Population Control, outro organismo internacional criado pela liga das seis corporações.
Aquela história de Eduardo, pensei, era muito bem estruturada para ser um delírio mental de Mundico. Mesmo assim, julguei útil continuar fazendo-lhe perguntas.
— Você disse anteriormente, Sr. Eduardo, que dividia um pequeno apartamento com mais sete pessoas. São membros de sua família?
p. 46— Família? Sim, de certa forma os considero a minha família. Geralmente, Sr. Bolon, as pessoas que não podem gerar filhos são inscritas em um programa do governo chamado GV, ou Grupo de Vida. Nele, você passa a fazer parte de um banco de dados onde é gerado um grupo ao qual você se manterá integrado até o último dia de sua vida. É o próprio programa quem seleciona as pessoas que comporão cada GV, a partir do cruzamento de dados como idade, local de trabalho, nível mental, etc. Portanto, Sr. Bolon, possuir uma família com esposa e filhos, também é um privilégio para poucos neste mundo.
— Antes de contar-me sobre o seu mundo, Sr. Eduardo, você disse que eu havia interrompido o seu sono criogênico. É o estado em que agora se encontra?
— Sim, Sr. Bolon. Há algumas décadas, as pesquisas sobre criogenia humana avançaram a tal ponto que permitiram o congelamento de pessoas sem danificar suas células. Assim, muitas pessoas com doenças incuráveis foram submetidas à criogenia. Porém, faltava ainda uma tecnologia capaz de trazê-las de volta a vida mantendo suas capacidades cerebrais intactas. Após a grande crise mundial de abastecimento, a maioria dos países experimentou graves colapsos, o que ocasionou invasões de suas fronteiras internacionais e guerras. Apesar do alto índice de mortandade, devido à fome, à onda de violência e às epidemias, ainda éramos uma superpopulação com problemas praticamente insolúveis de abastecimento. Com isso, os governos das superpotências se viram confrontados com o maior dilema de todos os tempos: como convencer as pessoas a desacelerarem o consumo de bens, única saída para proteger as reservas naturais, sem, no entanto, provocar o colapso global do Sistema Mundo Capitalista? Muitas medidas foram testadas, como os programas de esterilização de pessoas para diminuir o índice de natalidade. Contudo, a crise no sistema de abastecimento continuava a ser o maior problema de nosso planeta, pois, as superpotências insistiam em manter intacto o sistema capitalista, do qual dependia a manutenção de suas vidas luxuosas. Diante desse quadro, as pesquisas no campo da criogenia humana ganharam significativos avanços. Alguns cientistas e chefes de governo acreditavam que o revezamento de pessoas poderia ser uma saída para resolver tal dilema capitalista. Com grande esforço, conseguiram uma tecnologia capaz de manter pessoas em estados de animação suspensa e depois reanimá-las sem lhes causar nenhum dano físico. Logo, os governos aderiram ao RSP, Relay System of People, um sistema de revezamento de pessoas que obriga os habitantes das megalópoles a permanecerem em estado de animação suspensa durante alguns meses do ano, garantindo assim, a diminuição da produção mundial de bens de consumo. Por essa razão, Sr. Bolon, que me encontro aqui, numa câmara coletiva de contenção de humanos, em estado de criogenia.
p. 47Se Eduardo e sua história forem mesmo reais, concluí, tem a ver com a minha capacidade telepática. Aleatoriamente, conectei-me à mente de Eduardo despertando-o de seu sono criogênico. Mas, será que ele conserva as lembranças de todas as vezes que já esteve sob estado de animação suspensa? Então decidi perguntar-lhe.
— Sr. Eduardo? Você seria capaz de se lembrar de quantas vezes esteve em uma câmara de criogenia?
— Sr. Eduardo? Ainda está aí? Está me escutando? Sr. Eduardo?